Music

Francisco El Hombre – ao vivo

Grupo abre minitemporada em Curitiba incendiando a plateia com energia intensa e a sua típica mistura de sonoridades e referências latinas

Texto por Lucca Balmant e Diego Scremin

Foto: Lucca Balmant

Diminuir a distância entre os países da América Latina é o que o Francisco El Hombre vem fazendo há dez anos, quando o grupo foi fundado por dois irmãos mexicanos. Mateo (voz e violão) e Sebastian Piracés-Ugarte (voz e bateria) rodaram o mundo até se estabelecerem por aqui, mais precisamente na região de Campinas. Desde então, com a ajuda de outros músicos locais criaram uma ponte para diminuir a carência de troca musical afetada pelo idioma. Afinal, o mercado nacional não costuma absorver muito os artistas hermanos que cantam em espanhol e exploram sonoridades características das fronteiras vizinhas (ou quase).

Sendo assim, a banda mistura, além das línguas, as influências da batucada e de outros ritmos da América Latina, criando uma mistura perfeita entre gêneros e olhares de outros países e a música popular brasileira. Esta proposta marcou a volta do Francisco El Hombre a Curitiba em uma série especial de seis apresentações no espaço da Caixa Cultural, divididas em dois finais de semana (23 a 25 de novembro e de 30 de novembro a 2 de dezembro). O grupo trouxe um repertório selecionado especialmente para sua comemorar a sua trajetória. A maioria era em espanhol e com discursos e vieses políticos, sempre como a intenção de demonstrar a luta antifascista e de apoio às comunidades feministas e LGBTQIA+, com muitos discursos individuais com tentativas muito bem sucedidas de se conectar e energizar o público mesmo em um teatro de pequeno porte.

O que mais chama atenção na primeira dessas seis noites foi realmente a performance do FEH e a intensidade com que a realizam. Desde a primeira música via-se Mateo puxando o público a se levantar dos assentos para os receberem com a devida energia. Desde então, não parava de encorajar danças, correrias e cantos aos gritos. Trazendo essa energia estava também Juliana Strassacapa (voz e percussão), sempre vindo até a frente do palco para conversar com as pessoas e puxar coreografias junto a Mateo em vários momentos do show. O quinteto transformou um pequeno teatro numa grande festa, concretizando a fala do próprio grupo durante o show (“Francisco El Hombre és pura fiesta!”)

Junto à energia de Mateo e Juliana, Sebastian quebrava a bateria acompanhado de ritmos da percussão, além de mostrar sua bela voz enquanto tocava ritmos complexos. Ainda havia no palco Helena Papini e Andrei Martinez Kozyreff, que não ficam nada atrás do resto do grupo. Mostrando toda a sua habilidade nas cordas, Helena trazia linhas calorosas de baixo, vindo até a frente do palco fazer festa enquanto solava e groovava. Andrei, um pouco mais acanhado, não passava despercebido com timbres e riffs marcantes na guitarra, com aquele toque psicodélico de Ave Sangria. Para completar as cordas, o próprio Mateo tocava o violão numa forma mais clássica e com muitos ritmos latinos, surpreendendo por mostrar uma performance tão boa no instrumento enquanto entretinha o público como frontman. De resto, efeitos modulares de synths chamavam a atenção de todos com sonoridades experimentais.

Em um teatro com capacidade para 125 pessoas e com cadeiras marcadas, a energia do FEH era surreal. Ela se espalhava pelo ambiente sem parar, fazendo todos levantarem dos assentos e, numa noite chuvosa e fria de quinta-feira, dançarem e suarem de um lado para o outro, mesmo no menor espaço possível. Este detalhe definitivamente não foi capaz de interromper nem conter a conexão e a pulsação da banda. Para marcar a noite de estreia dessa minitemporada na cidade, foi um show sensacional.

