Movies

A Pequena Sereia

Live action de clássica animação da Disney traz 52 minutos adicionais, novas canções e Halle Bailey impressionando como Ariel

Texto por Carolina Genez

Foto: Disney/Divulgação

Ariel é a filha caçula do Rei Tritão, governante dos sete mares. Por ser a mais nova, a pequena sereia vive sob regras extremamente restritas que em principal a proíbem de ir até a superfície e interagir com os humanos. Curiosa, magoada pelo pai e determinada a conhecer o mundo acima da água, ela é seduzida pelas promessas da bruxa Úrsula, que oferece pernas em troca da voz da garota.

A primeira adaptação do conto de Hans Christian Andersen produzida pela Disney em 1989 teve um grande peso dentro da empresa, sendo responsável por salvar o departamento de animações do Mickey Mouse, que estava passando por um período difícil depois de fracassos comerciais entre os anos 1970 e 1980. Com uma princesa muito carismática e músicas animadas, o longa abriu portas para outras produções como A Bela e a Fera e O Rei Leão e chegou inclusive a ser indicado a três estatuetas do Oscar, levando duas para casa. Por causa da relevância e da qualidade do seu antecessor, as expectativas em cima do live action anunciado para chegar aos cinemas em 2023 estavam altas.

Eis que estreia nesta semana a nova versão de A Pequena Sereia (EUA, 2023 – Disney), agora com atores. O roteiro de ambos os filmes são bem similares, contando inclusive com alguns mesmos diálogos. Porém, com 52 minutos adicionais, o live action consegue acrescentar momentos e músicas, alem de desenvolver melhor cada um dos personagens de uma maneira que melhora e complementa a história mas ainda mantém a essência que o desenho trouxe para a narrativa. Essas mudanças foram aprovadas não só pelos fãs da animação como também pela atriz Jodi Benson, que deu a voz à princesa Ariel no longa de 1989.

O filme de 2023 abre com uma citação do próprio Hans Christian Andersen (“Uma sereia não tem lágrimas, assim ela sofre muito mais”), que fica com o espectador do começo até o final, principalmente nas cenas mais dramáticas. As novas músicas também se destacam ao longo da história, sendo acrescentadas de maneira orgânica e trazendo muito para dentro da narrativa. A trilha sonora original foi escrita por Alan Menken. Já para o live action, o compositor recebeu a ajuda do talentosíssimo Lin Manuel-Miranda.

Outra das mudanças positivas foi o melhor desenvolvimento da personalidade de Eric. Aquele de 1989, comparado com os príncipes encantados das outras princesas da Disney, tinha bastante personalidade mas não o suficiente para os dias de hoje. Agora Eric não só ganha uma música para chamar de sua, como também somos apresentados aos seus sonhos e vontades, similares às de Ariel (louco para explorar o mundo embora sua mãe queira que ele fique na proteção de seu palácio). Esse acréscimo, apesar de simples, permite com que os espectadores também se conectem com o personagem e faz com que o amor entre os dois personagens seja mágico porém mais natural.

 O romance dentro do filme também foi bem desenvolvido com esses minutos adicionais. Na animação isso já fora bem executado – apesar da intensidade de amor à primeira vista, por ter cedido sua voz, Eric não reconhece Ariel e assim acaba se apaixonando “novamente” pela garota de maneira gradual ao longo da história. No live action o foco na relação é grande, com diversas cenas em que os personagens percebem o quanto têm em comum e aproveitam a companhia um do outro – o que torna a narrativa ainda mais envolvente, também pela química dos atores.

Por falar em romance, durante o longa em diversos momentos é colocada de maneira clara a independência de Ariel, algo muito questionado ao longo dos anos. A princesa sempre quis conhecer a superfície e Eric e sua paixão foi apenas mais um motivo a mais. Dentro do filme, além de “Part Of Your World”, que já expressa as vontades da garota, a nova canção “For The First Time” mostra com perfeição a personalidade da sereia curiosa, determinada, querendo conhecer o novo mundo mas ainda assim assustada com as novidades. E tudo isso na voz potente de Halle Bailey.

