Movies

Guardiões da Galáxia Vol. 3

Encerramento da trilogia do grupo de anti-heróis da Marvel conta a história do carismático guaxinim Rocket Raccoon

Texto por Andrizy Bento

Foto: Marvel/Disney/Divulgação

“Esta história sempre foi sua, você só não sabia disso”. O filme que encerra a trilogia da equipe mais disfuncional do MCU dá protagonismo ao carismático Rocket Raccoon e é um gigante megalômano com qualidades, defeitos e muito coração. Em suma, um filme muito humano.

Mesmo dentre os marvetes, há quem torça o nariz para os longas dos Guardiões da Galáxia. Mas a característica principal que sempre admirei nos filmes do grupo é o quão autossuficientes e independentes eles conseguem seguir do restante dos exemplares do MCU. Diferentemente dos demais, com seu caráter episódico, as obras dos Guardiões caminham mais com as próprias pernas, obviamente fazendo referências a toda estrutura Marvel nos cinemas, com citações e alusões a personagens e eventos ocorridos nos outros filmes da casa. Mas não é tão descaradamente um tie-in como seus pares, concentrando-se em contar uma história com começo, meio e fim, desenvolver seus personagens e trabalhar a dinâmica entre eles. Desse modo, esses longas têm o mérito (e em termos de MCU, é um mérito de fato!) de poderem ser curtidos independentemente de se ter visto as outras produções do estúdio ou não. O maior responsável por isso é o cineasta James Gunn, que assina a trilogia e é, seguramente, um dos poucos diretores autorais a assumir uma empreitada cinematográfica com o selo Marvel.

O desfecho da trilogia, Guardiões da Galáxia Vol. 3 (Guardians Of The Galaxy Vol. 3, EUA/Nova Zelândia/Frnça/Canadá, 2023 – Marvel/Disney) narra a história do misterioso personagem Rocket Raccoon (Bradley Cooper), que sempre carregou consigo uma revolta pela sua condição mas nunca explicitou, de fato, os motivos que o levaram a ser como é. Ele sempre optou por omitir detalhes sobre a origem de sua natureza adulterada, embora deixasse evidente o rancor consequente das modificações genéticas sofridas. Enfim, temos acesso a esse background e nos deparamos com uma história trágica que envolve experimentos científicos cruéis e desumanos com animais e, posteriormente, crianças. O responsável por isso, denominado Alto Evolucionário (Chukwudi Iwuji), intenta criar uma raça superior em um mundo perfeito. Já cegado pela sua obsessão, tomado pela ganância e completamente desprovido de qualquer traço altruísta, ele sequer enxerga as falhas em seu plano que resultaram no fracasso e tende a repetir o mesmo trajeto e conclusão de modo sucessivo. Sem se aprofundar muito nas temáticas mais espinhosas, Guardiões da Galáxia Vol. 3 é uma metáfora das próprias falhas da humanidade e do mau uso da ciência e tecnologia, que ultrapassa os limites éticos e morais, e da utilização de animais como cobaias para experimentos genéticos vis em laboratórios. No entanto, essas discussões se restringem a um plano mais superficial, em ordem de privilegiar a diversão e os efeitos especiais – marca registrada de qualquer filme da Marvel.

O longa abre com a toada melancólica de “Creep”, do Radiohead, em versão acústica, que Raccoon ouve no MP3 player de Peter Quill (Chris Pratt) enquanto este se embriaga pelo sofrimento da ausência de Gamora (Zoë Saldaña). A música, acompanhada pela voz martirizada de Raccoon, reflete sua própria natureza, bem como a cena ilustra a essência dos Guardiões da Galáxia no cinema: emocional e bem-humorado. Até agora, todos os filmes da equipe se comprometeram a arrancar risadas e lágrimas dos espectadores, com igual intensidade. E não é diferente neste terceiro exemplar.

Após o ataque súbito de um inimigo desconhecido – mais tarde identificado como Adam Warlock (Will Poulter) – a Luganenhum (QG, refúgio e cenário habitual das aventuras do grupo), Rocket acaba severamente atingido e, devido a um dispositivo letal presente em sua estrutura, não há meios de socorrê-lo. Na correria para salvar sua vida, os Guardiões devem unir a banda toda novamente, inclusive a Gamora da linha temporal ramificada e alternativa que emergiu em Vingadores: Ultimato – rebelde, impulsiva, egoísta, sem um traço da estoica que fora sacrificada por Thanos em Guerra Infinita e que não apresenta um resquício de sentimento por Peter Quill, rendendo sequências verborrágicas do autodenominado Senhor das Estrelas, que não hesita em expressar toda a sua mágoa e ressentimento. Obviamente, essa Gamora não possui qualquer interesse em salvar o guaxinim. Ela entra nessa para um objetivo específico dos Saqueadores, grupo espacial de criminosos chefiado por Stakar Ogord (Sylvester Stallone), ao qual se uniu após a morte de seu pai, Thanos (Josh Brolin).

Juntos novamente, os Guardiões precisam partir para o perigoso território do “criador” de Rocket e se infiltrarem na Orgocorp, uma empresa intergaláctica de bioengenharia fundada pelo Alto Evolucionário. Enquanto permanece desacordado e com a vida por um fio, toda a trajetória do guaxinim vai passando por sua mente e tomando a tela por meio de flashbacks. Há de se destacar o quão expressivos e tridimensionais são Raccoon e seus amigos do passado, também vítimas de modificações genéticas – mais do que muitos heróis que protagonizam as produções da casa, convém dizer.

Um dos pontos fracos dos filmes da Marvel Studios está em criar sólidos vilões, sempre apresentando nêmesis descartáveis para seus heróis (exceto por Thanos, que foi bem construído). Neste Guardiões não é muito diferente, mas pelo menos a performance do ator garante um inimigo deliciosamente histriônico pelo tempo em que acompanhamos a narrativa. Mais uma vez, uma produção do MCU exagera no CGI e na megalomania (maior e mais intensa a cada novo longa lançado). É realmente tão difícil assim criar uma boa história de super-herói sóbria e sem tantos excessos? Não. O último Batman nos provou isso, mas parece que Kevin Feige e sua turma não estão muito interessados nessa conversa. Outro ponto em que o filme peca é nos excessos musicais, nas tiradas cômicas e nas criaturas estranhas.

A trilha sonora dos longas dos Guardiões continua sendo a melhor da Marvel. Contudo, neste terceiro volume nem sempre as faixas surgem organicamente; ainda que pontuais e correspondentes a cada momento, é muito tempo desperdiçado com música embalando cenas que poderiam durar metade do tempo, enquanto diversos subplots são desfavorecidos. Nem todas as piadinhas funcionam, pois algumas soam por demais forçadas e com timing errado diante da necessidade de colorir o longa de humor. Quanto às criaturinhas que invadem a tela… Bem… A estética de sci-fi B dos anos 1970 e 1980 que os Guardiões da Galáxia evocam é sempre deliciosa de se apreciar e mostra que não há muito compromisso de se levar a sério demais, existindo com o propósito pleno de diversão. Nisso, este filme, bem como os demais, é honesto em suas intenções e carregado de despretensão. Mas o terceiro volume, em particular, exagera na concepção visual. De qualquer forma, tem um fundamento, afinal é de forma a alicerçar toda a estética de espaço exterior já introduzida nos episódios anteriores. E, como dito anteriormente, não é para se levar a sério.

