Andy Rourke, baixista da icônica banda que consolidou o termo indie rock em terras britânicas, morre aos 59 anos de idade
Da esq. à dir.: Morrissey, Johnny Marr, Mike Joyce e Andy Rourke
Texto por Abonico Smith
Foto: Divulgação/Rough Trade
Na manhã desta sexta-feira 19 de maio foi anunciado o falecimento do músico e DJ inglês Andy Rourke, mais conhecido pelo trabalho como baixista do grupo Smiths nos anos 1980. Ele tinha 59 anos e enfrentou uma longa batalha contra um câncer no pâncreas.
Quem divulgou a notícia foi o ex-companheiro de banda, o guitarrista Johnny Marr. Ele o definiu como uma alma boa e gentil, além de instrumentista talentoso. Ao lado de Johnny, o vocalista Morrissey e o baterista Mike Joyce, Rouke integrou o quarteto que revolucionou o rock britânico entre 1982 e 1987. Em 1996, também já enfrentando o vício em heroína, Andy, em conjunto com Mike, processou a dupla de compositores Morrissey e Marr, em busca de ganhos a mais nos direitos autorais sobre a obra composta e gravada pela banda. Um acordo judicial foi feito para ação ser encerrada. A amizade com Marr foi refeita. Entretanto, o frontman nunca mais o desculpou pela atitude.
Aobra-primados Smiths é o álbum The Queen Is Dead, de 1986. Entre os hits deixados pela banda estão as faixas “The Boy With The Thorn In His Side”, “Bigmouth Strikes Again”, “Ask”, “Panic”, “There Is a Light That Never Goes Out”, “Shoplifters Of The World Unite”, “Hand In Glove” e “How Soon Is Now”. A marca registrada impressa por Rourke nos arranjos da banda eram as linhas de baixo extremamente dançantes, que junto com as batidas de Joyce, formavam uma textura rítmica irresístivel para as combinações da literatura rebuscada em forma de versos dramáticos desenhada por Morrissey e os dedilhados com um pezinho no floreio psicodélico nas seis cordas de Marr.
Após o término da banda, Andy participou da gravação de algumas canções da carreira solo inicial de Morrissey. Também tocou com Pretenders, Badly Drawn Boy, Ian Brown e Moondog One (que incluía músicos que passaram por Smiths e Oasis). Em 2007 formou o supergrupo de baixistas Freebass, ao lado de Peter Hook (New Order) e Gary Mounfield (Stone Roses). Logo depois mudou-se para Nova York, onde passou a trabalhar como DJ de rádio e pistas de nightclubs. Foi, inclusive como DJ, que veio ao Brasil em novembro de 2008, que veio ao Brasil (mais especificamente a cidade de Curitiba), onde lançou a coletânea Hang The DJ (refrão da letra de “Panic” que batizou uma tradicional festa que era realizada no histórico e hoje extinto clube noturno Vox). Seis anos depois, retornou à capital paranaense para estrelar outra noite na pista de dança do Vox. E também foi em Nova York, ao lado de Ole Koretsky (com quem discotecava em dupla nas noites, sob a alcunha de Jetlag) e Dolores O´Riorden (vocalista dos Cranberries, também já falecida), que ele criou a banda D.A.R.K., que lançou um álbum chamado em 2016.
Lulu Santos nunca foi um cantor na acepção da palavra. Tem afinação, noção e inteligência vocais mas ele sempre foi mais notável por conta de sua impressionante capacidade de compor canções de sucesso do que por cantá-las. Tudo bem, vários artistas são assim. A gente entende, compreende e aceita. Porém, à medida que o tempo passa, determinadas questões tendem a ganhar mais importância e, no caso de Lulu, passam a atrapalhar. A estreia de seu novo show, Barítono, via especial no Multishow e Globoplay, exibida no dia 4 de maio, quando ele completou 70 anos de idade, mostrou que Lulu, infelizmente, tem uma capacidade vocal bastante reduzida hoje em dia. Mesmo mudando o tom de algumas canções, mesmo usando backing vocals, a impressão que se tinha era que ele explodiria as veias do pescoço.
