Movies

Aquaman

Filme-solo tira de fundador da Liga Justiça o estigma de super-herói inútil e lhe devolve o crédito perdido após frequentes zombarias na internet

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Texto por Andrizy Bento

Foto: Warner/Divulgação

Membro-fundador da Liga da Justiça, durante anos o Aquaman foi subestimado pela cultura pop e tornou-se alvo de zombaria de produtores de memes pela internet afora. Talvez sua representação na famigerada animação Superamigos, exibida na TV aberta entre as décadas de 1970 e 1980, tenha contribuído para que o personagem fosse relegado à condição de super-herói inútil, com os poderes mais “estúpidos”, e apontado constantemente como a grande piada do universo dos super-heróis. Uma grande injustiça, convém dizer. Quem realmente teve contato com o personagem em sua mídia original sabe que ele protagonizou arcos de qualidade nas HQs e que, neles, o Aquaman representava muito mais do que um mero objeto de sátira de South Park. Eis que, agora, o cineasta James Wan lhe devolve a dignidade perdida com uma adaptação cinematográfica empolgante e que resgata o clima épico das aventuras protagonizadas pelo herói nos quadrinhos.

Primeiramente, é necessário esclarecer que Aquaman (EUA, 2018 – Warner) não se trata de uma obra-prima das telas. O fato é que depois de pesar a mão em filmes pretensamente grandiosos, sombrios, carregados de seriedade, de frases de efeito e sequências em slow motion – procurando desesperadamente fugir com da condição de “filme para toda a família”, em uma resposta aos longas coloridos, bem humorados, dinâmicos e mais calcados na ação, produzidos pela Marvel Studios – como foi o caso de O Homem de Aço (2013) e Batman Vs Superman: A Origem da Justiça (2016), a DC/Warner resolveu mudar de tática. Uma vez que os filmes não pareciam encontrar seu tom e nem satisfazer qualquer tipo de público – fosse o infanto-juvenil ou o mais adulto – os longas da marca investiram em mais ação, fantasia, leveza e bom humor, sem abandonar a aura de épico. Um exemplo bem-sucedido é Mulher Maravilha (2017); outro não tão bem recebido foi Liga da Justiça, lançado no mesmo ano. Felizmente, Aquaman se aproxima mais do primeiro e acerta no equilíbrio entre os elementos narrativos, conferindo grandeza à origem e mitologia do herói, ao mesmo tempo em que proporciona uma trama ágil (a despeito das mais de duas horas de duração), agradável, divertida e até romântica, encontrando seu tom e cumprindo exatamente o que promete. E o melhor: tornando atraente e até mesmo instigante tudo aquilo que já foi considerado ridículo pelos haters do personagem – seja o visual, repleto de escamas pelo corpo, ou a habilidade de se comunicar com peixes e outros animais aquáticos, dentre outras de suas clássicas características.

Nascido Arthur Curry, um híbrido de atlante com humano, o Aquaman é filho de Atlanna, uma poderosa rainha do reino submerso de Atlântida, com Tom Curry, um faroleiro. Ambos se conhecem ao acaso, durante uma terrível tempestade noturna que leva Atlanna para o farol em que Tom trabalha. Obviamente, um desperta no outro sentimentos que superam as diferenças entre suas raças e eles dão à luz um filho, fruto dessa união. Algo bem clichê, mas que funciona nas HQs – onde o herói teve sua história recontada diversas vezes, sendo essa a versão mais atual – e, para surpresa dos mais céticos em relação ao personagem, funciona na tela também. Sob as ameaças de seu reino que a reivindica e orquestra até mesmo um ataque ao homem que ama e seu filho, Atlanna se vê forçada a abandonar a família que acabara de construir na Terra, retornar à Atlântida e tomar parte em um casamento arranjado com o rei Orvax por questões exclusivamente políticas. Sua origem é contada de maneira rápida, sem muita embromação, o que torna o início do longa um tanto quanto acelerado; no entanto, favorece o polo principal, que é a disputa entre o mestiço Aquaman e Orm, o filho legítimo concebido por Atlanna e Orvax, ao trono de Atlântida. A jornada de um relutante Arthur Curry que, a princípio, nem mesmo se acha digno do trono, atravessa céu, terra e mar, incluindo o deserto do Saara, Sicília (na Itália) e outros reinos distantes no fundo do mar, onde o mestiço coleta pistas, conhecimento, inimigos e diversas lutas corporais em busca do tridente de Atlantis.