Ainda no que se refere ao visual, a cinematografia por vezes vacila ao não valorizar a batalha das cenas com movimentos muito rápidos de câmera, embora no que concerne aos planos estáticos haja muito primor na composição dos frames, especialmente no que diz respeito ao jogo de luz e sombras (em perfeita alusão aos quadrinhos). Também há falhas visíveis e gritantes na montagem, com cortes muito secos e abruptos, que deixam os espectadores desnorteados em vários momentos. Mas o maior pecado do longa é o fato de transformarem Adam Warlock em um bobalhão… O personagem que, nas HQs, já conseguiu derrotar o poderoso Thanos, dá as caras pela primeira vez no MCU e se converte em uma enorme decepção, surgindo não apenas deslocado na narrativa, como estupidamente infantilizado.

Os méritos, ainda bem, se apresentam em muito maior número: além de focar sua narrativa no cativante Rocket Raccoon, preocupar-se em contar uma história com início, meio e fim, e proporcionar uma excelente, ainda que curta, batalha em plano-sequência (uma das mais divertidas e memoráveis do filme), Gunn se arrisca ao investir em mais violência e cenas de horror que tornam louvável o malabarismo do diretor em manter o longa no PG-13.

Guardiões da Galáxia Vol. 3 não é tão emocionante quanto Vingadores: Ultimato, como alguns exagerados afirmaram por aí. É um ótimo filme, superior a Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania, e que deve agradar especialmente aqueles que já curtiram os Guardiões nas obras anteriores. Destaca-se como uma das gratas surpresas de uma safra tão esquálida como foram a Fase 4 da Marvel e o início da Fase 5, com o último longa do Formiga. James Gunn é um cineasta vaidoso, excêntrico e, por vezes, caprichoso. Mas sabe como administrar bem um elenco numeroso e contar uma boa história com coração e humanidade nas telas. Sobretudo, nutre evidentes carinho e paixão pelo marginalizado grupo de anti-heróis que ficou incumbido de transportar para o cinema. E só isso já o torna uma das maiores aquisições e uma das mais sentidas perdas para o MCU, já que provavelmente, ele não retornará mais ao posto de diretor de um filme da franquia (não sei se vocês sabem, mas James virou um dos chefes da rival, DC Studios). Mas esperamos que seu exemplo seja seguido.

Movies, TV

Pinóquio + Pinóquio por Guillermo del Toro

Animação de diretor mexicano surpreende e apaixona enquanto o remake da Disney oferece mais do mesmo sobre“diferenças comportadas”

Pinóquio por Guillermo del Toro

Texto por Taís Zago

Fotos: Disney+ (Pinóquio) e Netflix (Pinóquio por Guillermo del Toro)

A disputa dos canais de streaming pelas melhores histórias a serem (re)contadas chega ao ponto de dois deles, Netflix e Disney+, terem lançado em um espaço de três meses um do outro o mesmo conto de fadas. A bola (de madeira) da vez é Pinóquio. O conto italiano mais famoso do mundo, criado pelo jornalista e escritor Carlo Collodi (1826-1890) em 1883 para um periódico infantil. E lá vamos nós para uma batalha de gigantes pela melhor adaptação…

O que acontece quando o desespero de um pobre marceneiro que perdeu seu filho chega aos ouvidos das divindades do lado de lá? A resposta todos nós sabemos: o “espírito” serelepe do menino (pelo menos em seu estado mais cru) passa a habitar o corpinho de madeira da marionete talhada pelo velho Gepeto.

Indo direto ao ponto. O lançamento da Disney, que estreou em 8 de setembro de 2022, aparentemente não faz qualquer questão de retrabalhar e tornar mais interessante pra as crianças de hoje o material de origem. A animação tem direção de Robert Zemeckis (mais conhecido pela trilogia De Volta Para O Futuro) e um elenco de vozes com o melhor que Hollywood tem a oferecer com Tom Hanks fazendo Gepeto, Joseph Gordon-Levitt como o Grilo Falante e Cynthia Erivo como a Fada Azul. 

A animação Pinóquio (Pinocchio, EUA,2022 – Disney+) segue o modelo do velho Pinóquio da casa Disney (a animação lançada originalmente nos cinemas em 1940). Tem a mesma estética já conhecida pelas crianças, sem muita profundidade emocional ou questionamentos válidos e que vão além do óbvio – a aceitação do diferente, desde que o diferente seja “diferenciado” e bem-comportado. Mais do mesmo para o amplo público, alguns novos personagens, mas nenhum de grande destaque. E isso nos faz questionar a necessidade de mimetizar a obra de oito décadas atrás, que já existia com quase o mesmo formato. Para completar, o longa ainda arrebatou cinco indicações para a premiação anual para os piores filmes da temporada. Concorre a cinco Framboesas de Ouro: filme, diretor, ator, atriz coadjuvante e remake.

Pinóquio (2022) da Disney

Já Pinóquio por Guillermo del Toro (Guillermo del Toro’s Pinocchio, França/México/EUA, 2022 – Netflix), a pegada já é bastante diferente. A versão do clássico infantil pelas mãos de Guillermo Del Toro estreou no último dia 9 de dezembro. Como muitos já devem ter percebido, a nova casa televisiva do diretor mexicano é a Netflix, para a nossa (acho!) sorte.

A animação de Del Toro é mais impulsiva, mais inconsequente e também muito mais carismática. Seus questionamentos tocam fundo. Os diálogos de boneco (voz de Gregory Mann) com o pai Gepeto (David Bradley) e com as divindades mágicas e mitológicas são permeados por uma grande sensibilidade reflexiva e filosófica, não somente sobre a aceitação do diferente, como também sobre assuntos espinhosos para crianças como vida, morte e sacrifício. Em relação às tais divindades, vemos a mão de Del Toro fugindo da imagem estereotipada da fada-madrinha clássica e entrando mais na estética de O Labirinto do Fauno

Temos aqui, portanto, um filme mais sombrio, mais melancólico, sem a maquiagem estridente da animação inteiramente digital e bidimensional da casa Disney. Del Toro aposta na estética minuciosa e trabalhosa do stop motion e em uma indicação etária a partir dos 12 anos. A guerra também está presente, assim como em diversas outras obras de Guillermo. Desta vez são abordadas a ascensão do fascismo na Itália e a transformação de crianças em soldados a partir da lavagem cerebral das “juventudes fascistas”. Até mesmo Mussolini recebe sua representação em forma de boneco.

Para quebrar o tom dramático vem o Grilo Falante (Ewan McGregor) como um alívio cômico sensacional. Engraçado sem ser bobinho, com sotaque britânico. No ponto. Aliás, todos personagens estão no ponto. Não existe exagero, nem nas cantorias e nem nos dramas. 

Eis aqui um Pinóquio que surpreende e apaixona. As lágrimas rolam de alegria e de emoção. Por isso mesmo, a obra de del Toro é a favorita do ano para arrebatar o Oscar de animação.

Music

Floripa Eco Festival – ao vivo

Jorge Ben Jor, Planet Hemp, Baco Exu do Blues, Donavon Frankenreiter, Emicida e outros grandes shows aliados à discussão sobre sustentabilidade

Jorge Ben Jor

Texto e fotos por Frederico Di Lullo

Um festival Massa. Com M maiúsculo. No dia 18 de setembro, todos os caminhos levaram ao Eco Festival, com shows nacionais e internacionais de renome, lembrando até os bons e velhos Planetas Atlântida que rolavam na temporada de verão de Florianópolis na primeira década (e parte da segunda) deste milênio. Como esse é um papo saudosista, esse detalhe fica para outro momento. Vamos, então, viver o hoje e falar um pouco do que vivemos na atualidade. 

