Movies

Spencer

Kristen Stewart comove interpretando a princesa Diana nos dias em que ela decidiu se libertar da “prisão” da realeza britânica

Texto por Taís Zago

Foto: Diamond Films/Divulgação 

Não faltam no mercado cinematográfico obras sobre a trágica história de Diana. Fora os numerosos documentários – alguns com a baixa qualidade de matérias de tabloides – a ficção também não perdeu tempo ao fazer uma verdadeira devassa na vida da princesa de Gales. Um dos mais atuais e famosos flops sobre a princesa foi Diana, de 2013, que trazia Naomi Watts no papel principal. O escrutínio ao tom novelesco da obra, tanto da critica como do público, foi arrasador. Desde então ninguém mais parecia querer se aventurar no tema em um longa-metragem. Já a série The Crown (Netflix, 2016-) tomou para si a árdua tarefa no universo dos stream channels. E foi muito bem recebida, inclusive pelo biógrafo de Diana, Andrew Morton.

Isso nos deixa com uma pergunta: seria necessário mais um filme sobre uma das personalidades mais amadas, famosas e perseguidas pela imprensa marrom? À primeira vista, a resposta mais lógica seria um categórico não. Porém, munido de um roteiro do britânico Steven Knight, que, entre outros sucessos, tem Peaky Blinders no seu portfólio, o diretor e produtor Pablo Larraín resolveu topar a parada.

Larraín já nos provou sua destreza ao trazer para a grande (ou pequena) tela as biopics de Neruda (2016) e Jackie (2016). Ambos aclamados entre críticos pelas suas sensibilidade e sobriedade, mas com comedida reação do público. Em Jackie, Natalie Portman (como Jackie Kennedy) vive quase minuto a minuto os acontecimentos e o trauma que envolveram a morte violenta do marido JFK. E no meio do luto ela retrabalha seu passado por meio de flashbacks. Agora, em Spencer (Reino Unido/Alemanha/EUA/Chile, 2021 – Diamond Films), Larraín utiliza a mesma fórmula, optando por explorar um curto período de crise na vida de outra mulher extraordinária.

Para executar essa tarefa, o chileno escolheu Kristen Stewart – que agora em março irá concorrer ao Oscar de melhor atriz por este trabalho. Não sabemos se era a sua primeira opção, mas certamente esta foi uma decisão um tanto interessante. A tarefa mais difícil para ela seria abandonar de vez os maneirismos que, não raramente, ainda a colam de certa forma no papel de Bella, a namoradinha do vampiro da saga Crepúsculo. Realmente, em alguns momentos a performance parece um pouco dura e forçada. Mas em outros consegue brilhar de maneira comovente. Kristen busca a doçura e a fragilidade de Diana – no geral o faz com bastante sucesso. Principalmente quando conta com o apoio de Maggie, sua camareira predileta, interpretada pela maravilhosa Sally Hawkins.

O filme inteiro se passa no espaço de apenas três dias em dezembro de 1991 durante o feriado de Natal, quando Diana, já cansada das traições de Charles com Camilla e de viver em uma gaiola dourada (com algemas e amordaçada), toma a decisão de abandonar a vida real e se separar de príncipe de Gales. Dado esse cenário, não é de se admirar a tensão crescente que se condensa com o passar de apenas horas da princesa na residência de Sandringham. Mas como tudo que se condensa também se precipita, Diana sucumbe à frieza, indiferença e controle aos quais precisa se submeter. Essa precipitação vem em forma de devaneios, sonhos, lembranças de sua infância, lágrimas, bulimia e automutilação.

Spencer é um filme intimista mas não minimalista. É lindo de se ver quando nos relembra a ostentação da vida da realeza britânica e os inúmeros e célebres modelitos de alta costura usados por Diana. Já na primeira tela somos avisados que o roteiro é uma dramatização de fatos e personagens reais – e em alguns momentos, claramente desliza perigosamente no exagero. Por outro lado, somos recompensados com momentos lindos e comoventes entre Diana e os filhos Harry e William, trocas íntimas entre a princesa e Maggie ou ainda conversas com o cozinheiro real Darren (Sean Harris).

