Music

Roger Waters – ao vivo

Última turnê do baixista equilibra o repertório de seu comando cerebral do Pink Floyd, sua eterna veia politizada e momentos mais sentimentais

Texto por Abonico Smith e Frederico di Lullo

Foto: Reprodução

Depois de uma breve contagem contagem regressiva, o telão mandou o aviso final (e em alto e bom português!): “Senhoras e senhores, por favor, ocupem seus lugares. O espetáculo está prestes a começar. Antes de começar, duas mensagens públicas. Primeiro, em consideração aos demais espectadores, desliguem seus celulares. Em segundo lugar, se você é daqueles que diz ‘eu amo o Pink Floyd, mas não suporto a política do Roger’, vaza pro bar!”.

Assim começa o show de This Is Not a Drill, a nova turnê de Roger Waters. No biênio 2022-2023 ele vem rodando o mundo com este espetáculo, adiado por conta da pandemia da covid-19. O recado, apesar do idioma traduzido, não foi uma exclusividade do Brasil, por onde passou as últimas semanas. Só que a observação, curta e direta, cai como uma luva para o nosso país. Afinal, em outubro de 2018, no giro antecessor por algumas capitais, o inglês foi protagonista de um dos maiores momentos de vergonha alheia já presenciados no showbiz em solo nacional. Não por culpa dele, claro. Mas por conta da horda de milhares de eleitores do hoje inelegível. Fãs de rock e do Pink Floyd, muitos deles pagaram um ingresso de preço salgado para ficar em um grande embate verbal e ideológico com o seu ídolo. Muitos xingamentos, vaias, gritos contínuos de “mito” e – o mais vergonhoso – diversos “cala a boca e canta!”. Como se fosse possível separar a pessoa do artista, o discurso da performance. Ainda mais no caso de Waters. O paradoxal, no entanto, foi ver a turba de apoiadores do inominável cantar verso por verso de canções como “Money”, “Us And Them”, “Welcome To The Machine”, “Dogs”, “Pigs (Three Different Ones)”, “Comfortably Numb” e as partes 2 e 3 de “Another Brick On The Wall”. Ainda mais durante o show realizado em Curitiba, terra da Lava-Jato, na véspera da eleição do segundo turno presidencial (clique aqui para ler a resenha deste concerto).

Cinco anos se passaram e Roger Waters retornou ao Brasil para trazer This Is Not a Drill a seis cidades (Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo e… de novo Curitiba, na última noite de 4 de novembro). Muito, meia década antes, foi especulado se o artista voltaria ou não ao nosso país, tamanha fora a falta de educação, elegância e cortesia de boa parte de seus fãs. Só que agora, entretanto, os tempos são outros. A extrema-direita já se encontra devidamente fora do Palácio do Planalto e em queda na popularidade. Muitos de seus ícones estão começando a encarar, judicialmente, as consequências de seus desmandos. O golpe articulado fracassou. Lula cumpre seu terceiro mandato executivo em Brasília. E Roger Waters também está um pouco mais velho – acaba de entrar para o grupo dos octogenários e anunciar que não deverá mais excursionar pelo mundo.

Roger continua incisivamente político e disso nunca vai abrir mão. Mas reserva espaço maior na tour para diálogos mais sentimentais com a plateia. Mais revivalista em sua relação sua vida, não fica só acusando comandantes de estado de criminosos de guerra (Reagan, Putin, Bolsonaro): entre falas ao microfone e telão com imagens e frases, homenageia o ídolo Bob Dylan, o amigo Syd Barrett, a mulher e o irmão. E também equilibra mais o repertório entre os discos mais significativos (para ele, lógico) de sua trajetória no Pink Floyd. Isto é, a fase em que o processo criativo do grupo era comandado cerebralmente por ele no decorrer dos anos 1970, compreendida pelos álbuns The Dark Side Of The Moon (1973), Wish You Were Here (1975), Animals (1977) e The Wall (1979). Bem pouca coisa do repertório vem pinçada de sua carreira solo pós-banda. Para os fãs, isso nem importa tanto. O bom mesmo é vibrar com os infláveis voadores de ovelha e porco durante “Sheep” e “In The Flesh”. Emocionar-se com as lembranças históricas do companheirismo de Syd na trinca “Have a Cigar”, “WIsh You Were Here” e “Shine On You Crazy Diamond”. Viajar na reprodução o integral do lado B de The Dark Side…, inclusive com lasers tridimensionais revivendo ali, no palco, o famoso prisma da capa do disco – há quem diga que assistir chapado a este momento ainda melhora bastante o impacto. Ser atropelado pelos martelos fascistas de “Run Like Hell” ou o toque sombrio de uma “Comfortably Numb” de novo arranjo mais lento e soturno para servir como abertura da noite.