Trata-se de uma narrativa simples e bem fundamentada, que jamais perde o senso de diversão e fantasia. De exuberante temos os cenários e o excelente emprego do CGI aliado à fotografia e à paleta cromática assertiva em seus tons vibrantes. As sequências que se passam no fundo do mar são primorosas, além de criativas. O grande destaque de Aquaman é justamente o design de produção acurado, que garante cenas visualmente impressionantes mesmo carregadas de reverência. No entanto, até isso é funcional, pois dá uma ideia mais precisa da imensidão daquele universo subaquático, repleto de criaturas fabulosas e composto de diferentes reinos e raças que corroboram a construção da mitologia do personagem no cinema, ofertando inúmeras possibilidades para futuras continuações.

A ação é turbinada com tiros, explosões, perseguições e sequências de lutas intermináveis que agradam em cheio aos fãs do gênero, enchendo os olhos daqueles que curtem um bom espetáculo pirotécnico. O elenco, além de afinado, mostra competência, levando a sério seus papéis mas, ao mesmo tempo, mostrando o quão divertido é estar na pele dos personagens. Jason Momoa, intérprete do protagonista, esbanja carisma e presença de cena. O ator divide a tela, durante a maior parte do tempo, com a destemida Mera, vivida por Amber Heard. A química entre o duo principal é certeira. Completam o elenco o sempre ótimo Willem Dafoe, como Vulko; Nicole Kidman, como Atlanna; e Patrick Wilson, interpretando Orm.

Dentre os deméritos estão o excesso de flashbacks acompanhados de voice-oversexpositivos de modo a elucidar a história (um recurso infalível porém enfadonho e para o qual o cinema, infelizmente, ainda não encontrou substituto); além da música incidental e a trilha sonora como um todo que, apesar de temas marcantes e algumas excelentes canções, é mal pontuada, excessiva e até mesmo artificial em determinadas sequências.

Ainda que fique aquém de Mulher-Maravilha, a melhor produção da DC/Warner até agora, o longa que leva o nome do herói fez muito mais por Aquaman do que apenas lhe devolver seu crédito perdido. O filme dirigido por James Wan é uma perfeita combinação de ação e fantasia, com um estilo até old fashion, envolvente e divertido. Com certeza, vale o ingresso.

Music

L7 – ao vivo

Duas aulas de feminismo e resistência, performances juvenis arrebatadoras mais aquela certeza do eterno caráter transgressor do rock alternativo

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Suzi, Jennifer e Donita em Porto Alegre

Texto por Fernando Halal (Porto Alegre) e Abonico R. Smith (Curitiba)

Fotos de Fernando Halal/FHF (Porto Alegre) e Priscila Oliveira/CWB Live (Curitiba)

Um quarto de século após a histórica apresentação no Hollywood Rock, onde ofuscaram até mesmo um tal de Nirvana, as musas do L7 voltaram ao Brasil para uma disputada turnê que percorreu cinco capitais. Mas este é um cenário bem diferente daquele encontrado em 1993. O grunge perdeu vários de seus heróis para as drogas e a depressão. Chris Cornell, Layne Staley, Scott Weiland, todos deixaram uma lacuna difícil de preencher. Kurt Cobain virou mártir absoluto. E o rock, como todos sabemos, jamais teve um movimento de renovação tão forte quanto aquele.

