Sentindo-se em casa no Teatro Guaíra, em Curitiba, rapper provoca catarse coletiva falando de Brasil, amor, política e solidariedade
Texto por Pilar Browne e Rodrigo Browne
Foto: Pilar Browne
O cenário era o ideal. Um Guairão lotado nos seus mais de dois mil lugares. No fundo do palco os vitrais projetados lembravam uma Igreja renascentista. Mas a missa foi diferente… Ao invés de versículos bíblicos, o “pregador” Emicida levou aos seus “fiéis” o hip hop com a palavra da periferia embalada por uma banda potente que criou um clima perfeito para um culto musical que falava de Brasil, amor, política e solidariedade. Em cada canção, o teatro vibrava com a potência das rimas, envoltas nas batidas perfeitas.
Na primeira apresentação de Emicida no festival de Teatro – foram duas no último dia 7 de abril, às 17 e às 21 horas – o artista brindou o público com hits de seu mais recente álbum AmarElo. Mas o repertório foi generoso, em quase duas horas de show (e ainda teria outro…) ele interpretou seu novo álbum com intercalando clássicos do início da carreira. Logo na abertura vieram três pedradas: “Ordem Natural das Coisas”, “Quem Tem um Amigo” (rap com suingue de samba que ele fez em parceria com Wilson das Neves) e “Pequenas Alegrias da Vida Adulta”. Um começo arrebatador.
Em seguida, Emicida criou uma atmosfera romântica, com a sequência de “Baiana”, “Madagascar”, “Alma Gêmea”, “9nha” e “Eu Gosto Dela” – que por sinal, caem muito bem naquela playlist especial para ouvir com alguém. Suas provocações políticas e sociais, porém, ganharam força na metade do set, com “Pantera Negra”, “Bang!”, “Eminência Parda”, “Ismália” e “Levanta e Anda”. São músicas que se potencializam com a energia em que são cantadas, atuando quase como um sermão.
Era impressionante a performance de palco e o total domínio da plateia apresentado por Emicida no principal templo cênico do Paraná. O artista, que saiu da Zona Norte de São Paulo, das rodas de rap da periferia, estava em casa no Teatro Guaíra. Existia sinergia completa entre público e artista. E a sensação que Emicida passava era a que não importa onde ele se apresente, o que conta mesmo é a força de suas rimas e do seu canto falado.
Alguns pontos mereceram destaque. Em primeiro lugar, a banda tem duas mulheres espetaculares na bateria/percussão e na guitarra (respectivamente, Silvany Sivuca e Michele Cordeiro). Elas representavam a força feminina num mercado ainda predominantemente masculino e mostravam sintonia e intimidade no diálogo com os outros componentes (DJ Nyack, o backing vocal Thiago Jamelão e o baixista Julio Fejuca).
No repertório, o ponto alto fica para a música que tem o sample de Belchior (“Sujeito de Sorte”). Os versos “Tenho sangrado demais/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri/ Mas esse ano eu não morro” continuam atuais. Foram cantados/gritados em uníssono pelas pessoas, que exorcizavam sentimentos de esperança e torcida por dias melhores. A passagem do rapper pelo Festival de Curitiba foi uma catarse coletiva da audiência que, em determinado momento, ainda gritava forte em coro “#ForaBolsonaro”! Emicida reconheceu. “Eu já sabia que o público de Curitiba é lindo, mas agora vi como é inteligente!”, disparou.
Houve um único porém durante o concerto: o som do teatro estava ruim e em alguns momentos a voz do artista ficava prejudicada. Mas, como a plateia sabia suas músicas de cor e salteado, essa derrapada sonora voltava para a pista com milhares de vozes anônimas. Isso transformou o que deveria ser um problema em algo excelente.
Set List: “A Ordem Natural das Coisas”, “Quem Tem Um Amigo (Tem Tudo)”, “Pequenas Alegrias da Vida Adulta”, “Cananeia, Iguape e Ilha Comprida”, “Baiana”, “Madagascar”, “Alma Gêmea”, “9nha”, “Eu Gosto Dela”, “Paisagem”, “Hoje Cedo”, “AmarElo”, “Pantera Negra”, “Zica, Vai Lá!”, “Bang!”, “Eminência Parda”, “Boa Esperança”, “Ismália”, “Levanta e Anda” e “Principia”. Bis: “Gueto/Rap da Felicidade”, “A Chapa é Quente!”, “Nóiz/Favela” e “Passarinho”.