Set list: “Tá Com Dólar, Tá Com Deus”, “Como Una Flor”, “Arrasta”, “Loucura”, “Triste, Louca ou Má”, “Sincero”, “Calor da Rua”, “CHAMA ADRENALINA :: gasolina”, “CHÃO TETO PAREDE :: pegando fogo”, “Batida do Amor”, “Soltasbruxa” e “MATILHA :: cólera ou coleira”.

Music

NX Zero

Oito motivos para não perder a nova turnê nacional do quinteto, que está voltando à ativa depois de uma pausa de seis anos

Texto por Frederico Di Lullo

Foto: Cesar Ovalle/Divulgação

Grande sucesso no rock brasileiro dos anos 2000, o NX Zero está voltando aos palcos com sua formação original, composta por Di Ferrero (vocais), Gee Rocha (guitarra), Caco Grandino (baixo), Daniel Weksler (bateria) e Fi Ricardo (guitarra). A tour Cedo Ou Tarde começou em maio e até dezembro irá passar pelas cinco regiões do Brasil – mais informações sobre datas e shows você pode ter clicando aqui.

A banda, que acumula mais de 20 anos de estrada contando este recente intervalo das atividades em conjunto, lançou seis álbuns de estúdio, emplacou diversos hits e é um verdadeiro baluarte da geração emo nacional. Anos depois do boom, o NX Zero anunciou uma pausa nas atividades em 2017. Agora vêm os primeiros shows desde então. Músicas como “Razões e Emoções”, “Daqui Pra Frente”, “Pela Última Vez”, “Hoje o Céu Abriu” e a própria “Cedo ou Tarde” – que foram a trilha sonora de adultos, outrora jovens apaixonados e descrentes da vida amorosa – voltam a ser executadas ao vivo pelo quinteto.

“A gente está muito empolgado. Ficamos nos olhando, lembrando, parece que foi ontem que a gente deu uma pausa. Estou sentindo que vai ser um dos momentos mais incríveis das nossas vidas. Depois de várias histórias que cada um viveu nesse tempo, vamos trazer essa bagagem pra essa tour. Não vejo a hora de tocar”, contou Di Ferrero sobre o retorno aos estúdios para ensaiar para este giro nacional.

Por isso, seja pelo gatilho emocional, saudosismo ou apenas por querer participar de tudo, aqui citamos oito motivos para não perder, de jeito nenhum, a tour Cedo ou Tarde.

Reencontro com o seu eu adolescente 

Aquele rapaz ou garota de 15 anos que ficou lá no passado certamente estará orgulhoso de você. A turnê promete trazer um set list repleto de sucessos que marcaram a carreira do NX Zero. Prepare-se para cantar junto e relembrar os hits que embalaram aquela geração.

Energia contagiante

Os shows do quinteto sempre foram conhecidos pela energia intensa e entrega total da banda. Não importa se foi em 2001, 2004, 2007, 2017 ou se será agora em 2023: certamente haverá uma experiência eletrizante, durante a qual você se sentirá parte de algo maior, do seu passado ou até mesmo do presente.

Pura nostalgia

As letras do NX Zero sempre abordaram temas profundos, relevantes e intensos. Por isso, que tal aproveitar o reencontro para refletir sobre a vida, os desafios e as emoções que todos nós enfrentamos àquela época? Será que hoje é aquilo que você esperava?

Impacto cultural (leia-se o emo nunca morreu)

As pessoas podem falar o que quiser, mas é inegável que esta é uma das bandas mais influentes do cenário musical brasileiro. Seja pelo seu passado, pelos sucessos que se cravaram no íntimo de milhões de jovens ou pelo rebuliço que gerou o anúncio da atual turnê, o NX Zero moldou boa parte da sociedade contemporânea deste país. Pelo jeito, o emo nunca morreu: apenas estava adormecido no peito do agora jovens adultos.

Produção de alta qualidade

Espere um espetáculo visualmente impactante, com luzes, cenários e efeitos especiais que tornarão cada concerto uma experiência única. Segundo a organização da turn6e, este show irá explorar a interação com público e a criatividade no uso de led, conteúdo e tecnologia.

