Cate Blanchett domina as telas como a genial regente que não faz qualquer questão de esconder a falta de humildade
Texto por Taís Zago
Foto: Universal Pictures/Divulgação
Lydia Tár (Cate Blanchett) está no topo do mundo. Como uma das mais conhecidas e respeitadas regentes e compositoras da atualidade, ela reina quase soberana – uma das únicas mulheres a reger orquestras famosas, interpretar de forma singular gênios da música erudita como Mahler enquanto principal regente da Orquestra Filarmônica de Berlim ou dar aula em escolas da elite musical como a nova-iorquina Julliard. Tár não faz questão alguma de esconder a sua falta de humildade. Ela sabe que é singular e ao seu redor só tolera a presença de outras personalidades singulares. Tudo que leva seu nome é um sucesso instantâneo e serve de inspiração para muitos outros aspirantes à carreira de regente. Quem cruza o seu caminho ou discorda de sua opinião é decepado de seu convívio, com a frieza digna de narcisistas e sem aviso prévio.
O diretor e roteirista Todd Field retorna às grandes telas após uma pausa de 16 anos desde seu último filme Pecados Íntimos (2006) e não está para brincadeira. O ex-ator (participou do elenco de De Olhos Bem Fechados, de Stanley Kubrick, por exemplo) abandonou precocemente uma carreira promissora na frente para ficar somente atrás das câmeras. Em Tár (EUA, 2022 – Universal Pictures), mostra a que veio – as imagens são fortes e os diálogos profundamente reflexivos, a fotografia é escura e fria, os personagens não nos permitem que os coloquemos em papais definidos de virtude ou falha humana. Soa como Ingmar Bergman, mas não é. Blanchett não é Ullmann. Blanchett é Blanchett.
Para quem há tempo acompanha a carreira da excepcional atriz, afirmar isso tem um amplo significado: estamos diante de uma artista que busca na arte a constante superação de seus limites, tanto técnicos quanto emocionais. Cate atua em três línguas (inglês, um pouco de francês e alemão) aprendeu sobre regência e a tocar instrumentos na preparação. Mas a sua entrega diante das câmeras é mesmerizante, nenhum preparo técnico supera a capacidade da atriz de entrar na pele de Lydia e torná-la sua. Essa fusão visceral é inegável e evidente em cada cena. Tár, apesar de contar com um amplo elenco de atores tarimbados como a francesa Noémie Merlant e a alemã Nina Hoss, é praticamente um monólogo de Blanchett. O holofote está nela por toda a sua jornada, do cume de seu sucesso e reconhecimento até sua desastrosa queda.
Se você busca relações polarizadas e monocromáticas, Tár pode não ser uma boa pedida. O diretor nos coloca (e se coloca) na posição de um mero observador sem julgamento moral e sem conduzir a jornada de Lydia de uma forma óbvia. Mas como nada é perfeito – fora a atuação da Cate, claro – mais tardar a partir da metade do filme chegamos a nos questionar a necessidade de uma duração de 158 minutos para nos contar essa história. Há uma repetição de temas e de situações que, mesmo que sendo o desejado pela produção, acaba por não acrescentar muito ao todo. Uma duração de 100 a 120 minutos já daria perfeitamente conta do recado. Ao pisar no acelerador na última meia hora, Field nos deixa um pouco perdidos, pois já tínhamos internalizado, assim como em uma música, o ritmo imposto. Mas aqui não se trata de música pop. Nos universos dos virtuoses clássicos, a surpresa faz parte da experiência e desconcertar a plateia pode ser o objetivo.
Além disso, a escolha de uma Berlim invernal como locação para o “miolo” da trama, apesar de evidenciar a frieza das relações entre os personagens, coloca desnecessariamente as cenas sob uma perspectiva dura demais. Mas sim, viver em Berlim tem disso e falo por experiência própria. Nenhuma outra cidade desse planeta tem tanto poder sobre os humores das pessoas de acordo com suas estações do ano. Nenhum lugar casa tão bem criatividade com niilismo ou liberdade de expressão com opressão cultural e arrogância. Uma verdadeira meca para as elites intelectuais e criativas do mundo todo. Lydia está no lugar certo para viver seu narcisismo até as últimas consequências e nos arrasta com ela ao mergulho no abismo, independentemente da nossa vontade.