A atriz e cantora aqui entrega uma performance digna de longos aplausos, encarnando perfeitamente como Ariel e sendo o verdadeiro destaque dentro do filme. Bailey dá vida a uma protagonista muito corajosa e apaixonante, com muito da essência daquela de 1989, mas construindo a personagem à sua maneira. Desta maneira, impressiona e cativa desde o primeiro momento. E a voz potente da atriz engrandece todas as músicas do filme, desde aquelas que canta solo até as que acompanha em segundo plano. Halle também impressiona pela expressão corporal e performance nas cenas em que Ariel fica sem voz.

Assim como no primeiro filme, os coadjuvantes também não ficam para trás. Aqui a temida Úrsula é vivida pela carismática Melissa McCarthy, que traz uma performance exagerada (num bom sentido) e extremamente debochada. Sua atuação bem teatral fica perfeita para a personagem. Já os amigos de Ariel estão muito afiados, apesar de realistas demais. Linguado (Jacob Tremblay) é extremamente fiel a Ariel e traz divertidos momentos principalmente no começo do filme. Já Sebastião (o talentoso Daveed Diggs) é o braço-direito do rei Tritão e ajuda a princesa a sair de sua enrascada trazendo uma maravilhosa performance da música “Under The Sea”. Por fim, a dublagem de Sabichão acaba incomodando um pouco pela voz da atriz Awkwafina ser extremamente reconhecível. Ainda assim, traz engraçados momentos e recebe uma música só sua, “The Scuttlebutt”, com traços reconhecíveis das obras de Lin Manuel-Miranda.

A Pequena Sereia também ganha muito com os avanços tecnológicos e transporta os espectadores para um mundo mágico, tanto embaixo da água quanto na superfície. Sob o mar tudo é muito colorido e quase viciante de se olhar por causa de diversas criaturas e cenários maravilhosos. O CGI e a maneira natural como Ariel se movimenta também impressionam. Já em terra temos a chance de explorar mais do castelo e da cidade de Eric, ambos também recheados de cores e objetos interessantes. Isso faz entender ainda mais a curiosidade de Ariel.

Apaixonante, satisfatório e divertido, o novo filme consegue emplacar como uma das melhores adaptações feitas pela Disney nessa leva de live actions. Prende os espectadores do começo até o fim, melhorando a narrativa de 1989 e apresentando uma ótima performance de Halle Bailey.

Music

Pitty – ao vivo

Em show de aniversário do álbum de estreia, cantora se emociona com lembranças, se vê madura e poderosa e “ressignifica” o passado

Texto por Marcos Bragatto (Rock em Geral)

Foto de Amanda Respício (Rock em Geral)

Um riff de guitarra bem distorcido quebra o silêncio no palco. Um átimo de segundo depois, o mesmo riff e a mesma distorção que, com as luzes agora acesas, vê-se que vem de uma guitarra atravessada no tronco de uma garota. Não uma qualquer, mas A garota, dona da festa toda e de mais um pouco. Garotas com guitarras costumam seduzir aos borbotões e é assim que dois varões, um de cada lado, juntam-se a ela no meio do palco, ao passo que outro, atrás, espanca os tambores sem dó e assim se faz a mágica do riff no rock’n’roll, condutor principal da tal música. É assim que Pitty, a tal garota com guitarra, comanda o singelo começo de “O Lobo”, a tal música, na noite de 29 de abril, um sábado, em uma Fundição Progresso com gente jorrando pelo ladrão, no Rio de Janeiro.