Tudo bem, novamente. A gente sabe, a gente entende. Como disseram nas redes sociais, “Lulu tem 70 anos, isso deve ser levado em conta”. Ora, então o que fazemos com outros artistas que, mesmo depois desta idade: seguem nos palcos com capacidade pra lá de razoável? Nem precisa ir muito longe: o que dizer de Maria Bethânia ou do próprio Caetano Veloso, que, como Lulu, também nunca teve grande capacidade vocal? Ou Guilherme Arantes, o finado Erasmo Carlos… Enfim, o fato é que o próprio Lulu percebeu e admitiu o fato, como revelou à apresentadora Fátima Bernardes em entrevista prévia: “Algumas canções dos meus primeiros dez anos de carreira ficaram muito complicadas para cantar”.
Lulu se saiu bem em momentos como “Aviso Aos Navegantes” e “Um Pro Outro”, cujos arranjos comportaram melhor seu registro atual, gravíssimo. Aliás, as escolhas no set list comprovaram outro dado crucial sobre sua carreira: sua capacidade de escrever sucessos se esgotou no início dos anos 2000. Nos 20 anos seguintes, sua fonte parece ter secado. Tudo bem que o álbum mais recente, Pra Sempre (2019), tem sonoridade respeitável e, pelo menos, duas belas canções: “Orgulho e Preconceito” (que entrou no set list) e a faixa-título, mas nunca poderiam ser comparadas a sucessos de outros tempos. Sendo assim, a mais recente que surge no roteiro deste show é “Já É”, de 2003, que, para compensar o fato, é uma das mais inspiradas criações da carreira do homem e foi hit enorme.
De resto, as canções com Gabriel O Pensador (“Astronauta” e “Cachimbo da Paz”, cantadas pela dupla nessa noite) e “Janela Indiscreta” (num bom resgate de repertório), todas do Acústico MTV, lançado em 2000, são as mais recentes se não for levada em conta também a inédita “Presente”. O forte se concentrou nos anos dourados da década de 1980, quando Lulu, de fato, foi absoluto. Porém, mesmo com canções do calibre de “Casa”, “Condição”, “Satisfação”, “Tempos Modernos”, “Um Certo Alguém”, “A Cura” e várias outras no bolso do colete, a questão do registro vocal puxou a coisa para baixo. Pelo menos para ouvidos mais exigentes. A banda que o acompanha é competente e enxuta, com destaque para o baixista Jorge Ailton – que também ajuda nos backing vocals – e o baterista Sergio Melo, que segura a onda com firmeza e joga para o time, mas não consegue driblar a limitação vocal. Em tempo: se há algo realmente notável na banda, é o próprio Lulu, que segue como um dos grandes guitarristas da história do pop rock nacional em todos os tempos.
No Teatro Multiplan (RJ) com a plateia com vários globais – que iam de integrantes da Central Globo de Jornalismo a pessoas como o chef Felipe Bronze, o cantor Leo Jaime, o genial comentarista carnavalesco Milton Cunha e uma procissão de rostos novos que me pareceram absolutamente desconhecidos –, o clima do show era de uma grande festa da firma, com um convidado especial, que também é da firma (lembrem-se, desde 2012, Lulu Santos é jurado do The Voice – ironia define).
Lulu é artista competente e dono de uma carreira com muito mais acertos do que erros. Torço para que sua turnê Barítono o leve para palcos mais diversos e interessantes.
