Série provoca riso e choro com protagonistas conflituosos que só pensam em um dar ao outro um “troco” cada vez mais mirabolante
Texto por Tais Zago
Foto: Netflix/Divulgação
Até onde um pequeno desentendimento no trânsito pode chegar quando as duas pessoas envolvidas estão profundamente infelizes e insatisfeitas? Essa é a questão central de Treta (Beef, EUA – Netflix). Não, apesar do nome original, a série – iniciada agora em 2023 – não tem nada a ver com culinária ou alguma paixão carnívora. Nos Estados Unidos, a palavra para a carne bovina também serve como gíria para um desentendimento, um ressentimento ou, mais precisamente, uma “treta” entre pessoas. E esse “bife”, aqui, não é para amadores.
Lee Sung Jin é o criador e o roteirista dessa tragicomédia entre dois personagens completamente diferentes. Amy (Ali Wong) é uma bem sucedida empreendedora. Ela tem dinheiro, um marido considerado “perfeito”, uma filha e todo o luxo californiano na classe artística aos seus pés. Já Danny (Steven Yeun) é um empreiteiro endividado e fracassado, lutando para sobreviver e sustentar o irmão mais novo, enquanto sonha em comprar uma casa para seus pais. Em um cenário comum, os dois nunca coexistiriam. Apesar de ambos terem origem asiática, nada mais parece conectá-los. Até que um desentendimento no estacionamento de um shopping center – Amy buzina incessantemente enquanto Danny se recusa a sair da vaga – culmina em uma absurda perseguição pelas ruas de Los Angeles, quando ambos infringem diversas leis de trânsito e colocam pessoas em risco. Logo o acontecido cai nas redes sociais e assim se inicia uma procura dos dois por “investigadores amadores” de bairro da localidade de Calabasas.
A comediante e stand up Ali Wong nos entrega uma Amy profundamente frustrada e em conflito com suas verdadeiras vontades e a realidade da vida que ela construiu para si mesma. Se tudo é tão perfeito, por que ela ainda se sente infeliz? Esta é a questão que já nos acompanha a partir do primeiro episódio e continua até o último. Já Steven Yeun, mais conhecido do grande público por sua atuação como o Glenn de The Walking Dead, interpreta um Danny repleto de medos e insatisfações, apesar da sempre aparente autoconfiança, ele é castigado pelos seus sentimentos de fracasso e uma depressão que esconde de todos. Em cima da base criada pelos dois, cada episódio se torna uma montanha-russa de paybacks, onde cada decepção diária dos personagens consigo mesmos os leva a montar planos cada vez mais maquiavélicos e mirabolantes um contra o outro. Na vida de Amy e Danny, o foco principal se torna o beef, a treta, a qual nenhum deles parece realmente querer resolver ou perdoar.
Apesar da sinopse nos levar a crer que Treta seria mais uma comédia de slapsticks e vinganças malsucedidas, Lee Sung Jin consegue incluir uma miríade de conflitos internos, traumas e experiências que enriquecem seus personagens de tal forma, que, lá pelo meio, já conseguimos nos compadecer com a imagem horrível, mas real e crua, que Amy e Danny tem deles mesmos. É a queda da máscara construída com muito esforço. Os sonhos despedaçados deixando apenas o desespero e o ódio como substitutos da tristeza. A série possui diálogos e situações hilárias, daquelas de rirmos até chorar. Mas também nos arrasta a um abismo onde choramos sem rir. O toque reflexivo chega até a nos lembrar um pouco as divagações filosóficas do vitorioso do último Oscar, Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo. Uma tendência que parece permear muitas das obras da produtora indie A24, assim como uma forte queda para representações de um psicodelismo surrealista.
Será que não existe um pouquinho de Danny e Amy dentro de todos nós? Eu acho que sim. Ao menos quando invariavelmente descontamos nossas frustrações em discussões acaloradas, porém absurdas e sem utilidade prática, em redes sociais ou em situações mundanas do dia a dia. Nesse quesito, Treta vai além das telas e nos traz questionamentos válidos que podem nos conduzir a uma jornada de autoconhecimento.