Books, Music, teatro

Antônio Bivar

O eterno beatnik que organizou o primeiro festival punk no Brasil e transformou Rita Lee em persona glam após a saída dela dos Mutantes

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Texto por Regis Martins

Foto: TV Cultura/Reprodução

É difícil imaginar que um sujeito como Antônio Bivar iria morrer de uma forma tão abrupta aos 81 anos. Um ser humano como ele – leve, centrado e feliz – merecia coisa melhor. Mas a vida, amigos, é injusta, e neste domingo 5 de julho lá se foi um dos meus heróis, levado pela peste chamada covid-19, que assola esse mundo.

Tive o grande prazer de conhecer Bivar por questões profissionais. Na verdade, usei o jornalismo como desculpa para poder falar com ele. Acho que consegui realizar umas cinco entrevistas com Bivar: duas pessoalmente e três por telefone. Por incrível que pareça, sempre tinha algo diferente pra arrancar de sua memória prodigiosa.

Como muitos da minha geração, conheci a obra desse dramaturgo, escritor, produtor e agitador cultural graças ao livro O que é Punk, lançado em 1982, ano em que Bivar organizou o primeiro festival punk do Brasil (O Começo do Fim do Mundo, no Sesc Pompeia, em São Paulo). E só na faculdade, quase dez anos depois, descobri que o sujeito era de Ribeirão Preto, cidade paulista em que vivo desde os meus 15 anos.

Bivar nasceu numa fazenda na região da Serra da Cantareira e depois se mudou com a família para Igarapava e, na sequência, para Ribeirão. Viveu por aqui até os 20 e poucos anos, quando encheu o saco e foi com a cara e coragem para o Rio de Janeiro estudar teatro.  Após, seguiu rumo à capital paulista, onde morou até o fim da vida.Em uma das últimas conversas que tive com ele, dizia estar meio cansado de São Paulo e pensava até em voltar para o interior. Não deu tempo.

Mas ele nunca esqueceu suas raízes e estava sempre em Ribeirão, onde visitava a irmã e os sobrinhos. Seu irmão mais velho era Leopoldo Lima, um dos grandes nomes das artes plásticas do país. Bivar apoiava algumas bandas locais e trocava correspondência com a molecada da mesma forma em que falava com veteranos da cena punk como Jello Biafra, ex-lider do Dead Kennedys. Sobre Jello, contou certa vez que o cara era fanático por Carmen Miranda. ‘Imagina eu dizer pros punks daqui que o líder do Dead Kennedys era fã de Carmen Miranda?”, lembrou.

Uma das últimas entrevistas que fiz com Bivar, em 2016, foi sobre o lançamento do DVD em comemoração dos 30 anos do festival O Começo do Fim do Mundo. Por telefone, ele me contou que teve contato com o movimento punk paulista no início dos anos 1980, quando acabara de chegar de uma de suas várias viagens à Inglaterra. “Londres fervilhava com muitos artistas novos. Quando cheguei ao Brasil, isso aqui parecia a Idade Média. Muito atrasado. A única coisa nova era o movimento punk, que era algo diferente de tudo”, recorda. Bivar ficou tão empolgado com aquela garotada de coturno e jaquetas de couro que pensou em organizar um grande festival com as bandas de São Paulo. “Juntou eu, o Calegari (da banda Inocentes) e o Mingau (do Ratos de Porão) e fomos lá falar com a diretoria do Sesc. Eles toparam de cara, sem que a gente tivesse um projeto sequer”, ressaltou.

O ribeirão-pretano adorava a Inglaterra e desde sempre fez essa ponte entre Londres e São Paulo. No final dos anos 1960, com peças de teatro premiadas no currículo, mandou-se para a capital inglesa num autoexílio junto com o pessoal da Tropicália e o amigo (também dramaturgo) José Vicente. Mineiro de Alpinópolis e que também viveu em Ribeirão Preto, Zé Vicente foi o autor de Hoje é Dia de Rock, que fez um sucesso danado nos anos 1970. Os dois andavam na Picadilly Street de forma tão extravagante que, segundo Bivar, um olheiro da equipe de Stanley Kubrick os convidou para fazer figuração no filme que o diretor estava preparando naqueles anos: Laranja Mecânica.