E quanto ao L7 de hoje? Haveria ainda espaço para as notórias excentricidades do quarteto, como jogar absorventes na plateia ou mostrar a bunda para a TV em horário nobre, como na última vez delas por aqui?  Obviamente não. Até porque, no mundo pós-grunge, o politicamente incorreto é uma lembrança remota. Mas não se engane: em Porto Alegre, a noite de 4 de dezembro de 2018 teve peso e sujeira transbordantes. As atrações de abertura do Morrostock Vênus em Fúria seguiram o clima e também se destacaram pela representatividade: teve o dínamo punk Replicantes (da irrequieta vocalista Julia Barth) e, antes deles, Bloody Mary Una Chica Band, o projeto garage noise da multi-instrumentista Marianne Crestai (ex-Pullovers). Em suma, distorção girl power foi o que não faltou.

As cortinas reabriram para a atração principal. No palco, as pioneiras do movimento riot grrrl continuam velozes, lisas, empilhando riff em cima de riff – elas só estão mais sorridentes, e acredite, isso é muito bom. O grupo voltou em 2015 na sua formação mais clássica, após o hiato de quase uma década e meia. Donita Sparks (voz/guitarra), Suzi Gardner (guitarra), Jennifer Finch (voz/baixo) e Dee Plakas (bateria) seguem entregando um show vigoroso e que não evidencia qualquer marca do tempo. O repertório passeia por todas as fases, com destaque para os álbuns Bricks Are Heavy (1992) e Smell The Magic (1990), sempre com uma energia absurda. A chance de testemunhar ao vivo petardos como “Fast And Frightening”, “Pretend We’re Dead” e “Everglade” era o sonho molhado de qualquer jovem espectador da MTV dos anos 1990, e o L7 não decepcionou. Ainda houve espaço para a clássica “Shitlist”, que figurou na trilha sonora de Assassinos por Natureza (1994), além de faixas mais recentes, como “Come Back To Bitch” e “Dispatch From Mar-a-Lago”.

Definitivamente, a idade não chegou para a banda; não é todo dia que se pode testemunhar quatro mulheres na faixa dos 55 anos batendo cabeça, ajoelhando até o chão e fazendo air guitar sem soar datado ou ridículo. Sorte que o L7 nunca foi uma banda qualquer. Muito mais que um show de rock feito para tiazinhas pagarem suas contas, o que se viu foi uma celebração à vida e ao barulho, ao poder feminino, a envelhecer com desprendimento e amor próprio. Não é pouco, mesmo. (FH)

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Donita e Jennifer em Curitiba

O neoliberalismo é uma doutrina opressora, tanto social quanto economicamente. Vamos começar a sentir isso na pele logo a partir da virada do ano. Os britânicos sabem muito bem o que foi o regime mão-de-ferro da primeira ministra Margaret Thatcher entre 1979 e 1990. Já os americanos experimentaram uma versão um pouco menos severa durante os oito anos (1981-1989) em que o republicano Ronald Reagan esteve à frente da Casa Branca.

E o que isso tem a ver com o rock’n’roll? Simplesmente, muito. Afinal, não fosse a apatia geral da juventude do país naquela época talvez não houvesse surgido em torno dos principais centros universitários do país uma geração inconformada que uniu música e atitude e revolucionou o rock daquela época. Esta turma consolidou, com muito punk e hardcore na veia e uma boa dose de um heavy metal mais desacelerado, o que viria a ser chamado posteriormente pela indústria de “alternativo” e mais tarde ficaria conhecido no Brasil sob a alcunha geral de indie.

E quais eram as melhores armas para se enfrentar os tempos bicudos de opressão socioeconômica somada a pessimismo, depressão e desesperança? Um caldeirão de ativismo político repleto de elementos como cinismo, deboche, tosqueira, improvisos, quebra de paradigmas e sobretudo o eterno desafio ao estabilishment. Foi nos porões, muquifos e vans pela estrada afora por todo o país que aquela geração gerou uma série de ícones underground. Uns tornaram-se muito populares, mesmo não sabendo trabalhar direito com os percalços trazidos pela fama, como foi o caso de Nirvana e REM. Outros chegaram a flertar com o sucesso de massa por um curto intervalo de tempo. Vários outros construíram uma carreira consolidada e respeitada e até hoje, ainda na ativa ou não, conquistaram o direito definitivo de morar no coração de uma devotada legião de fãs.