A noite é a do tipo “fadada a recordações”, diria o velho homem da imprensa, e o momento especial não poderia ser outro, mesmo porque é único. Sim, só aconteceria mesmo no Brasil (só no Rio?), onde a dobradinha de canções, que passaria batida em todo o mundo aqui tem um significado realmente especial e precisa ser tocada. Tem que por no contrato que tem que ser assim. Por isso, quando os primeiros acordes da primeira música aparecem, o público vem abaixo, piração total. E quando a segunda vem quase emendada, aí a loucura é generalizada. É assim que o excelente público que encheu o Metropolitan (ops, Qualistage), reage no auge do show do Hoodoo Gurus, na sexta 14 de março, no Rio de Janeiro.
Explica-se que tanto “Out That Door” – a primeira – quanto “What’s My Scene” – a segunda – cederam trechos para vinhetas para a programação da Rádio Fluminense FM, que marcou fortemente a derradeira passagem da emissora de Niterói pelo dial na primeira metade da década de 1990. Ou seja, motivo de emoção e saudades de um tempo marcante de verdade. Era a época em que a rádio cobria competições de surfe e as músicas que os surfistas brasileiros ouviam quando iam competir na Austrália rodavam forte na programação, ganhando a pecha de surf music, sem ter nada a ver com o subgênero criado por Dick Dale, Beach Boys e afins. A coisa cresceu tanto que todas essas bandas (parte da new wave/pós-punk/rock australiano oitentista) fizeram turnês concorridas nos anos subsequentes por aqui. A do Hoodoo Gurus, em 1997, por exemplo, lotou duas noites seguidas deste mesmo Metropolitan.
Dito isso – saudosismo uma ova! – o fato é que nesse meio tempão a banda acabou, voltou com discos pouco ouvidos e agora está na turnê do novo álbum, o bom Chariot Of The Gods, que saiu no ano passado. Dele são apresentadas quatro faixas: as boas “World Of Pain”, que abre a noite, e “Equinox”, “uma canção sobre boa sorte”, cantada pelo guitarrista Brad Shepherd; e as nem tão legais assim “Chariot Of The Gods”, a faixa-título, e “Answered Prayers”, que emula Echo & The Bunnymen e não esconde as origens 1980s da banda. Uma pena terem ficado de fora, desse disco novo, três das melhores músicas: “Get Out Of Dodge”, “My Imaginary Friend” e “Carry On”, dotada de um refrãozaço daqueles (procure saber!).
Montar set list, veremos, não chega a ser uma virtude desses aussies. Mas compor música boa, sim, e, vamos e venhamos, em mais de 40 anos de estrada, há um bocado delas pro público cantar do início ao fim. Caso de, por exemplo, “If Only…”, da época em que a banda circulou por aqui, com Dave Faulkner (vocal e guitarra) colocando a massa pra cantar; “Come Any Time”, na abertura do bis; e da deliciosamente pop colante “I Want You Back”. Além de Faulkner e Shepherd, estão na formação o baixista Richard Grossman, completando a trinca remanescente dos shows noventistas por aqui, e o batera Nik Rieth, novo na turma, mas cascudaço. É evidente em todo o show a performance bem ajustada do quarteto e os fabulosos backing vocals de Grossman e Brad Shepherd, inclusive nas músicas do disco novo, que se completam com a voz de Dave Faulkner – este, a propósito, com o falsete em dia.
O show só engrena da metade para o final, o que se explica, de certo modo, pela escolha do repertório. Músicas como “Tojo” e “Poison Pen”, por exemplo, poderiam tranquilamente ser limadas, e não é porque “Leilani” é a primeira música composta pela banda que tem que ser tocada em todos os shows. De outro lado, que falta fazem temas como “A Place In The Sun”, “Down On Me” e “In The Middle Of The Land”, só para citar três das grandes ausências. O que não invalida momentos lindos com em “Castles In The Air” e “1000 Miles Away”, no bis, além da piração total da dobradinha “Out That Door” e “What’s My Scene”, citada lá em cima. O que, no fim das contas, faz dessa passagem do Hoodoo Gurus pelo Rio uma noite e tanto. Que voltem sempre que tiverem um novo álbum pra mostrar!