Ainda há na atual turnê um brinde exclusivo aos fãs: a inédita e recentemente composta canção “The Bar”, inspirada na luta do advogado de direitos humanos Steve Donziger contra a contaminação tóxica feita por quase trinta anos pela gigante petrolífera Chevron (antiga Texaco) na Amazônia equatoriana e seus consequentes esforços para escapar da responsabilidade pelo escandaloso crime ambiental. É justamente esta a grande novidade incluída no roteiro de This Is Not a Drill, em relação aos espetáculos anteriores (Us + ThemThe Wall): uma música até então não lançada em disco. Carinhosamente revivida ao final do espetáculo em performance acústica e intimista com Waters cercado pelos seus instrumentistas de apoio, aliás, a reprise de “The Bar, colada com “Outside The Wall” é a representação do adeus do ídolo perante seus fãs. De alguém que cultiva a solidez do passado sem deixar de olhar para a frente e contestar as coisas que sempre o deixam insatisfeito. De um cara que nunca quis ser apenas mais um tijolo encaixado na parede.

Set list: Parte 1 – “Comfortably Numb”, “The Happiest Days of Our Lives”,  “Another Brick In The Wall Part 2”, “Another Brick In The Wall Part 3”, “The Powers That Be”, “The Bravery Of Being Out Of Range”, “The Bar”, “Have a Cigar”, “Wish You Were Here”, “Shine On You Crazy Diamond (Parts VI-IX)”, 
e “Sheep”.
 Parte 2 – “In the Flesh”, “Run Like Hell”, “Déjà Vu”, “Déjà Vu (Reprise)”, “Is This The Life We Really Want?”, “Money”, “Us And Them”, “Any Colour You Like”, “Brain Damage”, “Eclipse”, “Two Suns In The Sunset, “The Bar (Reprise)” e “Outside The Wall”.

>> PS: Dias após o encerramento da turnê pelo Brasil, Roger Waters teve suas estadias em Buenos Aires e Montevidéo negadas por alguns hotéis destes países. O motivo: as recentes declarações feitas pelo artista contra a violência extrema utilizada por Israel para responder ao atentado coordenado pelo Hamas no último dia 7 de outubro, contra civis e militares do país. Waters, então, optou por continuar hospedado em São Paulo e se deslocar às duas cidades nos dias de cada apresentação.

Movies

Quando Eu Me Encontrar

Dupla de diretoras do Ceará estreia com filme sobre os sentimentos do luto que chega após a perda de uma pessoa bem próxima

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Divulgação

Lidar com a perda é, possivelmente, uma das mais difíceis experiências de nossas vidas. É uma das poucas que é universal: chega para todos e fica cada vez maior, à medida em que os entes queridos e conhecidos falecem ou somem para nunca mais voltar. Esse segundo caso, ao que parece, é o mais dolorido, e é o mote do longa-metragem Quando Eu Me Encontrar (Brasil, 2023), das estreantes de Fortaleza Amanda Pontes e Michelline Helena.

O filme, mais um concorrente exibido na Mostra Competitiva Brasileira do 12° Olhar de Cinema, retrata como a fuga de Dayane muda a vida de sua mãe Marluce (Luciana Souza), sua irmã adolescente Renata (Pipa) e seu noivo Antônio (David Santos). A cantora Di Ferreira interpreta Cecilia, amiga de Dayane e a única que talvez saiba seu paradeiro. Começamos a projeção com um plano da cidade à noite, o mar batendo contra as rochas da praia de Fortaleza. Em off, Marluce e Dayane (de quem só ouvimos a voz) cantam “Preciso Me Encontrar”, o clássico samba de Cartola que tão bem imprime a melancolia brasileira.

Essa escolha musical é, no entanto, o componente mais brasileiro da forma do filme, que não parece certo da história que pretende contar. A abordagem de Pontes e Helena é de uma mise-en-scène estática, competentemente iluminada e que trata os cenários como atos de uma peça, em que conflitos se encerram com uma das personagens se retirando enquanto a outra permanece em cena, imóvel e em silêncio. Não há closes que explorem o rosto das ótimas atrizes e atores do longa, muito menos movimentos de câmera que adicionem materialidade aos eventos de Quando Eu Me Encontrar. A história que nos é contada soa, muitas vezes, plástica, falsa.