É o show que marca o aniversário de 20 anos – olhe só, vejam vocês – do álbum de estreia da cantora, Admirável Chip Novo, e o plano é tocar todas as músicas dele e otras cositas mas. É uma turnê revivalista, sim, mas Pitty, dada a rebeldias e não é de hoje, trata logo de desfazer o conceito e dizer que a apresentação é “uma ressignificação, o Chip Novo hoje”. Olhando para o palco, com o cenário criado para essa turnê, dá pra entender. Passarelas laterais com uma outra atrás da bateria, um telão low profile com cortinas sobrepostas ao fundo que recebem efeitos de luz simples, mas bastante eficientes. No começo, a imagem da “garrinchinha de botas e pernas tortas” no telão dá lugar ao mulherão em que ela se converteu que surge já de guitarra em punho, atrás da banda, no alto, detonando em “Teto de Vidro”.

É a abertura do álbum com a tríade matadora que tem ainda “Admirável Chip Novo” e a entrada de bateria, agora conduzida por Jean Dolabella (do Ego Kill Talent e com o Sepultura no currículo), e “Máscara”, coisa de arrasar quarteirão. E é isso que acontece com o povaréu que não se incomoda nem um pouco em participar, em frenético pula-pula e cantando tudo a plenos pulmões. As músicas são intervaladas por trechos de conversas da pequena Pitty (em ligação a cobrar de Salvador para o Rio) para tratar do envio do material que se tornaria esse disco e ainda se impondo ante a interesses da gravadora, que não curtiu, à época, a vontade da cantora de que “Máscara” fosse o primeiro single do disco. O resto é história e é muita história que se passa na cabeça de quase todo mundo ali – há jovens e muitos jovens há 20 anos ou mais, quando Chip Novo saiu.

Assim Pitty se esforça para segurar o choro e suplantar e emoção em várias passagens. Honra seja feita, embora tenha saído dos cafundós de Salvador, foi no Rio, por força da sede da gravadora, que ela deu os primeiros passos na carreira, tocando em tudo o que é canto underground da cidade, muitas vezes para alguns gatos pingados e em condições bem acanhadas, para dizer o mínimo. Diferentemente do trio que a acompanha – além de Jean, tem o ótimo guitarrista Matin Mendonça e o baixista Paulo Kishimoto – ela viveu tudo isso, o que carrega o espetáculo com mais emoção ainda. Pena que, nesse show, não tenha entrado nenhuma citação aos guerreiros da época: o guitarrista Peu, falecido em 2013; o baixista Joe, desafeto depois de questões levadas à justiça trabalhista; e o batera Duda.

show de íntegra do disco segue o desafio de tocar músicas que podem não ser tão conhecidas assim e que não eram executadas com frequência ao vivo nem na época em que foram lançadas. E também de tocar ou não todas elas na ordem em que foram gravadas – porque uma coisa é bolar uma sequência de disco, outra é de como apresentá-las no palco. É claro que Pitty foi na decisão corajosa de manter a ordem do CD, respaldada pelo fato de nada menos que cinco singles terem sido lançados na época, todos com boas execuções radiofônicas, em um tempo em que isso fazia a diferença. E, no fundo, no fundo, ela sabe que fã da Pitty – fã de rock – é quase sempre do tipo que conhece tudo. É o que acontece com a cantoria comendo solta em praticamente todas as músicas, em umas mais, noutras menos. E ainda tinha aqueles esperando justamente as menos tocadas ao longo da carreira.

Como por exemplo “Do Mesmo Lado”, rock enguitarrado dos bons, no qual Pitty canta “escondida” atrás de uma cortina branca e recebe focos de luzes coloridas, de modo que sua silhueta aparece distorcida e borrada, de acordo com os movimentos, em excelente efeito visual. Dá pra lembrar que “Só de Passagem” é uma pedrada nu metal das boas, e aí brilha Dolabella detonando na bateria; e a já citada “O Lobo” vira um rockão daqueles de obediência ao riff. Dentre os hits, vale destacar a lentinha “Equalize”, não pela música em si, mas por evidenciar uma Pitty bem resolvida com a sensualidade que parecia lhe incomodar. Se antes tinha dificuldade até para cantar uma letra mais de relacionamento/romântica, hoje desfila o corpo de modo soberano pelo palco e não só nessa música. E ainda recomenda ao público que “solte a pélvis”. É a tal da – repita-se – menininha convertida em mulherão.

