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Pelé – Parte 2

Oito motivos que transformaram o jogador em gênio dos gramados e ícone da cultura pop no Brasil e no mundo

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução

Três Copas do Mundo

Foram quatro torneios supremos do futebol mundial disputados consecutivamente. Três vencidos: 1958, 1962 e 1970. Nenhum outro jogador conseguiu igualar o feito antes ou depois.

Garoto-prodígio

Depois de se destacar nos campos da cidade de Bauru, Edson Arantes do Nascimento mudou-se para Santos aos 15 anos de idade, para tentar uma vaga no time local, uma das principais equipes do futebol paulista. Depois de um breve início na formação amadora, marcando 13 gols em 13 jogos, passou aos profissionais, marcando logo na estreia. Chegou à seleção brasileira com 16 anos e apenas dez meses de carreira. Aos 17, disputou a primeira Copa do Mundo, na Suécia. Fez seis gols no total, sendo um nas quartas-de-final (1 a 0 em Gales), três na semifinal (5 a 2 na França) e dois na final (também 5 a 2, contra os anfitriões).

Coleção de chapéus

Na final da copa contra os suecos em 1958, Pelé já havia desfilado toda a sua classe com a bola coroando a goleada de 5 a 2 com um golaço com direito a chapéu no zagueiro e conclusão pro gol sem deixar a bola quicar no chão. A ousadia daquele ainda moleque foi além dois anos depois, numa partida na Rua Javari contra o Juventus. Naquela tarde de 2 de agosto de 1960, a torcida do time grená passou a vaiar o Rei a cada vez que ele tocava na bola por conta de uma dividia que tirara um adversário da partida. Pelé já havia marcado dois dos três gols do Santos. No final do segundo tempo, recebeu na área um cruzamento de Durval. Sem deixar a bola tocar no chão, aplicou uma meia-lua no zagueiro, chapelou o segundo, o terceiro e o goleiro e ainda tocou, de cabeça, para o gol vazio. Um gol de placa, para muitos o mais bonito da carreira. Entretanto, para o azar da História, nunca apareceu até hoje um registro em vídeo de todo o lance (depois reproduzido digitalmente com base em depoimentos e textos da época). Detalhe: com a bola na rede, Pelé saiu correndo em direção aos torcedores e, em uma espécie de desabafo, pula e dá um soco no ar. Nascia, então, a comemoração que tornaria sua marca registrada nos gramados mundiais.

Orgulho preto

Ao tornar-se o grande nome da reta final da Copa de 1958, ainda menor de idade, Pelé deu o primeiro passo para consolidar uma carreira que o transformou não só no maior atleta do século 20 mas também naquele nome conhecido nos quatro cantos do mundo (incluindo lugares inóspitos e sem qualquer tradição no futebol). Tornou-se Rei do Futebol logo no início dos anos 1960, quando, dando sua contribuição fazendo arte nos gramados, ajudou o país a enfrentar uma fase áurea no território sociocultural, com projeção mundial da marca Brasil na música, no cinema, na arquitetura. Sem falar no fato de que Pelé veio de uma família preta e pobre para fazer fama, fortuna e sucesso com o seu trabalho e paixão e conquistou sua majestade por esforço e talento, esfregando na cara da elite branca o racismo estrutural que imperava, até então, de modo soberano e silencioso em nosso país com a divisão entre social e “de serviço” em elevadores e portas de entrada mais os quartinhos e banheiros “de empregada” na parte dos fundos das residências.

Hegemonia no continente e no mundo

Com a camisa do Santos, Pelé foi campeão em 1962 e 1963 da Libertadores e do Mundial de Clubes. Foi a primeira vez que uma equipe brasileira alcançou tais conquistas. Reflexo da hegemonia brasileira nas copas de 1958 e 1962. Outras agremiações fariam o mesmo décadas posteriores, mas o alvinegro da Vila Belmiro foi o pioneiro que deixou o caminho aberto na história do futebol sulamericano. Em 1962, vale lembrar que o adversário europeu era o poderoso Benfica, que havia ganho os dois anos anteriores e contava com o craque português Eusébio na escalação. O Santos não tomou conhecimento de nada disso e venceu os jogos de ida e volta (3 a 2 no Maracanã e 5 a 2 em Lisboa). Pelé fez cinco dos oito gols.