Uma decupagem minimalista, é certo, não significa ausência de qualidade ou mesmo preguiça. Tudo depende da história que se quer contar e uma narrativa como essa, que planeja focar nos sentimentos e paixões de três personagens distintas, não é favorecida pela escolha de um olhar tão distanciado à câmera. O poder da imagem é tolhido por uma direção descritiva, que não adiciona discurso às imagens que fotografa. Vez após outra, assistimos a conversas que não parecem reais estampadas sobre cenários que não parecem vividos, que por sua vez são iluminados sem criatividade. Um mundo sem textura, em que todo e qualquer conflito se torna monótono. Há narrativa, há até intenção, mas embaçadas pela falta de expressão da direção.

No entanto, é inegável a potência da atuação do trio de protagonistas, Luciana Souza, Pipa e David Santos. Se há materialidade em Quando Eu Me Encontrar, está na atuação contida de Souza, na raiva juvenil e ressentimento de Pipa, na entrega de um homem que nem sequer percebe o relacionamento que tinha por Santos. É uma pena que não pudemos assisti-los de perto, interpretando falas e comportamentos que lhes entregassem mais densidade, ao invés de retirá-la em nome de uma abordagem superficial de um conflito tão profundo.

TV

O Livro de Boba Fett

Personagem “ressuscitado” em The Mandalorian volta ao Universo Star Wars em nova série feita para o streaming

Texto por Tais Zago

Foto: Disney+/Divulgação

Como sou uma fã (às vezes) controlada do Universo Star Wars, eu estava guardando a série O Livro de Boba Fett (The Book Of Boba Fett, 2021 – Disney+) para devorar inteira quando chegassem todos os capítulos. E foi somente quando o sétimo episodio foi ao ar, em 9 de fevereiro, eu imediatamente peguei minha bacia de pipoca e um litrão de guaraná e estacionei na frente da TV para uma longa maratona. 

O personagem Boba Fett, criado por George Lucas, recebeu seis minutos (e uns quebrados) de espaço na trilogia “original” de Star Wars. Apareceu primeiro em Episode V – The Empire Strikes Back (1980), prendeu Han Solo, teve umas quatro falas e foi devorado pelo verme gigante Sarlacc durante Episode VI – Return Of The Jedi (1983). Antes disso, apareceu brevemente no especial para a televisão feito em 1978. Mas o personagem não é apenas o que os filmes brevemente mostraram – um mero bounty hunter crime lord com uma armadura de Mandalorian e a serviço de Jabba The Hutt. A história do jovem Boba começa a ser mostrada em Episode II – Attack Of The Clones (2002), onde ele é um menino, um clone de Jango Fett, criado e treinado como seu filho. Após o filme, sua história continuou sendo contada na animação feita para TV Star Wars: The Clone Wars (2008).

Em 2010, Lucas já planejava uma série para detalhar alguns dos planetas apresentados na primeira trilogia e seus personagens. O projeto somente tomou forma em 2019 com a parceria com o ator, produtor e diretor Jon Favreau, que resultou no sucesso The Mandalorian, o primeiro live action do USW criado pela Lucasfilm para a plataforma de streaming Disney +. Temporalmente, os acontecimentos tanto em The Mandalorian como The Book Of Boba Fett ocorrem cinco anos após Episode VI – Return Of The Jedi. Portanto, entre os episódios 6 e 7 dos filmes da saga.

Favreau “ressuscitou” o mercenário Boba no final da segunda temporada de The Mandalorian (2020). Supostamente, ele sobreviveu à “digestão” do Sarlacc e se juntou à tribo dos Tusken, onde viveu por cinco anos no deserto. Interpretado por Temuera Morrison (que também fez Jango Fett), Boba ressurge das cinzas para colaborar com o mandaloriano Din Djarin, personagem de Pedro Pascal, junto a uma sidekick e também (ex-)bounty Hunter chamada Fennec Shand (Ming-Na Wen). O spin-off já estava planejado e quem assistiu até o encerramento dos créditos do último episódio da segunda temporada de The Mandalorian sabia disso – ali descobrimos que Boba e Fennec continuariam sua parceria.