O show é todo fechadinho em 1h40 e bolado para ser mesmo especial. É repartido em três blocos. Se o primeiro tem as 11 músicas do álbum Admirável Chip Novo, o segundo traz um complemento da época, com “Seu Mestre Mandou”, espécie de sobra, que se converte em nervoso hardcore dos tempos do Inkoma, e três covers, com destaque absoluto para “Love Buzz”, da banda holandesa Shocking Blue, eternizada na voz de Kurt Cobain, do Nirvana. No bis, é a hora da representatividade dos outros álbuns da cantora. Aí realçam “Memórias”, esticada com uma jam session em que cada músico é apresentado e sola em seu instrumento e tem Pitty refestelada no solo, e o arremate com “Me Adora”, a canção mais pop/colante dela e talvez a de maior sucesso, para terminar a altíssimo astral.

Em suma: o show é verdadeiro espetáculo planejado para uma ocasião especial e que tem vida própria. O que lhe dá, e antemão, o status de imperdível.

Set list: “Teto de Vidro”, “Admirável Chip Novo”, “Máscara”, “Equalize”, “O Lobo”, “Emboscada”, “Do Mesmo Lado”, “Temporal”, “Só de Passagem”, “I Wanna Be”, “Semana Que Vem”, “Seu Mestre Mandou”, “Sailin’ On”, “Love Buzz” e “Femme Fatale”. Bis: “Setevidas”, “Memórias”, “Na Sua Estante” e “Me Adora”.

Music

Hoodoo Gurus – ao vivo

Apesar do repertório irregular, australianos se garantem no Rio de Janeiro com músicas novas, boas lembranças e performance bem ajustada

Dave Faulkner (Hoodoo Gurus)

Texto por Marcos Bragatto (Rock em Geral)

Fotos de Daniel Croce (Rock em Geral)

A noite é a do tipo “fadada a recordações”, diria o velho homem da imprensa, e o momento especial não poderia ser outro, mesmo porque é único. Sim, só aconteceria mesmo no Brasil (só no Rio?), onde a dobradinha de canções, que passaria batida em todo o mundo aqui tem um significado realmente especial e precisa ser tocada. Tem que por no contrato que tem que ser assim. Por isso, quando os primeiros acordes da primeira música aparecem, o público vem abaixo, piração total. E quando a segunda vem quase emendada, aí a loucura é generalizada. É assim que o excelente público que encheu o Metropolitan (ops, Qualistage), reage no auge do show do Hoodoo Gurus, na sexta 14 de março, no Rio de Janeiro.

Explica-se que tanto “Out That Door” – a primeira – quanto “What’s My Scene” – a segunda – cederam trechos para vinhetas para a programação da Rádio Fluminense FM, que marcou fortemente a derradeira passagem da emissora de Niterói pelo dial na primeira metade da década de 1990. Ou seja, motivo de emoção e saudades de um tempo marcante de verdade. Era a época em que a rádio cobria competições de surfe e as músicas que os surfistas brasileiros ouviam quando iam competir na Austrália rodavam forte na programação, ganhando a pecha de surf music, sem ter nada a ver com o subgênero criado por Dick Dale, Beach Boys e afins. A coisa cresceu tanto que todas essas bandas (parte da new wave/pós-punk/rock australiano oitentista) fizeram turnês concorridas nos anos subsequentes por aqui. A do Hoodoo Gurus, em 1997, por exemplo, lotou duas noites seguidas deste mesmo Metropolitan.