Por tudo isso, enxergo um terceiro Oscar para Cate no horizonte. E talvez seja o mais merecido de toda sua carreira.
Cineasta estreia com um dilacerante drama sobre amadurecimento e a relação da filha de 11 anos com o pai emocionalmente abalado
Textos por Leonardo Andreiko e Janaina Monteiro
Fotos: 02 Play/Mubi/Divulgação
Há filmes que desde o início prendem nossa atenção. Anunciam sua chegada e, com presença de espírito, nos catapultam para dentro de si e ocupam nossas mentes até o final. Não raro eles também sabem encerrar sua estadia, seja por meio de uma conclusão narrativa ou deixando-nos abertos à incerteza. Na vida, contudo, o fim de uma história raramente é anunciado. Nosso último encontro com alguém não vem acompanhado do letreiro onde vem escrito “fim”. Aftersun (Reino Unido/EUA, 2022 – O2 Play/Mubi), queridinho da crítica mundial e arrebatador de premiações deste ano (incluindo o Troféu Bandeira Paulista, para novos diretores na Mostra de São Paulo), consegue o feito de fazer os dois.
O longa-metragem, primeiro da diretora escocesa Charlotte Wells, retrata uma viagem de Calum (Paul Mescal) e Sophie (Frankie Corio), sua filha de 11 anos, para um resort no Mediterrâneo. Em meio às atividades de férias, mergulhos e jantares, acompanhamos o amadurecimento do olhar de Sophie sobre o mundo, a conflituosa relação de Calum consigo mesmo e o movimento de aproximação–distanciamento de pai e filha.
Wells tece um delicado véu que unifica os muitos percursos temáticos que Aftersun explora, de modo que consegue abordar questões socioeconômicas, melancólicas, psicológicas e até mesmo de coming of age mantendo um filme coeso e direcionado. É sob a decupagem simples (mas não minimalista) de suas cenas que a diretora projeta os diferentes estados de espírito que permeiam sua obra. É simples pela movimentação desperturbada: o interesse nos planos longos e nos detalhes em cena. O fora-de-campo cumpre uma função essencialmente especulativa (por imaginarmos o que se passa para além das câmeras), mas também de tensão – as elipses, omissões simbólicas e a subexposição esmagadora do mar à noite são aspectos constitutivos da forma da obra. Não somente floreiam o que se passa como discursam sobre ele, o expandem.
O resultado, primoroso de certo, é um filme que carrega consigo a complexidade de duas vidas, e não somente a superficialidade de uma trama, uma mera premissa. Enquanto Sophie descobre relações, modos de interação e o romance que permeia a vida, a operação emocional de Calum é praticamente oposta. A pré-adolescente se encontra num movimento de afastamento da magia do jogo, do karaokê e da infância, partindo ao mundo dos interesses românticos e das nuances adolescentes, que faz florescer seu próprio desejo ao mesmo tempo que descobre e se interessa pelo desejo do outro. Seu mundo é o hotel, suas piscinas e o fliperama. Em paralelo, seu pai não consegue desvencilhar-se do próprio passado, das próprias aspirações e da opressão do mundo à volta. Seu desejo é sempre presente, mas reprimido – fuma escondido de sua filha, projeta saídas de problemas materiais para além da viagem, preocupa-se com o dinheiro e rememora o passado sem noção certa do futuro.
Das muitas sequências memoráveis, vejo aquela em que Calum almeja o tapete sem poder comprá-lo como uma das mais potentes. Em um quadro repleto de tapetes, empilhados sobre os demais numa espécie de sótão/estoque, irrompem Calum, Sophie, o vendedor e um tapete estendido ao chão, no qual o protagonista finca o olhar. Não é o desejo pelo artefato que o interessa, mas a capacidade de carregar consigo as histórias daqueles que o teceram.
Em um jogo de cena entre esse plano conjunto e um tocante close-up de Paul Mescal (que desde Normal People, série que projetou o astro às telas mundiais, é uma marca de sua carreira), o delicado olhar da direção faz o papel de nos impor a realidade emotiva que vive o protagonista. Em crise por não ver no tempo presente cumpridos seus sonhos de criança e muito menos os próximos passos na vida adulta, Calum se deita num de muitos tapetes e respira – busca sentir a história, mas não é capaz de tê-la.