Recordes na artilharia

Pelé disputou 1383 partidas e marcou entre 1281 e 1283 gols (há até hoje divergência em diversas contagens “oficiais”). Uma média que impressiona qualquer pessoa ligada em estatísticas. Como jogou em apenas um time no Brasil, ele marcou pelo Santos em todas as 18 edições do Campeonato Paulista que disputou. Ao todo foram 37 hat-tricks (quando o jogador leva três vezes ou mais a bola à rede na mesma partida). Fez quatro gols em um só jogo por 20 vezes. Cinco gols em outras quatro oportunidades. O recorde absoluto da artilharia em um só confronto ocorreu em 1964, quando chegou à marca por oito vezes na goleada de 11 a 0 imposta ao Botafogo de Ribeirão Preto. Em 1958, entre os 17 e 18 anos de idade, anotou 58 gols no Paulistão da temporada, recorde absoluto jamais superado no país até hoje por qualquer outro jogador em torneios nacionais ou regionais. Pela seleção brasileira, comemerou 77 tentos em 92 disputas (vale lembrar que naquele tempo havia um tempo maior de intervalo entre uma entrada em campo e outra da Amarelinha; Neymar igualou a marca durante esta copa do Catar, mas com 31 atuações a mais).

No social e no cultural

O famoso milésimo gol do craque, anotado no Maracanã, contra o Vasco da Gama, durante o torneio Roberto Gomes Pedrosa (equivalente à época do Brasileirão), na noite de 19 de novembro de 1969, na verdade não foi o milésimo. Foi o milésimo primeiro. Um erro na contagem tirou a honra do último tento da goleada de 4 a 0 contra o Santa Cruz, na Ilha do Retiro, em Recife, seis dias antes. De qualquer forma, aquele pênalti convertido no Rio de Janeiro entrou para a História como o marco oficial. Partida interrompida para a comemoração, invasão de campo de torcedores, reservas e jornalistas. Pelé, carregado nos ombros e segurando firme a bola, dedicou o feito às crianças pobres de todo o país. Há pouco mais de um século, Pelé já tinha noção do que ele representava para tantos meninos e meninas que, de lá para cá, engrossaram cada vez mais os números da infância vivida na pobreza e nas ruas do país. Desde então, dedicou boa parte de seu tempo a ações sociais de combate a estas situações. Em 1997, já na condição de ministro do esporte do governo Fernando Henrique Cardoso gravou uma campanha em vídeo da canção “ABC” (que havia gravado oficialmente um ano antes com o Trem da Alegria) para incentivar a ida das crianças à escola e a queda da taxa de analfabetismo no país. Música era uma paixão secundária do cidadão Edson Arantes do Nascimento. Ele compôs uma centena delas e chegou a lançar discos com Elis Regina e Sérgio Mendes. Também chegou a participar como protagonista de uma novela de TV. O folhetim Os Estranhos, foi levado ao ar pela TV Excelsior, entre março e agosto de 1969, mediando o contato de pacíficos extraterrestres, que queriam ajudar os seres humanos a resolver problemas complicados do dia a dia como os sentimentos de raiva e ciúmes. Como precisava seguir cumprindo suas obrigações como jogador de futebol, seu personagem tinha de ficar longe de qualquer envolvimento amoroso, para que as gravações ocorressem de forma organizada, ocupando os buracos da agenda cheia. Ivani Ribeiro (famosa por A Viagem) foi a autora da trama, escrita para fomentar a expectativa dos brasileiros pela primeira chegada do homem à lua. Gianfrancesco Guarnieri e Gonzaga Blota dirigiram um elenco que tinha, além de Pelé, Regina Duarte, Rosamaria Murtinho, Vida Alves, Claudio Corrêa e Castro, Osmar Prado, Stenio Garcia, Marcia de Windsor, Silvio de Abreu e o próprio Guarnieri. Depois, nos anos 1970 e 1980, ele atuaria em alguns filmes (em um deles, Fuga Para a Vitória, ao lado de Sylvester Stallone) e viraria personagem de HQ, em versão infantil, pelas mãos de Mauricio de Sousa.