Finalmente paz entre os mundos. Boba assume o posto de Jabba The Hutt em Tatooine e tem Fennec como sua fiel escudeira. No começo, ele é recebido com receio e desconfiança pela população, mas aos poucos se fortalece. Seria tudo perfeito se não fosse pela corrupção dos outros senhores do crime do planeta, em sua condescendência enquanto traficantes usam Tatooine como rota de Spice, uma substância ilícita, com aparência de um pó dourado e requisitada em toda a galáxia. 

Um enredo simples, mas também com espaço para absolutamente tudo acontecer (e os diretores, junto com Jon Favreau, não fazem segredo disso). Estamos diante de um space western da melhor qualidade com a digital clara de Robert Rodriguez. Uma mostra disso são os três (1/3/9) episódios dirigidos por ele nessa primeira temporada. Rodriguez adora o absurdo e o exagero do badass, do mocinho com atos espetaculares que beiram o caricato, gosta de cor, tem senso de humor. Robert não é um dead serious devoto da sagrada saga, apesar de ser fã confesso. Ele já tinha sucumbido à tentação de dirigir um episódio de The Mandalorian e depois de negar muitos convites se rendeu ao poder do canal de streaming

Para nossa grande satisfação, somos agraciados com antigos e novos personagens, novos monstros, VFX de qualidade e uma trilha sonora maravilhosa. Já as atuações são medianas, o que na balança final conta pouco diante do tanto de peso estético. Como nada é perfeito, temos a polêmica em torno do episódio onde Luke Skywalker aparece “rejuvenescido” digitalmente com o uso de deepfake, um dublê de corpo e uma voz produzida no Respeecher. O nome de Mark Hamill aparece nos créditos mas é discutível aqui o caminho que se traça ao atender à nostalgia dos fãs sacrificando o trabalho do ator nesse processo.

Fora isso, The Book Of Boba Fett, assim como The Mandalorian é um entretenimento de primeira, muito bem pesquisado, com todos os elementos que gostamos do conhecido USW e com o plus da grana da Disney. Portanto, o céu não é mais o limite onde a aventura percorre o infinito do universo com outlaws como (anti-)heróis. Ah! E pra quem sentiu saudades tem Pedro Pascal nos dois últimos episódios, tem Grogu e até The Machete, Danny Trejo (em uma participação num episódio dirigido pelo Robert Rodriguez, claro!). The Book The Mandalorian se desenrolam paralelamente, o que abre aqui a possibilidade de troca-troca entre personagens de uma ou outra serie. É um truque já bem antigo, mas efetivo, pra fazer o fã-clube consumir tudo do multiverso SW. E as próximas series já apontam no horizonte: Obi-Wan Kenobi já entrou em pós-produção e Ahsoka também está encaminhada. E ainda teremos a terceira temporada de The Mandalorian em 2022. Mais uma caixa de pandora foi aberta.

Movies, teatro

A Tragédia de Macbeth

Joel Coen filma clássica peça de Shakespeare e volta a suscitar o debate sobre a diferenciação entre palcos e telas

Texto por Luca Passos

Foto: Apple TV+/Divulgação

Mais uma adaptação do teatro ao cinema, mais uma abertura para voltar à discussão que exercita mãos e bocas de estudiosos das duas artes há tempos: a diferenciação essencial dos palcos e das telas. O rótulo pejorativo “teatro filmado” seguiu por muito tempo, dentro da crítica de cinema, aqueles filmes que não se propunham a ser mais do que uma captação da imagem dos atores e das atrizes e a gravação de suas falas. Ao contrário, o filme real deve, idealmente, tratar o material-fonte escrito – seja uma peça ou um roteiro – de modo a se utilizar do específico do cinema enquanto arte, assim não apenas justificando a escolha da mídia, mas também, pela própria consciência desse dever que o diretor traz, realçando a obra em todos os seus aspectos. Resta-nos, portanto, tentar desvendar se esta nova gravação de uma das mais famosas peças shakespearianas, A Tragédia de Macbeth (The Tragedy Of Macbeth, EUA, 2021 – Apple TV+), consegue tal feito, seja a conquista ao menos parcial. 

