Music

Coldplay – ao vivo

Plateia de Curitiba recebe a banda pela primeira vez e faz parte de um espetáculo com um universo próprio de cores, luzes e protagonismo

Textos por Janaina Monteiro e Carolina Genez

Foto: Coritiba Foot Ball Club/Reprodução

Nos minutos que antecederam o primeiro show da turnê Music Of The Spheres em Curitiba (21 de março último), o som de um sino ecoava pelo estádio Major Couto Pereira. Esse tilintar, que assume propósitos distintos em cada religião, traz um simbolismo em comum: representa a harmonia universal. 

“Ativar o sininho” antes do espetáculo era como se a banda inglesa Coldplay fizesse um convite para plateia entrar em sintonia e acompanhar o storytelling espacial da jornada que estava prestes a começar. E a missão seria cumprida com sucesso: ao longo das duas horas seguintes, todos alcançariam a mesma frequência e entrariam numa completa catarse. 

Quando Chris Martin, Jonny Buckland, Will Champion e Guy Berryman surgiram no palco B, as famosas e “caras” pulseiras luminosas entram em cena e mostram o poder que a multidão tem de abraçar uma banda que acaba de completar 23 anos de carreira fonográfica. Uma trajetória marcada por voos altos e rasantes, que explora diferentes ritmos mas com um denominador comum: olhe para as estrelas. 

Céus repletos delas, aliás, sempre estiveram presentes, de alguma forma, nas canções de Coldplay, até inspirarem esse álbum kubrickiano, em que as 12 canções formam um sistema solar próprio. O próximo, muito provavelmente, será sobre o lado brilhante da lua. E desde o big bang coldplayano é possível perceber esse embate entre luz e escuridão. Até que a luz decide tomar conta de tudo. Literalmente.   

A primeira canção do show, “Higher Power” já incendeou o estádio como uma bola de fogo. São mais de 43 mil pessoas presentes neste universo iluminado. Cada uma delas se tornou uma estrela. A estrela viva que brilha na vida de Chris Martin desde Parachutes, lançado em 2000. 

Predestinado ao sucesso, o britânico da Cornualha e filho do seu Anthony – que faz questão de acompanhá-lo na turnê ­ – previu no documentário Coldplay: A Head Full Of Dreams (lançado há seis anos, após sua separação da atriz Gwyneth Paltrow) que a sua odisseia terrestre começaria logo ahead. Em… 2002! E, de fato, nesse ano Coldplay trouxe ao mundo o disco que o catapultou ao status de uma das maiores bandas dos anos 00. A Rush Of Blood To The Head apresentava sucessos como “Clocks” e “The Scientist” (e seu videoclipe arrebatador, com a narrativa de trás para frente). No início do milênio, o bug não aconteceu e os britânicos conquistavam o mainstream com um som melódico, misturando guitarras elétricas ao piano. Foram três prêmios Grammy.

Nessa época, Chris Martin era um jovem frontman, ainda de espírito meio rebelde, impulsivo, que volta e meia aparecia na mídia sendo acusado de agredir fotógrafos, bem diferente de seu comportamento atual, e seu ritual de gratidão. Hoje, quem tem um celular nas mãos é um potencial paparazzo. Por isso, Chris, que sempre se mostrou arredio a esse tipo de coisa, foi de certa forma obrigado a fazer um “combinado” com a plateia antes de entoar seu hino “A Sky Full Of Stars”. Em cada apresentação, o vocalista lança aquele “xiiiiu” imponente, que faz parte da linguagem universal, sobretudo entre pais e filhos, para milhares de pessoas. Seja na sua terra natal ou no Brasil, onde é mais complicado pedir silêncio.

Educadamente, ele solicita que os presentes aproveitem apenas uma música sem fazer registros pelo celular. 99% do público obedece. Entre o 1% estava uma guria do meu lado. Por isso, fiz questão de colocar o braço na frente da câmera dela. Sorry, aê! Mas pedido do boss a gente obedece.