Tricampeonato no México

O mundial disputado em 1970 foi o maior desafio da carreira de Pelé. Muito menos por sua capacidade, mais pelo psicológico. Ele havia se contundido durante as duas últimas semanas e ficado de fora dos jogos decisivos para a nossa seleção. Na preparação para a ida ao México seu rendimento também estava sendo constantemente colocado em xeque. Novas lesões e uma birra pessoal do então técnico, o cronista esportivo João Saldanha, ameaçavam a sua presença no time titular. A ditadura militar fez uma intervenção na Confederação Brasileira de Desportos, trocou o treinador (colocando no lugar o iniciante Zagallo, que poucos anos antes abandonara a trajetória de jogador para se dedicar à nova função) e bancou, junto com os companheiros de Amarelinha, a figura de Pelé nos gramados. Deu certo. Pelé viveu momentos iluminados na copa que deu o tricampeonato ao Brasil. Comandou um time avassalador em campo, que somou seis vitórias em seis jogos, totalizando 19 gols (média superior a três por partida). Pelé marcou quatro vezes, três na fase inicial e uma na final (um sonoro 4 a 1 contra a Itália, que também luta pelo tri e pela posse definitiva da taça Jules Rimet). Alimentou o time com grandes jogadas, passes e assistências para gols decisivos dos atacantes Jairzinho (na dura vitória de 1 a 0 contra a última campeã, a Inglaterra) e Rivelino (na semifinal contra os uruguaios, tira-teima da derrota em casa de 1950) mais o lateral e capitão Carlos Alberto (a tampa do caixão da goleada da final). Após o apito final, torcedores mexicanos, efusivos e entusiasmados com as performances brasileiras, invadiram o campo para carregar Pelé nos ombros e arrancar-lhe partes do uniforme.

Só que a Copa do México passou para a História também pelos incríveis quatro gols sensacionais que Pelé não fez (algum outro nome já conseguiu tal feito?). Na estreia contra a Tchecoslováquia, aos 41 minutos do primeiro tempo, quando o placar mostrava empate em 1 a 1, Pelé viu uma bola sobrar após a roubada do volante Clodoaldo, viu o goleiro adversário adiantado e ainda da parte defensiva do círculo central mandou um chutão em direção ao gol. Ivo Viktor correu em desespero de volta à baliza, olhando pra cima, mas a bola, caprichosamente, saiu pela linha de fundo, perto da trave esquerda. O lance, inédito em uma Copa do Mundo, inspirou outros jogadores anos e anos depois (como Rivaldo, Roger Flores e Fred, que obtiveram sucesso naquilo que Pelé não conseguira por capricho do destino). Quatro dias depois, ainda no começo do jogo, Jairzinho cruzou para a área e o camisa 10 testou firme a bola no canto inferior direito. Gordon Banks mergulhou de forma espetacular e conseguiu espalmar a bola para cima, tirando-a da direção certeira do gol. Muita gente considera até hoje esta como a maior defesa de um goleiro de todos os tempos. No segundo tempo da semifinal contra o Uruguai, Pelé protagonizou dois lances cruciais de puro reflexo com genialidade. Em um tiro de meta de Mazurkiewicz, o craque mandou a bola, de bate-pronto, de volta à meta uruguaia. Pena que o chute saiu fraco, facilitando a vida do goleiro. No final da partida, já com o placar decidido em 3 a 1 por pouco não saiu o quarto. Tostão fez uma enfiada rasteira e vertical no meio do campo, Pelé correu mais que todos os rivais, viu o goleiro saindo para fazer com os pés a interceptação, deixou a bola ir um lado do goleiro e foi pelo outro, completou o “drible da vaca” e quase da ponta da pequena área concluiu ao gol. De um lado, um zagueiro atabalhoado se jogou no gramado para tentar cortar. Do outro lado, a bola saiu também por capricho pela linha de fundo, bem perto da trave. Estes quatro lances, mais de meio século depois, ainda são capazes de encantar qualquer pessoa que admire a arte do futebol.

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Sports

Pelé – Parte 1

Do maior craque do futebol de todos os tempos a Edson: a divindade transcende o homem que se tornou o brasileiro mais conhecido do planeta

Texto por Fábio Soares

Fotos: Reprodução

Ao morrer, na tarde deste 29 de dezembro de 2022, Edson Arantes do Nascimento era a pessoa física mais conhecida do planeta Terra. Rei em outro planeta (chamado Bola), transformou o ofício de seu esporte num ato tão simples quanto tomar um copo d’água.

Na véspera de sua despedida do Santos, no dia 2 de outubro de 1974, ele era dúvida para a partida devido à sua condição física. Entretanto, declarou um pouco antes: “Jogo até de muletas!”. Na vitória santista contra a Ponte Preta por 2 a 0 não marcou mas monopolizou as atenções do mundo ao ajoelhar-se de braços abertos no círculo central, aos 22 minutos do segundo tempo.

Para além da questão futebolística, a imagem de Pelé transcendia a estética fotográfica. O Rei negro com uniforme branco e número 10 às costas transformou-se em ícone pop que encantou, inclusive, Andy Warhol, que imortalizou seu rosto numa serigrafia em 1977 – obra esta que foi arrebatada por US$ 855 mil, cerca de R$ 3,58 milhões num leilão da Christie’s, em Nova York, em novembro de 2019.