O L7 se equilibra nestas duas últimas categorias. De volta aos palcos e estúdios após um longo hiato que durou de 2001 a 2015, o quarteto prepara aos poucos um novo disco – duas canções já foram apresentadas, “I Came Back To Bitch” e “Dispatch From Mar-a-Lago”, a última um tapa na cara do presidente Donald Trump tal qual faz o Batman no Robin naquele famoso meme. Enquanto isso, Donita Sparks (guitarra e voz), Suzi Gardner (guitarra e voz), Jennifer Finch (baixo e voz) e Dee Plakas (bateria e vocais) continuam espanando a poeira circulando pelos palcos alternativos dos EUA e do mundo. No final de 2018, deram uma circulada por Chile e Brasil, fazendo seis shows em sete dias, no melhor esquema “banda em início de carreira”, apenas trocando a van por aviões em virtude das grandes distâncias do lado de baixo do Equador.

Na noite de 5 de dezembro a banda passou por Curitiba, como headliner da segunda edição do festival Coisarada, realizado no Hermes Bar. E por lá mostraram que continuam com seu teen spirit imutável. O que poderia significar percalço – como gripe, doença e o peso da idade (que hoje varia dos 52 aos 58 anos) – foi tirado de letra durante quase uma hora e meia de show, com muita garra, vontade e alma rock’n’roll. A dupla Sparks-Finch, então, é um caso à parte em sua performance: não faltaram as tradicionais balançadas de cabeça, poses para fotógrafos e tiradas bem-humoradas ao microfone.

O repertório ficou dividido entre os quatro clássicos álbuns lançados entre 1990 e 1997: Smell The Magic, Hungry For Stink, The Beauty Process: Triple Platinum e Bricks Are Heavy, com ligeira tendência preferencial para o último, de onde saíram sete faixas para o set list. A sonoridade, claro, torna-se bem mais crua ao vivo. Sem muitas sutilezas, tal como um monolítico bloco de riff se pequenos solos em bases que trafega entre o punk e o heavy e a adição de melodias pegajosas mais versos curtos, diretos e sem firulas líricas. E, claro, com os tradicionais erros seguidos da parada da banda inteira para começar a mesma música de novo. A beleza da imperfeição.

O começo foi arrasador, com a ousadia de engatilhar quatro clássicos logo de cara (“Deathwish”, “Andres”, “Everglade” e “Monster”). Do meio para o final foi mais um show para fãs de carteirinha, aquelas pessoas que cantam as letras todas, que esperavam ouvir também as duas novidades na noite, que se encatam com o resgate de pérolas “lados B” dos discos. Para o bis foram reservados um cover de heróis delas (neste caso, “American Society”, do obscuro grupo punk de uma early eighties Los Angeles Eddie & The Subtitles) mais o hit “Pretend We’re Dead” (até hoje presente nos playlists de rádios brasileiras de perfil rock) e a cult “Fast And Frightening” (o verso “Got so much clit she don’t need no balls” será sempre um irresistível slogan da banda).

Terminado o show do L7 ficou a feliz sensação de que, mais uma vez, esta mesma geração põe a cara a tapas para mostrar o quão nocivo, transgressor e perigoso o rock ainda pode ser, sobretudo diante de pretensões autoritárias e opressivas de se governar o mundo e controlar a vida das outras pessoas. Sorte que bandas como estas fizeram muitos discípulos por aí. Em Curitiba, as duas atrações de abertura provaram isso: o Shorts, com seu misto de blues, noise e psicodelia; e o ruído/mm, com suas várias ambientações instrumentais que muitos chamam de post-rock. Garanto que, ao sair de um Hermes Bar lotado e plenamente satisfeito com a trinca da noite, ninguém pensou que o rock está morto ou ainda precisa ser salvo. Pelo contrário, aliás. Quem precisa ser salvo são os outros. Pessoas e gêneros musicais. (ARS)

Set list Porto Alegre e Curitiba: “Deathwish”, “Andres”, “Everglade”, “Monster”,  “Scrap”, “Fuel My Fire”. “One More Thing”, “Off The Wagon”, “I Need”, “Slide”, “Crackpot Baby”, “Must Have More”, “Drama”, “I Came Back To Bitch”, “Shove”, “Freak Magnet”, “(Right On) Thru”, “Dispatch From Mar-a-Lago” e “Shitlist”. Bis: “American Society”, “Pretend We’re Dead” e “Fast And Frightening”.