Pincelando sua narrativa com o recurso da filmagem caseira que marcou o final dos anos 1990 e o começo do novo milênio, Wells opera uma exploração vívida da psique de suas personagens e o poder cristalizador da matéria-prima do cinema: o vídeo. São muitas as instâncias em que as brincadeiras de Frankie segurando a câmera, bem como os registros mais aterrados e “documentais” de Calum, são monumentos da memória, revelando ao espectador um passado muito latente e carregado de afetos. Não à toa, em dado momento, a espectadora é a própria Frankie, já adulta, que ao assistir as filmagens rememora e reinterpreta sua história e relação com o próprio pai.
Aftersun é, sem dúvidas, um dos lançamentos mais potentes deste ano, um sopro de ar fresco sobre o claustrofóbico e agonizante cenário das franquias intermináveis e lançamentos decepcionantes. Esse é um filme que emociona ao ser assistido, mas também é um dos raros que emocionam ao escrever sobre. Charlotte Wells, ao trabalhar a partir de sua própria memória, parece recuperar uma constatação óbvia, mas não menos potente: não há letreiro de “fim” para anunciar o último encontro. E é isso que os torna especiais. (LA)
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Gatilhos mentais podem ser acionados de várias maneiras, fazendo revisitar memórias guardadas nas mais profundas gavetas e que trazem à tona calafrios e sensações nada agradáveis. Tem gente, por exemplo, que associa assistir a vídeos caseiros a uma certa melancolia. Talvez porque saiba que quando alguém querido, da família, se for, essa é uma das formas de se perpetuar as lembranças, sejam elas alegres ou não.
Por isso, assim que a personagem Sophie (a estreante Frankie Corio) aperta o play no registro de suas férias na Turquia com o pai Callum (Paul Mescal) só tive uma certeza: a de que seria engolida por uma imensa onda gigante de nostalgia, chamada Aftersun (Reino Unido/EUA, 2022 – O2 Play/Mubi).
Quando este primeiro longa-metragem da escocesa Charlotte Wells terminou, fiquei atônita por alguns momentos na frente da tela. E mesmo que eu tentasse me desvencilhar de tudo aquilo que havia assistido nos últimos cem minutos não conseguia recuperar o fôlego de jeito nenhum. Não conseguia me soltar daqueles fragmentos de uma história avassaladora.
Charlotte me deixou completamente hipnotizada pela narrativa desenhada de forma melancolicamente deslumbrante para mostrar o período em que um pai separado, de 30 e poucos anos, e sua filha pré-adolescente de 11 passam juntos.
Do início ao fim, a diretora nos proporciona um mergulho na relação entre os dois, mostrando a paternidade por um viés diferente daquele que costumamos ver no cinema. Podemos lembrar de vários longas, por exemplo, como o delicado O Mundo de Jack e Rose, protagonizado por Daniel Day-Lewis, mas dificilmente algum título supere Aftersun no quesito profundidade.
Em entrevistas à imprensa estrangeira, Charlotte revelou que concebeu o filme a partir do momento em que se deparou com álbuns de fotografias antigas da família. Portanto, existe muito de autobiográfico no roteiro assinado por ela.
Ao passo que o espectador é apresentado aos protagonistas, é possível perceber também que Charlotte busca uma certa inspiração na sua compatriota Lynne Ramsay, também conhecida por dirigir filmes complexos sobre as fraquezas humanas de uma outra perspectiva, como fez com o também avassalador Precisamos Falar Sobre Kevin.
Aftersun é muito mais que uma história sobre a conexão entre pai e filha. É sobre o vazio, o desespero. Sobre ter de sorrir e zelar pela vida de outra pessoa enquanto se está dilacerado por dentro. Para traduzir essa relação delicada de afeto e dar pistas do estado mental de Calum, Charlotte nos brinda com muito plano detalhe, como na cena em que mãos de pai e filha se unem, e movimentos de câmera sutis, quando enquadra os livros de meditação dispostos em cima de uma estante.
Em início de carreira, Paul Mescal (o galã de Normal People) se mostra gigante quando de costas consegue representar com seu choro desesperador toda a agonia da personagem. Frankie Corio é a personificação de toda pré-adolescente, que faz suas descobertas e não tem papas na língua ao falar as verdades para o pai.