Dito isso – saudosismo uma ova! – o fato é que nesse meio tempão a banda acabou, voltou com discos pouco ouvidos e agora está na turnê do novo álbum, o bom Chariot Of The Gods, que saiu no ano passado. Dele são apresentadas quatro faixas: as boas “World Of Pain”, que abre a noite, e “Equinox”, “uma canção sobre boa sorte”, cantada pelo guitarrista Brad Shepherd; e as nem tão legais assim “Chariot Of The Gods”, a faixa-título, e “Answered Prayers”, que emula Echo & The Bunnymen e não esconde as origens 1980s da banda. Uma pena terem ficado de fora, desse disco novo, três das melhores músicas: “Get Out Of Dodge”, “My Imaginary Friend” e “Carry On”, dotada de um refrãozaço daqueles (procure saber!).

Montar set list, veremos, não chega a ser uma virtude desses aussies. Mas compor música boa, sim, e, vamos e venhamos, em mais de 40 anos de estrada, há um bocado delas pro público cantar do início ao fim. Caso de, por exemplo, “If Only…”, da época em que a banda circulou por aqui, com Dave Faulkner (vocal e guitarra) colocando a massa pra cantar; “Come Any Time”, na abertura do bis; e da deliciosamente pop colante “I Want You Back”. Além de Faulkner e Shepherd, estão na formação o baixista Richard Grossman, completando a trinca remanescente dos shows noventistas por aqui, e o batera Nik Rieth, novo na turma, mas cascudaço. É evidente em todo o show a performance bem ajustada do quarteto e os fabulosos backing vocals de Grossman e Brad Shepherd, inclusive nas músicas do disco novo, que se completam com a voz de Dave Faulkner – este, a propósito, com o falsete em dia.

show só engrena da metade para o final, o que se explica, de certo modo, pela escolha do repertório. Músicas como “Tojo” e “Poison Pen”, por exemplo, poderiam tranquilamente ser limadas, e não é porque “Leilani” é a primeira música composta pela banda que tem que ser tocada em todos os shows. De outro lado, que falta fazem temas como “A Place In The Sun”, “Down On Me” e “In The Middle Of The Land”, só para citar três das grandes ausências. O que não invalida momentos lindos com em “Castles In The Air” e “1000 Miles Away”, no bis, além da piração total da dobradinha “Out That Door” e “What’s My Scene”, citada lá em cima. O que, no fim das contas, faz dessa passagem do Hoodoo Gurus pelo Rio uma noite e tanto. Que voltem sempre que tiverem um novo álbum pra mostrar!

Na abertura, a banda cover VAAR Surf Band comandou um bailão daqueles. O grupo parece especializado em tocar as músicas das bandas oitentistas australianas – a tal da surf music australiana, vá lá. E aí é um Gang Gajang aqui, um Midnight Oil acolá e outro Spy Vs Spy, tudo hit que todo mundo conhece e curte o tempo todo. O bom é que o quarteto se garante no palco e se esforça para tocar tudo igualzinho às versões originais, a ponto de o vocalista se dividir entre violão, harmônica e até um trompete. O ruim é a execução no final de um inacreditável medley que incluiu Red Hot Chili Peppers e REM juntos! Mas que animou a turma, isso animou.

Set list: “World Of Pain”, “Another World”, “The Right Time”, “The Other Side Of Paradise”, “I Was The One”, “Leilani”, “Answered Prayers”, “Night Must Fall”, “Tojo”, “If Only…”, “Chariot Of The Gods”, “I Want You Back”, “Poison Pen”, “Equinox”, “Castles In The Air”, “Out That Door”, “What’s My Scene”, “Bittersweet” e “I Was a Kamikaze Pilot”. Bis: “Come Anytime”, “1000 Miles Away” e “Like Wow – Wipeout”

Music

Wu-Tang Clan + Planet Hemp – ao vivo

Coletivos históricos de NY e do Rio levam a SP a profusão de trinta anos da trajetória de cada um no hip hop

RZA (Wu-Tang Clan)

Texto por Fábio Soares

Fotos: Gustavo Diakov/Hedflow

O conglomerado Wu-Tang Clan já era para ter pisado em terras brasileiras em terra brasilis em abril de 2020. A pandemia da Covid-19 decretada um mês antes, entretanto, quase pôs fim ao sonho de ver esta instituição do hip-hop in loco. Eis que quase mil dias após a data prevista, naquele domingo 2 de abril era enorme a expectativa dos fãs nos arredores do Espaço Unimed, em São Paulo. Desde cedo, aficionados pelo coletivo já desfilavam camisetas, bonés e aparatos a granel com o gigantesco “W” característico do grupo. Apesar das anunciadas ausências dos fundadores GZA e Method Man, era enorme a expectativa por uma apresentação única (e, por que não dizer, a última) por aqui. Bem “hoje ou nada”.