Movies

Infiltrado na Klan

Novo longa de Spike Lee é tão atual que parece ter sido feito sob encomenda para estes tempos de retrocesso ideológico

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Texto por Fábio Soares

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Sabe o atirador que mira um objeto mas, sem querer, atinge o alvo com maestria mesmo com “trocentos” graus de dissonância? Pois bem: assim é Spike Lee com seu novo longa. Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman, EUA, 2018 – Universal Pictures) não é um instrumento de indiretas do diretor, atualmente com 61 anos, contra Donald Trump. É um grito de revolta contrário à eleição do republicano em 2016. Em suas entrevistas, Lee refere-se ao mandatário como “agente laranja” ou, pura e simplesmente, “filho da p***”, baseado em declarações racistas, homofóbicas e misóginas proferidas pelo então candidato ao pleito de dois anos atrás, aliado à sua intransigente posição contra imigrantes.

Neste momento, seu cérebro deve estar traçando um paralelo com ao recém-eleito presidente do Brasil mas esta etapa mais uma coincidência que cai por terra pelo fato de o diretor nominalmente citar Jair Bolsonaro como personificação de uma ameaça ideológica na América Latina. “É necessário abrirmos o olho contra o retorno do fascismo. Veja o que recentemente ocorreu no Brasil e, paralelamente, na Europa com a eleição de partidos conservadores”, afirmou o cineasta, em recente entrevista no México. Spike Lee sabe o quanto é importante sua verve ativista neste momento e, sabiamente, usa de sua arte a seu favor.

Mas vamos à película. Não seria inexato afirmar que Infiltrado na Klan caminha entre a linha tênue entre a comédia e o drama. Conta a história verídica de Ron Stallworth (interpretado por John David Washington) um jovem negro, morador do Colorado no final dos anos 1970, que consegue entrar nos quadros da polícia local. Ao iniciar seus trabalhos, sente o preconceito desde o início: é escalado para trabalhar no inexpressivo arquivo de dados de infratores do estado. E Ron queria mais. Com personalidade, peita seus superiores e consegue o improvável: uma investigação para chamar de “sua”.

O que era para ser um simples monitoramento sobre a classe negra oprimida da região, transforma-se numa inimaginável imersão ao núcleo de Ku Klux Klan com um ingrediente quase inverossímil se não tivesse sido registrado na História: Ron comunicava-se com os líderes da organização através de telefonemas mas, a certa altura, a presença de sua figura era mais que necessária às reuniões da organização. Foi então que imaginou uma “sacada” improvável mas certeira. Com a ajuda de Flip Zimmermann (um colega policial branco interpretado por Adam Driver) Ron é a “voz” de um novo integrante da Klan, enquanto Flip é seu “dublê de corpo”, comparecendo pessoalmente às reuniões e encontros da seita racista. Assim, os dois “Rons” (original e “dublê”) conseguem exercer papel de liderança dentro da organização e assim, literalmente frustrar diversos ataques contra negros previamente arquitetados. Até David Duke (eterno líder da KKK, aqui vivido por Tolher Grace) é personificado e ludibriado pela dupla.

Em se tratando de Spike Lee, deve-se deixar de lado a busca pelo primor cinematográfico. O diretor aposta todas as suas fichas do ativismo na estética de seus personagens, assim como numa pesadíssima trilha sonora. Em Infiltrado na Klan ouve-se de Temptations (“Ball Of Confusion”) a James Brown (“Say It Loud, I’m Black And I’m Proud”). De Dan Whitener (com a belíssima “We Are Gonna Be Okay”) até “Lucky Man”, o clássico de Emerson, Lake & Palmer. Somado à fotografia do longa, com seus tons pastéis, isso leva o espectador à imersão do Colorado do final dos 1970.