Momentos inesquecíveis

Os shows do Nx Zero são conhecidos por proporcionar momentos inesquecíveis aos espectadores, que sempre saem mexidos ao final. Seja cantando em coro, pulando junto com a banda ou se emocionando com uma balada especial, cada momento vivido é para ser guardado na memória para sempre. Pergunte a quem é fã.

Amostra grátis

Quem assistou in loco aos shows do festival Mita dias atrás (ou viu pelo streaming e TV a transmissão do fim de semana no Rio de Janeiro pela dobradinha de canais Bis e Multishow) pode atestar. Um dos headliners da escalação nacional, o grupo mostrou que está bastante afiado e com as baterias recarregadas para percorrer boa parte do território nacional nessas viagens. 

Saia do isolamento virtual

Em tempos de isolamento virtual da humanidade, nada se compara à experiência de assistir a um show ao vivo. A energia da plateia, a interação com os fãs e a entrega dos músicos no palco criam sempre uma atmosfera única e inesquecível. O tempo pode ter passado se você é de uma geração antiga, mas sempre vale a pena se reconectar com seu interior de nem menor idade. Se você já nasceu com um mouse na mão, tente descobrir as maravilhas que vivíamos antes de toda essa tecnologia de comunicação viciar a gente.

festival, Music

War On Drugs + Weyes Blood + Black Country, New Road – ao vivo

De fadinhas e de guitarras: C6 Fest escancara abismos geracionais em sua noite de encerramento

War On Drugs

Texto e foto por Alessandro Andreola

Passados os primeiros momentos de euforia, como acontece no anúncio de qualquer festival, seguiu-se a gritaria. Primeiro, reclamou-se — com razão — do alto preço das entradas. Depois, da estrutura: como acontecia em seus antepassados Free Jazz e Tim Festival, o ingresso do C6 Fest era por palco, não por dia. Acostumada há mais de uma década com o Lollapalooza e congêneres, uma parte do público não perdoou e caiu matando em cima da organização.

O peso desses fatores no baixo comparecimento ao evento ainda precisa ser mensurado, mas o fato é que, em sua última noite em solo paulistano (21 de maio), o C6 Fest teve belos shows para um público reduzido. Isso ficou tão evidente que antes do headliner War On Drugs subir ao palco, a organização liberou o acesso à tenda em que a banda se apresentaria. Não tivesse feito isso, possivelmente teríamos um fiasco de audiência.

A abertura da noite coube à nova roupagem dos ingleses do Black Country, New Road. Convertidos em um sexteto após a repentina saída do vocalista (e principal compositor do grupo) Isaac Wood, a banda precisou se reinventar. Suas primeiras apresentações no Brasil foram reflexo disso: agora revezando os vocais entre os seis integrantes, eles descartaram todo o repertório dos dois primeiros discos e se concentraram apenas em novas composições, reveladas no recente Live At Bush Hall

Se por um lado estiveram muito longe de fazer um mau show, por outro as novas músicas não estão no mesmo patamar das escritas por Wood. Nos álbuns de estúdio, o demissionário cantor exalava uma energia caótica, como um Jarvis Cocker prestes a ter um ataque epiléptico. As canções eram mais declamadas do que propriamente cantadas, criando uma ambientação hipnótica e algo teatral. Isso tudo agora é História: em sua versão 2.0, o Black Country, New Road é um coletivo calminho cujo som não raramente descamba para uma espécie de “folk de fadinha”. Tudo muito bem tocado, mas desprovido do peso e da tensão que caracterizavam o som da banda. Os fãs mais jovens, no entanto, não estavam nem aí e vibraram. Os mais velhos, que claramente estavam ali pelo War On Drugs, toleraram de forma benévola.