Set list: “Toda Forma de Amor”, “Um Certo Alguém”, “O Último Româmtico”, “Janela Indiscreta”, “Adivinha o Quê?”, “Tudo Azul”, “Assaltaram a Gramática”, “Cachimbo da Paz”, “Astronauta”, “De Repente”, “Tempos Modernos”, “Tudo Com Você”, “Esse Brilho em Teu Olhar”, “A Cura”, “Apenas Mais Uma de Amor”, “Um Pro Outro”, “Presente”, “Orgulho e Preconceito”, “Satisfação”, “Condição”, “Aviso Aos Navegantes”, “Já É”, “Assim Caminha a Humanidade”, “Lua de Mel”, “Sereia”, “De Repente Califórnia” e “Como Uma Onda”. Bis: “Tudo Bem”, “Certas Coisas”, “Tão Bem”, “Lei da Selva” e “Casa”.
De bem com a vida em São Paulo, o cérebro do Lemonheads faz o que sabe de melhor para exorcizar seus fantasmas
Texto e foto por Fabio Soares
Sempre sonhei em ver os Lemonheads. Nas três vezes em que a banda esteve no Brasil (1994, 1997 e 2004) não fui aos shows por diversos fatores, sendo o financeiro o principal. Após a desastrosa passagem do vocalista por terras brasileiras, ocorrida há 19 anos, a chance de enfim ver o grupo ao vivo (ou ao menos o seu líder) tornava-se algo quase impossível. Acompanhando as redes sociais do cabeça à frente dos limões, percebia-se que um retorno à América do Sul era um sonho cada vez mais distante.
Distante até dezembro de 2022. Em uma publicação na página oficial dos Lemonheads, Evan Dando aparecia numa belíssima foto, tocando violão. Mas o que mais chamaria a atenção foi o seu check in: ele estava na Serra da Cantareira, em São Paulo. Um amigo virtual logo veio me avisar: “Ele namora a filha do Renato Teixeira”. Numa rápida busca no Google descobri que Evan é namorado de Antônia, filha do lendário músico e compositor brasileiro, e que ele estava no Brasil para um período de férias. A partir daí, foi visto em São Paulo nas mais inusitadas situações. De idas ao dentista no Bairro da Liberdade a uma loja de instrumentos na capital paulista, passando por um set acústico para três gatos pingados na Vila Madalena, o dândi indie sente-se em casa em São Paulo. E o amor por Antônia é o principal fator para exorcizar seus fantasmas.
Quando foram duas apresentações de Evan no minúsculo teatro do Sesc Avenida Paulista, deu-se um verdadeiro pandemônio à procura de ingressos, que se esgotaram em minutos. E a sexta-feira 3 de março representou, para muitos dos 180 afortunados presentes à primeira das duas noites de Dando tocando em Sampa, a materialização da trilha sonora de suas adolescências.
Abrindo a solitária apresentação com voz e violão com “Outdoor Type”, a viagem aos anos 1990 teve início da maneira mais emocionante possível com corações disparados para “Into Your Arms”. Irriquieto, alterou o andamento da canção. Ninguém reclamou. Com a letra da canção na ponta da língua, a audiência não titubeou ao entoar seu refrão a plenos pulmões.
Como já era de se esperar, várias covers fizeram parte do set list com a dobradinha “My Idea”, de Chris Brocaw, e “Speed of the Sound of Loneliness”, de John Prine. Pano de fundo para a avassaladora tríade com “Hospital”, a antológica “My Drug Buddy” e a não menos emocionante “Ride With Me”. Problemas técnicos nos microfones poderiam ofuscar uma noite de jogo já ganho, porém nada disso abalou a disposição da plateia. A atmosfera era de uma grande festa de apartamento com um ilustre convidado e o visitante não decepcionou: mandou Victoria Williams (“Frying Pan”), Michael Nesmith (“Different Drum”) e até Ten Years After (“I’d Love To Change The World” a capella), transformando o Sesc numa cápsula do tempo que ganhou aura de colosso atemporal com a inesquecível “It’s a Shame About Ray” (que seria hino do Planeta Terra caso eu fosse o dono do mundo).