E foi assim, sem câmera e com um celular tijolinho, que fui ao show da turnê X&Y, em 2007. O terceiro álbum da banda, um dos meus preferidos. Local: Via Funchal, uma casa de concertos em São Paulo com capacidade para apenas três mil pessoas. Aliás, assim como na turnê Music of Spheres, os ingressos foram disputadíssimos. Graças ao meu PC 486 com conexão dial up, consegui garantir um par de entradas.  Mais tarde, assistindo ao mesmo documentário, soube que a gravação de X&Y foi conturbada por vários fatores, entre eles a saída do coprodutor do álbum, Ken Nelson. Ao contrário da explosão de cores da turnê atual, a banda se apresentou de preto nessa turnê. 

E aquele rock espacial com elementos eletrônicos de “Talk” (que traz um sample de “Computer Love”, do Kraftwerk), “Speed Of Sound” e, claro, “Fix You” me fisgou 100%. Depois desse show, o universo conspirou e consegui me aproximar de Chris Martin, mesmo com receio de sua fama de explosivo. “Você fez parte da cura”, disse a ele, mencionando “Clocks”, canção favorita da minha mãe quando tratava seu primeiro câncer de mama. Já, durante a pandemia, foi “Higher Power” que entrou na playlist da cura do meu carcinoma in situ

De volta a 2023, antes mesmo de o Coldplay aterrissar em São Paulo, a banda do contra já preparava terreno para eles. No mundinho das redes sociais, uma chuva de meteoros da magnitude haters invadia o meu feed. Era um bombardeio de textos, justificando que “a banda acabou no segundo disco”, “essa banda é pra fã que usa sapatênis” (bem, eu fui de tênis plataforma) e “Coldplay é uma banda coach”.  Enquanto uns seguem no “bla, bla, bla”, prefiro pegar carona no “ooh, ooh, ooh, ooh, ooh, ooooooh, oh” e viver a minha vida! 

Mesmo porque a banda dos contra sempre existirá. O que não existiu até agora foi um espetáculo tecnológico nessas proporções (que deixou o U2 nas Havaianas), com uma estrutura gigantesca em três palcos, aproximando a plateia do artista, e, o mais importante, que promove a inclusão, a sustentabilidade e torna o espectador o protagonista do espetáculo. 

Chris era, em Curitiba, como o maestro de uma orquestra, conduzindo suas estrelas, com sua mensagem clara como a luz da lua, sempre estampada no peito (“Love” e “Everyone is an alien somewhere”). Ele corria freneticamente pela passarela e aproveitava cada centímetro da megaestrutura, do palco principal até o palco B, onde cantou a belíssima “Viva La Vida”, do álbum de mesmo título produzido por Brian Eno e que representou um salto na carreira dos ingleses. De lá, entoaram também “Something Just Like This”, uma canção fofa, graciosa, sobre heróis da vida real e que, por sinal, era o sinal do recreio do meu filho na escola. No palco C, lá no fundo do estádio, surgiram para cantar “Magic”. Dessa vez, na versão aportuguesada, repetindo a performance do Rock In Rio em 2022 (concerto que fez a banda postergar a turnê brasileira para 2023, aliás). No Couto Pereira, não tivemos sandys, nem jorges, nem miltons. Mas tivemos “Every Teardrop Is A Waterfall”, do álbum Mylo Xyloto (2011). Inclusive, essa fora a segunda vez que a canção entra no setlist da turnê. No dia seguinte, para alegria dos fãs na capital paranaense, teve “Orphans”, do introspectivo Every Day Life.

Como Chris Martin se movimentava na “velocidade do som”, é muito fácil perdê-lo de vista ao vivo. Isso explica o uso de bases pré-gravadas. Mesmo estando em plena forma, é difícil conseguir tanto fôlego assim. Enquanto o vocalista cantava e passeava pelo seu universo, durante boa parte das canções, Jonny, Will e Guy permaneciam em suas posições no palco principal, curtindo o próprio show, como se fossem músicos de apoio. 