Infelizmente, a cidade sofre com acessos restritos e, por isso, naquele sábado chegamos ao Centro de Eventos Luiz Henrique da Silveira quando o Floripa Eco Festival já estava aquecendo todos os presentes. Era a vez de Mike Love, num tremendo pôr-do-sol, agitar a todos com seu reggae, numa perfeita simbiose com o fim de tarde da capital catarinense. Assim, o músico havaiano passou pelos principais sucessos de sua extensa carreira. Sem dúvida, apreciar a performance dele em “Permanent Holiday” e “Human Race” foi um dos pontos altos do evento. E isso que ele estava só começando!

Com uma produção impecável e pontualidade britânica, o Eco Festival continuou com nada menos do que Donavon Frankenreiter. Não se pode deixar de citar aqui que a combinação de surfista e artista é a cara da Ilha da Magia. O cantor mandou um set list com seus maiores clássicos, entre eles as necessárias “Big Wave”, “Free”, “It Don’t Matter” e “Shine”, tudo numa vibe muito especial. Sempre ouvimos que amor de festival tende a ser para sempre. Por isso, acreditamos que casais que assistiram juntos ao show do californiano tendem a ficarem juntos. Mas não foi o nosso caso: pouco antes de Donavon acabar já estávamos posicionados no outro palco para a atração que estava escalada para depois: o aguardado Baco Exu do Blues.

Antes de continuar, não há como deixar de comentar a respeito o objetivo do evento, que une música e sustentabilidade. Numa proposta muito utilizada em 2022, quando muito se fala sobre os impactos de ações da sociedade para um mundo melhor, precisa-se lembrar que, além dos shows de sábado, houve nos dois dias anteriores o Eco Summit. O congresso reuniu conteúdo em prol da sustentabilidade ambiental, por meio de workshops, apresentações, mesas de debate e apresentações de cases de sucesso. Sim, é necessário discutir o entretenimento para além do entretenimento e a Sleepwalkers, empresa que produziu o festival, fez isso de maneira exemplar. Parabéns, amigos!

Baco Exu do Blues

Voltando a aquele sábado, um dos concertos mais aguardados iniciou, apresentando as músicas do recente trabalho Quantas Vezes Você Já Foi Amado?, lançado em janeiro deste ano. Foi assim que as mais de 22 mil pessoas presentes cantaram as já clássicas canções “20 ligações”, “Samba In Paris”, “Lágrimas” e “Mulheres Grandes”. Sim, estamos falando de Baco, caso você não tenha entendido! Também não faltaram “Flamingos”, “Hotel Caro” e “Me Desculpa, Jay Z”. Todo mundo cantou e dançou junto. Foi uma vibe incrível!

Logo após chegou a vez de apresentar a prata da casa. Muita gente que não mora em Floripa ou até mesmo nos limites de Santa Catarina se perguntava quem era essa tal de Dazaranha. Mas os veteranos nativos jogavam em casa e fizeram um show incrível, como sempre, impressionando quem não os conhecia e entregando a qualidade de sempre para quem já os acompanha há mais de 20 anos. E, acredite, praticamente todos os presentes cantaram boa parte dos refrãos das músicas. No repertório não faltaram clássicos como “Fé Menina”, “Salão de Festa a Vapor” “Vagabundo Confesso” e “Com ou Sem”. Pelo menos pra nós, contudo, o ponto alto foi “Afinar as Rezas”, quando se presenciou a maior interação com a plateia. E ainda tinha mais coisa para apresentar…

Sim, apesar do cansaço, como ficar parado na hora de Jorge Ben Jor? E se tem algo que o morador do Copacabana Palace sabe é fazer apresentações memoráveis. Acompanhado por uma banda afiada, Ben Jor colocou todos os presentes para dançar com clássicos como “Take It Easy My Brother Charles”, “Oba, Lá Vem Ela”, “Menina Mulher de Pele Preta”, “Chove Chuva”, “Mas Que Nada”,  “Balança a Pema”, “Magnólia”… Poderíamos citar todo o repertório e ainda faltariam adjetivos para descrever Jorge. O tempo passa e, aos 83 anos, cada vez fica mais evidente que ele é um alquimista e tem a pedra filosofal da imortalidade do corpo –  porque a do trabalho está mais do que assegurada.

Minutos depois, o público foi à loucura quando Emicida iniciou sua performance com uma introdução em vídeo necessária nos tempos atuais. Ele não veio sozinho também: reuniu em cima do palco os maiores nomes do rap nacional na atualidade: Criolo, Rael e Rashid. Cada um no seu momento, participaram do show emplacando os clássicos como “Levanta e Anda”, “Passarinhos”, “AmarElo”, “Libre”, “Paisagem” e “Eminência Parda”. De repente, Marcelo D2 e BNegão se juntam à trupe para uma performance incrível em conjunto na música “Grajauex” de Criolo. Mais uma das cenas que cravaram o festival no coração de todos os presentes.

Tinha tempo para mais? Sim. Eram quase duas da madrugada quando a ex-quadrilha da fumaça pousou no Eco. Era o Planet Hemp, mais Hemp do que nunca! Não dá para negar que é uma das nossas bandas favoritas, seja pela mistura entre rap, rock, reggae e hardcore, tão característica pela sonoridadeou pela ideologia. O fato é a trupe comandanda por BNegão e D2 incendiou tudo até a última ponta, num show fod@ pra c@r@lho, com uma vibe renovada, que nos traz a esperança de um mundo melhor. Começando com “Não Compre, Plante!” e passando por músicas como “Legalize Já“, “Maryjane”, “100% Hardcore”, além da cover de “Crise Geral”, do Ratos de Porão, a banda tirou as últimas forças de energia que ainda restavam da galera presente, fechando o line up com chave de ouro.

Sem dúvida, o Eco Festival foi um dos festivais do ano. E já foi anunciada sua próxima edição, para 2023. Ficamos ansiosos e expectantes por novas experiências musicais. Agora é esperar e descansar.

Music

Gal Costa

Oito motivos que confirmam a suprema importância da cantora na história da música popular brasileira das últimas décadas

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução/Divulgação 

O país todo foi pego de surpresa com a notícia da morte de Maria da Graça Costa Penna Burgos na manhã desta quarta-feira, 9 de novembro. Gal Costa faleceu aos 77 anos, em sua casa, na cidade de São Paulo. A causa não foi revelada pela sua assessoria, mas sabe-se que a cantora estava se recuperando de uma recente cirurgia para a retirada de um nódulo na fossa nasal direita. Por conta disso, cancelara seus compromissos oficiais neste mês, como uma passagem pela Europa com a turnê As Várias Pontas de uma Estrela (na qual relembrava grandes sucessos da MPB dos anos 1980) e a participação no festival Primavera Sound São Paulo, realizado no último final de semana.

