Homenagem ao autor de dezenas canções que viraram inesquecíveis clássicos da música pop do século 20
Textos por Abonico R. Smith
Foto de Leandro Delmonico/Mondo Bacana (show em Curitiba) e reprodução (com os oscars)
O final da manhã desta quinta-feira, dia 9 de fevereiro, trouxe a notícia de mais uma perda de um integrante estelar na história da música pop do século 20 nessas intensas semanas dos últimos três meses. Depois de Terry Hall (Specials), Thom Bell (produtor, criador do Philadelphia soul), Tim Stewart (cofundador da Stax), Vivienne Westwood (estilista, mentora do visual dos Sex Pistols), Alan Rankine (Associates), David Crosby (Byrds, Crosby Stills & Nash/Crosby Stills Nash & Young), Jeff Beck (Jeff Beck Group, Yardbirds) e Tom Verlaine (Television), chegou a vez deste plano espiritual se despedir de Burt Bacharach. O maestro, pianista, arranjador, compositor e cantor faleceu de causas naturais, aos 94 anos de idade, em Los Angeles, onde morava.
Bacharach e seu parceiro e letrista Hal David criaram centenas de canções a partir do final dos anos 1950 que os colocaram no panteão dos grandes times de compositores da música em todos os tempos. Em popularidade, talvez só tenham rivalizado com John Lennon e Paul McCartney.
Para homenagear este magistral artista, o Mondo Bacana reposta uma resenha de uma década atrás, que analisa como foi o concerto realizado por ele em terras curitibanas, durante sua última passagem pelo Brasil, em abril de 2013. Aqui estão descritos todos os porquês de sua genialidade, que residirá para sempre no inconsciente coletivo do cancioneiro internacional.
***
>> Texto originalmente publicado pelo Mondo Bacana em abril de 2013
Burt Bacharach – ao vivo
O roteirista Charlie Kaufman escreveu o filme Being John Malkovich (1999), no qual se descobria um portal que levava para dentro da mente de um dos mais cultuados diretores e produtores das últimas décadas do cinema dos EUA. No fim da noite daquela terça-feira 16 de abril de 2013 muita gente deve ter saído do Teatro Positivo, em Curitiba, querendo achar uma entrada secreta para a cabeça de outro ícone do entretenimento americano: o maestro e pianista e arranjador e compositor e cantor Burt Bacharach.
Ele é um dos grandes gênios da canção do século 20. Entre as décadas de 1960 e 1980, compôs quase uma centena de músicas capazes de grudar no cérebro humano como um chiclete e de lá nunca mais sair em tempo algum. São melodias, riffs e letras (grande parte delas sobre o amor e suas variáveis) que qualquer pessoa que tenha prazer em ouvir música popular já escutou por aí na vida e nunca mais conseguiu se esquecer. Não adianta. Estão lá, guardadas em algum cantinho. Em algum momento você vai acabar se lembrando disso. Mesmo que não saiba quem é Burt Bacharach e que quem criou foi ele.
Burt está hoje com 84 anos de idade. Muito lúcido e surpreendentemente ainda na ativa. Não só viajando pelo mundo para apresentar ao vivo suas grandes criações. Mas ainda compondo, arranjando e gravando obras inéditas, como o musical Some Lovers, que estreou em um teatro de San Diego no ano passado. Atualmente ele trabalha ao lado do fã e discípulo Elvis Costello, um dos grandes nomes revelados durante a explosão do punk rock inglês na segunda metade dos anos 1970.
Curitiba foi a primeira das três cidades a receber a nova passagem de Bacharch pelo Brasil. Na capital paranaense, o show foi um pouco mais curto do que no Rio e em SP, já que o maestro chegara pouco tempo antes. Ele mesmo brincou a respeito disso em uma de suas conversas dirigidas à plateia: “música é bom para tudo nesta vida, até mesmo para fazer passar o jet leg”. Mesmo assim, o que se viu foi uma inacreditável sequência de 31 canções, quase todas com extremo poder para seduzir imediatamente quem as ouve. Afinal, não se cria à toa uma extensa coleção de prêmios como o Grammy (seis), Emmy (um), Globo de Ouro (dois) e Oscar (três).