Quando revisitam os hits mais antigos e que catapultaram a banda ao estrelato, como “Yellow”, “The Scientist” e “Clocks”, os ingleses mostram que tocam de verdade. Na primeira, o coro da plateia chegou a emocionar Chris Martin, que dizia “beautiful”. Lindo mesmo foi poder ver Jonny dedilhando o riff a poucos metros de distância. Já na segunda, houve um problema na modulação das guitarras e foi preciso interromper a música. Em vez de voltar ao start, entretanto, seguiram da metade.

No final de toda essa viagem estelar, cheia de luzes, com direito a planetas infláveis (alguns deles voltaram pra casa de ônibus biarticulado, inclusive) e que reuniu um público tão diverso, de crianças a idosos, o que ficou foi a prova da evolução. As letras mais recentes do Coldplay podem até soar um pouco repetitivas. Mas talvez não estejamos acostumados a tamanha positividade e de uma banda que alcançou um séquito de fãs por mérito e não por ter caído de paraquedas. 

Claro que sempre haverá a turma do contra. O importante é saber conviver com ela. E isso o tal do Cristóvão João Antônio Martins parece ter aprendido direitinho. E isso é “Biutyful”! (JM)

***

A experiência do primeiro dos dois shows do Coldplay em Curitiba (21 e 22 de março) começou já na fila quilométrica para o estádio Major Antônio Couto Pereira. Os fãs cantavam as músicas e comemoravam a cada curva que os deixava mais próximos da entrada. Com a pulseira no braço, a noite foi aberta pelo trio escocês Chvrches. Mesmo com eles entregando a alma em sua performance, os fãs apenas chamavam os astros ingleses para o palco. Com o Couto lotado e quase nenhum espaço livre entre as mais de 40 mil pessoas, a banda entrou às 21h ao som da música “Flying Theme”, do filme E.T.– O Extraterrestre, de Steven Spielberg. Isso já deixava claro que a noite seria mágica.

set list apresentado pelos britânicos começou com “Higher Power”, Mesmo particularmente não gostando, a canção se tornou uma experiência inesquecível. Todo show  tem uma atmosfera mágica, capaz de transportar qualquer um para outra realidade durante as duas horas de duração. O Coldplay, porém, conseguiu subir o nível desta virtude artística. As pulseiras brilhantes se tornaram um espetáculo à parte ao iluminar todo o estádio de acordo com as batidas de cada música. De certa forma, o público virou parte da performance da banda. A noite ainda contou com fogos de artifício, balões em formato de planetas (fazendo referência ao novo álbum deles), luzes coloridas e muitos confetes que tornaram tudo ainda mais bonito e especial. É até difícil escolher um destaque máximo. Para mim, o grande espetáculo aconteceu durante “Clocks”, quando todo o estádio assumiu uma cor verde que brilhava acompanhando as notas dedilhadas ao piano  enquanto um show de luzes formava um céu também esverdeado e projetado em cima da plateia.

O ânimo da banda também era contagiante. Consgeuia deixar todos alegres e animados do começo ao fim. Ajudava também o engajamento de Chris Martin com seus fãs. O cantor falou em português, leu diversos dos cartazes levados pelo público, pediu para a plateia completar as letras e cantar junto com ele durante músicas como “Paradise” e “Viva La Vida”. O que tornou a experiência ainda mais única foi na hora de convidar uma fã para tocar uma música com ele. O cantor ainda desceu do palco principal para se apresentar em um espaço menor disponibilizado no meio da plateia. Lá mandou “Sparks” e uma versão em nosso idioma de “Magic”. “Chamo de mágia”, começou, com aquele sotaque.