A voz tamanha de Gal Costa fazia muita gente creditar a ela a condição de maior cantora do Brasil. Nascida em 26 de setembro de 1945, ela estreou nos palcos aos 18 anos de idade, ainda em Salvador. O espetáculo, chamado Nós, Por Exemplo, era formado por jovens músicos locais que tinham a intenção de renovar a música popular brasileira, ainda fincada nos pilares bossanovísticos de alguns anos atrás. Além de assinarem a direção artística, Gilberto Gil e Caetano Veloso também participavam do elenco. A turma ainda contava com Maria Bethânia, Tom Zé e Carlos Lyra (que propunha estabelecer uma conexão entre canções de Milton Nascimento e a obra gravada por ela). Já transitando no eixo Rio-São Paulo, anos depois, fez parte da Tropicália, movimento que a levou a iniciar a carreira fonográfica. Deixou mais de 40 discos gravados, entre produções inéditas de estúdio e registros ao vivo.

Em homenagem a Gal, o Mondo Bacana destaca oito motivos de sua suma importância na história da música em verde e amarelo das últimas seis décadas.

Resistência tropicalista

Quando Gil e Caetano optaram por deixar o país para continuarem vivos e produzindo no exílio europeu naquele comecinho de 1969, coube a Gal liderar a resistência da Tropicália em solo brasileiro. Neste ano lançou seu primeiro álbum de estúdio de fato (antes, gravara um dividido com Caetano), considerado um dos mais importantes trabalhos da música popular brasileira. Gal seguiu a cartilha dos amigos e achou o ponto de fusão exato entre as sonoridades brasileiras (bossa nova, xaxado) e vertentes que rolavam solto no eixo anglo-americano (psicodelismo, soul). Com a direção assinada pelo maestro Rogério Duprat e nomes como Lanny Gordin e Jards Macalé na banda de apoio. Além de releituras personalíssimas de “Sebastiana” (Jackson do Pandeiro), “Namorinho de Portão” (Tom Zé), “Se Você Pensa” (Roberto e Erasmo Carlos) e “Que Pena (Ela Já Não Gosta Mais de Mim)” (Jorge Ben). São deste disco outros três clássicos supremos da Tropicália, todos compostos por Caetano. “Baby”, “Não Identificado” e “Divino, Maravilhoso”. O último, também assinado por Gil, transformou-se em hino da resistência aos anos de chumbo pós-AI-5. Suas estrofes alertavam para a mão pesada do regime militar no Brasil, enquanto o refrão decretava “É Preciso estar atento e forte/Não temos tempo de temer a morte”. Por isso, a composição é celebrada até hoje, mais de meio século depois de estremecer as estruturas da quarta edição do Festival da Record, realizada em 1968.

Fa-Tal – Gal a Todo Vapor

Álbum duplo lançado em 1971, o segundo de toda a história da música brasileira. Com pouco mais de uma hora de duração, traz o registro, na íntegra e com direito a erros e improvisos, de uma noite de série de concertos realizada em dez semanas no Teatro Tereza Rachel no Rio de Janeiro. Sob a batuta criativa do poeta Waly Salomão, então com apenas 28 anos e um dos principais nomes daquele período da contracultura brasileira, Gal tinha a companhia de uma banda de bambas como Jorginho Gomes (irmão de Pepeu e também integrante dos Novos Baianos) na bateria, Novelli no baixo e Lanny Gordin na guitarra e assinando os arranjos. Lanny, então com apenas 20 anos de idade, já demonstrava ser um monstro nas seis cordas, o que se prova com toda a quebradeira jazzy deste disco. Na primeira parte do concerto, Gal apresenta-se sozinha ao violão, sentada de pernas abertas, mesclando sambas tradicionais de Ismael Silva e Geraldo Pereira com obras de Caetano (“Como Dois e Dois”, “Coração Vagabundo), Roberto e Erasmo (“Sua Estupidez”, então recém-lançada por ela em compacto duplo) e um trecho de Jorge Ben (“Charles Anjo 45”). Com a entrada do trio na segunda e última parte (com direito a mais um convidado na percussão), Gal solta o vozeirão ao fazer uma polaróide da poesia marginal carioca daquela época. Apresenta ao público uma canção de amor que o então desconhecido Luiz Melodia fez inspirado por um travesti (“Pérola Negra”); traça um paralelo metafórico entre drogas e ditadura militar em duas parcerias de Waly com Jards Macalé (“Vapor Barato”, também presente naquele mesmo compacto, e “Mal Secreto); homenageia a urbanidade fora-do-sítio dos Novos Baianos em “Dê um Rolê”) e faz um passeio pelo Nordeste com o frevo “Samba, Suor e Cerveja” (de Caetano), a toada sertaneja “Assum Preto” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira). Somando a tudo isso vem uma nova versão elétrica e mais pesada de “Como Dois e Dois”, mais Waly e Jards (agora separados, com “Luz do Sol” e “Hotel das Estrelas”) e uma vinheta com “Maria Bethânia” (homenagem à amiga, outra composta pelo irmão dela) e inserções de canções de domínio público (“Gigoia”, “Bota a Mão nas Cadeiras”). Com todo esse repertório incendiário e um figurino ousado (cabelos longos ondulados, batom vermelho e roupa hippie) à frente de um palco com cenografia avermelhada, Gal exorcizou como nunca havia feito sua persona política, desafiando a ditadura e reunindo a cada noite, naquela plateia de apenas 600 pessoas, um pequeno recorte de toda a resistência poético-comportamental do Rio de Janeiro, que logo depois se espalharia por outras capitais brasileiras com outras minitemporadas fervorosas do mesmo espetáculo. A efervescência ainda se estendeu a comentários bastante empolgados de uma imprensa musical estupefata com todo aquele furacão sonoro e visual. Resultado: o registro nu e cru do ápice do desbunde brasileiro contra a ditadura.

Ousadia e liberdade

Durante toda a sua carreira Gal serviu de inspiração para meninas e mulheres, foi sinônimo de liberdade e ousadia, tanto nos figurinos e performances quanto nas atitudes de vida. Gal irritou a ditadura militar com as fotos da capa do álbum Índia (1973), seu sexto álbum, produzido por Gil. Ela estava de tanga vermelha e com uma saia de palha indígena caindo pelas coxas. A fotografia, estendida para a contracapa, revelava ainda os seios desnudos, apenas cobertos por colares. A Censura Federal, sempre burra e estúpida, detestou a personificação de uma índia seminua (num tempo em que revistas com Status e Playboy ainda não existiam por aqui) e decretou que o disco só poderia ser vendido nas lojas envolto em um saco plástico. Era “imoral”, acima de tudo. Em 1985, aos 40 anos, posou nua para a Status. Em 1994, na turnê chamada O Sorriso do Gato de Alice, dirigida por Gerald Thomas, provocou frenesi no público carioca ao cantar a icônica “Brasil”, de Cazuza, com todos os botões da camisa abertos. Quando levantava o braço no brado final da música, com o nome do nosso país, seus seios apareciam para o público. Nunca defendeu bandeiras sobre a sexualidade ou o feminismo, tampouco gostava de abordar os assuntos em entrevistas. Teve relacionamentos com outras artistas, como a atriz Lucia Veríssimo e a cantora Marina Lima. Estava casada com a empresária Wilma Petrillo, sua produtora, desde 1998. Gal e Wilma eram mãe de Gabriel, adotado pela cantora aos 60 anos de idade – ela sempre desejara ser mãe mas problemas de saúde a impediram de realizar qualquer gestação.