No final, a maravilhosa “Stove” deu números finais a um emocionante encontro entre Evan Dando e seus já quarentões fãs. Ele não mais precisa se esconder. Está feliz! Limpo! Sorrindo! Sabe que os dias pesados passaram, que é um sobrevivente e que talvez a vida esteja lhe dando uma última chance aos 56 anos.
E tudo por causa do amor. Sempre o amor…
Set list: “The Outdoor Type”, “Into Your Arms”, “Hard Drive”, “My Idea”, “Speed Of Sound Of Loneliness”, “Break Me”, “Hospital”, “My Drug Buddy”, “Ride With Me”, “She’s a Whore”, “How Will I Konw”, “Frank Mills”, “Rudderless”, “Snow Don’t Fall”, “Panch And Lefty”, “Different Drum”, “Confetti”, “Frying Pan”, “Being Around”, “It’s A Shame About Ray”, “Mrs Robinson”, “I’d Like To Change The World”. Bis: ”Stove”.
Reencarnação da banda de Wayne Hussey mostra em Curitiba como se pode lidar com maestria com o envelhecimento no mundo do rock
Mission
Texto por Abonico Smith
Fotos: iaskara
Saber envelhecer dentro do rock’n’roll é uma arte. Afinal, este é um universo que cobra alto o preço do passar dos anos. A voz muda, o corpo muda, os pensamentos mudam, as vontades mudam, o jeito de ser muda. Fica praticamente impossível querer reeditar algum tempo de glória que ficou reservado lá atrás, às lembranças do passado. Fã que é fã, entretanto, vai querer sempre reviver algo através da memória afetiva disparada por letras, melodias e riffs. Se não for por streaming ou disco, certamente quer aproveitar a chance de estar frente a frente com o artista para ouvir as mesmas músicas que volta e meia entram em seus ouvidos. Muitos estão ali querendo um elo vicioso com uma pessoa ou conjunto de pessoas que quase sempre não existem mais. O que chega a ser duro para muita gente: o de presenciar um arista veterano já bem diferente daquele que toca seu coração. Por isso é necessário sempre se reinventar do lado de cima do palco e, por outro lado, saber aceitar a evolução natural das coisas.
Com o Mission, este diálogo entre banda e plateia se mostrou algo bem fluido e resolvido na última noite de 26 de outubro. O quarteto britânico esteve em Curitiba, na Ópera de Arame, em uma de suas paradas de sua recente turnê de seis datas pelo Brasil. Como o vocalista e guitarrista Wayne Hussey mora há muito tempo no país, ele deu uma privilegiada à terra de sua esposa durante a nova ressurreição da banda que o consagrou durante a segunda metade dos anos 1980. De quebra, trouxe consigo duas importantes peças daquela formação clássica: o baixista e cofundador Craig Adams e o guitarrista Simon Hinkler. Portanto, 75% daquele Mission que a maior parte dos fãs conheceu e passou a admirar.
Só que é impossível parar os ponteiros do relógio e 1986, o ano do lançamento do primeiro álbum, vai ficando cada vez mais para trás no calendário. Os cabelos brancos aparecem (para os escudeiros Adams e Hinkler, a solução foi raspar toda a careca), o peso vai aumentando e aquele gás todo da juventude se dissipa. Tampouco não há mais como ficar sustentando os personagens mezzo hippiesmezzo góticos de outrora, de cabelos compridos e cheios de lenços, maquiagem, bijuterias e figurino vistoso. O grupo não está muito mais cênico, também na performance de palco. Também, já tendo ultrapassado a casa dos 60 anos, não tem mais como se comportar como aquele eterno moleque tipo Peter Pan.
O Mission hoje é muito mais focado na música e tão somente na música. É subir ao palco, pegar os instrumentos e tocar. Sem muita variação, o que confere ao repertório uma veia muito mais punk por conta da crueza impressa aos arranjos, mesmo ainda ornamentados pelos dedilhados e tessituras psicodélicas traçadas pelos dedos de Hinkler. Wayne, por exemplo, empunha sua famosa guitarra de doze cordas do início do fim, o que dá aquela encorpada nas harmonias. Craig, dono de incríveis linhas de baixo, segura com maestria os backings, mesmo na hora dos timbres mais agudos, como os do miolo de “Severina”. E o novo baterista, da metade da idade do resto, senta a mão nas baquetas, conferindo mais peso e pungência a clássicos como “Wasteland”, “Deliverance” e “Like a Child Again”.