Como acontece com toda boa história, são necessárias poucas palavras para fazer um resumo: o enredo versa sobre a ascensão e queda do regicida Macbeth (Denzel Washington), apoiado em sua crescente loucura de ambição pela não menos ambiciosa Lady Macbeth (Frances McDormand). A trama é profetizada logo nos minutos iniciais do filme pelas famosas Bruxas (interpretadas corporal e espetacularmente por Kathryn Hunter) e também é sustentada por elas, que vêm e voltam durante todo o filme. A grande espiral de paranoia e arrependimento em que o casal principal cai durante todo o filme tem grande vazão visual: os delírios, sonoros ou visuais, são constantes. Essa descida é acompanhada por um vasto mosaico de personagens secundários e terciários que orbitam o centro de poder e lamentação dos Macbeth. No entanto, a vida na nobreza, com seus títulos, seus castelos e seu jogo político, não parece ser mais que um adorno da profunda exploração da natureza humana que permeia tanto a peça original quanto, mais por consequência do que por mérito, o filme.

Nesse sentido, o diretor (e também roteirista) Joel Coen, no primeiro esforço sem seu irmão Ethan, agora aposentado da cadeira de diretor cinematográfico, filma a história de aproximadamente 400 anos com um grande acento minimalista, elaborando cenários que oferecem apenas o essencial à mise en scène. O apelo dos filmes do diretor Carl Theodor Dreyer, fortemente influenciado pelo teatro, é crucial ao diretor, que faz como o dinamarquês ao sobrevalorizar a atuação, o rosto dos atores e das atrizes. A câmera de Coen não investiga as pessoas que filma, são essas mesmas pessoas que parecem investigar as palavras que saem de suas bocas, e nós apenas observamos esse espetáculo. É, de fato, espetacular acompanhar atores e atrizes do peso dos protagonistas interpretarem personagens que já passaram nos corpos de tantos outros. Mas um filme não pode ser só isso. Existe ainda o risco de se cair no teatro filmado.

O mais velho dos Coen sabe bem usar e movimentar sua câmera e uma composição cadenciada de luz e sombra, a repetição variada de certos elementos geométricos, o som abafado, o desfoque dramático. Mas para quê, exatamente? Em que espaço sua câmera se projeta? De onde vêm a luz e a sombra? No coração de quem elas guerreiam? Esse drama, essa tragédia toda reflete algo ou é apenas o trabalho desinteressado sobre um texto, este sim, profundo? Há, pelo que parece, uma grande fábrica subterrânea nos galpões da A24 (produtora do filme) onde se confecciona um verniz que é aplicado na maioria das obras por ela executadas, um produto que se passa sobre cada obra a ponto de fazê-la brilhar para os prêmios e festivais. Um plasma que encapsula tudo o que é de bom gosto. Não há como mentir: os planos do filme são agradáveis, vistosos, e serviriam, sim, como um bom papel de parede, uma fotografia no centro da sala, perfeita em si mesma como adereço. Porém, o cinema não é o teatro filmado de modo aprazível. O cinema é o que vaza.

É estranho que o texto de Macbeth caia como uma luva na filmografia de Coen – a história da ambição de um homem e sua posterior derrocada apenas transposta dos rincões estadunidenses para a Escócia feudal – e, mesmo assim, o diretor patina ao tentar dar uma significância cinematográfica às palavras do texto de Shakespeare. Tudo cai no vazio dos símbolos imagéticos que já nascem esgotados e teimam em se repetir durante todo o filme, como se Joel quisesse que víssemos neles a essência do texto de William Shakespeare. Se isso fosse verdade, Macbeth, enquanto obra, nunca teria chegado nestes tempos. No entanto, ele bem consegue fazer de todos esses cacoetes ancorados tão somente nas atuações dos personagens o centro de seu filme. Diferente do já citado Dreyer, que compreende os espaços como jogos cênicos, mesmo que sejam quase vazios, Coen realmente faz suas personagens e imagens ficarem presas a um nada.Tudo o que aparece no filme é um mundo que não existe sequer em si mesmo, e que, no entanto, não tem a menor força de atração: é frio e esquemático, algo que repele, mas que ao mesmo tempo temos que acompanhar, por ser a única coisa disponível.

Tudo fica, portanto, contido em si mesmo, nada vaza ou se sobressai de sua própria aparência num estado sentimental. As próprias atuações são, como já disse, atuações. Nunca nos vendem algo fulcral: a realidade. A filmagem vira também um teatro, passível de desacobertamento pelo público durante o próprio ato da projeção: pecado capital do cinema. Tal qual o personagem Macbeth, que às cegas tenta lutar contra seu destino já prenunciado pelas Bruxas, também o diretor parece se debater inutilmente, já desde o começo, contra uma obra que excede muito às suas capacidades enquanto realizador. 