Se os diálogos, em diversos momentos, apresentam irregularidade, Infiltrado na Klancumpre bem o papel a que se propõe: um manifesto contra o racismo e a intolerância que já deveriam estar (há muito tempo) erradicados. Um retrato do retrocesso ideológico iniciado nos EUA dois anos atrás e que, desde então, expandiu seus reflexos sobretudo na América Latina.

Music

Animal Collective – ao vivo

Representado por Panda Bear e Avey Tare grupo recria na íntegra, em Belo Horizonte, o instigante álbum Sung Tongs

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Texto por Danilo Kowalsky

Foto: Francisco Rocha/Queremos!/Divulgação

Quando ouvi o álbum Sung Tongs, do Animal Collective, pela primeira vez, em 2004, tive uma sensação mista de estranheza e familiaridade. Mas já volto a este assunto.

Não havia muita coisa no cenário de bandas novas que chamava minha atenção ali em 2003/2004. As bandas estavam desesperadamente buscando de reinventar em termos de som e de formato mas ao mesmo tempo queriam voltar a agradar os ouvidos de quem gostava de shows, de canções e de refrãos. Os resultados dessa busca não estavam lá muito empolgantes. Tudo andava meio insípido. E eu, consequentemente, estava bem mais interessado nas novidades instigantes e inovadoras que vinham do cenário da música eletrônica, de selos como Rephlex e Warp, por exemplo.

Volto agora ao assunto da estranheza e familiaridade simultâneas. Ora, não seria isso algo realmente bom para motivar os interesses? A excitação e os disparos sinápticos provocados pelo inesperado, mas que não chegam chutando a porta. Chegam macio, caramelizados pelo conforto do familiar, com algo de terreno já pisado.

A estranheza de Sung Tongs deixava claro que aquele som não caminhava na mesma direção da maioria das bandas alternativas ou da cena indie rock, americanas ou europeias, da época. Apesar do violão ser um instrumento central em Sung Tongs, aquilo ali não era bem uma releitura de folk. Não era também uma releitura jovem e escolarizada do country, que costumam chamar de alt-country. A estranheza talvez tenha vindo de um certo formato, pelo menos nos arranjos e nas modalidades das canções, que me lembrava de bandas como Sun City Girls. Estavam ali a modalidade musical/harmônica, as vocalizações, as onomatopeias bucais, a aliteração, a paranomásia e outras figuras vocais não usuais na canção ocidental que evocam as línguas de outros povos e também de outras culturas musicais. Talvez daí venha o nome deste disco — numa tradução livre, “línguas cantadas”.

Mas e o familiar? O que ali naquele som me trazia a familiaridade? A estranheza foi relativamente fácil de apontar, mas o lado acalentador e confortável estava mais difícil. E assim foi se construindo a vontade de continuar a ouvir o Sung Tongs. E depois mais uma vez. De novo. Até que…

A ficha caiu! Pet Sounds. Beach Boys. Brian Wilson. Estava ali se derramando em excelentes camadas de estéreo nos meus ouvidos e eu ainda não havia percebido. Harmonias vocais construídas belissimamente. Aquele fluxo harmônico flutuando em volta dos ouvidos que quase dá pra sentir com a mão. Aquele tipo de vocalização que se tornou praticamente uma vertente na música americana. E, claro, um tipo particular de psicodelia. Tipo particular de psicodelia que talvez tenha sido mesmo inventada ali, no Pet Sounds dos Beach Boys de Brian Wilson.