Pena que não deu para conferir como ficou a versão 2022 de “Tower Of Strength”. O hit, no disco carregado daquela percussão enevoada de tons zeppelinianos, foi o protagonista do momento “vergonha alheia da noite”. Programado para encerrar o set list, a música foi cortada abruptamente quando a plateia curitibana, louca para ir embora do local porque já havia passado da meia-noite e todos ali corriam o risco de virar abóbora, debandou-se em massa quando o primeiro bis se encerrou ao som de “The Crystal Ocean”. Não adiantou nada dar a deixa de manter as luzes apagadas, esperando a banda tomar uns goles de água na coxia para entregar a canção derradeira.
O Mission de 2022 também não parece nada preocupar em só se alimentar apenas do passado distante. Claro que o grosso do repertório vem de seus primeiros álbuns, mas também há espaço para pérolas não muito conhecidas por quem não é fã hardcore, gravadas em discos mais recentes. “Met-Amor-Phosis”, “Within The Deepest Darkness (Fearful) e “Grotesque” representam bem a verve autoral de Hussey pós-fama, todas elas exemplares de que poderiam ter feito bem mais sucesso caso tivessem sido compostas no tempo em que os videoclipes ainda impulsionavam e muito a popularidade de uma canção. Por outro lado, o grupo também não se prende somente a peças mais conhecidas. Para equilibrar ainda mais o repertório, aparecem raridades como “Naked and Savage” e a cover de “Like a Hurricane” (hora em que o vocalista dá um pseudoesporro nos fãs por estes não saberem cantar a letra do clássico de Neil Young).
Hussey, que cerca de década e meia atrás já havia passado por Curitiba para se apresentar sozinho no palco e cantando uma série de músicas de outros autores das quais sempre gostou, voltou a abrir a gavetinha de seu lado intérprete neste show da Ópera de Arame. No meio de “Swoon”, meteu um trecho de “Heroes”, de David Bowie. Já “Wasteland” foi bastante estendida graças à inserção de “Light My Fire”, dos Doors, e “Marian”, do Sisters Of Mercy. Detalhe (e também uma private joke): o autor desta música não é só Andrew Eldritch; ela é uma parceria com o próprio Hussey, que junto com Craig Adams fora integrante das “irmãs da misericórdia” até a gravação do álbum de estreia (First and Last and Always, de 1985).
Michael Aston’s Gene Loves Jezebel
Se o Mission fez uma apresentação sóbria e cativante do início ao fim, infelizmente, o mesmo não pode ser dito da banda de abertura, a parte norte-americana que usa o nome de Gene Loves Jezebel e está sob a liderança o cofundador Michael Aston (explicando: desde que os irmãos gêmeos Michael e Jay Aston brigaram feio, existem dois GLJ em ação pelo mundo e gravando discos). Primeiro porque o vocalista era uma piada no palco. No melhor e no pior sentido. No melhor: com o bom humor sempre nos píncaros, ele não se furta a fazer palhaçadas, se jogar no chão, rastejar, fingir-se de morto, ir brindar junto ao público, fazer caretas. Diversão garantida. Só que também, muito provavelmente por conta de uma conta alta de abusos, estava completamente sem voz em Curitiba, muitas vezes jogando refrão pra galera e fazendo os fãs do gargarejo suprirem a falta de gogó. Também contou contra justamente a falta de performance junto à banda. Pareciam dois segmentos distintos e desconectados, cada um fazendo o seu e juntando somente no casamento entre base instrumental e melodia.