À frente de sua competente banda de apoio formada por sete outros músicos e três vocalistas, o set list foi daqueles de deixar o espectador sem fôlego. Uma porrada atrás da outra, sempre com socos fortes e muitas vezes sem interrupção, chegando a emendar várias canções em um mesmo medley. Burt ainda pode se dar ao luxo de interpretar seus greatest hits não por inteiro, mas apenas através de seus trechos mais marcantes. E é impressionante também a precisão da distribuição dos instrumentos nos arranjos. O piano e os teclados cumprem o lado harmônico (vale lembrar que não há a presença das cordas da guitarra ou do violão) e o flugelhorn (sopro da família dos metais de trompetes) acaba sendo bastante privilegiado durante a execução de muitos riffs. Bateria e baixo assumem escancaradamente a função de cozinha e dão a cama rítmica que passeia entre a bossa nova, o rock, o jazz e outros grooves derivados dos negros norte-americanos.
No meio de tudo isso, Burt se concentra tanto em cada música que ele entra no espírito de cada uma dela durante a interpretação. E quando o momento é só seu, tocando piano e cantando sem qualquer acompanhamento como em “Alfie”, ele eleva o transe à plateia, que fica enfeitiçada e em silêncio absoluto só para curtir as emoções da viagem particular do astro da noite.
Este arsenal de hits planetários que ficaram célebres nas vozes de cantores como Dionne Warwick (sua principal e mais conhecida intérprete até hoje), Aretha Franklin, Dusty Springfield, Tom Jones, Walker Brothers, BJ Thomas, Barbra Streisand, Whte Stripes e Carpenters (e os Beatles!) ou trilhas sonoras de filmes de sucesso produzidos em Hollywood (Butch Cassidy & Sundance Kid; Alfie; Arthur, o Milionário; O que é que há, Gatinha?) foi quase todo assinado em parceria com o letrista Hal David, falecido em setembro de 2012, aos 91 anos de idade. Iniciada em 1957, a alquimia entre Hal e Burt se transformou em uma das mais bem-sucedidas crias do Brill Building, prédio nova-iorquino no qual compositores batiam ponto diariamente como trabalhadores e tinham como função a criação de obras musicais inéditas para serem gravadas, ali mesmo, por diversos cantores e grupos de pop e rock do final das décadas de 1950 e 1960.
Isso explica toda a classe e maestria das composições de Bacharach: o trabalho apurado de lapidação autoral e a adoção de uma rotina de labuta constante em busca da melhor resolução musical entre acordes, melodias e palavras para se encaixar na métrica. Ele diz que pensa em música em todas as horas e já criou hits até quando estava no trânsito. Deve ser mesmo algo fenomenal descobrir o que se passa – e o que já se passou nas últimas seis décadas – dentro de sua cabeça.
Set List: “What The World Need Now Is Love”, “Don’t Make Me Over”, “Walk On By”, “This Guy Is In Love With You”, “Save A Little Prayer”, “Tranis & Boats & Plains”, “Wishin’ & Hopin’”, “Always Something To Remind Of”, “One Less Bell To Answer”, “I’ll Never Fall In Love Again”, “Only Love Can Break A Heart”, “Do You Know The Way To San José?”, “Anyone Who Had A Heart”, “I Don’t Know What To Do With Myself”, “Waiting For Charlie To Come Home”, “My Little Red Book”, “(They Long To Be) Close To You”, “The Look Of Love”, “Arthur’s Theme”, “What´s New, Pussycat?”, “The April Fools”, “Raindrops Keep Fallin’ On My Head”, “The Man Who Shot Valance”, “Making Love”, “Wives And Lovers”, “Alfie”, “A House Is Not A Home”, “That’s What Friends Are For”. Bis: “Every Other Hour”, “Hush”, “Any Day Now” e “Raindrops Keep Fallin’ On My Head”.