“Te conheço há um bom tempo. Sou uma pessoa muito mais curiosa do que vocês imaginam. Inclusive, canto samba. Qualquer dia vamos cantar um samba”, teria dito o artista ao Rei. Coincidência ou não, o álbum The New Brazil’ 77, de Sérgio Mendes, encontrava-se estourado nas rádios norte-americanas.

O mundo de sonhos de Pelé com contornos de parque de diversões dentro dos gramados, no entanto (e por muitas vezes), contrastou com atitudes nada elogiáveis do homem Edson Arantes do Nascimento. Como a falta de engajamento político, a constante onipresença ao lado de presidentes americanos e sobretudo o modo como deixou-se ser usado pela ditadura militar de Médici com ares de alienação. “A gente sabia de muitas coisas que aconteciam no país, mas outras não”. Houve ainda a forma inacreditável que lidou com a questão de sua filha biológica Sandra Regina (morta em 2006). Tudo isso escancarou o lado “santo com pés de barro”, o homem com muitos defeitos, a pessoa real por trás do personagem. 

Desde 1957, quando passou a defender o time dos profissionais do Santos, Pelé é um, Edson é outro. Assim como Diego era um, Maradona era outro e Ziggy Stardust era um ser distinto a David Bowie. Pelé ganhou tr6es Copas do Mundo (o único a consgeur tal feito até agora) em quatro disputadas. Ele elevou o futebol ao status de arte e, como artista, descolou-se de seu corpo físico. Um dos únicos casos da história em que a divindade superou o homem, superou a própria história e o próprio país. Um rosto que, de tão popular, em todo o planeta, teve o mesmo alcance de símbolo máximo de uma religião.

Morre o homem, fica o Deus.  E deuses não morrem. Até para ateus.

>> Leia aqui a parte 2 desta homenagem a Pelé

Series

O Urso

Série transmite com destreza toda a energia e estresse que os chefs passam nas cozinhas dos restaurantes

Texto por Taís Zago

Foto: Hulu/FX/Star+/Divulgação

Esta é uma série em oito intensos episódios que estreou no Brasil agora em outubro no Star+ e veio para bagunçar a cabeça de leigos e servir de gatilho para quem já trabalhou numa cozinha de restaurante. Enquanto os clientes nas mesas degustam a comida como forma de lazer ou de recompensa após um dia de trabalho, nos fundos, os chefs e funcionários travam uma batalha contra fogo, facas afiadas e o relógio num ambiente que lembra mais um campo minado de restos de comida e cacos de louça. Exagero? Nem um pouco. O Urso (The Bear, EUA, 2022 – Hulu/FX/Star+) é cozinha on speed. Faz a gente suar frio. O cortisol vai nas alturas, entre o caos e a glória da elaboração do prato perfeito. Nesse caso, em especial, do sanduíche perfeito. 

Carmen “Carmy” Berzatto (Jeremy Allen White) é um jovem chef acostumado com restaurantes agraciados com várias estrelas Michelin. De origem humilde, deu um duro danado para frequentar as melhores escolas, como a CIA (Culinary Institute of America), e ser reconhecido no mundo dos famosos do ramo. Foi premiado. Chegou ao topo. Enquanto Carmy ia atrás do sucesso, seu irmão mais velho, Mike (Jon Bernthal), comandava uma lanchonete em Chicago com o melhor amigo Richard “Richie“ Jerimovich (Ebon Moss-Bachrach). O Original Beef of Chicagoland era o boteco querido da vizinhança onde trabalhadores, gangsters e moradores faziam suas refeições. Tudo parecia bem até a tragédia bater na porta e Mike, que aparentemente escondia de todos o seu vício em painkillers (analgésicos), acaba por se matar, deixando para Carmy de herança a sua parte na sociedade do Original Beef. Carmy, então, decide deixar de lado a vida de glamour e usar suas facas de grife e a metodologia francesa no boteco que, como se desgraça pouca fosse bobagem, estava atolado em dívidas e sob o comando de Richie, um caótico com sérios problemas de agressividade e autocontrole.

Temos, aparentemente, uma receita de fracasso com uma trilha sonora de arrebentar os nervos e bombar adrenalina nas veias. Carmy entra na cozinha como quem entra em um ringue, ao som de “New Noise”, da banda Refuse, mas não antes de contratar a sous chef Sidney Adamu (Ayo Edebiri), para formar com ele um front de ataque culinário protocolar. E aqui começa um embate interminável de técnica versus intuição, entre os jovens chefs e a trupe de confiança do Original Beef formada pela veterana da cozinha Tina (Liza Colón-Zayas), pelo confeiteiro Marcus (Lionel Boyce), por Ebra (Edwin Lee Gibson) e pelo fake cousin (falso primo) Richie.