Voz feminina de Caetano

Quer uma tarefa árdua? Pegue a discografia de Gal Costa e conte quantas canções ela gravou que foram compostas por Caetano Veloso, então. Desde Domingo (1967) até A Pele do Futuro Ao Vivo (2019) a lista é extensa – tem até um disco de estúdio, Recanto (2011), cujo repertório é TODO assinado por ele, além da direção musical. A química artística entre os dois era enorme e até se refletia na relação cotidiana: a jornalista Dedé Gadelha, primeira esposa de Caetano, era amiga de infância de Gal. Só para citar três dezenas de nomes de obras dele que receberam fino tratamento na voz dela: “Divino, Maravilhoso”, “Não Identificado”, “Baby”, “London, London”, “Samba, Suor e Cerveja”, “Como Dois e Dois”, “A Rã”, “Um Índio”, “São João, Xangô Menino”, “Os Mais Doces Bárbaros”, “Flor do Cerrado”, “Tigresa”, “Caras e Bocas”, “Força Estranha”, “Paula e Bebeto”, “Meu Bem, Meu Mal”, “Dom de Iludir”, “Luz do Sol”, “Vaca Profana”, “Tenda”, “Tropicália”, “Odara”, “O Quereres”, “Língua”, “Cajuína”, “Milagres do Povo”, “O Ciúme”, “Sertão”, “Desde que o Samba é Samba” e “Recanto Escuro”.

Doces Bárbaros

Quando estabeleceram as diretrizes para a Tropicália, em 1967, Caetano e Gil tinham como intenção primeira dar uma bela sacudida na música brasileira. Em 1976, para celebrar os dez anos de carreira artística individuais, chamaram Gal Costa e Maria Bethânia para ser criado o supergrupo Doces Bárbaros. A intenção, de novo, era dar uma nova sacudida da MPB, voltando a misturar o regionalismo com influências pontuais vindas do exterior: desta vez a tônica não era bem a sonoridade psicodélica, mas mais a estética hippie, reproduzida nos figurinos e cenografia do palco. Tudo isso para dar um choque na pauta de costumes do Brasil ainda mergulhado no regime militar ditatorial (era o ano em que o general Ernesto Geisel fingia estar começando a distender a mão de chumbo), responsável pela prisão dos dois baianos e o consequente exílio de pouco mais de um ano na Europa. Um repertório foi criado somente para o espetáculo, ensaiado em apenas quinze dias. No set list estavam canções como “O Seu Amor” (um recado nas entrelinhas subvertendo o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”, mas usando os verbos em nome do amor e da liberdade), “Um Índio”, “São João, Xangô Menino”, “Esotérico”, “Chuck Berry Fields Forever”. Ao lado de sete músicos de apoio, o quarteto rodaria em turnê que passaria por várias capitais brasileiras e ainda renderia um álbum duplo gravado durante os concertos. De quebra, o cineasta iniciante Jom Tob Azulay, recém-chegado de Los Angeles, onde trabalhara como diplomata e fizera um curso de cinema, comandaria um documentário com registros de viagens, shows, entrevistas para a imprensa e cenas de bastidores. Depois da estreia em São Paulo, porém, um imprevisto mudou os rumos da trupe: a polícia – que, assim como o governo, estava “acompanhando de perto” o projeto – deu uma batida no hotel onde estavam hospedados os músicos e prendeu Gil (de novo!) e o baterista Chiquinho sob a acusação de porte de maconha. Depois de algumas semanas de esfriamento da turnê e cancelamento de datas, o grupo voltou aos palcos no Rio (no extinto Canecão, tradicional casa de espetáculos da zona sul carioca) e o documentário acabou saindo. Nele se revela todo o furacão provocado pelos quatro juntos no palco, sobretudo na química do afiado jogral ou nos passos e improvisos das performances de dança. Gal e Bethânia, então, são soberbas em suas interpretações gestuais, corporais, visuais e vocais.

Ícone LGBT

Gal, apesar de não expor isso publicamente em atitudes e entrevistas, relacionava-se com mulheres. Mas não foi pela sua orientação sexual que acabou se transformando, ao longo dos anos 1970 e 1980, em um dos maiores ícones gay do país. Desde que a baiana se estabeleceu como um dos pilares da música brasileira, com sua voz encantadora (e que de vez em quando alcançava uns agudos de arrepiar), figurino ousado (quando não colorido e cheio de apetrechos), os negros cabelos volumosos e performances cênicas arrebatadoras, também passou a ser homenageada por trans, travestis e drags em shows de dublagens nas boates de norte a sul. Personificar Gal Costa sob as luzes de um ribalta – por menor e mais escondida no mapa que ela seja e esteja – não significa somente um ato de libertação. É também uma sensação extrema de empoderamento, apesar da efemeridade. Empoderamento sexual e artístico, diga-se de passagem.

Rainha das trilhas de novela

Não foi só a carreira de Gal e dos outros baianos tropicalistas (ou quase isso, no caso de Bethânia) que se consolidou na música brasileira dos anos 1970 para cá. Outra presença significativa no segmento foram as trilhas sonoras das novelas da Rede Globo. Até a transformação do consumo musical no mercado fonográfico virar praticamente digital, na década passada, eram justamente as coletâneas dos folhetins globais quem mandavam e desmandavam nas vendagens dos formatos físicos (LP ou CD). E mais: ter uma faixa incluída em um destes discos (sobretudo os das novelas do horário nobre – antigamente às oito e agora ali pelas nove da noite) era para um artista daqui praticamente o mesmo que ter um bilhete premiado na loteria. São muitas dezenas as vezes em que uma soundtrack televisiva contou com a voz de Gal Costa. Teve canção que já apareceu em duas ou até três vezes em novelas distintas. E ela também proporcionou o embalo musical de aberturas inesquecíveis de tramas não menos inesquecíveis. Só para citar duas delas. “Modinha Para Gabriela” foi composta Dorival Caymmi sob encomenda para Gabriela, novela da emissora veiculada na faixa das 22 horas entre abril e outubro de 1975. A história de Walter George Durst se baseava no romance literário Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado e, por isso, a letra descreve o eterno espírito livre da protagonista. A Globo chegou a sugerir que Gal interpretasse o papel principal, mas ela recusou a proposta exatamente por não se achar atriz, apenas cantora. Coube então a Sonia Braga personificar Gabriela e criar um dos mais icônicos personagens dos telefolhetins nacionais. A outra vez em que os créditos de abertura foram exibidos ao som de uma Gal Costa contundente e afiada foi em Vale Tudo, de maio de 1988 à primeira semana de 1989. Até hoje cultuada e exibida em reprises na Globo e no Canal Viva, a novela escrita por Gilberto Braga era centrada na relação de desprezo que uma filha má e alpinista social (Maria de Fátima, papel de Glória Pires) mantém pela mãe, uma modesta senhora de vida simples e vendedora de sanduíches na praia (Raquel, vivda por Regina Duarte). Entre as pessoas em órbita dela estava a multimilionária Odete Roitman (Beatriz Segall), assassinada por um tiro disparado por um misterioso nome revelado apenas no último capítulo (e que embalou o país todo na pergunta sobre quem a havia matado). Ao expor as mazelas da luta de classes no país e ainda escancarar barbaridades proporcionadas por atitudes do povo, Vale Tudo esfregou na cara do Brasil os podres do próprio Brasil, isso trinta anos antes da chegada de um certo nome à presidência da república (atenção para o quase spoiler: repare bem em dois nomes centrais do elenco e o quanto eles significam ontem e hoje para as nossas dramaturgia e política!). Para completar, a música-tema era mais um tapa na cara da bandeira nas cores verde e amarela: o hino “Brasil”, composto e gravado originalmente por Cazuza, que bradava contra o fedor da burguesia. Entretanto, o autor – que havia acabado de lançar um contundente álbum chamado Ideologia –  ainda estava restrito ao nicho da zona sul carioca e dos intelectuais nacionais. A convite da Globo, Gal regravou a canção para a novela, tornando-a, assim, popular de norte a sul do país e levando-a para gente de todas as classes sociais e econômicas.