O final do show também foi maravilhoso. A performance de “FixYou”, penúltima do extenso repertório, ficará, com certeza marcada na mente de todos os fãs que estavam presentes naquela noite do Couto Pereira. Todas as pulseiras brilhavam em um amarelo dourado enquanto Chris, ainda com toda energia do mundo, cantava o refrão (“Lights will guide you home/ And ignite your bones/ And I will try to fix you”). Pouco depois,quando começou a gravação de “A Wave”, todos foram embora radiantes e “consertados” com toda aquela vibração transmitida pela banda. (CG)

Set list em Curitiba: “Music Of The Spheres” (intro), “Higher Power”, “Adventure Of A Lifetime”, “Paradise”, “The Scientist”, “Viva La Vida”, “Something Just Like This”, “Fly On”, “MMIX”, “Every Teardrop Is A Waterfall”/”Orphans”, “Yellow”, “Human Heart”, “People Of The Pride”, “Clocks”, “Infinity Sign”, “Hymn For The Weekend”, “Aeterna”, “My Universe”, “A Sky Full Of Stars”, “Sparks”, “Magic” (em português), Humankind”, “FixYou”, “Biutyful” e “A Wave” (outro).

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Floripa Rock Festival – ao vivo

Pitty com Nando Reis, Paralamas do Sucesso e CPM 22 levam à capital de Santa Catarina um grande tributo ao rock nacional

PittyNando

Texto e fotos por Frederico Di Lullo

Cheguei em cima do laço para prestigiar o Floripa Rock Festival no último dia 4 de fevereiro, no Stage Music Park. E foram logo os primeiros acordes de “Tarde de Outubro” que fizeram as milhares de pessoas irem abaixo. Sim, a banda que teve a honra de abrir a primeira edição do evento realizado na capital catarinense foi o quinteto paulista de hardcore melódico CPM 22.

Tudo ocorreu como eu imaginei. Badauí e sua trupe fizeram uma apresentação longa, recheada de clássicos que fizeram a plateia sentir nostalgia dos anos 2000. No repertório não faltaram os clássicos como “Regina Let’s Go” (cantada a plenos pulmões) e “Irreversível”, além de um sample de “Mantenha o Respeito”, que fez subir uma leve maresia no ar. O som estava mais ou menos, algo que de fato me surpreendeu pela estrutura de palco. Deixava quem estava mais à frente com os ouvidos estourados. 

O grupo fez um show enérgico, que empolgou boa parte da galera, que ia de jovens a não tão jovens assim como eu. É inegável que o CPM 22 curte muito a Ilha da Magia e a Ilha da Magia curte muito a banda. A performance terminou lá em cima, mas ainda tinha tempo para mais. Foi aí que os músicos retornaram para ecoar “O Mundo Dá Voltas” e “Ontem”, além de uma miniversão de “We’re Not Gonna Take It, hino do Twister Sisters. Nesse momento, o velho roqueiro que habita em mim sorriu timidamente. Enquanto todos corriam para os banheiros e para pegar uma cerveja gelada, aproveitei para escalar algumas posições e me posicionar para o próximo show.

Paralamas do Sucesso

Já passava das 22h e chovia de maneira grotesca quando Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone subiram ao palco (acompanhados do fiel escudeiro João Fera nos teclados) e começaram seu magnifico concerto, que contou com quase duas horas de duração. A história que estes caras carregam nas costas é algo incrível, mas muitas pessoas ainda não percebem o quão importantes são para a cultura brasileira. 

Na estrada há 40 anos, sabem como agradar cada plateia em cada cidade do nosso país. Em Florianópolis foi um sucesso atrás do outro: “Ska”, “Vital e Sua Moto”, “Alagados”, “Trac Trac”. Nesta última, presenciei uma cena emocionante que envolveu pai e filha, cantando juntos, com ele visivelmente emocionado. São coisas que marcam pra sempre os envolvidos. Até minha pessoa. E no set dos Paralamas ainda cabiam mais sucessos, como “A Novidade”, “Meu Erro”, “Melô do Marinheiro” e “Você”. Uma verdadeira festa, afinal. 