Para contextualizar a época, a cineasta recorre a objetos e outros artifícios: a filmadora de Sophie, o walkman de Callum, as canções que marcaram a época, como “Tender”, da banda de britpop Blur. Assim, pouco a pouco, vamos nos guiando por fragmentos dessa viagem registrada pelos olhos de Sophie. E nos dando conta do sofrimento de seu pai e a luta dele para sobreviver. Seja quando ele diz para a ex-mulher, numa cabine telefônica, que ainda a ama (“Por que você disse eu te amo pra mamãe?”, pergunta Sophie logo em seguida). Seja na cena do karaokê em que a filha, ao contrário de todas as outras vezes, canta sozinha. E uma das cenas mais arrebatadoras do filme é, sem dúvida, a “última dança” de Callum ao som de “Under Pressure”.
Depois de Aftersun, será difícil ouvir a canção de David Bowie com o Queen sem se lembrar dessa estreia arrebatadora de Charlotte Wells. (JM)
Elenco de ícones da geração Z protagoniza dilemas que podem parecer clichês mas passam longe da resolução à moda antiga
Texto por Frederico Di Lullo
Foto: H2O Filmes/Divulgação
Escrito e dirigido pelo cineasta Matheus Souza, este é, sem sombra de dúvidas, um filme jovem, ambientado no intenso clima das redes sociais. E esse clima se evidencia durante toda a história: seja pela narrativa recheada com elementos dignos de um melodrama juvenil, pela trilha sonora ambientada no dream pop que nos invadiu depois de 2010 ou até pelos diálogos entre amigos (ou amigxs?) que afrontam os principais personagens. São dilemas que, para nós podem até parecer morais, mas para a nova geração é apenas uma singela escolha. Simples assim. Direto assim.
A Última Festa (Brasil, 2023 – H2O Films) é ambientado na história de quatro jovens em sua festa de formatura, numa uma história que tem de tudo: amizades sinceras e não tanto, traições, nudes, brigas, crises existenciais, challenges e hashtags. Mas não apenas isso.
Dividido em quatro atos que decorrem simetricamente com o andar do roteiro, o longa-metragem apresenta alguns dos atores da nova geração nacional, como a badalada Marina Moschen; Christian Malheiros, que soube brilhar em produções de streaming com Sintonia e 7 Prisioneiros; mais Thalita Meneghim, Giulia Gayoso e Victor Meyniel. São jovens que se afiançam como novos talentos também na televisão, além de serem verdadeiros influenciadores da juventude. Afinal de contas, somando todos os seguidores destes nomes apenas no Instagram, chegamos ao número estimado de oito milhões de seguidores. Nada mal, né?
Rodado em Portugal ao longo de cinco semanas (e antes da pandemia), o filme é um retrato fiel da juventude que não entendemos (e também não conhecemos). São dilemas (e dogmas) que podem parecer clichês, mas que também são resolvidos de uma nova maneira, passando longe da moda antiquada.
Tudo na produção parece altamente instagramável, aparentando que o filme também poderia ser exibido em formato reels. O ritmo é frenético, embora a história, principalmente no começo, pareça que não vai levar a lugar algum. E tudo isso é possível graças a um cuidado que abarca boas atuações, diálogos intimistas e uma ótima direção de câmera. O filme tem tudo para agradar quem procura um drama contemporâneo e, principalmente, a tão digital geração Z.
Em resumo, é certeza que você não vai arrastar o dedo pra cima na procura de um próximo vídeo. Talvez você até descubra quem você seja.
Animação de diretor mexicano surpreende e apaixona enquanto o remake da Disney oferece mais do mesmo sobre“diferenças comportadas”
Pinóquio por Guillermo del Toro
Texto por Taís Zago
Fotos: Disney+ (Pinóquio) e Netflix (Pinóquio por Guillermo del Toro)
A disputa dos canais de streaming pelas melhores histórias a serem (re)contadas chega ao ponto de dois deles, Netflix e Disney+, terem lançado em um espaço de três meses um do outro o mesmo conto de fadas. A bola (de madeira) da vez é Pinóquio. O conto italiano mais famoso do mundo, criado pelo jornalista e escritor Carlo Collodi (1826-1890) em 1883 para um periódico infantil. E lá vamos nós para uma batalha de gigantes pela melhor adaptação…
O que acontece quando o desespero de um pobre marceneiro que perdeu seu filho chega aos ouvidos das divindades do lado de lá? A resposta todos nós sabemos: o “espírito” serelepe do menino (pelo menos em seu estado mais cru) passa a habitar o corpinho de madeira da marionete talhada pelo velho Gepeto.