Voz suprema de todos os gêneros

Cantar sempre foi um dom natural para Gal Costa. Suas próprias colegas de profissão, gente respeitada da música, não escondem tanto a admiração quanto a estupefação ao ouvi-la soltar o gogó ao microfone. Não apenas por atingir os agudos inacreditáveis como mostrava em “Meu Nome é Gal”, mas sobretudo pela leveza com a qual levava toda e qualquer canção, sem qualquer dificuldade durante o exercício em cena. Toda essa fluidez ainda se estendia às escolhas de repertório de Gal. Como em um passe encantado de mágica, a voz tamanha dela se encaixava em todo e qualquer gênero que escolhesse. Do rock ao jazz, do frevo à balada romântica, da marchinha carnavalesca ao bolero, da bossa nova ao forró, do samba ao standard do pop norte-americano. Gal passeou por todos estes territórios em sua imensa discografia. Até para o público infantil ela fez algo. Isto foi em 1985, quando foi um dos nomes convidados (ao lado de Xuxa, Pelé, Menudo, Fevers, Lucinha Lins e Carequinha) para participar do primeiro álbum oficial Trem da Alegria. O grupo vocal era formado por três pré-adolescentes: Patricia Marx e Luciano Nassyn (que já haviam realizado juntos, no ano anterior e com a apresentadora Xuxa, o disco da trilha sonora do programa Clube da Criança, exibido pela TV Manchete) mais o recém-chegado Juninho Bill. A Gal coube entoar com os meninos os versos da versão em português da valsa “Lili (Hi Lili Hi Lo)”. Mas ela não foi o único nome externo do Trem da Alegria aqui. Ela carregou consigo seu afilhado Moreno Veloso, filho de Caetano e da amiga de infância Dedé Gadelha, então com 11 anos e em sua estreia no mundo musical.

>> Volte aqui nesta segunda, quando será incluído o oitavo motivo desta matéria.

Music

Primavera Sound São Paulo 2022 – ao vivo

Arctic Monkeys, Lorde, Interpol, Mitski, Japanese Breakfast, Björk, Phoebe Bridgers e mais shows na estreia do cultuado festival indie no Brasil

Texto por Abonico Smith

Foto: Primavera Sound SP

ARCTIC MONKEYS

Há algo de realmente estranho na relação entre os Arctic Monkeys e o palco de um grande festival. Por mais que o grupo britânico seja headliner, por mais que Alex Turner e companhia lancem discos de qualidade, por mais que venham tocar no Brasil (terra tradicionalmente reconhecida pelos músicos de rock como  um público caloroso e quente), a passagem do quarteto como a grande atração do primeiro dos dois dias da edição de estreia do Primavera Sound em São Paulo não foi lá tão arrasadora quanto muitos fãs poderiam esperar.

Distrito Anhembi, Zona Norte paulistana, dez da noite de 5 de novembro. Turner, Jamie Cook (guitarra e teclados), Matt Helders (bateria e vocais) e Nick O’Mailey (baixo) subiram a um dos dois palcos principais do PSSP para mais uma escala da turnê do recém-lançado álbum The Car, o sétimo da carreira. Contando com um luxuoso aparato cenográfico, que ao trazer uma atmosfera vintage nos holofotes espalhados entre os instrumentistas e no design destes equipamentos acaba casando com a postura e performance cada vez mais de crooner de Alex, o grupo calibra um repertório que se distancia daqueles moleques ruidosos, com uma urgência quase hardcore nas batidas e vocais, lá do início da carreira. Agora, os Monkeys são da sofisticação, de arranjos que permitem falsetes, grooves lentamente mais sensuais e texturas sonoras proporcionadas por alguns sintetizadores que emulam outros instrumentos. Tudo muito técnico, bem executado – até mesmo quando Turner rege, de costas para o público, o stacatto da banda inteira em conjunto antes de entrar com sua voz em “There’d Better Be a Mirrorball”. Mas falta alguma coisa a mais.

O que falta chama-se justamente punch. A pegada que ficou pra trás junto com as lembranças da pós-adolescência de seus integrantes. Por mais luxuoso e requintado que tenha ficado em sua sonoridade – acompanhando a habilidade extrema de seu vocalista em escrever versos vagamente sensoriais e bons títulos quilométricos – parece que isso afetou também a performance das apresentações. Do indie rock pulsante e vibrante de outrora sobrou só o rock. Não que isso, na verdade, seja um demérito. Entretanto, parece mais um espetáculo profissional de música do que um show executado diante de uma grande multidão. 

Certo, ainda existem os momentos mágicos proporcionados pelas poderosas faixas de AM, o álbum mais pesado e popular dos Monkeys. Afinal, é impossível deixar de cantar junto os refrãos matadores de “Do I Wanna Know?” e “R U Mine?” ou balançar a cabeça junto aos riffs sabbathianos de “Arabella”. Ao mesmo tempo, a pose demiblasé de Turner, sempre posando de popstar retro-anacrônico, querendo/não querendo estar ali. Talvez seja fruto de mais uma noite consecutiva de show, agora a céu aberto (na véspera a banda se apresentara no Rio de Janeiro), carregando os sinais de cansaço e a defensiva do resguardo corporal. Talvez Alex seja sempre assim mesmo, inclusive diante de uma audiência brasileira que exagera na entrega aos seus ídolos e traduz isso ao cantar tudo a plenos pulmões. Mas que isso afeta o resultado final, afeta. Deixa o concerto com aquele gostinho de quero mais em relação ao artista, aquela sensação de que poderia ter sido dado algo extra ali no palco.

Por falar em AM, foi este disco que deu o maior número de faixas ao set list da noite. Cinco, no total. O novo The Car rendeu quatro – uma delas, a faixa-título, executada pela primeira vez ao vivo pela banda e não fez feio. “Body Paint”, com seus ecos de lounge pop mezzo sixtie (Burt Bacharach, Gerge Martin) mezzo seventie (David Bowie), também revelou-se um belo momento ao vivo. Já o anterior, o intrincado Tranquility Base Hotel + Casino, bateu ponto apenas duas faixas, as suas principais (a homônima do álbum e “Four Out Of Five”), não tão luxuosamente tocadas quanto nas gravações de estúdio.

O repertório preparado para o PSSP também pérolas mais antigas. “Crying Lightning” e “Brainstorm” e “Don’t Sit Down ‘Cause I’ve Moved Your Chair”, enfileiradas logo no início, serviram para colocar fogo na plateia. Mais para o final, com o mesmo intuito, vieram “505”, revivida pela viralização recente no TikTok e a onipresente “I Bet You Look Good On The Dancefloor”. Três outras compuseram a cota reservada para “lados B”: “Pretty Visitors”, “Do Me A Favour” e “From The Ritz To The Rubble” dão um frescor apontando mais para um lado não muito pop do passado e trazendo ecos de glamheavy e do harcdore. Pelo menos eliminou da lista algumas coisas mais óbvias e famosas até hoje em programações de rádios rock. 