Cenas que beiram a tortura em ambientes culinários já são comuns em realities meio sádicos como Masterchef Hell’s Kitchen (e suas inúmeras variantes), porém essa é a primeira vez que um roteiro original consegue passar essa energia, traduzida em puro estresse, ansiedade e úlcera gástrica, de forma convincente para a ficção televisiva. E isso não se deu ao acaso: Courtney Storer, a irmã de Christopher Storer, criador de O Urso, é chef de cozinha e assessorou toda a produção culinária da série. E ainda temos a presença do chef Matty Matheson na coprodução e também em um pequeno papel como um faz-tudo nerd amigo de Richie. Tem comida feia, comida linda, manobras radicais de equilibrismo e um enriquecimento involuntário do vocabulário dos que nunca pisaram em uma cozinha comercial ou escola de culinária.

Imagino que Anthony Bourdain, se ainda vivo fosse, gostaria muito dessa obra ou talvez fosse até ele mesmo o consultor culinário escolhido por Storer. Carmy não é um pastiche do mais famoso e controverso chef, mas consegue transmitir medo, dúvida, pânico e inseguranças que não estamos habituados a ver na figura supostamente rígida, imponente e autoritária dos mestres da cozinha. A atuação é visceral e intensa, os atores sensacionais. E com esses ingredientes de qualidade não tem erro. O banquete está servido. The Bear é a melhor série de 2022 a sair do forno dos canais de streaming até agora. E isso não significa abrir mão do sal de frutas depois da degustação. O prato é pesado porém delicioso.

Music

Paralamas do Sucesso – ao vivo

Grupo comemora 40 anos de trajetória artística levando ao palco mais de duas horas de desfile de clássicos do seu repertório

Texto e foto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

O nome da turnê é Paralamas Clássicos. Ou seja: uma banda com 40 anos de história e sucessos decide levar ao público aquilo que entende como sendo seu repertório mais consagrado e emblemático. Em termos de rock nacional dos anos 1980, não dá pra encontrar paralelo, seja por menor inspiração, seja por fatalidade. O destino levou Cazuza, levou Renato Russo e quase levou Herbert Vianna. Porém, no caso do paralama guitarrista e vocalista, quis o destino propor um desafio igualmente grande: como lidar com o novo Herbert que surgiu a partir do início dos anos 2000? Como manter os Paralamas no palco, ativos e atuantes? Não que fosse preciso, mas a apresentação daquele sábado, 17 de dezembro de 2022, no Rio de Janeiro, foi mais uma resposta.

Se a produção de álbuns inéditos escasseou e caiu em termos de qualidade lírica, a banda aprimorou uma qualidade que sempre teve: a combustão do momento ao vivo, o tesão pelo palco, a consideração e o carinho com os fãs, sempre oferecendo versões novas, interpretações diferentes, cuidando para que as gravações originais nunca sejam repetidas ou copiadas, como parece ser o mandamento maior do showbiz de alto impacto no mundo. Os Paralamas não estão nem aí para isso – são ratos de estúdio, adoram mexer nos arranjos, inserir detalhes, citações que, para o fã cascudo, soam como easter eggs do que vêm ouvido e fazendo nos últimos tempos. Já sessentões, Barone, Bi, Herbert, João Fera e o naipe de metais com Bidu Cordeiro e Monteiro Jr são uma corporação sonora ao vivo. Tem citação de baile de carnaval aqui; tem citação de Santana ali; tem Herbert murmurando “Exodus”, de Bob Marley, pra cá; tem ele resmungando “Get Up, Stand Up”, também de Bob, acolá. É um show, um evento, com seu próprio tempo e espaço, mostrando pro público atento que “clássico” atravessa o passar dos meses e anos, volta modificado mesmo nunca tendo partido. Sacou?

O evento no Qualistage tinha vários significados. Era o último show da banda no ano, encerrando uma turnê contínua e presente em vários cantos do país, com alma lavada e dever cumprido. Era o aniversário da primeira apresentação do grupo numa emissora de rádio (no caso, a Fluminense FM, gêmea do trio, que o recebeu em fita cassete a partir de 1982 e, em 17 de dezembro daquele ano, também recebeu a própria turma, então iniciante, que tocou três músicas: “Encruzilhada Agrícola-Industrial”, “Patrulha Noturna” e “Vital e sua Moto”). Quarenta anos depois, “Vital” e “Patrulha” estavam presentes no set list. E Barone avisou, antes do bis. “São vários quarenta anos: ano passado foram quarenta anos que a gente se conheceu; neste ano, quarenta anos que a gente toca junto; ano que vem, 2023, quarenta anos do primeiro disco”. Ou seja, são eternos quarenta anos.