Falando em fadinha, a estreia em solo brazuca de Natalie Mering, também conhecida como Weyes Blood, levou à tenda montada no Parque do Ibirapuera um clima “ninfa da floresta”, que mais uma vez dividiu gerações — um público novinho e visivelmente emocionado nas primeiras fileiras contrastava com os resmungos que se ouviam ao fundo, próximo aos bares. Vestindo uma túnica branca, Natalie correu contra o relógio para entregar no escasso tempo de sua apresentação os hits dos seus dois últimos álbuns, os excelentes Titanic Rising (2019) e And In The Darkness, Hearts Aglow (2022). A cantora esbanjou simpatia e levou em troca a calorosa recepção de um público que, em parte, estava lá unicamente para vê-la. Tanto que, ao fim da apresentação, uma verdadeira turba abandonou a tenda, deixando-a para meia dúzia de gatos pingados.

Os que ficaram, porém, era em sua maioria devotados fãs do War On Drugs. A banda da Filadélfia capitaneada por Adam Granduciel é dona daquele que talvez seja o melhor álbum da década passada: Lost In The Dream, de 2014. Desde então, os esparsos fãs brasileiros esperavam ansiosamente a vinda de Graduciel e sua trupe, que não decepcionaram: mesmo sem muita interação com o público, concentraram-se no material dos três últimos discos em um set enxuto, mas feito sob medida para agradar os seus admiradores. Aqui, a fórmula é muito simples — o War On Drugs é um grupo à moda antiga, cujas músicas são longas e os solos idem. O protagonismo está nas guitarras e suas principais referências são Bob Dylan e Bruce Springsteen. Tudo isso em pleno 2023 — logo, não espanta que o grosso de seu público seja formado por quarentões, que se regozijaram com cada acorde, formando até mesmo uma inusitada roda de pogo em frente ao palco. Ao fim, uma longa versão de “Under The Pressure”, que abre o álbum de 2014, lavou a alma dos fãs.

No fim das contas, o C6 Fest se mostrou um festival correto, independente da idade dos frequentadores. A curadoria segue sendo o forte, desde a época do velho Free Jazz. Com shows começando pontualmente e sem grandes filas para comprar bebidas ou nos banheiros, terminando em um horário adequado para um domingo à noite – antes das 23h na tenda —, o evento mostrou respeito aos frequentadores. Para 2024, seria bom rever a questão do alto valor do ingresso. Aliás, uma pauta que serve a todos os grandes festivais realizados no Brasil.

Set list War On Drugs:  “Pain”, “An Ocean In Between The Waves”, “I Don’t Wanna Wait”, “Victim”, “Strangest Thing”, “Harmonia’s Dream”, “Red Eyex”, “Eyes To The Wind”, “I Don’t Live Here Anymore” e “Under The Pressure”.

Set list Weyes Blood: “It’s Not Just Me, It’s Everybody”, “Children Of The Empire”,”Grapevine”, “Andromeda”, “God Turn Me Into a Flower”, “Everyday”, “A Lot’s Gonna Change”, “Something To Believe”, “Twin Flame” e “Movies”.

Set List Black Country, New Road: “Up Song”, “I Won’t Always Love You”, “Across The Pond Friend”, “LaughingSong”, “Horses”, “Nancy Tries To Take The Night”, “Turbines/Pigs”, “Dancers” e “Up Song (Reprise)”.

teatro

O Bem-Amado Musicado

Obra-prima de Dias Gomes ganha nova encenação e choca ao expor a olhos nus o país de hoje em um texto de seis décadas atrás

Texto por Abonico Smith

Foto: Festival de Curitiba/Divulgação

Soteropolitano de nascimento e radicado na cidade do Rio de Janeiro desde a adolescência, Alfredo de Freitas Dias Gomes é um nome intrinsecamente ligado à dramaturgia. Ganhou popularidade em todo o país a partir da formação de rede nacional da TV Globo nos anos 1970, quando assinou novelas marcantes como Bandeira 2O Bem-AmadoO EspigãoSaramandaia Roque Santeiro. Mas antes já era bem íntimo de romances literários e peças teatrais. Escreveu a primeira encenação aos 15 anos de idade e foi muito produtivo entre as décadas de 1940 e 1960, até ir para a televisão e formar uma legião de fãs e discípulos que vieram a marcar a história das produções nacionais.