Indo direto ao ponto. O lançamento da Disney, que estreou em 8 de setembro de 2022, aparentemente não faz qualquer questão de retrabalhar e tornar mais interessante pra as crianças de hoje o material de origem. A animação tem direção de Robert Zemeckis (mais conhecido pela trilogia De Volta Para O Futuro) e um elenco de vozes com o melhor que Hollywood tem a oferecer com Tom Hanks fazendo Gepeto, Joseph Gordon-Levitt como o Grilo Falante e Cynthia Erivo como a Fada Azul.
A animação Pinóquio (Pinocchio, EUA,2022 – Disney+) segue o modelo do velho Pinóquio da casa Disney (a animação lançada originalmente nos cinemas em 1940). Tem a mesma estética já conhecida pelas crianças, sem muita profundidade emocional ou questionamentos válidos e que vão além do óbvio – a aceitação do diferente, desde que o diferente seja “diferenciado” e bem-comportado. Mais do mesmo para o amplo público, alguns novos personagens, mas nenhum de grande destaque. E isso nos faz questionar a necessidade de mimetizar a obra de oito décadas atrás, que já existia com quase o mesmo formato. Para completar, o longa ainda arrebatou cinco indicações para a premiação anual para os piores filmes da temporada. Concorre a cinco Framboesas de Ouro: filme, diretor, ator, atriz coadjuvante e remake.
Pinóquio (2022) da Disney
Já Pinóquio por Guillermo del Toro (Guillermo del Toro’s Pinocchio, França/México/EUA, 2022 – Netflix), a pegada já é bastante diferente. A versão do clássico infantil pelas mãos de Guillermo Del Toro estreou no último dia 9 de dezembro. Como muitos já devem ter percebido, a nova casa televisiva do diretor mexicano é a Netflix, para a nossa (acho!) sorte.
A animação de Del Toro é mais impulsiva, mais inconsequente e também muito mais carismática. Seus questionamentos tocam fundo. Os diálogos de boneco (voz de Gregory Mann) com o pai Gepeto (David Bradley) e com as divindades mágicas e mitológicas são permeados por uma grande sensibilidade reflexiva e filosófica, não somente sobre a aceitação do diferente, como também sobre assuntos espinhosos para crianças como vida, morte e sacrifício. Em relação às tais divindades, vemos a mão de Del Toro fugindo da imagem estereotipada da fada-madrinha clássica e entrando mais na estética de O Labirinto do Fauno.
Temos aqui, portanto, um filme mais sombrio, mais melancólico, sem a maquiagem estridente da animação inteiramente digital e bidimensional da casa Disney. Del Toro aposta na estética minuciosa e trabalhosa do stop motion e em uma indicação etária a partir dos 12 anos. A guerra também está presente, assim como em diversas outras obras de Guillermo. Desta vez são abordadas a ascensão do fascismo na Itália e a transformação de crianças em soldados a partir da lavagem cerebral das “juventudes fascistas”. Até mesmo Mussolini recebe sua representação em forma de boneco.
Para quebrar o tom dramático vem o Grilo Falante (Ewan McGregor) como um alívio cômico sensacional. Engraçado sem ser bobinho, com sotaque britânico. No ponto. Aliás, todos personagens estão no ponto. Não existe exagero, nem nas cantorias e nem nos dramas.
Eis aqui um Pinóquio que surpreende e apaixona. As lágrimas rolam de alegria e de emoção. Por isso mesmo, a obra de del Toro é a favorita do ano para arrebatar o Oscar de animação.