E, falando em Rádio Fluminense, o show do Qualistage também teve um sentido extra: Maurício Valadares, lenda-viva do rádio carioca, dono do programa Rock Alive, depois roNca tripa, depois radiolla, depois roNca roNca, existente até hoje no formato de podcast, foi o responsável pela entrada paralâmica na Fluminense FM há quarenta anos. Tornou-se fotógrafo oficial do trio e, por conta de seu incansável trabalho de preservação da memória do rádio e da música no Brasil, lançou um álbum dos Paralamas extraído de uma apresentação do grupo no roNca roNca de 13 de outubro de 1999. O disco estava à venda no local e documenta os Paralamas na forma pré-Acústico MTV, gravado pela banda naquele mesmo ano.

Pois bem, a forma dos Paralamas hoje, ontem, é exuberante. Tocando por telepatia desde sempre, lembrando do perrengue que é segurar uma bandaça como esta apenas com uma guitarra e sem firulas eletrônicas, Herbert Vianna surge imparável e imorrível à frente do trio, com Barone assumindo sua camisa 8 na bateria e Bi Ribeiro, um dos maiores baixistas em atividade no país, ocupando a ponta-esquerda. Com Fera na contenção e o naipe de metais ocupando espaços, o time joga por música. O início leva o fã mais dedicado às lágrimas, numa sequência que tem “Vital e Sua Moto”, “Patrulha Noturna” e “Cinema Mudo” em sequência, em versões com aqueles detalhes atualizados e sensacionais mencionados acima. A partir daí, o espectador tem a dimensão de quantas canções de sucesso os Paralamas gravaram em sua carreira, percorrendo um trajeto que sai de Cinema Mudo, de 1983, e chega em Longo Caminho, de 2002, o último disco composto pela banda antes do acidente com Herbert. Ou seja, é o fino do fino do repertório, com mais de trinta hits incontestáveis e alguns presentes para os fãs.

“O Amor Não Sabe Esperar”, canção fofinha com participação de Marisa Monte no original, presente em Hey Na Na(1998), também está no set list. Ainda que tenha feito sucesso na época, não é exatamente um clássico. O mesmo pode se dizer de “Vamo Batê Lata”, originalmente lançada em Severino (1994) e faixa-título do álbum ao vivo do grupo, de 1995: também não é exatamente um clássico, mas faz sentido num show com esta proposta. Este também é o caso de “La Bella Luna” (1994) e “Saber Amar” (1995), belas, lindas, mas não clássicos com ph de farmácia. Estas duas canções servem para lembrar como os Paralamas sempre tiveram a manha para compor e gravar “lentinhas”. Elas são primas-irmãs de “Romance Ideal”, primeira baladaça do grupo a fazer sucesso, lá em 1984, e de “Tendo a Lua”, de 1991, também presentes aqui. Ficaram de fora outras duas lindezas do mesmo naipe, “Me Liga” e “Quase Um Segundo”, de 1984 e 1988, respectivamente.

set list mostra que os Paralamas olham com carinho para vários discos de sua carreira, mas deveriam amar um pouco mais o sensacional Bora Bora (1988). Dele só a bombadíssima “O Beco” deu as caras, deixando o fã com saudade de “Uns Dias”, porrada raivosa antiamor, e da já citada “Quase Um Segundo”, todas hits absolutos em seu tempo, com pinta de “clássico”. Também faltou a cíclica “Pólvora”, porrada de Big Bang (1989) e só. Não conseguimos detectar a falta de algum hit absoluto de seu tempo. Todas as outras estavam ali. Teve uma versão encrespada da minha favorita de todos os tempos dos Paralamas, “Mensagem de Amor”. Teve detalhes maravilhosos nos vídeos de “Óculos” e “Alagados”, esta última, um colosso rítmico que não envelhece, abrindo espaço para imagens rápidas da vereadora Marielle Franco e citação de “Sociedade Alternativa”, de Raul Seixas. Teve a porrada de “Selvagem”, no manjado – e eficaz – medley com “Polícia”, dos Titãs e imagens mostrando cartazes com os dizeres Vidas Negras Importam, comprovando que os Paralamas sempre se preocuparam com o viés social em suas obras, que, tristemente, ainda seguem atuais em conteúdo lírico.