TUTTI-FRUTTI

Bivar não participou do filme, mas viu nascer o glam rock em terras britânicas, gênero que o deixou maluco. De volta ao Brasil, com mil ideias na cachola, convenceu Rita Lee a entrar de cabeça no glitter e na androginia. “Na época a Rita ainda era muito ligada àquela coisa de anos 1960, muito hippie. Além disso, ela ‘se achava’”, me disse.

O fato é que toda a concepção do que seria a Rita pós-Mutantes saiu da mente de Bivar. Nascia o disco/show Fruto Proibido, um dos clássicos absolutos do rock nacional com a cantora transformada a la Ziggy Stardust e uma banda de craques para acompanhá-la, a Tutti-Frutti. Ah sim, o nome do grupo foi criado por Bivar. “Eu fazia de tudo, até a maquiagem dos meninos. No começo não achavam muito bom não, mas foram se acostumando”, lembra.

Trabalhou com Rita ainda várias vezes, inclusive no programa TVLeezão, que a ruiva fez para a MTV Brasil. Na última vez que falei com Bivar, ele andava chateado com a amiga. Rita brincou maldosamente com alguma coisa que o deixou puto. Assim é Rita: perde o amigo, mas não perde a piada. Porém, descobri por meio do dramaturgo Mario Bortolotto que Rita vivia emprestando dinheiro para Bivar, sem qualquer sinal de retorno, quando a situação apertava.

Enfim, assim era Bivar. Escreveu peças maravilhosas e grandes livros, traduziu clássicos beat (como On The Road, de Jack Kerouac, trabalho feito em parceria com o escritor e jornalista gaúcho e agora youtuber Eduardo Bueno), viveu a vida que quis. Era um lorde sem lenço e sem documento. Ou melhor: um autodeclarado beatnik em pleno interior paulista numa época em que, nem na capital, sabiam o que era isso. Farewell, dude!

Movies

Divaldo – O Mensageiro da Paz

Cinebiografia do médium baiano fica à altura de sua obra ao tratar de temas como a sua atividade filantrópica, o suicídio e o que há após a morte

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Fox/Divulgação

A ideia de que o ser humano é livre para optar pelo seu futuro e tomar decisões sobre seus atos sempre foi debatida pela filosofia e religião. Há quem diga, porém, que o livre-arbítrio é inverossímil, que nosso destino já está predefinido, escrito, seja por Deus, pelos astros ou pela entidade que for. Os budistas, pelo contrário, acreditam na lei da ação e reação, o “karma”, que diz que para toda decisão há uma consequência, boa ou ruim. A doutrina espírita também segue nesta linha, de que a evolução do ser humano depende de um constante aprendizado, o qual demanda esforço diário, pessoal e interpessoal. Nosso objetivo é alcançar a tal da perfeição, outro termo bastante complexo. Por isso, algumas almas precisam reencarnar tantas vezes quantas forem preciso até que essa transcendência moral e intelectual aconteça, por meio da caridade, da tolerância, do perdão, da fraternidade, do amor ao próximo como pregava os líderes espirituais Jesus Cristo ou Mahatma Gandhi.

Um desses seres que beiram a perfeição teve sua biografia transformada em longa-metragem. Divaldo – O Mensageiro da Paz (Brasil, 2019 – Fox) é um filme que retrata um ser humano exemplar que tem se dedicado de corpo e alma a acolher o próximo. Aos 92 anos, Divaldo Pereira Franco segue em atividade na Mansão do Caminho, a obra social do centro espírita Caminho da Redenção, erguido há 67 anos em Salvador e que presta diversos serviços além de ajuda espiritual a milhares de pessoas independentemente da religião. Hoje são 600 crianças acolhidas pela entidade filantrópica.

Ao contrário do popular Chico Xavier, o nome Divaldo é conhecido apenas entre os seguidores do espiritismo, mesmo tendo proferido dezenas de palestras ao redor do mundo e vendido mais de oito milhões de livros. Por isso, estava mais que na hora da cinebiografia sobre o médium entrar para o rol dos filmes espíritas.