Na abertura, a banda cover VAAR Surf Band comandou um bailão daqueles. O grupo parece especializado em tocar as músicas das bandas oitentistas australianas – a tal da surf music australiana, vá lá. E aí é um Gang Gajang aqui, um Midnight Oil acolá e outro Spy Vs Spy, tudo hit que todo mundo conhece e curte o tempo todo. O bom é que o quarteto se garante no palco e se esforça para tocar tudo igualzinho às versões originais, a ponto de o vocalista se dividir entre violão, harmônica e até um trompete. O ruim é a execução no final de um inacreditável medley que incluiu Red Hot Chili Peppers e REM juntos! Mas que animou a turma, isso animou.
Set list: “World Of Pain”, “Another World”, “The Right Time”, “The Other Side Of Paradise”, “I Was The One”, “Leilani”, “Answered Prayers”, “Night Must Fall”, “Tojo”, “If Only…”, “Chariot Of The Gods”, “I Want You Back”, “Poison Pen”, “Equinox”, “Castles In The Air”, “Out That Door”, “What’s My Scene”, “Bittersweet” e “I Was a Kamikaze Pilot”. Bis: “Come Anytime”, “1000 Miles Away” e “Like Wow – Wipeout”
Rivalidade entre ex-amigos como analogia da guerra que dividiu as Irlandas solidifica a verve de humor ácido de cineasta britânico
Texto por Abonico Smith
Foto: Fox/Disney/Divulgação
Antes de entrar na resenha propriamente dita é bom passar algumas informações que podem ajudar no entendimento deste filme que ganhou nove indicações para o Oscar deste ano. Inisherin é uma ilha fictícia, criada para ser o ambiente dessa trama. Banshees são entidades mitológicas que pertencem à categoria das fadas. São do gênero feminino e, segundo a tradição celta, elas costumam aparecer para determinadas pessoas como um aviso de que elas bem em breve receberão uma notícia envolvendo a morte de alguém. A Guerra Civil Irlandesa durou de junho de 1922 a maio de 1923 e foi um conflito entre dois grupos nacionalistas que discordavam quanto ao fato da Irlanda pertencer ao Império Britânico e que marcou a criação do Estado Livre Irlandês como uma entidade autônoma do Reino Unido. Em suma, isto acabou dividindo politicamente a ilha em dois países: a Irlanda do Norte, formada por seis dos 32 condados, que segue, de alguma forma, vinculada à Grã-Bretanha; e a Irlanda (ou Eire), constituída pelas outras 26 regiões rebeldes, A parte “do sul”, bem maior geograficamente, é formada por uma população majoritariamente católica, enquanto a divisão “do norte” se divide até hoje entre o catolicismo e o protestantismo herdado dos vínculos reais. Por fim, o cineasta Martin McDonagh é inglês e descende de irlandeses.
Tudo isto posto e sabido, vira uma delícia assistir a Os Banshees de Inisherin (The Bashees Of Inisherin, Reino Unido/EUA/Irlanda, 2022 – Fox/Disney), mesmo com o crasso erro do título adotado pela distribuidora brasileira (alguém poderia avisar por lá que o artigo definido, na língua portuguesa, obedece ao gênero?). A trama se passa na quase erma e muito verde ilha durante o começo do ano de 1923. Os poucos habitantes de lá não possuem muita perspectiva do que fazer em suas vidas: enquanto ouvem tiros de canhões pipocando na guerra que se desenha bem longe, cuidam de suas casas e animais de estimação enquanto jogam conversa fora e bebem. Ir ao bar para se divertir é programação garantida dia sim, dia também.