Foi isso, então, o que me fez gostar tanto do Sung Tongs. Em meio a toda a insipidez da cena alternativa na época, aparecia ali um disco luminoso. Um som instigante que continha o estranho e o inesperado calçados pela harmonia acalentadora. Mesmo quando Sung Tongs fica ríspido e soturno, há sempre algo costurado, na bela mixagem do disco, que aponta antenas e radares para o longe, mas que também lança raízes no solo da era de ouro da música pop ocidental.

Por isso tudo eu estava realmente ansioso pela chegada do Animal Collective com a celebração dos 15 anos do Sung Tongs em Belo Horizonte. E apreensivo também. A possibilidade do show apareceu pelo Queremos! e já fiquei imaginando como seria a recepção a um grupo tão pouco conhecido no Brasil. Certamente deveria ser um show pequeno num lugar pequeno, imaginei. Tudo se confirmou e eu fiquei surpreso ao saber que o show seria, na verdade, em uma casa de médio porte da cidade, o Music Hall, que comporta bem mais de mil pessoas. Ingresso comprado. Agora era esperar o último dia 26 de agosto. Ansiedade deixada de lado (por enquanto).

Chegou o dia do show. Nenhuma eletricidade no ar. Nenhum burburinho. Eu — meio elétrico. Ansiedade crescia. Como seria? E os efeitos eletrônicos? E os efeitos de estúdio que são tão importantes em toda a ambiência do disco? A atração de abertura não me interessava tanto e acabei chegando ao local e fiquei ali, perto da entrada, papeando, especulando mentalmente como seria o show que estava por começar. O lugar estava vazio; já se via. Isso trazia aquela sensação de que não teríamos uma experiência com pouco calor de som e de corpos.

Panda Bear e Avey Tare entraram no palco. Eu não vi nenhum sampler e nenhum outro tipo de auxílio eletrônico. Imediatamente ficou claro que toda aquela profusão de camadas de violão e de sons e de efeitos de Sung Tongs seria executada pelos dois apenas. Em tempo real, “no braço”, ali. Menos da metade da pista estava ocupada pelo público. As alas laterais e o mezanino estavam completamente vazios. Animal Collective, certamente, não faz um som de arena para milhares, mas esse vazio de público me causava um certo desconforto.

Começou o show. E veio logo uma música que eu não reconheci (“Tuvin”). O lugar parecia estranhar os primeiros sons. Violões e vocalizações. Nenhuma letra. Nenhuma palavra facilmente inteligível. Nenhuma progressão de acordes tradicional. Fico imaginando se não estavam apresentando o Sung Tongs com um outro arranjo totalmente diferente. Mas essa possibilidade foi embora quando começou “Leaf House”, a abertura do álbum, e, na sequência, a linda “Who Could Win a Rabbit”, segunda música. Duas faixas marcantes, com ritmo mais presente (eles usavam um tambor nas músicas de batida mais forte), com os violões a palhetadas pesadas e as vozes preenchendo tudo. Ambos usavam mais de um microfone; um limpo e outro carregado de efeitos para a voz como eco e delay. O público se empolgou um pouco mais e uma certa energia entre o palco e as pessoas começou a se formar, embora alguma já manifestassem, corporalmente, um certo desinteresse. Essa energia alegre e, ao mesmo tempo, curiosa se manteve na próxima faixa, “Winters Love”. Mas foi perceptível um arrefecimento quando chegou o meio do disco com faixas mais soturnas e menos melódicas, como “Kids On Holiday”, “Sweet Road” e “Visiting Friends”. O pequeno público se dispersou um pouco mais. Alguns indo ao bar comprar mais alguma bebida. Outros se virando para conversar isso ou aquilo. Os celulares iam descendo do ar de volta para os bolsos e bolsas até que não restasse mais nenhum aparelho hasteado. Os aplausos entre as músicas não cessaram, no entanto. Continuaram.