Reencarnação da banda de Wayne Hussey mostra em Curitiba como se pode lidar com maestria com o envelhecimento no mundo do rock
Mission
Texto por Abonico Smith
Fotos: iaskara
Saber envelhecer dentro do rock’n’roll é uma arte. Afinal, este é um universo que cobra alto o preço do passar dos anos. A voz muda, o corpo muda, os pensamentos mudam, as vontades mudam, o jeito de ser muda. Fica praticamente impossível querer reeditar algum tempo de glória que ficou reservado lá atrás, às lembranças do passado. Fã que é fã, entretanto, vai querer sempre reviver algo através da memória afetiva disparada por letras, melodias e riffs. Se não for por streaming ou disco, certamente quer aproveitar a chance de estar frente a frente com o artista para ouvir as mesmas músicas que volta e meia entram em seus ouvidos. Muitos estão ali querendo um elo vicioso com uma pessoa ou conjunto de pessoas que quase sempre não existem mais. O que chega a ser duro para muita gente: o de presenciar um arista veterano já bem diferente daquele que toca seu coração. Por isso é necessário sempre se reinventar do lado de cima do palco e, por outro lado, saber aceitar a evolução natural das coisas.
Com o Mission, este diálogo entre banda e plateia se mostrou algo bem fluido e resolvido na última noite de 26 de outubro. O quarteto britânico esteve em Curitiba, na Ópera de Arame, em uma de suas paradas de sua recente turnê de seis datas pelo Brasil. Como o vocalista e guitarrista Wayne Hussey mora há muito tempo no país, ele deu uma privilegiada à terra de sua esposa durante a nova ressurreição da banda que o consagrou durante a segunda metade dos anos 1980. De quebra, trouxe consigo duas importantes peças daquela formação clássica: o baixista e cofundador Craig Adams e o guitarrista Simon Hinkler. Portanto, 75% daquele Mission que a maior parte dos fãs conheceu e passou a admirar.
Só que é impossível parar os ponteiros do relógio e 1986, o ano do lançamento do primeiro álbum, vai ficando cada vez mais para trás no calendário. Os cabelos brancos aparecem (para os escudeiros Adams e Hinkler, a solução foi raspar toda a careca), o peso vai aumentando e aquele gás todo da juventude se dissipa. Tampouco não há mais como ficar sustentando os personagens mezzo hippiesmezzo góticos de outrora, de cabelos compridos e cheios de lenços, maquiagem, bijuterias e figurino vistoso. O grupo não está muito mais cênico, também na performance de palco. Também, já tendo ultrapassado a casa dos 60 anos, não tem mais como se comportar como aquele eterno moleque tipo Peter Pan.
O Mission hoje é muito mais focado na música e tão somente na música. É subir ao palco, pegar os instrumentos e tocar. Sem muita variação, o que confere ao repertório uma veia muito mais punk por conta da crueza impressa aos arranjos, mesmo ainda ornamentados pelos dedilhados e tessituras psicodélicas traçadas pelos dedos de Hinkler. Wayne, por exemplo, empunha sua famosa guitarra de doze cordas do início do fim, o que dá aquela encorpada nas harmonias. Craig, dono de incríveis linhas de baixo, segura com maestria os backings, mesmo na hora dos timbres mais agudos, como os do miolo de “Severina”. E o novo baterista, da metade da idade do resto, senta a mão nas baquetas, conferindo mais peso e pungência a clássicos como “Wasteland”, “Deliverance” e “Like a Child Again”.
Pena que não deu para conferir como ficou a versão 2022 de “Tower Of Strength”. O hit, no disco carregado daquela percussão enevoada de tons zeppelinianos, foi o protagonista do momento “vergonha alheia da noite”. Programado para encerrar o set list, a música foi cortada abruptamente quando a plateia curitibana, louca para ir embora do local porque já havia passado da meia-noite e todos ali corriam o risco de virar abóbora, debandou-se em massa quando o primeiro bis se encerrou ao som de “The Crystal Ocean”. Não adiantou nada dar a deixa de manter as luzes apagadas, esperando a banda tomar uns goles de água na coxia para entregar a canção derradeira.
O Mission de 2022 também não parece nada preocupar em só se alimentar apenas do passado distante. Claro que o grosso do repertório vem de seus primeiros álbuns, mas também há espaço para pérolas não muito conhecidas por quem não é fã hardcore, gravadas em discos mais recentes. “Met-Amor-Phosis”, “Within The Deepest Darkness (Fearful) e “Grotesque” representam bem a verve autoral de Hussey pós-fama, todas elas exemplares de que poderiam ter feito bem mais sucesso caso tivessem sido compostas no tempo em que os videoclipes ainda impulsionavam e muito a popularidade de uma canção. Por outro lado, o grupo também não se prende somente a peças mais conhecidas. Para equilibrar ainda mais o repertório, aparecem raridades como “Naked and Savage” e a cover de “Like a Hurricane” (hora em que o vocalista dá um pseudoesporro nos fãs por estes não saberem cantar a letra do clássico de Neil Young).