O desequilíbrio de toda essa tranquilidade acontece quando Colm Doherty (Brendan Gleeson) decide interromper de modo brusco a longa amizade que tem com Pádraic Súlleabháin (Colin Farrell). Assim, de nada, de uma hora para outro, sem qualquer motivo plausível. Quer dizer, sem qualquer motivo na visão de Pádraic, que fica inconformado com o fato e se abala profundamente com a “tragédia”. A questão é que Pádraic é tido com um grande pária pelo resto da ilha. Ninguém em Inisherin o suporta. Sequer o cumprimentam. Os maiores diálogos de sua vida parecem se resumir a três pessoas: a irmã Siobhán (Kerry Condon), o vizinho Colm e o jovem Dominic Kearney (Barry Keoghan), sempre de comportamento errático e imprevisível e outro que não pensa duas vezes em entornar um copo dentro do organismo por não conseguir aceito em casa pelo pai.
McDonagh é um grande diretor e roteirista que trabalha a passos lentos. A cada meia década, em média, entrega uma obra ao espectador. Já possui quatro longas no currículo. Os dois primeiros, Na Mira do Chefe (2008) e Sete Psicopatas e um Shih Tzu (2012) são primores de comédia de humor ácido, com a verve corrosiva tipicamente inglesa. Martin constrói diálogos que fazem quem está na poltrona do cinema (ou no sofá de casa) gargalhar sem sentir culpa de nada em absoluto. Em plena tragédia, inclusive. Não sobra para ninguém. Este seu estilo foi definitivamente abraçado por Hollywood em Três Anúncios para um Crime (2017). Depois de se destacar em diversos festivais pelo mundo e levar cinco dos oito Bafta ao qual concorreu, o filme ganhou dois de sete Oscar, três de quatro SAG Awards e quatro de seis Globos de Ouro.
Apesar de não abandonar a marca registrada da acidez verborrágica, McDonagh faz de Os Banshees de Inisherin seu filme mais denso e dramático. Este é, na verdade, um filme sobre o luto. Ou melhor, o que vem logo após a perda de algo ou alguém para muita gente: a negação, a raiva, a revolta. Pádraic sente isso ao ser descartado sumariamente por Colm e realizar várias frustradas tentativas de se reconectar ao ex-amigo. Fica remoendo dia após dia o pena bunda até o dia em que um trágico acontecimento desperta uma vontade incontrolável de fazer “justiça” com as próprias mãos e dar o troco a quem lhe abandonara. De melhor amigo, vira o pior inimigo.
O contraponto de Colm diante desta ruptura intempestiva e repentina, porém, é o que torna interessante este “duelo”. O diretor e roteirista utiliza o personagem para fazer uma interessante analogia à guerra das Irlandas, mais especificamente o uso da religiosidade diante de suas atitudes. Colm, que sempre toca violino em casa e no bar, passa a ignorar Pádraic porque acha que perde tempo estando com ele, como está em uma idade mais avançada, quer passar a usar o tempo que lhe resta da vida para compor uma obra musical que lhe dê transcendência à vida. Ou seja, que faça com que sua alma seja lembrada posteriormente que seu corpo deixar este plano. Só que sua luta para atingir a glória e a perfeição deve se tornar ainda mais difícil aos poucos. Então, Colm vai desnorteando aos poucos o espectador (claro, Pádraic também) com uma série de atos de extremo radicalismo e coragem, que inclusive vão irritando cada vez mais o novo desafeto.
Outra diferença entre ambos – e que remonta à divisão das Irlandas e à diferença das religiões – é a mais completa ausência da culpa judaico-cristã por parte de Colm. E assim corre a (divertida) rixa entre os dois em uma ilha onde não há absolutamente muito mais nada de concreto para ser feito a não ser a perseguição de um ideal que contrapõe a conservação do mais do mesmo à ambição da superação física e a criação de uma obra “a serviço de Deus”.