Oito motivos para celebrar o retorno do festival cantando os versos “olê olê olá! Lolla! Lolla!”
Textos por Abonico Smith
Fotos: Lolla BR/Camila Cara/Divulgação
Enfim, a música está definitivamente de volta aos palcos no Brasil. E os festivais de música também. Depois de dois anos de muito isolamento, distanciamento e congelamento de eventos artísticos provocados pela pandemia, com os números em queda e o gradativo relaxamento das regras sociais, a grade de grandes eventos pode ser retomada em 2022. No terreno da música pop, tudo começou no último final de semana, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo, com os quatro palcos e três dias do Lollapalooza Brasil, que, entre 25 e 27 de março, retomou um pouco daquela programação que estava sendo esperada para 2020, mas com várias alterações sendo feitas a cada cancelamento, até mesmo nas últimas semanas com a desistência de duas bandas internacionais por conta de gente diagnosticada com a covid-19. Surpresas que se prolongaram até a véspera do domingo, com o mundo sendo pego de surpresa pela notícia da inesperada morte de Taylor Hawkins, o carismático baterista do Foo Fighters, o último dos três headliners, horas antes de um show em outro festival na Colômbia.
O Mondo Bacana lista oito motivos que vão fazer você se lembrar para sempre desta edição um tanto confusa e atabalhoada mas extremamente importante para ajudar a recolocar os grandes festivais e eventos musicais no eixo em território brasileiro.
Wombats
Este trio liverpludiano de nome de marsupial australiano e carreira sólida no circuito indie rock europeu merecia ter sorte melhor em sua primeira vinda (tardia, já que a discografia aponta cinco trabalhos em 15 anos) ao Brasil. Mal havia começado seu set e do nada veio um toró danado, com muitos raios e ventos, o que forçou a organização a cancelar tudo imediatamente e evacuar palco e plateia pelo risco de acidentes próximos a instalações metálicas. Foram só cinco músicas, mas o suficiente para ver que o vocalista Matthew Murphy e seus comparsas tinham muita lenha para queimar naquela tarde de sexta-feira. Misturando guitarras e grooves e com hits poderosos como “Moving To New York” e “Techno Fan”, lá do início da carreira, estrategicamente colocados no pontapé inicial para incendiar tudo. Só que aí veio o inesperado. A chuvarada veio impiedosamente para apagar todo o fogo da banda. Pelo menos restou a suspeita de que ano que vem eles deverão estar de volta por aí para compensar o “pocket show forçado”.
Strokes
Muita gente pode achar sem sentido a escalação do Strokes como headliner de um grande festival, justificando que o quinteto nova-iorquino está longe de seu auge criativo. Pura bobagem! Se bandas como Red Hot Chili Peppers e Guns N’Roses vivem desembarcando aqui no Brasil com o mesmo status, porque a trupe de Julian Casablancas não poderia também? OK, as vendagens podem não ter sido tão grandiosas se comparadas a estes nomes, mas a importância e a significância para tal ponto. Afinal, ajudaram a consolidar uma nova linguagem do rock, tão suja e underground quanto seus antecessores que consolidaram o punk e o alternativo no subsolo norte-americano. E, bem, musicalmente continuam muito bons. Simples, direto ao ponto, sem firulas (até mesmo nos solos). Julian Casablancas continua cantando cinicamente desanimado, como um “tô nem aí para nada”, agarrado no pedestal, de óculos escuros e na maior pose antipopstar. Aliás o foda-se desta vez estendeu-se também à escolha do repertório. O grupo ousou ao eliminar escolhas óbvias para festivais como de hits (como “Someday” e sobretudo “Last Nite”), pegar lados B dos dois primeiros álbuns (“Under Control”, “Trying Your Luck”, “Take It Or Leave It”, “New York City Cops”) e bancar um terço do set list (cinco de quinze) com faixas do álbum mais recente, lançado logo depois do lockdown mundial provocado pelo decreto da pandemia. Gran finale da primeira noite!