Cansado cheguei ao show de Pitty e Nando Reis, dupla também conhecida como PittyNando. O clima se diferenciava dos outros dois anteriores: se por um lado tínhamos energia e vibrações pairando no ar, agora tudo era intimista e de despedida. Afinal de contas, foi a última apresentação do duo, pelo menos nesta versão de concerto. A escolha de Florianópolis como palco derradeiro não deve ter sido à toa. Eles se sentiam muito à vontade: não cansavam isso de falar nos intervalos das músicas. 

Desfilando por sucessos com arranjos distintos das gravações originais, destacava-se a alegria de “Marvin” na voz sentimental de Pitty. Outra música, que agora ganhou um viés ainda mais politizado foi “Máscara”, cantada de maneira polifônica pelos presentes.

Durante a apresentação, percebi que o espaço ia ficando menos lotado, talvez fosse seja pela chuva que não dava trégua. Mas, no palco, o clima era outro. A evidente sintonia entre Pitty e Nando ia deixando o ambiente em vibe nostálgica e totalmente emotiva. Eles entoaram outros clássicos seus como “Por Onde Andei”, “Me Adora”, “Pra Você Guardei o Amor” e “All Star“. No fim de tudo, o sentimento de realização e emoção tomou conta de todos. Plateia, artistas e equipe de apoio mandaram uma sonora e longa salva de palmas. Ficamos agora na expectativa e na vontade de uma nova parceria entre eles, talvez em formato diferenciado ou com novas composições além das conhecidas músicas autorais de cada um.

Este primeiro Floripa Rock Festival foi emocionante. Do fundo do coração, espera-se que outras edições do festival sejam anunciadas e que possamos curtir mais bandas destaque do cenário nacional que, muitas vezes, apresentam-se de maneira esparsa por aqui e a preços exorbitantes.

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Me Chama Que Eu Vou

Documentário revive a trajetória do furacão “cigano” Sidney Magal, que varreu a música brasileira a partir do final dos anos 1970

Texto por Abonico Smith

Foto: Vitrine Filme/Divulgação

No final dos anos 1970 um furacão varreu a música verdadeiramente popular brasileira. Não houve como passar incólume. Muita gente gostava, adorava, não tirava os olhos da televisão quando ele aparecia nos programas de auditório. O mais importante: sabia cantar a letra todinha, assoviava a melodia. Todo dia, o tempo inteiro. E não eram só mulheres. Muitos homens também. E claro, muitas crianças. Afinal, não tinha como não se apaixonar por aquela figura esguia de fartos cabelos negros encaracolados dançando e rebolando sem paridade em nosso país e cantando letras imageticamente fortes, extrapolativamente sensuais.

Argentino que havia sido artista de rock nos anos 1960, Roberto Livi estava no Brasil na condição de empresário de artistas e produtor fonográfico. Sua missão mais importante era descobrir novos artistas para projetar suas carreiras e fazê-los vender muitos discos e shows. Foi assim com nomes como Alcione e Peninha, por exemplo . Com Sidney Magalhães também. Aliás, Magal, rebatizado sem a metade do sobrenome oficial desde que voltara de uma viagem pela Europa para tentar a carreira artística cantando e dançando nos seus vinte e poucos anos. O shape de Sidney Magal já existia antes mesmo de Livi descobri-lo. Fazia sucesso na noite, soltando o vozeirão no palco de uma churrascaria na Barra da Tijuca, já com o mesmo figurino exótico (couro, correntes grossas, cabelão, peito nu, preto como cor dominante) utilizado quando passou a gravar discos. Aliás, Magal desde sempre foi um artista não apenas para ser ouvido, mas principalmente para ser visto. 