Comics, Movies

Bob Cuspe, Nós Não Gostamos de Gente

Longa traz o icônico personagem de Angeli tentando evitar que seu autor dê a ele o mesmo destino trágico de Rê Bordosa

Texto por Abonico Smith

Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

Um dos mais icônicos personagens das tiras de jornal assinadas por Angeli ganha agora os cinemas com a estreia de um longa-metragem derivado da série de animação em stop motion de bonecos criada e exibida pelo Canal Brasil. Por se valer da mesma equipe de profissionais (direção, produção, roteiro, dublagem), o longa-metragem, de uma hora e meia, não só vem afiado como ainda reproduz a mesma linguagem da telinha, misturando os diversos tipos do cartunista em uma espécie de angeliverso, inclusive transformando o próprio criador (mais tudo que o cerca, como o escritório e a esposa) em criatura no meio de toda a trama.

A premissa de Bob Cuspe, Nós Não Gostamos de Gente (Brasil, 2021 – Vitrine Filmes) é simples. Acionado pelos irmãos Kowalski, o velho punk de moicano e argolas no rosto acaba sabendo, através de uma página de HQ desenhada pelo seu autor, que sua vida está em risco. Afinal, está ali, na crise de ansiedade do velho cartunista, a iminência de sua morte. Sem dó nem piedade, tal qual ele fizera muito tempo atrás com outra de suas queridas criações, a Rê Bordosa. E mais: o ambiente no qual Bob habita começa a ser infestado por mini Elton Johns. Com a capacidade de se fundirem em uma enorme hidra, as pequenas e insistentes criaturas mutantes – sempre com um visual chamativo diferente – perseguem o protagonista com a única intenção de matá-lo em nome daquilo que mais despreza no mundo: o pop.

Como punk (old school) que é punk (old school) não aceita a extinção, depois de driblar os Eltinhos lá vai ele em direção ao seu criador para confrontá-lo. Então, começa um obstinado road movie em direção ao prédio de Angeli. Durante a viagem, encontra como coadjuvantes de luxo marcos da trajetória deste como o editor Toninho Mendes (que transformou Angeli em ícone dos quadrinhos alternativos através da revista Chiclete com Banana), a amiga Laerte e alguns outros personagens marcantes (Skrotinhos, Rhalah Rikota e até mesmo Rê Bordosa).

Mantendo a linha do seriado, como a explosão de referências gráficas às obras publicadas e o tom semidocumental assumido nas falas do próprio cartunista quando este se coloca como entrevistado de uma equipe de filmagem, a animação evidencia aquilo que sempre esteve muito na cara dos quadrinhos dele (e só não via quem não queria): o universo transposto por Angeli ao papel (e agora às telas) é fruto das ruas sombrias e do udigrudi punk da megalópole paulistana da primeira metade dos anos 1980. Está lá o humor sarcástico, nihilista, muitas vezes corrosivo e politicamente incorreto. Estão lá na trilha sonora bandas que faziam shows obrigatórios nos inferninhos locais da época, como Inocentes, Mercenárias e Titãs. Está lá a atmosfera pós-apocalíptica a la Mad Max que serve de cenário à mente do autor (e ao mesmo tempo morada para Cuspe e os Kowalski). Está lá a verve de tomar decisões que vão contra a corrente. E está lá, sobretudo, o velho cartunista assumindo ser Bob Cuspe uma espécie de alter-ego seu.

Mais intenso e realista do que o primeiro longa baseado na obra de Angeli (Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’Roll, uma animação tradicional em 2D feita pelo gaúcho Otto Guerra e lançada em 2006), Bob Cuspe, Nós Não Gostamos de Gente se torna, ao mesmo tempo, uma declaração de amor e ode a um período de uma riquíssima produção cultural de uma juventude paulistana que cresceu sob a furada promessa de futuro de uma nação governada pela ditadura militar e que ainda não tinha muito pra onde ir – ou pelo menos pensar em ir. Talvez para quem é mais novo do que o auge dos personagens de Angeli essa hora e meia de animação não signifique lá muita coisa, seja tudo menos uma peça de resistência. Contudo, é exatamente disso que voltamos a precisar hoje em dia. Resistência ao padrão, ao normal, à idiotia que insiste, como os mini Elton  Johns, em reinar soberana sobre o solo do estabilishment décadas e décadas depois.