Emicida
Há muito tempo que, em se tratando de peso e atitude, o rap é o novo rock aqui no Brasil. Depois de uma série de discos acachapantes, Emicida veio para este Lollapalooza disposto a provar que, sim, pelo menos em se tratando de festivais de música a revolução pode ser televisionada em nosso país. AmarElo, o show, é uma porrada na cara, um soco no estômago, um tapa do Will Smith em todos os sentidos. Banda afiada, com duas guitarras poderosas, baixista-maestro, percussão dando peso às batidas do DJ. Com versos de forte conteúdo racial, social, político e (por quê não?) de relacionamentos pessoais – a ponto de levar a um festival pop o pastor Henrique Vieira para mandar um sermão contagiante no final com “Principia”. Antes, porém, uma trinca matadora com participações especiais: Rael em “Levanta e Anda”, Drik Barbosa em “Luz” e Majur em “AmarElo”(aquela na qual o sample com o refrão gravado originalmente na voz de Belchor vira transe coletivo).
Miley Cyrus
Às vésperas de completar 30 anos de idade, a ex-Hannah Montana libertou-se de todas as amarras imagéticas que ainda poderiam estar assombrando seus trabalhos anteriores. Sonoramente, lançou-se fundo no rock, com muitas timbragens e elementos oitentistas sem abandonar a veia pop dos arranjos. Visualmente, toda de preto e cabelo platinado no melhor estilo femme fatale eternizado por Madonna também nos anos 1980. De quebra, ainda chamou a amiga Anitta ao palco para celebrar “a brasileira número um mundial do Spotify” e mandar – rebolando bastante, claro – um feat do novo hit dela “Boys Don’t Cry”. Só que nem tudo é perfeito. Para os millennials, Miley pde ser o máximo, impactante, de causar arrepios. Só que quem tem mais idade e já viu muito mais coisa no rock’n’roll sabe que tudo nao passa de um pastiche. Bem produzido mas um pastiche. Rola um déjà-vu atrás do outro, com lembranças que vão de Bon Jovi a… Madonna! Isso sem falar no amontoado de covers sem sentido (já que ela é uma headliner com carreira já longa e consolidada) que deformam Pixies (“Where Is My Mind?”), Blondie (“Heart Of Glass”) e Nancy Sinatra (“Bang Bang”). Ah, sim, teve toda a encenação do choro pela morte do grande amigo pessoal Taylor Hawkins no meio do show (quando ela cantou “Angles Like You” sentada em uma cadeira agarrada a uma bolsa de grife da qual tirou um lencinho para enxugar as lágrimas sem borrar o make). Por falar em grife, o que dizer do enorme casaco de inverno verde que ela teve de vestir e cantar por uns dois minutos usando durante a primeira música. Contratos de parceira publicitária? Muito rock’n’roll isso, né? No telão ao fundo, a frase “sell out to sell out”(em bom português, “vender-se para se vender”). Pose dez, atitude duvidosa no fim das contas. Será que é disso que o mundo necessita mesmo?
Idles
Já faz alguns anos que as terras britânicas vem exportando ao mundo uma série de novas bandas excitantes. Muitas delas, inclusive, com inspiração clara nos bons sons alternativos norte-americanos dos anos 1990. O Idles é um destes exemplos. Formado na cidade de Bristol, o quinteto vem concebendo álbuns maravilhosos em série (foram quatro desde 2017) e é nos concertos em grande escala que vem fazendo sua fama expandir ainda mais. Se a sonoridade já era brutal em pequenos espaços, quando o palco ganha proporções gigantescas – como é o caso dos festivais a céu aberto – parece que a banda também se agiganta com facilidade extrema. Aqui no Brasil, tocando pela primeira vez, não foi diferente. Com um pezinho naquela mistura entre o punk rock, o hardcore e o industrial e lembrando bandas clássicas de selos como Touch and Go (de Chicago) e Alternative Tentacles (criado por Jello Biafra em San Francisco). O quinteto insano jorrou em pouco menos de uma hora treze músicas praticamente coladas uma na outra – com claro destaque para o segundo álbum, Joy As An Act Of Resistance, de onde vieram sete delas). Ao vivo, parece que cada músico dispara para um lugar separado, tanto nas notas musicais como na performance cênica individual. A somatória desta coisa toda aparentemente difusa acaba atordoando, formando um conjunto monolítico com altos graus de ironia e sarcasmo – nas danças ora patéticas ora intensas dos músicos, na verborragia cuspida pelo vocalista Joe Talbot, na pancadaria rítmica da e bateria, nas distorções e microfonias incessantes formadas por toneladas de pedais ligados ao baixo e às duas guitarras. Nunca um fim de tarde de domingo soou tão longe de ser modorrento.