Teve a dupla consagrada de covers portenhas, com as ótimas “Trac Trac” (de Fito Paez, lançada em Os Grãos, de 1991), “Lourinha Bombril” (do grupo Los Pericos, lançada em Nove Luas, de 1994). Teve uma versão pesadíssima de “A Novidade”, com arranjo beirando o samba-reggae, cheio de efeitos sonoros muito bem colocados. Isso mostra o quanto o grupo ainda é capaz de se divertir com os dubs ao vivo, abrindo espaço para doideiras em “Será Que Vai Chover”, emendada com “Assaltaram a Gramática”, cheias de tecladices e ecos. Além delas, “O Beco” também abriu espaço para experimentações discretas no terreno do reggae, algo que a banda sempre fez.

Também estiveram presentes o medley “Você/Gostava Tanto de Você”, mostrando que o trio paralâmico foi pioneiro na valorização do funk nacional em plena era excludente do rock nacional oitentista. Teve “Ela Disse Adeus”, “Caleidoscópio”, “Aonde Quer Que Eu Vá”, “Uma Brasileira”, “Melô do Marinheiro” (com “Marujo Dub”) e um bis com SETE canções, iniciado com a invocadíssima “Perplexo” e encerrada com uma versão procedimental e muito adequada de “Meu Erro”, talvez a síntese da palavra “clássico” quando se trata de Paralamas do Sucesso.

Em meio a essas mais de duas horas de show, me dei conta da sorte que tenho como fã assumido da banda. Ouvi “Vital e sua Moto” no ano em que foi lançada, 1983. Desde então, os Paralamas são meus amigos mais velhos, meus colegas de colégio, meus camaradas. Aquele tipo de amigo que a gente fica sem ver por muito tempo, mas que, quando reencontra, é como se tivesse visto na véspera. Vê-los soberanos, no palco, tocando em casa, para uma plateia emocionada, embevecida e totalmente conquistada há muito tempo, ainda mais com o tempero da ocasião e da empreitada conjunta com o roNca roNca, foi como desafiar o tempo. Ou melhor, foi como entender que o tempo passa, mas que nos reserva espaço para ir e voltar com segurança. Neste caso, os Paralamas foram os melhores guias. Mais um show tecnicamente perfeito e que só demonstra a excelência do grupo. Uma porrada.

Set list: “Vital e Sua Moto”, “Patrulha Noturna”, “Cinema Mudo”, “Ska”, “Fui Eu”, “Lourinha Bombril”, “Trac Trac”, “O Calibre”, “Selvagem/Polícia”, “Mensagem de Amor”, “Cuide Bem do Seu Amor”, “Saber Amar”, “Tendo a Lua”, “Aonde Quer Que Eu Vá”, “Lanterna dos Afogados”, “O Amor Não Sabe Esperar”, “Será Que Vai Chover?”, “Assaltaram a Gramática”, “Você/Gostava Tanto de Você”, “O Beco”, “A Novidade”, “Melô do Marinheiro/Marujo Dub”, “Alagados”, “Uma Brasileira” e “Óculos”. Bis: “Perplexo”, “Romance Ideal”,  “La Bella Luna”, “Ela Disse Adeus”, “Vamo Batê Lata”, “Caleidoscópio” e “Meu Erro”. 

Movies

Avatar: O Caminho da Água

O visual esplêndido não livra a longa sequência do clássico dirigido por James Cameron de se perder nas muitas inconsistências do próprio roteiro

Texto por Carolina Genez

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Mais uma década depois do lançamento do primeiro filme, chega agora aos cinemas a sua continuação. Avatar: O Caminho da Água (Avatar: The Way Of Water, EUA, 2022 – Fox/Disney) não vem somente como sequência do anterior, mas também com a promessa de outros três longas (sendo estes já com o ano de lançamento previsto).

Na história atual, também com a direção de James Cameron, reencontramos Jake Sully (Sam Worthington) e Ney’tiri (Zoë Saldaña) anos depois dos eventos do primeiro longa, vivendo em paz com a natureza e formando uma família. A paz dos Na’vi, porém, é perturbada com a chegada de mais militares que querem explorar Pandora e tornar o planeta habitável para o chamado povo do céu.

Se em 2009 James Cameron já impressionava pelos aspectos visuais do mundo de Pandora, no novo Avatar o visual é realmente de cair o queixo. Esse é o tipo de filme que traz de volta o público ao cinema por causa de uma impecável experiência cinematográfica, que deve ser vista na maior tela existente e se possível em 3D. 