O diretor Clovis Mello, que assina também o roteiro, conseguiu entregar uma obra correta e à altura do médium, tirando alguns tropeços perdoáveis. O longa foi baseado no livro Divaldo Franco: a Trajetória de um dos Maiores Médiuns de Todos os Tempos, de Ana Landi, e, assim como o filme Kardec (sobre o pai do espiritismo, lançado no primeiro semestre deste ano), também deveria ser visto por adeptos de qualquer doutrina ou religião. Primeiro por tratar de temas delicados, como o suicídio (lembrado neste mês pela campanha Setembro Amarelo), e pela visão que católicos e espíritas têm sobre a morte. Outro motivo está explícito no título do longa: a mensagem de Divaldo, que abdicou de uma vida tradicional para dedicar-se à filantropia, para levar um pouco de paz e amor àqueles que sofrem de carência, financeira ou afetiva.

O filme conta a trajetória do menino, nascido em Feira de Santana, Bahia, que desde os quatro anos de idade se comunica com os mortos e, por isso, precisa a aprender a conviver com o preconceito dos incrédulos. Pela mediunidade ter se manifestado cedo, conversar com a avó morta por exemplo era tão natural quanto bater um papo com um familiar de carne e osso.

Três atores interpretam o médium: João Bravo, na infância; na mocidade, Ghilherme Lobo; e pelo recifense Bruno Garcia, na fase adulta. A história é contada de forma linear e Mello mostra a evolução do caráter de Divaldo, com sua teimosia e orgulho presentes na juventude, até a aceitação da sua vocação e a posterior conquista da serenidade.

A escolha do elenco, aliás, foi decisiva para garantir coesão à trama e alcançar a empatia do espectador, principalmente em relação ao sotaque. Os pais de Divaldo, por exemplo, são interpretados por atores de teatro baianos. A mãe, dona Ana, é Laila Garin, que conduz sua personagem com uma doçura irresistível. Caco Monteiro é Seu Francisco, o pai severo, porém capaz de absorver ao longo do tempo as diferenças do filho.

Divaldo pertencia a uma família católica e, logo no início do filme, surgem várias críticas à igreja. Numa das cenas mais cômicas, o médium, na pele de Ghilherme, vê o espírito da mãe do padre com quem está se confessando. Curioso, o religioso pergunta como sua mãe está vestida e a resposta de Divaldo o faz se libertar de suas amarras.

O longa ainda mostra como o espírita recebeu apoio de pessoas queridas, verdadeiros “pontos de luz”: dona Ana é uma delas e representa a verdadeira mãe de sangue nordestino. Do início ao fim da sua vida, concede o apoio incondicional ao filho, quando, por exemplo, ele é convidado pela médium Laura (Ana Cecília Costa) ainda na adolescência a se mudar para Salvador para estudar a doutrina e trabalhar como datilógrafo. Outro que permaneceu ao lado do médium desde jovem foi o amigo Nilson.

Em sua jornada, Divaldo recebe orientações de sua guia espiritual, Joanna de Angelis, reencarnação de Santa Clara de Assis, a quem é atribuída a maior parte das mensagens psicografadas pelo baiano. A entidade é interpretada por Regiane Alves, que logo coloca os pingos nos is a Divaldo, alertando-o sobre as dificuldades, resistência e preconceito que enfrentaria. Por mais que a doutrina espírita evoque o livre-arbítrio, o filme nos leva a entender que Divaldo já estava predestinado e que ter filhos de sangue não estaria incluso na sua missão. Ele teria filhos de coração.

O contraponto de Joanna vem na forma do espírito obsessor incorporado pelo ator Marcos Veras, que soa um tanto caricato, vestido de preto, com maquiagem pesada e fantasmagórica. A alma assombra a mente de Divaldo, sempre atiçando-o para o lado negro. Outro ponto forçado é a trilha sonora, que parece ter sido escolhida a dedo para arrancar lágrimas dos olhos dos espectador mais sensível – como na cena em que Divaldo perde a sua mãe com “Ave Maria” ao fundo.

No geral, Mello preocupou-se em enfatizar a doutrina espírita em sua essência, de uma forma leve, graciosa e com diálogos bem-humorados. Porém, as falas de Regiane Alves, principalmente, fogem desse viés e soam um tanto cansativas, em tom de sermão. Em certas cenas, a atriz chega a perder o fôlego para dar conta do texto extenso.

Entre tantos ensinamentos transmitidos por Joanna a Divaldo, um deles é determinante para acolher em nosso cotidiano tão trivial, quando encarar alguns vivos chega a ser mais aterrorizante do que topar com uma alma penada. A melhor resposta para enfrentar a intolerância é o silêncio.