O ano de 2022 marcou o centenário de Dias Gomes. Entretanto, apesar de sua intensa criação, o teatro brasileiro parece ter se esquecido de um de seus maiores criadores. Na temporada da retomada, não só a pós-pandemia como também na normalidade quatro anos tenebrosos e de aberrações na política brasileira, apenas uma peça assinada por ele esteve em cartaz. Compensou o fato também de não ser qualquer encenação, mas sim aquela que muitos consideram a maior de todas as peças (embora a concorrência com O Pagador de Promessas seja grande, na verdade). E que, depois de algumas semanas em temporada bem acalorada e comentada em São Paulo, está chegando agora a algumas outras capitais, inclusive tendo passado por duas noites de Teatro Guaíra lotado no Festival de Curitiba em 3 e 4 de abril.

O Bem-Amado Musicado é uma pequena adaptação do original escrito e encenado originalmente em 1962 sob o nome de Odorico, o Bem-Amado ou Os Mistérios do Amor e da Morte. No texto original de Dias Gomes nada, absolutamente nada foi alterado ou acrescentado. A única mudança que a trupe liderada pelo protagonista Cassio Scapin (que até então sempre alimentara o sonho de interpretar Odorico Paraguassu) e o diretor Ricardo Grasson apresentam em cena é uma coleção de novas canções, compostas exclusivamente por Zeca Baleiro e Newton Moreno e dirigidas por Marcio França (que também está no palco como o pistoleiro regenerado Zeca Diabo) para esta peça e executadas em cena por músicos e atores. Tanto que ganhou um novo título, justamente para se diferenciar do nome tradicional. A intenção, segundo Grasson e Scapin, foi tentar se distanciar ao máximo da grande trilha sonora feita por Toquinho e Vinícius de Moraes para a adaptação ao formato de folhetim feita pelo autor para o horário das 22h das novelas da Globo em 1973. Melhor também quanto à questão do pagamento de direitos autorais…

A versão trazida aos palcos exatamente seis décadas de depois é de uma competência só, não apenas quanto às novas músicas – que são executadas e cantadas pelos atores que fazem os personagens centrais da trama passada na pequenina cidade baiana de Sicupira (como Odorico, Zeca Diabo, as cabos eleitorais e três irmãs Cajazeiras, o aspone do prefeito Dirceu Borboleta, o vigário da igreja, o dono do jornal local e maior oponente político do protagonista). Cenários e figurinos também servem como colírio para os olhos, misturando referências da xilogravura dos cordéis nordestinos, a comédia dell’arte inserida nos filmes de Federico Fellini e todo o imaginário construído pelo teatro popular brasileiro. A química que envolve todo o elenco também se torna fator de destaque durante as quase duas horas de encenação.

Contudo, o que mais choca o espectador é a extrema atualidade do texto feito por Dias Gomes há seis décadas. Do começo ao fim, o dramaturgo parece não apenas ter utilizado como base para o seu misto de acidez e ironia para alfinetar a política brasileira realizada até então, mas também utilizado uma bola de cristal e previsto não só tudo aquilo que continuaria ocorrendo ao longo das décadsa e ainda se intensificaria em inimagináveis níveis estratosféricos nestes últimos quatro anos de (des)governo do falso messias. Mas, parafraseando o próprio Odorico Paraguassu e deixando de lado os entretantos para cegar aos finalmentes, a trama do prefeito corrupto envolve demagogia popularesca, fake news, nepotismo, desvio de verbas, gastos orbitais do dinheiro público. Também há ali os choques de interesse entre executivo e judiciário e o uso da religião para a descarada instrumentação política da classe trabalhadora.