Também foi desfavorável o fato do set list contar somente com dois hits poderosos (“Desire” e “The Motion of Love”) e estes justamente serem programados para encerrar o show na sequência. Para muita gente ali que desconhecia o todo da carreira do GLJ, ter que aturar nove músicas pode ter sido um porre para ser recompensado em dose dupla lá no final. Afinal, convenhamos: olhando para um espectro maior daquela segunda geração do pós-punk britânico, a que tirou o subgênero do meio alternativo e galgou as paradas ali pelos meados dos anos 1980, a banda nem foi tão grande e popular assim. Ok, tinha uma turma de 40+ colada na grade que sabia cantar cada verso ao lado de Michael e até lhe ofereceu uma insólita bandeira do País de Gales assim que ele se dirigiu ao microfone (sinal de que sabem da história do cara!), mas era uma empolgadíssima minoria.
Se o Mission demonstraria logo depois ter sabido envelhecer bem, esta encarnação do GLJ esbarrou no contrário e não passou de uma mera caricatura de si próprio num passado de quatro décadas. Aliás, caricatura borrada. No look inclusive. Daquele Michael com olhos pintados e o cabelo espetado, bagunçado e cheio daqueles anos 1980 sobrou apenas uma criatura que estava mais para irmão gêmeo (embora seja dois anos mais velho) do Robert Smith, do Cure. Triste.
Set list Mission: “Beyond The Pale”, “Hands Across The Ocean”, “Into The Blue”, “Met-Amor-Phosis”, “Naked and Savage”, “Swoon”, “Severina”, “Like a Child Again”, “Grotesque”, “Butterfly On a Wheel”, “Wasteland”, “Within The Deepest Darkness (Fearful)” e “Deliverance”. Bis: “Like a Hurricane” e “The Crystal Ocean”.
Set list Gene Loves Jezebel: “Heartache”, “Always a Flame”, “Downhill Both Ways”, “Cow”, “Beyond Doubt”, “Suspiction”, “Bruises”, “Twenty Killer Hurts”, “Gorgeous”, “Desire” e “The Motion Of Love”.
Documentário revive a trajetória do furacão “cigano” Sidney Magal, que varreu a música brasileira a partir do final dos anos 1970
Texto por Abonico Smith
Foto: Vitrine Filme/Divulgação
No final dos anos 1970 um furacão varreu a música verdadeiramente popular brasileira. Não houve como passar incólume. Muita gente gostava, adorava, não tirava os olhos da televisão quando ele aparecia nos programas de auditório. O mais importante: sabia cantar a letra todinha, assoviava a melodia. Todo dia, o tempo inteiro. E não eram só mulheres. Muitos homens também. E claro, muitas crianças. Afinal, não tinha como não se apaixonar por aquela figura esguia de fartos cabelos negros encaracolados dançando e rebolando sem paridade em nosso país e cantando letras imageticamente fortes, extrapolativamente sensuais.
Argentino que havia sido artista de rock nos anos 1960, Roberto Livi estava no Brasil na condição de empresário de artistas e produtor fonográfico. Sua missão mais importante era descobrir novos artistas para projetar suas carreiras e fazê-los vender muitos discos e shows. Foi assim com nomes como Alcione e Peninha, por exemplo . Com Sidney Magalhães também. Aliás, Magal, rebatizado sem a metade do sobrenome oficial desde que voltara de uma viagem pela Europa para tentar a carreira artística cantando e dançando nos seus vinte e poucos anos. O shape de Sidney Magal já existia antes mesmo de Livi descobri-lo. Fazia sucesso na noite, soltando o vozeirão no palco de uma churrascaria na Barra da Tijuca, já com o mesmo figurino exótico (couro, correntes grossas, cabelão, peito nu, preto como cor dominante) utilizado quando passou a gravar discos. Aliás, Magal desde sempre foi um artista não apenas para ser ouvido, mas principalmente para ser visto.