Enquanto isso, McDonagh se revela – de novo – um ótimo diretor de atores. As grandes interpretações de Farrell e Gleeson já não chegam a ser uma novidade, já que esta é a segunda vez que a dupla trabalha em conjunto com o autor (a primeira fora em Na Mira do Chefe). No papel de Siobhán, Condon brilha fazendo a voz da lucidez diante da cega obsessão e da mais completa falta de ambição do irmão Colm. Já Keoghan, que vem pavimentando um caminho de filmes cult nos últimos anos (O Sacrifício do Cervo Sagrado, Dunkirk, A Lenda do Cavaleiro Verde) mostra as credenciais, como o sempre bêbado Dominic, para estourar de vez em Hollywood como o novo Coringa, o arquirrival de Batman.
Apesar das nove indicações para o Oscar, Os Banshees de Inisherin não levou nada neste domingo, como já era previsto. Contudo, isso pouco importa. O bom é que Martin McDonagh, com esta obra, mostra ascensão criativa em seu quarto filme e solidifica de vez seu nome no panteão dos grandes cineastas autorais do século 21.Certamente teremos mais humor ácido e histórias fora do comum nos seus próximos filmes.
Segunda temporada da série que explora a aventura no mundo do turismo luxuoso e sua fauna desconcertante encanta os olhos
Texto por Taís Zago
Foto: HBO Max/DIvulgação
Eu preciso confessar para vocês que a primeira temporada de The White Lotus, vencedora de onze Emmys em 2022, à primeira vista, não me empolgou muito. O elenco é inegavelmente espetacular, em especial as atuações de Murray Bartlett como Armond (o gerente da filial havaiana da franquia de hotéis de luxo) e Jennifer Coolidge, como a insensível, autocentrada e deprimida milionária Tanya. O enredo sob o sol escaldante do Havaí, apesar de multifacetado, causou-me incômodo, talvez pela simplicidade dos seus temas. Possivelmente, também, eu não tenha levado em consideração que durante sua concepção e realização estávamos vivendo tempos pandêmicos – o auge da produção data de meados de 2021, e, dadas as condições e as restrições internacionais e sanitárias, foi feito um esforço para criar um conteúdo de qualidade da forma mais segura e rápida possível. O ator, autor, produtor e diretor Mike White, mais conhecido por ter escrito especialmente para Jack Black o blockbusterEscola de Rock (2003), conseguiu criar uma trama em um ambiente relativamente hermético – a cadeia White Lotus é uma espécie de Club Med do nouveau riche norte-americano – e unir de forma interessante drama e humor macabro com bastante equilíbrio.
Na segunda temporada de The White Lotus (EUA, 2022 – HBO Max), com maior liberdade tanto criativa quanto espacial, Mike nos leva para a sede siciliana da cadeia da flor exótica. Temos diante de nós uma nova equipe de funcionários locais trabalhando no hotel e novos hóspedes a serem paparicados sem restrições. O formato da série nos lembra uma versão Upstairs, Downstairs (1971) contemporânea – sucesso britânico da década de 1970 cujo formato televisivo influenciou várias produções, entre elas a festejada série Downtown Abbey (iniciada em 2010), onde os dramas da crew do hotel têm o mesmo peso na narrativa dos dramas dos privilegiados visitantes.
Como personagens recorrentes da primeira temporada temos apenas a confusa Tanya (Jennifer Coolidge) e seu “novo” marido Greg (Jon Gries). Tanya chega ao encantador resort com uma nova assistente a tiracolo, Portia (Haley Lu Richardson). Junto a ela no barco estão dois casais de jovens amigos milionários – Cam (Theo James) e a esposa Daphne (Meghann Fahy), Harper (Aubrey Plaza) e o marido Ethan (Will Sharpe), completando a trupe dos bem-sucedidos temos os Di Grasso – o pai Domenic (Michael Imperioli), o avô Bert (F. Murray Abraham) e o filho/neto Albie (Adam DiMarco). Na frente do comando dos funcionários do hotel fica a gerente italiana Valentina (Sabrina Impacciatore), que nessa temporada assume o papel que Bartlett interpretou na primeira temporada. Completam o elenco ainda as duas garotas de programa locais Luccia (Simona Tabasco) e Mia (Beatrice Grannò).