Antes da apresentação principal, o Planet Hemp deu as caras. Com 30 anos de carreira nas costas, o coletivo carioca capitaneado por Marcelo D2 e BNegão provou porque ainda é relevante no cenário do hip hopnacional após três décadas. Apesar de haver um recente álbum lançado (Jardineiros, 2022), a performance foi carregada de emoção e nostalgia. Teve homenagens ao fundador Skunk (morto em 1994), eixbição de trechos de entrevistas concedidas no início da carreira do grupo e revisitação dos primeiros álbuns, (Usuário e Os Cães Ladram Mas a Caravana Não Para).

Citações do punk brasileiro (“Pela Paz Em Todo Mundo”, do Cólera) e inéditas como “Puxa Fumo” também deram o tom. O fator negativo ficou por conta da onipresente baixa iluminação do palco. Proposital ou não, isso incomodou. Sorte que o coeso repertório salvou a pátria. Até que o hino “Mantenha o Respeito”, com andamento alterado, decretou números finais à apresentação que em nenhum momento comprometeu e provou ser mais que adequada como passagem para a grande atração da noite.

Marcelo D2 (Planet Hemp)

Com trinta anos de carreira, o Wu Tang-Clan surgiu na cidade de Staten Island, NY, para mudar a cara do hip hop. Sempre com o método de trabalho colaborativo, explodiu já em sua estreia, em novembro de 1993, com o seminal álbum Enter The Wu-Tang (36 Chambers).

Na semana do show, um temor generalizado abateu-se nas redes sociais com o anúncio das ausências dos fundadores Method Man e GZA. Porém, os remanescentes Ghostface Killah, Masta Killa, RZA, Inspectah Deck, Cappadonna, U-God e o DJ Mathematics sabiam exatamente o que fazer. E assim o fizeram em Sampa. Eram pouco mais de 20h30 quando os primeiros acordes de “Killa News On The Swarm/Clan In Da Front” transformaram o Espaço Unimed num antro de celebração nas cores amarelo e preto. Com status de religião, o coletivo tinha a plateia sob seu comando e em nenhum momento deixou-a dispersar.

“Da Mystery Of Chessbown” sustentou o ar de celebração à cultura hip hop, tendo a guitarra pesada de “One Blood Under W” como sequência. Porém, nada comparado ao PANDEMÔNIO instalado no salão com o universal hino “C.R.E.A.M.”. o efeito que esta faixa ainda provoca em audiências mundo afora após três décadas é algo a ser estudado! Marca registrada do rap que seria reconhecida até dentro de uma cápsula do tempo enviada à Lua.

Após de breve intervalo, RZA surgiu com uma garrafa de champanhe aberta nas mãos “para abrir nossos caminhos”, comandando a introdução de “Reunited”, conhecida por onze em cada dez fãs do grupo. Uma atmosfera de comoção tomou conta do local, já transformado em enorme pista de dança. Tudo ficou ainda mais acentuado com a homenagem ao eterno integrante OI’ Dirty Bastard, morto em 2004.

Depois de noventa minutos, um fato inusitado: o som da casa foi cortado bem no meio da execução de “Protect Ya Neck”, provavelmente por estouro do horário-limite. Foi a ducha de água fria para uma plateia que ficaria entregue aos seus comandantes até às cinco da manhã do dia seguinte, necessário fosse.