Recém-estreado em circuito nacional, Me Chama Que Eu Vou (Brasil, 2022 – Vitrine Filmes) disseca o personagem Sidney Magal através da ótica e dos comentários de seu criador Magalhães. É aquele documentário básico e clássico, cronologicamente linear, que vai da gestação da carreira em seus momentos prévios aos tempos de hoje, passando, claro, pelo apogeu, decadência, redescoberta e renascimento artístico. Bom para quem não conhece direito a sua história, mas também curioso para quem acompanhou tudo isso em tempo real no decorrer das décadas. Prato cheio aliás, é o tratamento dado pela mídia durante os três primeiros álbuns. Além de algumas imagens da época, o crème de la crème são as entrevistas para TV e sobretudo as revistas de fofoca e semanários jornalísticos. Mesmo que aparecendo de maneira fugaz na tela, as páginas diagramadas com textos, fotos e manchetes são uma delicia de serem lidas. Nestas cenas são reveladas todo o fascínio com o qual a imprensa tratava aquela persona rebolativa que pervertia a MPB. A elite o tachava de brega. Os mais preconceituosos não conseguiam compreender que aquela figura já havia sido criada antes mesmo do lançamento do primeiro disco. Muita gente o considerava uma estrela fabricada pela indústria fonográfica, um “cigano de araque, fabricado até o pescoço” (como cantava Rita Lee, de pura pirraça, na segunda versão da letra da não menos debochada canção “Arrombou a Festa”, no qual espinafrava os nomes mais importantes da música nacional da época). Uma das reportagens até dava a receita para se “fabricar” um ídolo.
O que poderia jogar contra o documentário dirigido por Joana Mariani acaba, entretanto, sendo o maior trunfo dele. O filho do cantor, um dos entrevistados, também assina a obra como coprodutor-executivo. Mas também não se pode dizer que Me Chama que Eu Vou seja um filme chapa-branca. Mesmo porque, fora a polêmica sociológica do início de carreira, Sidney Magalhães nunca foi uma figura de fato polêmica. Nunca precisou esconder na de sua vida, nem mesmo protagonizou escândalos pessoais de qualquer tipo. Por isso mesmo nunca foi necessário Mariani sequer pensar em qualquer outra narrativa para o doc. Magal ainda ajuda por ser uma pessoa extremamente organizada, sobretudo no que tange ao arquivo de itens sobre a sua trajetória artística. Ele, sempre que pode, guarda até hoje recortes, cartazes, fotos. Se todo este material enriqueceu muito o material apresentado na edição final (inclusive coisas pré-estouro nacional nas rádios e TVs) dá para ficar imaginando todo o resto que ficou de fora da montagem.
O trabalho de Mariani é bastante elucidativo ao jogar luz para os espectadores compreender algo que talvez muitos deles não saibam: a diferença tamanha entre o que são os dois Sidneys. Enquanto o Magal é espalhafatoso, sensual e ousado, o Magalhães é quieto, família e até certo ponto conservador nos costumes (inclusive os musicais). Aliás, o gosto pelas canções mais tradicionais (bossa nova, sobretudo) veio de casa. Tia tocando piano, mãe apaixonada por canto (a ponto de se lançar na carreira depois da fama do filho, aproveitando inclusive para usar o pseudônimo dele), primo dos mais festejados pelas artes brasileiras. Para quem não sabe: o tal primo era ninguém menos que o poetinha Vinicius de Moraes, letrista de algumas das principais canções em língua portuguesa.
Só que Vinícius nunca compôs uma letra para Sidney gravar, mesmo porque o garoto mais novo nunca ficou insistindo nisso. Nem precisaria mesmo. Com versos afiados (e quentes, muito quentes!) como os da polca “Sandra Rosa Madalena, a Cigana” e a meio rumba meio disco “Meu Sangue Ferve Por Você” , não há como não cantar junto com Magal e suas reboladas. Outras versões em nosso idioma também são poderosas. O rock “Tenho” veio importada do repertório do famoso cantor argentino Sandro Anderle (1968), também com estilo visual cigano e principal referência de Livi ao trabalhar com Magal. De outro portenho, o cantor de boleros Cacho Castaña, o produtor trouxe outra disco music, “Se Te Agarro Com Outro Te Mato”, seu primeiro compacto, lançado em 1977, com direito até a guitarra turbinada por um discreto porém não menos poderoso e psicodélico pedal fuzz.