A maravilha de Pandora é criada em O Caminho da Água com tantos detalhes que torna quase impossível lembrar que o local não existe na vida real. O CGI dá show e mostra o que, de fato, é possível construir tudo com o uso dos efeitos especiais. Para além dos avatares, a natureza em si acaba se tornando um personagem pelo tanto de detalhes. A coloração das plantas, os movimentos dos animais e insetos e, claro, a água dentro do filme são simplesmente impressionantes. Além disso, no segundo Avatar o mundo se torna ainda mais palpável. Com a língua dos Na’vi ainda mais viva e expandida, a construção do mundo torna-se maravilhosa, mostrando ainda mais sobre as vivências e tradições daquele povo.

Aqui o protagonismo fica mais com os filhos do casal principal. Cada um deles pode apresentar personalidades muito interessantes e diferentes entre si, mas todos funcionam muito bem junto e entregamuma convincente família. Dentre os filhos biológicos há Neteyam (Jamie Flatters), mais velho e mais calmo e centrado, mas que ainda sim se rende as ideias do irmão do meio e impulsivo Lo’ak (Britain Dalton). Por fim, Tuk (Trinity Jo-Li Bliss) é a filha caçula. Completando a família e o destaque entre os filhos, entra Kiri (Sigourney Weaver). A filha da cientista Grace (também vivida por Sigourney Weaver), que morreu no primeiro filme, tem uma narrativa muito interessante dentro do longa, explorando as maravilhas de Pandora com a mesma admiração que o próprio espectador. Entre as crianças, o elenco apresenta Miles “Spider” Socorro. Com a saída do povo do Céu, ele acaba ficando, por conta da idade, com os cientistas que permanecem em Pandora. Spider é obcecado pelos Na’vi e mantém uma amizade muito bonita com os filhos de Jake e Ney’tiri.

O começo do longa mostra as vivências dessa família, quando acontece a chegada de mais militares. No primeiro filme, o objetivo era minerar o planeta. Agora, é torná-lo habitável para a vinda dos humanos, já que a Terra se encontra próxima do fim. Esta trama, porém, é abandonada na primeira uma hora de projeção, já que a narrativa é consumida por um desejo desesperado de vingança pelo Coronel Miles Quaritch (Stephen Lang), que retorna como avatar (após uma explicação bem mediana para trazer de volta o vilão) e move diversos recursos (e praticamente montanhas) apenas para se vingar de Jake Sully. As motivações do personagem são bem fracas (até porque no filme anterior o personagem era mais coerente) e sem sentido dentro da atual narrativa, já que aqui matar Sully não elimina os outros Na’vi, que são tão guerreiros como ele.

Por isso, infelizmente, o maior inimigo de O Caminho das Águas revela ser a série de inconsistências de seu roteiro. A estrutura e os atos narrativos são idênticos ao primeiro filme, porém mais alongados. O filme também se segura muito para desenvolver algumas relações e eventos, que muito provavelmente serão explicados e desenvolvidos nas próximos produções. Com isso, entretanto, o segundo filme acaba perdendo muito ao entregar momentos genéricos, previsíveis e com explicações bem ruins.

Além disso, talvez um dos erros que mais impacta é a adição de fatos e regras ou a quebra destes sem grandes explicações desde o início – até porque o primeiro longa é finalizado sem grandes pontas para um segundo. Isso acaba acontecendo ao longo do filme todo. Não só a origem dos personagens da Kiri e Spider ou a volta do coronel, mas também as histórias, lendas e tradições dentro dos povos são explicadas muito de repente e acrescentadas sem dó, apenas para servir às necessidades dos personagens e conseguirem movimentar os mesmos. O objetivo destes também pode ser questionado em diversos momentos, gerando até mesmo a quebra de conexão entre espectador e história.

O Caminho da Água também traz diversas cenas em que nada acontece, até mesmo para que se possa contemplar ainda mais o visual. Tal decisão acaba o deixando extremamente longo, com mais de três horas de duração (trazendo incoerência em determinados momentos, já que de uma hora para outra o perigo deixa de ser iminente com facilidade). A montagem também deixa a desejar pelos cortes bruscos e cenas por vezes sem conexão com os takes seguintes. O final do filme traz uma cena de ação que supera o primeiro, é bem verdade. Só que sua resolução previsível não consegue deixar os espectadores na ponta de sua cadeira. Apesar disso, o longa traz uma melhora grande em relação ao primeiro e consegue terminar plantando curiosidade para as próximas sequências. Avatar: O Caminho da Água é aquela produção impecável e bela visualmente, ideal para ser vista dentro de uma sala cinema, mas peca pelo roteiro raso e genérico, com uma aventura mediana e aquela promessa de melhora para os próximos longas.