No fim, entretanto, a certeza de que trinta anos de história ali à frente valeu a pena. O Wu-Tang Clan não é somente uma banda, um grupo ou um coletivo. É muito mais que isso: é uma ideia.

Set list Wu-Tang Clan: “Killa Bees On The Swarm”/”Clan In Da Front”, “Bring Da Ruckus”, “Da Mystery Of CHessboxin’”, “One Blood Under W”, “Shame On A Nigga”, “Wu-Tang Clan Ain’t Nuthing Ta F* Wit”, “Can It Be All So Simple”, “Clan In Da Front”, “Uzi (Pinky Ring)”, “C.R.E.A.M”, “Method Man”, “Run”, “For Heavens Sake”, “Tearz”, “Shimmy Shimmy Ya”, “Got Your Money”, “Ice Cream”, “Gravel Pit”, “Triumph”, “Reunited”, “4th Chamber”, “Smells Like Teen Spirit” e “Protect Ya Neck”.

Set list Planet Hemp: “Distopia”, Marcelo Yuka, “Taca Fogo”, “Puxa Fumo”, “Dig Dig Dig (Hempa)”, “Jardineiro”, “Amnésia”, “100% Hardcore”, “Hip Hop Rio”, “Zerovinteum”, “O Ritmo e a Raiva”, “Legalize Já”, “Deisdazseis”, “Onda Forte”, “Cadê o Isqueiro?”/”Quem Tem Seda?”, “Contexto”, “A Culpa é de Quem?” e “Mantenha o Respeito”.

Music

Azymuth

Baterista Mamão foi o arquiteto da fusão rítmica que abriu diversas possibilidades estéticas para a música brasileira dos anos 1970 em diante

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Far Out/Divulgação

Acordar com a notícia da morte de um gigante como Ivan Conti (Mamão) não é pra qualquer um. E foi exatamente o que aconteceu hoje, em meio a mensagens emocionadas de sua esposa Sandra e de sua gravadora, a Far Out Recordings, colocando-o como um dos maiores bateristas de todos os tempos. Não é exagero, visto que Mamão foi um dos arquitetos da fusão do samba-jazz com o funk e, a partir daí, com uma vastidão de possibilidades estéticas que vieram na segunda metade dos anos 1970. Até então, ele já fizera parte de vários conjuntos e, junto com Alex Malheiros e José Roberto Bertrami, integrava o Azymuth desde 1968. Cinco anos depois, a banda estrearia em disco com O Fabuloso Fittipaldi, acompanhando Marcos Valle.

Os músicos do Azymuth eram muito requisitados para tocar em álbuns de outros artistas, de Erasmo Carlos a Raul Seixas. Apesar do sucesso nacional que tiveram em 1975, quando “Linha do Horizonte” se tornou hit por conta da trilha sonora da novela Cuca Legal, o grupo demorou para ser reconhecido por aqui. Precisou chegar aos anos 1990 para que a cena dos clubes ingleses enxergasse o brilhantismo dos álbuns que a banda continuou a gravar durante as décadas de 1970 e 1980 para que o trio ganhasse notoriedade por lá e, num movimento “de fora pra dentro”, ser valorizado por aqui. O Azymuth vinha produzindo álbuns com regularidade nos últimos anos, mesmo após a morte de José Roberto Bertrami em 2012, tendo chamado Kiko Continentino para assumir suas funções. O próprio Mamão chegou a gravar, também pela Far Out Recordings, um belo álbum solo em 2019, chamado Poison Fruit, no qual seus companheiros de banda tocam todos os instrumentos.

No ano passado, o baterista participou do show de Marcelo D2 no festival MITA e se apresentou com sua banda aqui no país e lá fora. O Azymuth, agora, preparava-se para uma turnê mundial de comemoração dos 50 anos da banda. Faria um concerto no Blue Note de São Paulo no próximo dia 24 de abril.

Mamão era ótima praça, talentosíssimo e cheio de vida. Vai fazer falta aqui neste mundo cada vez menos povoados por seres como ele. Obrigado, meu caro.