O que o documentário não fala (infelizmente, porque seria uma informação mais completa e não desmereceria de maneira nenhuma a carreira do carioca) é que o grosso dos hits dos anos dourados de Magal são compostos por versões. “Meu Sangue Ferve Por Você”, no caso, é versão de uma versão. A original é francesa e teve duas letras e gravações em 1973: uma em inglês, pelo artista Sunshine, sob o nome de “Melody Lady”; a outra, em francês, por Sheila (que anos depois viria a apostar na disco music como Sheila B Devotion), chamada “Mélancolie”. O argentino Sabú pegou a mesma base sonora e levou a canção para o espanhol, agora como “Oh Cuanto Te Amo”. Deste sucesso veio a ideia para a letra “quente” de Magal. Também de Buenos Aires veio mais um rock, “Amante Latino”, gravada com o andamento um pouco mais desacelerado por Rabito em 1974.
A segunda parte do trabalho de Joana foca na ruptura da parceira entre Magal e Livi e a espiral descendente na qual seu trabalho caiu logo no começo dos anos 1980. Curiosamente, tudo surgiu do esgotamento da fórmula da imagem forjada de cigano. A letra “Sandra Rosa Madalena”, idealizada por Livi, pode ter forjado a imagem de Magal, que tinha apenas um fiapo de ascendência cigana lá pelo lado de uma tataravó, e catapultado o artista ao estrelato, mas também fora a maldição da qual ele tentou se livrar. Por diferenças pessoais e profissionais rompeu os laços com seu produtor e lançou-se na música romântica, incentivado pela gravadora, com outro look, de gomalina e cabelos presos com rabo de cavalo. Lançou vários discos mas nenhuma música nova fez sucesso. Na época em que Magal mais tentou sair do personagem e passar a ser ele mesmo – inclusive se casando e tendo filhos, contra a vontade de seu até então mentor de bastidores, que considerava ser o suicídio de um ídolo abrir o jogo da vida pessoal para seus fãs. Aí que entra uma fase interessante do filme, com Magalhães refletindo sobre os efeitos colaterais da mudança e os atos para a sua reinvenção, mudando-se para a Bahia e atuando como ator de novelas e cantor de teatro musical, inclusive sendo convidado e dirigido por Bibi Ferreira. Até a reviravolta provocada pela chegada da febre da lambada, o sucesso de “Me Chama Que Eu Vou” com tema de abertura da novela da Globo (em um período em que isso ainda representava um bilhete premiado de loteria para um artista da música) e a consequente redescoberta do cantor pelas geração MTV Brasil. Todo este período de ostracismo e redenção, sob a análise do próprio Sidney (mais uma boa dose de sentimentalismo familiar) funciona contra a tentadora queda para uma possível glorificação do astro de um documentário.
Me Chama Que Eu Vou, o doc, não só informa aquele que não conhece direito a trajetória do ídolo. Gráfica e ritmicamente dinâmico, sobretudo na fase inicial da fama, diverte todo mundo. Como uma apresentação do “falso” cigano, seja em um show completo ou apenas em um número em antigos programas de auditório na TV. Aliás mais do que produto da mera mente comercial de Livi ou resultado do puro instinto daquele jovem que cresceu banhado em arte e só queria fazer da vida o ato de cantar e dançar, Sidney Magal é fruto daqueles tempos de recente formação de redes nacionais de televisão, proporcionadas pela possibilidade cada vez mais barata de transmissões via satélite (leia-se anos 1970 em diante). Sorte de quem faz audiovisual e de quem gosta de ver documentários.