Recém-estreado em circuito nacional, Me Chama Que Eu Vou (Brasil, 2022 – Vitrine Filmes) disseca o personagem Sidney Magal através da ótica e dos comentários de seu criador Magalhães. É aquele documentário básico e clássico, cronologicamente linear, que vai da gestação da carreira em seus momentos prévios aos tempos de hoje, passando, claro, pelo apogeu, decadência, redescoberta e renascimento artístico. Bom para quem não conhece direito a sua história, mas também curioso para quem acompanhou tudo isso em tempo real no decorrer das décadas. Prato cheio aliás, é o tratamento dado pela mídia durante os três primeiros álbuns. Além de algumas imagens da época, o crème de la crème são as entrevistas para TV e sobretudo as revistas de fofoca e semanários jornalísticos. Mesmo que aparecendo de maneira fugaz na tela, as páginas diagramadas com textos, fotos e manchetes são uma delicia de serem lidas. Nestas cenas são reveladas todo o fascínio com o qual a imprensa tratava aquela persona rebolativa que pervertia a MPB. A elite o tachava de brega. Os mais preconceituosos não conseguiam compreender que aquela figura já havia sido criada antes mesmo do lançamento do primeiro disco. Muita gente o considerava uma estrela fabricada pela indústria fonográfica, um “cigano de araque, fabricado até o pescoço” (como cantava Rita Lee, de pura pirraça, na segunda versão da letra da não menos debochada canção “Arrombou a Festa”, no qual espinafrava os nomes mais importantes da música nacional da época). Uma das reportagens até dava a receita para se “fabricar” um ídolo.

O que poderia jogar contra o documentário dirigido por Joana Mariani acaba, entretanto, sendo o maior trunfo dele. O filho do cantor, um dos entrevistados, também assina a obra como coprodutor-executivo. Mas também não se pode dizer que Me Chama que Eu Vou seja um filme chapa-branca. Mesmo porque, fora a polêmica sociológica do início de carreira, Sidney Magalhães nunca foi uma figura de fato polêmica. Nunca precisou esconder na de sua vida, nem mesmo protagonizou escândalos pessoais de qualquer tipo. Por isso mesmo nunca foi necessário Mariani sequer pensar em qualquer outra narrativa para o doc. Magal ainda ajuda por ser uma pessoa extremamente organizada, sobretudo no que tange ao arquivo de itens sobre a sua trajetória artística. Ele, sempre que pode, guarda até hoje recortes, cartazes, fotos. Se todo este material enriqueceu muito o material apresentado na edição final (inclusive coisas pré-estouro nacional nas rádios e TVs) dá para ficar imaginando todo o resto que ficou de fora da montagem.

O trabalho de Mariani é bastante elucidativo ao jogar luz para os espectadores compreender algo que talvez muitos deles não saibam: a diferença tamanha entre o que são os dois Sidneys. Enquanto o Magal é espalhafatoso, sensual e ousado, o Magalhães é quieto, família e até certo ponto conservador nos costumes (inclusive os musicais). Aliás, o gosto pelas canções mais tradicionais (bossa nova, sobretudo) veio de casa. Tia tocando piano, mãe apaixonada por canto (a ponto de se lançar na carreira depois da fama do filho, aproveitando inclusive para usar o pseudônimo dele), primo dos mais festejados pelas artes brasileiras. Para quem não sabe: o tal primo era ninguém menos que o poetinha Vinicius de Moraes, letrista de algumas das principais canções em língua portuguesa.

Só que Vinícius nunca compôs uma letra para Sidney gravar, mesmo porque o garoto mais novo nunca ficou insistindo nisso. Nem precisaria mesmo. Com versos afiados (e quentes, muito quentes!) como os da polca “Sandra Rosa Madalena, a Cigana” e a meio rumba meio disco “Meu Sangue Ferve Por Você” , não há como não cantar junto com Magal e suas reboladas. Outras versões em nosso idioma também são poderosas. O rock “Tenho” veio importada do repertório do famoso cantor argentino Sandro Anderle (1968), também com estilo visual cigano e principal referência de Livi ao trabalhar com Magal. De outro portenho, o cantor de boleros Cacho Castaña, o produtor trouxe outra disco music, “Se Te Agarro Com Outro Te Mato”, seu primeiro compacto, lançado em 1977, com direito até a guitarra turbinada por um discreto porém não menos poderoso e psicodélico pedal fuzz.