Quando vieram há três anos para o Lollapalooza, os Arctic Monkeys também acabaram fazendo igual ao PSSP. São que nem aquele craque que faz o gol ou a jogada decisiva da vitória, mas não se esforça muito em campo. Corre apenas o necessário, joga apena so necessário, meio que se poupando para o próximo jogo ou mesmo por marra. Os fãs não ligam e saem felizes do mesmo jeito. Mas quem sabe de todo o potencial que existe para ser entregue sempre vai achar que dá sempre para fazer mais. E está tudo certo assim. Pelo menos por equanto.

Set list: “Sculptures Of Anything Goes”, “Brainstorm”, “Snap Out Of It”, “Crying Lightning”, “Don’t Sit Down ‘Cause I’ve Moved Your Chair”, “Why’d You Only Call Me When You’re High?”, “Body Paint”, “Four Out Of Five”, “Arabella”, “Potion Approaching”, “The Car”, “Cornerstone”, “Do I Wanna Know?”, “Tranquility Base Hotel + Casino”, “Pretty Visitors”, “Do Me A Favour”, “From The Ritz To The Rubble” e “505”. Bis:  There’d Better Be a Mirrorball”, “I Bet You Look Good On The Dancefloor” e “R U Mine?”.

INTERPOL

Depois de algumas tentativas frustradas no Lollapalooza, finalmente o Interpol vem ao Brasil e entrega um show acachapante. Isso se deve à conjunção de dois fatores. O primeiro, um bom momento, refletido no excelente disco The Other Side Of Make-Believe, lançado em julho deste ano, no qual retoma a criatividade suprema de duas décadas atrás (por sinal, várias novas faias parecem ter sido extraídas de Turn On The Bright Lights, lançado há vinte anos exatos). O segundo, a grade do festival, que finalmente colocou o trio para tocar de noite, já depois do sol se por. Pode parecer um detalhe irrelevante para muitos artistas. Mas não para o Interpol. Paul Banks (guitarra e voz), Daniel Kessler (guitarra e backings) e Sam Fogarino (bateria) bebem da fonte do pós-punk, sobretudo aquela escola da estética sombria. Por isso, a atmosfera de poucas luzes (no palco, um pretume iluminado por tons vermelhos e azuis, não menos góticos) realçou por demais a força das canções. Tanto as recentes (“Toni”, “Passenger” e sobretudo a dedilhadamente melancólica “Fables”) quanto as clássicas lá do começo da trajetória (“Evil”, “C’Mere”, “Slow Hands”, “Rest My Chemistry”, “The New”, “Obstacle 1”, “PDA”). O desafio de se apresentar em um amplo espaço acaba sendo superado. O Interpol não é de muita troca de palavras com a plateia, muito menos performances fisicamente explosivas de sua linha de frente de cordas (duas guitarras e um baixo). Tudo isso, vale ressaltar, funciona melhor em palcos menores e espaços fechados, com os fãs mais próximos do palco. Porém, a força das composições desequilibra em favor da banda. O set nem precisa ser tão longo. Pouco menos de uma hora é o suficiente para todo mundo se orgulhar de estar diante de um puta show. Como poucas bandas de rock surgidas neste século 21 sabem ainda fazer em um festival de grandes proporções.

Set list: “Toni”, “Evil”, “Fables”, “C’mere”, “Narc”, “Passenger”, “All The Rage Back Home”, “Rest My Chemistry”, “Obstacle 1”, “The New”, “PDA” e “Slow Hands”.

MITSKI

Antes tarde do que nunca. A nipo-americana Mitsuki Miyawaki, uma das grandes estrelas indie da segunda metade da última década, finalmente desembarcou no Brasil para cantar e encantar seus fãs. Agora sem muito da faceta rocker que a revelou, com gritos e distorções, mas apostando na variedade sonora com uma banda de apoio que lhe servia do pop à disco, do progressivo ao verniz do eletrônico moldado pelos anos 1980. Mitski não empunha mais as seis cordas. Agora é frontwoman total. Desloca-se sem parar no palco, corre, joga-se de joelhos no chão, rasteja. Faz gestos, caras e poses, explicitando uma farta referência da arte da mímica e do teatro kabuki (não por acaso dois dos elementos que moldaram outro popstar em ascensão, o David Bowie dos anos 1970). Com o set se equilibrando entre a fase guitarreira e os dois álbuns mais recentes, a cantora e compositora encantou a plateia ao performar intensamente TODAS as 17 músicas, indo na mesma escola dos clipes de Kate Bush apesar dos versos serem mais existenciais e metafóricos do que as narrativas histórico-descritivas da britânica. Mesmo assim, Mitski acerta no ponto de ligação com a molecada mais nova que descobriu Bush através da mais recente temporada de Stranger Things.

Set list: “Love Me More”, “Working For The Knife”, “I Will”, “I Bet On Losing Dogs”, “I Don’t Smoke”, “Washing Machine Heart”, “First Love/Late Spring”, “Geyser”, “Drunk Walk With Me”, “Nobody”, “Should’ve Been Me”, “Townie”, “Your Best American Girl”, “The Only Heartbreaker”, “Stay Soft” “Francis Forever” e “A Pearl”.

BJÖRK

Que a islandesa sempre foi uma criatura sui generis isso nunca foi novidade pra ninguém. Quem acompanha a música alternativa desde os tempos do grupo que o revelou, o Sugarcubes, sabe bem que dela se pode esperar tudo, principalmente se o negócio for sair do convencional. Nos figurinos, nos videoclipes, na sonoridade, nas apresentações ao vivo, até mesmo no tapete vermelho do Oscar. Portanto, o fato de embarcar agora em uma turnê mundial acompanhada apenas por uma orquestra, sem qualquer outro instrumento eletrônico ou convencional da música pop, não é de se espantar. Björk chega acompanhada apenas por seu maestro, também islandês. Em cada parada, músicos eruditos locais são selecionados para executar as partituras – no PSSP a função coube à Bachiana Filarmônica, de São Paulo, dirigida por João Carlos Martins. Mas participar de festival de rock e pop com uma orquestra também já não é muita novidade – no Brasil, Peter Gabriel já fez isso no extinto SWU. Então a excentridade da vez seria o fato de vetar a transmissão pela internet e proibir fotografias durante o show, inclusive a presença de fotógrafos da imprensa e celulares dos fãs? Também não, apesar da surpresa de muita gente na audiência respeitar o pedido e assistir à performance sentada no chão (inclusive cantando alguns de seus maiores hits, como “Hyperballad”, “Jóga” e “Isobel”). Seria o fato de acabar de lançar um novo disco e não tocar quase nada dele (a não ser uma única faixinha, chamada “Ovule”)? Também não. A bizarrice de Björk desta vez foi personificada pela própria Björk. Enrolada com tecidos nas cores vermelho e verde em uma roupa colante preta, rodopiava de forma um tantinho dura, como uma bailarina de caixinha de música. O que mais causou estranheza, no entanto, foi o adereço que portava na cabeça. Um misto de delicada máscara de comedia dell’arte e uma peruca preta volumosa nas laterais que de longe, lhe conferiam uma bisonha aparência de um misto de Fofão e Rainha de Copas da animação da Disney. Não tinha, realmente, como ela passar em branco naquela tarde de sábado. 