Mike White não nos economiza no quesito encontros e desencontros. O roteiro possui várias reviravoltas e requisita a nossa atenção aos detalhes, às vezes, escondidos nas próprias imagens paradisíacas e objetos luxuosos. Repetindo o formato da primeira temporada, iniciamos essa jornada com mais corpos sendo encontrados. Do primeiro capítulo, então, voltamos no tempo até a chegada dos turistas ao hotel onde percorremos todo o caminho de volta à cena inicial. Um formato que vagamente lembra a antiga série Ilha da Fantasia, onde os visitantes usam suas férias para trabalhar seus problemas pessoais, dificuldades de comunicação, mistérios e conflitos familiares que a rotina do dia a dia teimava em enterrar.
As atuações são um deleite à parte. Todos os atores italianos merecem aplausos de pé, principalmente Sabrina, Simona e Mia. A leveza e a pungência do humor desse país dão à segunda temporada exatamente o tempero exótico que faltou à antecessora. Gargalhamos do absurdo, assim como gargalhamos do desespero. Ao mesmo tempo nos comovemos e somos encantados por um charme tão natural e genuíno que pensamos que em Taormina, o pitoresco vilarejo siciliano, tudo é permitido.
Visualmente, The White Lotus é uma série de tirar o fôlego. A fotografia, a música, a ambientação, tudo nos leva a viajar pelo mundo do luxo dos resorts e dos cenários de nossos sonhos. É o olhar do turista e, portanto, também há um amontoado de clichês bem selecionados, como um catálogo de uma agência de viagens. A Sicília nos é mostrada pelos olhos encantados dos norte-americanos – com vulcão, praias de água turquesa, palazzos decadentes cobertos de ouro e pinturas renascentistas, vinhedos e ilhas rochosas cheias de mistério. White também não poupou recursos para nos alimentar os olhos. Por outro lado, também não economiza recursos ao esfregar na nossa cara a amargura, a feiúra e a traição latentes no âmago de seus personagens. De novo, não existem aqui mocinhos e bandidos: existem pessoas que ora nos encantam ora nos causam repulsa com suas atitudes. E nós, de uma distância segura, rimos muito de tudo isso.
Em uma entrevista recente, o criador explicou que o tema da primeira temporada no Havaí foi o amor, o da segunda na Sicília foi o sexo e que o da terceira será a espiritualidade. Com isso, já nos deixa na expectativa de qual paraíso desse mundo será o novo destino e na certeza da confirmação da produção da próxima aventura no mundo do turismo luxuoso e sua fauna desconcertante.
Reencarnação da banda de Wayne Hussey mostra em Curitiba como se pode lidar com maestria com o envelhecimento no mundo do rock
Mission
Texto por Abonico Smith
Fotos: iaskara
Saber envelhecer dentro do rock’n’roll é uma arte. Afinal, este é um universo que cobra alto o preço do passar dos anos. A voz muda, o corpo muda, os pensamentos mudam, as vontades mudam, o jeito de ser muda. Fica praticamente impossível querer reeditar algum tempo de glória que ficou reservado lá atrás, às lembranças do passado. Fã que é fã, entretanto, vai querer sempre reviver algo através da memória afetiva disparada por letras, melodias e riffs. Se não for por streaming ou disco, certamente quer aproveitar a chance de estar frente a frente com o artista para ouvir as mesmas músicas que volta e meia entram em seus ouvidos. Muitos estão ali querendo um elo vicioso com uma pessoa ou conjunto de pessoas que quase sempre não existem mais. O que chega a ser duro para muita gente: o de presenciar um arista veterano já bem diferente daquele que toca seu coração. Por isso é necessário sempre se reinventar do lado de cima do palco e, por outro lado, saber aceitar a evolução natural das coisas.