Nesta montagem, Scapin, França e Grasson se firmam como um sólido tripé para saudar a obra e a genialidade de Dias Gomes em um tempo em que as artes brasileiras, ainda se refazendo de um período terrível de trevas e achatamento, andam precisando do surgimento de novos autores como o baiano-carioca. Já faz quase um quarto de século que ele partiu – morreu no dia 18 de maio de 1999, vitimado por um acidente automobilístico em uma madrugada paulistana após ir ao teatro para ver uma ópera e jantar com a esposa. Ainda faz muita falta.

Movies

Os Banshees de Inisherin

Rivalidade entre ex-amigos como analogia da guerra que dividiu as Irlandas solidifica a verve de humor ácido de cineasta britânico

Texto por Abonico Smith

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Antes de entrar na resenha propriamente dita é bom passar algumas informações que podem ajudar no entendimento deste filme que ganhou nove indicações para o Oscar deste ano. Inisherin é uma ilha fictícia, criada para ser o ambiente dessa trama. Banshees são entidades mitológicas que pertencem à categoria das fadas. São do gênero feminino e, segundo a tradição celta, elas costumam aparecer para determinadas pessoas como um aviso de que elas bem em breve receberão uma notícia envolvendo a morte de alguém. A Guerra Civil Irlandesa durou de junho de 1922 a maio de 1923 e foi um conflito entre dois grupos nacionalistas que discordavam quanto ao fato da Irlanda pertencer ao Império Britânico e que marcou a criação do Estado Livre Irlandês como uma entidade autônoma do Reino Unido. Em suma, isto acabou dividindo politicamente a ilha em dois países: a Irlanda do Norte, formada por seis dos 32 condados, que segue, de alguma forma, vinculada à Grã-Bretanha; e a Irlanda (ou Eire), constituída pelas outras 26 regiões rebeldes, A parte “do sul”, bem maior geograficamente, é formada por uma população majoritariamente católica, enquanto a divisão “do norte” se divide até hoje entre o catolicismo e o protestantismo herdado dos vínculos reais. Por fim, o cineasta Martin McDonagh é inglês e descende de irlandeses.

Tudo isto posto e sabido, vira uma delícia assistir a Os Banshees de Inisherin (The Bashees Of Inisherin, Reino Unido/EUA/Irlanda, 2022 – Fox/Disney), mesmo com o crasso erro do título adotado pela distribuidora brasileira (alguém poderia avisar por lá que o artigo definido, na língua portuguesa, obedece ao gênero?). A trama se passa na quase erma e muito verde ilha durante o começo do ano de 1923. Os poucos habitantes de lá não possuem muita perspectiva do que fazer em suas vidas: enquanto ouvem tiros de canhões pipocando na guerra que se desenha bem longe, cuidam de suas casas e animais de estimação enquanto jogam conversa fora e bebem. Ir ao bar para se divertir é programação garantida dia sim, dia também.

O desequilíbrio de toda essa tranquilidade acontece quando Colm Doherty (Brendan Gleeson) decide interromper de modo brusco a longa amizade que tem com Pádraic Súlleabháin (Colin Farrell). Assim, de nada, de uma hora para outro, sem qualquer motivo plausível. Quer dizer, sem qualquer motivo na visão de Pádraic, que fica inconformado com o fato e se abala profundamente com a “tragédia”. A questão é que Pádraic é tido com um grande pária pelo resto da ilha. Ninguém em Inisherin o suporta. Sequer o cumprimentam. Os maiores diálogos de sua vida parecem se resumir a três pessoas: a irmã Siobhán (Kerry Condon), o vizinho Colm e o jovem Dominic Kearney (Barry Keoghan), sempre de comportamento errático e imprevisível e outro que não pensa duas vezes em entornar um copo dentro do organismo por não conseguir aceito em casa pelo pai.