Hussey, que cerca de década e meia atrás já havia passado por Curitiba para se apresentar sozinho no palco e cantando uma série de músicas de outros autores das quais sempre gostou, voltou a abrir a gavetinha de seu lado intérprete neste show da Ópera de Arame. No meio de “Swoon”, meteu um trecho de “Heroes”, de David Bowie. Já “Wasteland” foi bastante estendida graças à inserção de “Light My Fire”, dos Doors, e “Marian”, do Sisters Of Mercy. Detalhe (e também uma private joke): o autor desta música não é só Andrew Eldritch; ela é uma parceria com o próprio Hussey, que junto com Craig Adams fora integrante das “irmãs da misericórdia” até a gravação do álbum de estreia (First and Last and Always, de 1985).
Michael Aston’s Gene Loves Jezebel
Se o Mission fez uma apresentação sóbria e cativante do início ao fim, infelizmente, o mesmo não pode ser dito da banda de abertura, a parte norte-americana que usa o nome de Gene Loves Jezebel e está sob a liderança o cofundador Michael Aston (explicando: desde que os irmãos gêmeos Michael e Jay Aston brigaram feio, existem dois GLJ em ação pelo mundo e gravando discos). Primeiro porque o vocalista era uma piada no palco. No melhor e no pior sentido. No melhor: com o bom humor sempre nos píncaros, ele não se furta a fazer palhaçadas, se jogar no chão, rastejar, fingir-se de morto, ir brindar junto ao público, fazer caretas. Diversão garantida. Só que também, muito provavelmente por conta de uma conta alta de abusos, estava completamente sem voz em Curitiba, muitas vezes jogando refrão pra galera e fazendo os fãs do gargarejo suprirem a falta de gogó. Também contou contra justamente a falta de performance junto à banda. Pareciam dois segmentos distintos e desconectados, cada um fazendo o seu e juntando somente no casamento entre base instrumental e melodia.
Também foi desfavorável o fato do set list contar somente com dois hits poderosos (“Desire” e “The Motion of Love”) e estes justamente serem programados para encerrar o show na sequência. Para muita gente ali que desconhecia o todo da carreira do GLJ, ter que aturar nove músicas pode ter sido um porre para ser recompensado em dose dupla lá no final. Afinal, convenhamos: olhando para um espectro maior daquela segunda geração do pós-punk britânico, a que tirou o subgênero do meio alternativo e galgou as paradas ali pelos meados dos anos 1980, a banda nem foi tão grande e popular assim. Ok, tinha uma turma de 40+ colada na grade que sabia cantar cada verso ao lado de Michael e até lhe ofereceu uma insólita bandeira do País de Gales assim que ele se dirigiu ao microfone (sinal de que sabem da história do cara!), mas era uma empolgadíssima minoria.
Se o Mission demonstraria logo depois ter sabido envelhecer bem, esta encarnação do GLJ esbarrou no contrário e não passou de uma mera caricatura de si próprio num passado de quatro décadas. Aliás, caricatura borrada. No look inclusive. Daquele Michael com olhos pintados e o cabelo espetado, bagunçado e cheio daqueles anos 1980 sobrou apenas uma criatura que estava mais para irmão gêmeo (embora seja dois anos mais velho) do Robert Smith, do Cure. Triste.
Set list Mission: “Beyond The Pale”, “Hands Across The Ocean”, “Into The Blue”, “Met-Amor-Phosis”, “Naked and Savage”, “Swoon”, “Severina”, “Like a Child Again”, “Grotesque”, “Butterfly On a Wheel”, “Wasteland”, “Within The Deepest Darkness (Fearful)” e “Deliverance”. Bis: “Like a Hurricane” e “The Crystal Ocean”.
Set list Gene Loves Jezebel: “Heartache”, “Always a Flame”, “Downhill Both Ways”, “Cow”, “Beyond Doubt”, “Suspiction”, “Bruises”, “Twenty Killer Hurts”, “Gorgeous”, “Desire” e “The Motion Of Love”.