Apesar dos pesares — do pequeno público, da dispersão e dos espaços vazios — um sentimento já emergia: a maioria dos presentes percebeu que ali, naquele palco, o trabalho musical que se desenrolava era de fôlego. Talvez não estivesse suprindo tão bem a expectativa de entretenimento de algumas pessoas. Mas era claro que possuía um conceito forte e também forte determinação artística. Essa sensação foi reforçada com a canção “College, que é uma bela peça vocal de um minuto. Todos ficaram mais silenciosos e se deixaram arrebatar pelo momento “petsoundiano-brianwilsoniano”. Na sequência veio “We Tigers”, uma faixa mais percussiva que retomava um pouco daquela alegria frugal da abertura. E os aplausos entre as músicas continuavam.

As três faixas finais (“Mouth Wooed Her”, “Good Lovin Outside” e “Whaddit I Done Brat”) foram levando o pequeno público, fosse provido de uma ou três cervejas, a manifestações mistas de uma certa descontração dançante ligeiramente ébria tipo “já que estamos aqui” ou a uma dispersão ainda maior. O vazio do lugar e o tamanho do espaço vazio estavam surtindo seus efeitos agora mais que antes.

Logo depois tivemos uma breve comunicação de Avey Tare com o público (se não me engano, Panda Bear nada disse além de “thank you!”), dizendo que ali havia se encerrado a caminhada por todas as músicas de Sung Tongs. Veio, então, um bônus de mais quatro músicas que não reconheci de imediato. Posteriormente soube que se tratavam de duas músicas de um ótimo EP chamado Prospect Hummer (“I Remember Learning How To Dive” e a faixa-título), lançado em 2005; uma ainda não gravada (“Sea Of Light”); e uma outra que está em uma compilação lançada somente em vinil, em 2009 (“Don’t Believe The Pilot”).

Tudo acabou e a pequena plateia rapidamente se pôs para fora do lugar. Em mim ficou a sensação de que uma ótima apresentação perdeu seu potencial. Ou, ainda, teve seus efeitos desvirtuados devido a uma escolha infeliz para o lugar do show.

Sunga Tongs é um álbum com muitas nuances. Cheio de microssons, cheio de camadas de efeitos, vozes, violões, samples. Cheio de onirismo e sutilezas. O lugar grande, com os ecos e ressonâncias indesejadas ocasionadas pelo vazio, só contribuiu para erodir a força de uma apresentação tão bela. Esse tipo de sonoridade pede um lugar mais compacto — em que a imersão seja mais intensa, em que a atenção ao som possa ser maior, em que o som possa ser mais preciso, com mais qualidade e menos volume, a fim de revelar tudo o que pode ser revelado e a fim de cumprir todos os efeitos (sejam eles intencionais ou não). Dessa maneira, som e ambiente adequados contribuiriam muito mais, e melhor, para o afeto do público. Para se ter uma “experiência Animal Collective”.

Voltando um pouco à segunda comunicação de Avey Tare e Panda Bear (se não me engano, houve um “good evening!” lá no início), entre a última faixa de Sung Tongs e as faixas extras (não foi um bis, pois os dois não chegaram a sair do palco): houve um momento de aplausos sinceros e calorosos, como deveria ser. Mas uma alegria não muito cintilante estava no rosto e nos lábios dos dois no palco. Essa alegria moderada talvez fosse o tom correspondente a uma apresentação que, na concepção deles, tenha sido “ok”. Como escrevo esta resenha mais de três meses depois, realmente não me lembro exatamente o que os dois disseram naquele momento final. Mas a reafirmação do motivo do show e do motivo da turnê certamente foi pronunciada: os 15 anos do lançamento de Sung Tongs. Um trabalho importante para eles, sem dúvida. E importante para mim também. Ainda não sei bem quando, nem quantas vezes. Mas sei que irei ouvir Sung Tongs novamente.

Set list: “Tuvin”, “Leaf House”, “Who Could Win a Rabbit”, “The Softest Voice”, “Covered In Frogs”, “Winter’s Love”, “Kids On Holiday”, “Sweet Road”, “Visiting Friends”, “College”, “We Tigers”. “Mouth Wooed Her”,  “Good Lovin Outside”, “Whaddit I Done”, “Prospect Hunter”, “Sea Of Light”, “Don’t Believe The Pilot” e “I Remember Learning How To Dive”.