Com o Mission, este diálogo entre banda e plateia se mostrou algo bem fluido e resolvido na última noite de 26 de outubro. O quarteto britânico esteve em Curitiba, na Ópera de Arame, em uma de suas paradas de sua recente turnê de seis datas pelo Brasil. Como o vocalista e guitarrista Wayne Hussey mora há muito tempo no país, ele deu uma privilegiada à terra de sua esposa durante a nova ressurreição da banda que o consagrou durante a segunda metade dos anos 1980. De quebra, trouxe consigo duas importantes peças daquela formação clássica: o baixista e cofundador Craig Adams e o guitarrista Simon Hinkler. Portanto, 75% daquele Mission que a maior parte dos fãs conheceu e passou a admirar.
Só que é impossível parar os ponteiros do relógio e 1986, o ano do lançamento do primeiro álbum, vai ficando cada vez mais para trás no calendário. Os cabelos brancos aparecem (para os escudeiros Adams e Hinkler, a solução foi raspar toda a careca), o peso vai aumentando e aquele gás todo da juventude se dissipa. Tampouco não há mais como ficar sustentando os personagens mezzo hippiesmezzo góticos de outrora, de cabelos compridos e cheios de lenços, maquiagem, bijuterias e figurino vistoso. O grupo não está muito mais cênico, também na performance de palco. Também, já tendo ultrapassado a casa dos 60 anos, não tem mais como se comportar como aquele eterno moleque tipo Peter Pan.
O Mission hoje é muito mais focado na música e tão somente na música. É subir ao palco, pegar os instrumentos e tocar. Sem muita variação, o que confere ao repertório uma veia muito mais punk por conta da crueza impressa aos arranjos, mesmo ainda ornamentados pelos dedilhados e tessituras psicodélicas traçadas pelos dedos de Hinkler. Wayne, por exemplo, empunha sua famosa guitarra de doze cordas do início do fim, o que dá aquela encorpada nas harmonias. Craig, dono de incríveis linhas de baixo, segura com maestria os backings, mesmo na hora dos timbres mais agudos, como os do miolo de “Severina”. E o novo baterista, da metade da idade do resto, senta a mão nas baquetas, conferindo mais peso e pungência a clássicos como “Wasteland”, “Deliverance” e “Like a Child Again”.
Pena que não deu para conferir como ficou a versão 2022 de “Tower Of Strength”. O hit, no disco carregado daquela percussão enevoada de tons zeppelinianos, foi o protagonista do momento “vergonha alheia da noite”. Programado para encerrar o set list, a música foi cortada abruptamente quando a plateia curitibana, louca para ir embora do local porque já havia passado da meia-noite e todos ali corriam o risco de virar abóbora, debandou-se em massa quando o primeiro bis se encerrou ao som de “The Crystal Ocean”. Não adiantou nada dar a deixa de manter as luzes apagadas, esperando a banda tomar uns goles de água na coxia para entregar a canção derradeira.
O Mission de 2022 também não parece nada preocupar em só se alimentar apenas do passado distante. Claro que o grosso do repertório vem de seus primeiros álbuns, mas também há espaço para pérolas não muito conhecidas por quem não é fã hardcore, gravadas em discos mais recentes. “Met-Amor-Phosis”, “Within The Deepest Darkness (Fearful) e “Grotesque” representam bem a verve autoral de Hussey pós-fama, todas elas exemplares de que poderiam ter feito bem mais sucesso caso tivessem sido compostas no tempo em que os videoclipes ainda impulsionavam e muito a popularidade de uma canção. Por outro lado, o grupo também não se prende somente a peças mais conhecidas. Para equilibrar ainda mais o repertório, aparecem raridades como “Naked and Savage” e a cover de “Like a Hurricane” (hora em que o vocalista dá um pseudoesporro nos fãs por estes não saberem cantar a letra do clássico de Neil Young).