Set list: ”Stonemilker”, “Aurora”, “Come To Me”, “Lionsong”, “I’ve Seen It All”, “Ovule”, “Hunter”, “Isobel”, “Jóga”, “Quicksand”, “Hyperballad”, “Notget” e “Pluto”.

JAPANESE BREAKFAST

Michelle Zauner foi outra asian-american que fez sua estreia tardia em nosso  país com sua banda. Bem mais solta no palco do que Mitski, porém não menos encantada com a recepção calorosa dos fãs brasileiros, ela (com make em verde e amarelo nos olhos) apresentou no cair da tarde de domingo (6 de novembro) sua sonoridade nem tão eletrônica assim no palco e com a presença de instrumentos que dão um direcionamento mais para o lado do soft rock (saxofone, violino). Metade do set se concentrou no  mais recente álbum, Jubilee, do ano passado. Este trabalho tem uma particularidade: foi lançado quase ao mesmo tempo que o memoir de Zauner, Crying In H Mart, que tornou-se best-seller nos EUA e daqui a pouco deve ser adaptado para o cinema (com trilha sonora assinada pela autora do livro). A dobradinha é um punhado de faixas/páginas sobre alegria e superação, já que Zauner havia acabado de superar um período de cinco anos de luto pela morte precoce de sua mãe coreana. Talvez isso explique todo o reflexo na performance de palco saltitante e alegre da moça. A outra metade se dividiu entre os dois primeiros álbuns como o projeto Japanese Breakfast, gravados e concebidos logo após a perda da mãe. Garantiu uma parte mais serena e contemplativa para o concerto, digna de embalar o por do sol no Distrito Anhembi. Aos fãs mais completista restou ainda a faixa “Glider”, feita por Michelle para a trilha do game Sable.

Set list: “Paprika”, “Be Sweet”, “In Heaven”, “The Woman That Loves You”, “Kokomo, IN”, “Glider”, “Road Head”, “Savage Good Boy”, “The Body Is a Blade”, “Posing In Bondage”, “Slide Tackle”, “Everybody Wants To Love You”e “Diving Woman”.

PHOEBE BRIDGERS

O Dia das Bruxas já havia sido dias atrás. Mesmo assim, Phoebe aproveitou sua estreia em solo brasileiro para promover um halloween peculiar em um dos palcos principais no domingo do PSSP. O sol mal havia se posto e ela trouxe uma atmosfera sombria, com todos os músicos no palco vestindo aquele tradicional figurino de esqueleto e luzes góticas dando o tom “colorido” àquela penumbra toda. Só que a estética soturna na qual Bridgers aposta não dá medo. Pelo contrário. Ela é de uma fofura só, um tanto contida em sua performance física, mas bem sorridente e faladeira entre as canções folk rock de versos tão melancólicos quanto afiados, mas sempre de cunho bastante pessoal. Inclusive, antes de “Chinese Satellite”, voltou a defender a legalização do aborto, chegando a assumir que já fizera um. Em “ICU”, puxou o coro de dor-de-cotovelo das fãs femininas identificadas com os versos de confusão mental após o término não muito legal de um relacionamento. Já em “Gracleand Too” (gravada em disco com os vocais de Julien Baker e Lucy Dacus, suas companheiras na formação do supergrupo Boygenius), apresentou ao público daqui um crossover de indie com americana. Além de tocar seu mais recente álbum (Punisher, de 2020) quase na íntegra e respeitando a mesma ordem das faixas, resgatou dois bons momentos do début Stranger In The Alps (de 2017), entre eles o hit “Motion Sickness”, estrategicamente colocado na abertura como um grande cartão de visitas. Mais pro fim ainda deu tempo de incluir seu single mais recente, “Sidelines”, lançado neste ano e gravado para a trilha da minissérie de TV Conversations With Friends. “Esta é uma canção de amor”, anunciou, em breve introdução à balada. Por fim, “I Know The End” troue um gosto amargo de encerramento, com alavras que refletem uma certa desesperança de Phoebe em relação aos anos mais recentes da cultura norte-americana. De qualquer forma, serviu como um belo cliffhanger para o próximo episódio… quer dizer, a próxima apresentação da “doce bruxinha” no Brasil.

Set list: “Motion Sickness”, “DVD Menu”, “Garden Song”, “Kyoto”, “Punisher”, Scott Street”, “Chinese Satellite”, “Moon Song”, “ICU”, “Sidelines”, “Graceland Too” e “I Know The End”.

LORDE

Quando David Bowie, em uma de suas últimas aparições públicas, posou ao lado de Lorde para uma fotografia, muita gente pode ter ficado se questionando a conexão entre ambos. Afinal, por que estaria um dos maiores ídolos do rock em todos os tempos endossando uma moleca que havia acabado de lançar um [único álbum e se tornado estrela mundial com um único hit? Quem acompanha a carreira de Lorde nestes últimos dez anos sabe a resposta. A neozelandesa é um dos grandes achados da música pop nestes tempos de efemeridade e volubilidade de consumo voraz do streaming em detrimento de exemplares físicos de discos. Horas antes de completar 27 anos de idade, ela se apresrntou no segundo e último dia do PSSP na condição de headliner do festival. E fez bonito. Deu uma geral na carreira, dando destaques equivalentes a cada um de seus três álbuns. Foi da até hoje impactante “Royals” ao seu mais recente hit “Solar Power” mostrando que dá, sim, para fazer um concerto pop sem apostar como faz a massa de artistas hoje: uma sequência de coreografias com trocentos bailarinos para ajudar a encher o palco, um desfile de figurinos diferentes que provoca torrente de entra-e-sai do palco do astro principal e mais uns espertos vocais pré-gravados para ou dobrar a voz em cena ou ajudar naqueles momentos em que a respiração ofegante vai acabar atrapalhando. Lorde ainda fez mais. Apresentou-se de vermelho do início ao fim (dando um belo realce na sua pele alva e o cabelo todo descolorido), meio que casando com a semana de alívio pós-eleição que salvou o país da beira do abismo. Chamou Phoebe Bridgers para fazer um emocionante dueto na balada “Stoned At The Nail Salon” (como faz em grandes festivais, aproveitando-se para convidar alguma amiga que esteja dando sopa nos bastidores). Esbanjando simpatia, não se furtou a conversar bastante com os fãs durante a música, inclusive sem se esquivar de se posicionar politicamente e dar os parabéns por ter ganho o candidato que ela também estava apoiando. E, sim, mostrou que o uso cenográfico do palco pode ir bem além das dancinhas, fazendo com o apoio de sua banda de apoio (com maciça presença feminina, diga-se passagem) marcações específicas para cada música, incorporando uma teatralidade pouco vista na seara dos cantores pop (mas que, por exemplo, Bowie carregava de montão em suas apresentações). Esqueça toda aquela bobagem de “pop solar” ao qual boa parte das resenhas de veículos de imprensa brasileira (inclusive renomados) se apequenou ao limitar os comentários – mesmo porque quando o show começou o sol já havia se posto. Lorde é (e ainda será) muito mais, honrando sua alcunha artística.

Set list: “The Path”, “Homemade Dynamite”, “Buzzcut Season”, “Stoned At The Nail Salon”, “Ribs”, “The Louvre”, “Secrets From a Girl (Who’s Seen It All)”, “Mood Ring”, “Liability”, “Royals”, “Bravado”, “Supercut”, “Perfect Places”, “Green Light” e “Solar Power”.