O que o documentário não fala (infelizmente, porque seria uma informação mais completa e não desmereceria de maneira nenhuma a carreira do carioca) é que o grosso dos hits dos anos dourados de Magal são compostos por versões. “Meu Sangue Ferve Por Você”, no caso, é versão de uma versão. A original é francesa e teve duas letras e gravações em 1973: uma em inglês, pelo artista Sunshine, sob o nome de “Melody Lady”; a outra, em francês, por Sheila (que anos depois viria a apostar na disco music como Sheila B Devotion), chamada “Mélancolie”. O argentino Sabú pegou a mesma base sonora e levou a canção para o espanhol, agora como “Oh Cuanto Te Amo”. Deste sucesso veio a ideia para a letra “quente” de Magal. Também de Buenos Aires veio mais um rock, “Amante Latino”, gravada com o andamento um pouco mais desacelerado por Rabito em 1974.

A segunda parte do trabalho de Joana foca na ruptura da parceira entre Magal e Livi e a espiral descendente na qual seu trabalho caiu logo no começo dos anos 1980. Curiosamente, tudo surgiu do esgotamento da fórmula da imagem forjada de cigano. A letra “Sandra Rosa Madalena”, idealizada por Livi, pode ter forjado a imagem de Magal, que tinha apenas um fiapo de ascendência cigana lá pelo lado de uma tataravó, e catapultado o artista ao estrelato, mas também fora a maldição da qual ele tentou se livrar. Por diferenças pessoais e profissionais rompeu os laços com seu produtor e lançou-se na música romântica, incentivado pela gravadora, com outro look, de gomalina e cabelos presos com rabo de cavalo. Lançou vários discos mas nenhuma música nova fez sucesso. Na época em que Magal mais tentou sair do personagem e passar a ser ele mesmo – inclusive se casando e tendo filhos, contra a vontade de seu até então mentor de bastidores, que considerava ser o suicídio de um ídolo abrir o jogo da vida pessoal para seus fãs. Aí que entra uma fase interessante do filme, com Magalhães refletindo sobre os efeitos colaterais da mudança e os atos para a sua reinvenção, mudando-se para a Bahia e atuando como ator de novelas e cantor de teatro musical, inclusive sendo convidado e dirigido por Bibi Ferreira. Até a reviravolta provocada pela chegada da febre da lambada, o sucesso de “Me Chama Que Eu Vou” com tema de abertura da novela da Globo (em um período em que isso ainda representava um bilhete premiado de loteria para um artista da música) e a consequente redescoberta do cantor pelas geração MTV Brasil. Todo este período de ostracismo e redenção, sob a análise do próprio Sidney (mais uma boa dose de sentimentalismo familiar) funciona contra a tentadora queda para uma possível glorificação do astro de um documentário.

Me Chama Que Eu Vou, o doc, não só informa aquele que não conhece direito a trajetória do ídolo. Gráfica e ritmicamente dinâmico, sobretudo na fase inicial da fama, diverte todo mundo. Como uma apresentação do “falso” cigano, seja em um show completo ou apenas em um número em antigos programas de auditório na TV. Aliás mais do que produto da mera mente comercial de Livi ou resultado do puro instinto daquele jovem que cresceu banhado em arte e só queria fazer da vida o ato de cantar e dançar, Sidney Magal é fruto daqueles tempos de recente formação de redes nacionais de televisão, proporcionadas pela possibilidade cada vez mais barata de transmissões via satélite (leia-se anos 1970 em diante). Sorte de quem faz audiovisual e de quem gosta de ver documentários.