Hussey, que cerca de década e meia atrás já havia passado por Curitiba para se apresentar sozinho no palco e cantando uma série de músicas de outros autores das quais sempre gostou, voltou a abrir a gavetinha de seu lado intérprete neste show da Ópera de Arame. No meio de “Swoon”, meteu um trecho de “Heroes”, de David Bowie. Já “Wasteland” foi bastante estendida graças à inserção de “Light My Fire”, dos Doors, e “Marian”, do Sisters Of Mercy. Detalhe (e também uma private joke): o autor desta música não é só Andrew Eldritch; ela é uma parceria com o próprio Hussey, que junto com Craig Adams fora integrante das “irmãs da misericórdia” até a gravação do álbum de estreia (First and Last and Always, de 1985).
Michael Aston’s Gene Loves Jezebel
Se o Mission fez uma apresentação sóbria e cativante do início ao fim, infelizmente, o mesmo não pode ser dito da banda de abertura, a parte norte-americana que usa o nome de Gene Loves Jezebel e está sob a liderança o cofundador Michael Aston (explicando: desde que os irmãos gêmeos Michael e Jay Aston brigaram feio, existem dois GLJ em ação pelo mundo e gravando discos). Primeiro porque o vocalista era uma piada no palco. No melhor e no pior sentido. No melhor: com o bom humor sempre nos píncaros, ele não se furta a fazer palhaçadas, se jogar no chão, rastejar, fingir-se de morto, ir brindar junto ao público, fazer caretas. Diversão garantida. Só que também, muito provavelmente por conta de uma conta alta de abusos, estava completamente sem voz em Curitiba, muitas vezes jogando refrão pra galera e fazendo os fãs do gargarejo suprirem a falta de gogó. Também contou contra justamente a falta de performance junto à banda. Pareciam dois segmentos distintos e desconectados, cada um fazendo o seu e juntando somente no casamento entre base instrumental e melodia.
Também foi desfavorável o fato do set list contar somente com dois hits poderosos (“Desire” e “The Motion of Love”) e estes justamente serem programados para encerrar o show na sequência. Para muita gente ali que desconhecia o todo da carreira do GLJ, ter que aturar nove músicas pode ter sido um porre para ser recompensado em dose dupla lá no final. Afinal, convenhamos: olhando para um espectro maior daquela segunda geração do pós-punk britânico, a que tirou o subgênero do meio alternativo e galgou as paradas ali pelos meados dos anos 1980, a banda nem foi tão grande e popular assim. Ok, tinha uma turma de 40+ colada na grade que sabia cantar cada verso ao lado de Michael e até lhe ofereceu uma insólita bandeira do País de Gales assim que ele se dirigiu ao microfone (sinal de que sabem da história do cara!), mas era uma empolgadíssima minoria.
Se o Mission demonstraria logo depois ter sabido envelhecer bem, esta encarnação do GLJ esbarrou no contrário e não passou de uma mera caricatura de si próprio num passado de quatro décadas. Aliás, caricatura borrada. No look inclusive. Daquele Michael com olhos pintados e o cabelo espetado, bagunçado e cheio daqueles anos 1980 sobrou apenas uma criatura que estava mais para irmão gêmeo (embora seja dois anos mais velho) do Robert Smith, do Cure. Triste.
Set list Mission: “Beyond The Pale”, “Hands Across The Ocean”, “Into The Blue”, “Met-Amor-Phosis”, “Naked and Savage”, “Swoon”, “Severina”, “Like a Child Again”, “Grotesque”, “Butterfly On a Wheel”, “Wasteland”, “Within The Deepest Darkness (Fearful)” e “Deliverance”. Bis: “Like a Hurricane” e “The Crystal Ocean”.
Set list Gene Loves Jezebel: “Heartache”, “Always a Flame”, “Downhill Both Ways”, “Cow”, “Beyond Doubt”, “Suspiction”, “Bruises”, “Twenty Killer Hurts”, “Gorgeous”, “Desire” e “The Motion Of Love”.