McDonagh é um grande diretor e roteirista que trabalha a passos lentos. A cada meia década, em média, entrega uma obra ao espectador. Já possui quatro longas no currículo. Os dois primeiros, Na Mira do Chefe (2008) e Sete Psicopatas e um Shih Tzu (2012) são primores de comédia de humor ácido, com a verve corrosiva tipicamente inglesa. Martin constrói diálogos que fazem quem está na poltrona do cinema (ou no sofá de casa) gargalhar sem sentir culpa de nada em absoluto. Em plena tragédia, inclusive. Não sobra para ninguém. Este seu estilo foi definitivamente abraçado por Hollywood em Três Anúncios para um Crime (2017). Depois de se destacar em diversos festivais pelo mundo e levar cinco dos oito Bafta ao qual concorreu, o filme ganhou dois de sete Oscar, três de quatro SAG Awards e quatro de seis Globos de Ouro.

Apesar de não abandonar a marca registrada da acidez verborrágica, McDonagh faz de Os Banshees de Inisherin seu filme mais denso e dramático. Este é, na verdade, um filme sobre o luto. Ou melhor, o que vem logo após a perda de algo ou alguém para muita gente: a negação, a raiva, a revolta. Pádraic sente isso ao ser descartado sumariamente por Colm e realizar várias frustradas tentativas de se reconectar ao ex-amigo. Fica remoendo dia após dia o pena bunda até o dia em que um trágico acontecimento desperta uma vontade incontrolável de fazer “justiça” com as próprias mãos e dar o troco a quem lhe abandonara. De melhor amigo, vira o pior inimigo.

O contraponto de Colm diante desta ruptura intempestiva e repentina, porém, é o que torna interessante este “duelo”. O diretor e roteirista utiliza o personagem para fazer uma interessante analogia à guerra das Irlandas, mais especificamente o uso da religiosidade diante de suas atitudes. Colm, que sempre toca violino em casa e no bar, passa a ignorar Pádraic porque acha que perde tempo estando com ele, como está em uma idade mais avançada, quer passar a usar o tempo que lhe resta da vida para compor uma obra musical que lhe dê transcendência à vida. Ou seja, que faça com que sua alma seja lembrada posteriormente que seu corpo deixar este plano. Só que sua luta para atingir a glória e a perfeição deve se tornar ainda mais difícil aos poucos. Então, Colm vai desnorteando aos poucos o espectador (claro, Pádraic também) com uma série de atos de extremo radicalismo e coragem, que inclusive vão irritando cada vez mais o novo desafeto.

Outra diferença entre ambos – e que remonta à divisão das Irlandas e à diferença das religiões – é a mais completa ausência da culpa judaico-cristã por parte de Colm. E assim corre a (divertida) rixa entre os dois em uma ilha onde não há absolutamente muito mais nada de concreto para ser feito a não ser a perseguição de um ideal que contrapõe a conservação do mais do mesmo à ambição da superação física e a criação de uma obra “a serviço de Deus”.

Enquanto isso, McDonagh se revela – de novo – um ótimo diretor de atores. As grandes interpretações de Farrell e Gleeson já não chegam a ser uma novidade, já que esta é a segunda vez que a dupla trabalha em conjunto com o autor (a primeira fora em Na Mira do Chefe). No papel de Siobhán, Condon brilha fazendo a voz da lucidez diante da cega obsessão e da mais completa falta de ambição do irmão Colm. Já Keoghan, que vem pavimentando um caminho de filmes cult nos últimos anos (O Sacrifício do Cervo SagradoDunkirkA Lenda do Cavaleiro Verde) mostra as credenciais, como o sempre bêbado Dominic, para estourar de vez em Hollywood como o novo Coringa, o arquirrival de Batman.

Apesar das nove indicações para o Oscar, Os Banshees de Inisherin não levou nada neste domingo, como já era previsto. Contudo, isso pouco importa. O bom é que Martin McDonagh, com esta obra, mostra ascensão criativa em seu quarto filme e solidifica de vez seu nome no panteão dos grandes cineastas autorais do século 21. Certamente teremos mais humor ácido e histórias fora do comum nos seus próximos filmes.