Libertines
Depois do Idles, no mesmo palco principal do Lolla vieram os Libertines, atração praticamente acertada de última hora, já que duas semanas antes do festival o Jane’s Addiction cancelou a vinda por conta de casos de covid em sua equipe. E, olha, nunca uma escolha poderia ter sido tão acertada e oportuna quanto esta. Afinal, lá atrás, quando estiveram pela primeira vez no país também em um grande festival, a banda estava no seu auge mas se encontrava temporariamente sem um de seus frontmen, o guitarrista e vocalista Pete Doherty estava temporariamente afastado de suas funções em virtude de uma sentença judicial que o levou à cadeia. E Carl Bârat sem Pete é como Piu-Piu sem Frajola, Buchecha sem Claudinho. Agora, Pete e Carl ficaram lado a lado, alternando-se nos vocais no típico repertório “banda de bar” que fez a fama do quarteto lá na primeira metade dos anos 2000 – o set list contou com treze faixas extraídas dos dois primeiros e mais famosos álbuns. Com a poderosa ajuda do experiente baterista Gary Powell (que, dez anos mais velho que os dois e negro, ainda insere com extrema competência elementos de jazz, blues e soul nos arranjos). Tudo bem que a idade já começa a pesar nos ombros. Com 43 anos de idade, não são mais aqueles likely lads que promoviam performances anárquicas em pequenos palcos nas gigs em Londres e arredores. Pelo menos estão vivos e esperneando, sempre prontos para mandar clássicos do indie rock do século 21 como “What Became Of The Likely Lads”, “What Katie Did”, “Boys In The Band”, “Time For Heroes” e “Can’t Stand Me Now”. Sorte nossa, mesmo que muita gente mais jovem que estava in loco no Lolla não tenha dado a mínima por achar que rock é o que menos importa na música de um festival.
O rap é o novo rock
Perto da meia-noite de sexta para sábado (horário de Brasília) chega a notícia bombástica: horas antes de se apresentar em um festival na Colômbia, o baterista do Foo Fighters Taylor Hawkins morre no hotel. Mais um problema – e que problemão – de última hora para a escalação do festival: como resolver em questão de menos de dois dias a substituição da banda para encerrar a programação do palco principal no domingo? A solução estava bem perto e, de certa forma, vinda de um lado inesperado para muita gente: ela respondia por Emicida. Admirador da banda de Dave Grohl, assim como a guitarrista de sua banda, Michele Cordeiro, ele recorreu a um punhado de amigos rappers e resolveu prontamente o problema de logística: montou um show tão longo quanto, juntando um monte de artista que nas últimas três décadas ajudou a cristalizar o hip hop como um dos gêneros musicais mais populares do país. Deste jeito, o concerto improvisado – anunciado como uma homenagem a Taylor Hawkins sem, contudo, prender-se ao modelo chato de tributo de execução das principais músicas gravadas pelo homenageado – foi dividido em duas partes. Na primeira, os DJs Nyack e KL Jay deram o suporte soltando as bases para nomes como Emicida, Rael, Criolo, Bivolt, Drik Barbosa, Djonga, Ice Blue e Mano Brown mandarem algumas das principais composições de suas carreiras (…). A metralhadora verborrágica da turma revelou-se tudo aquilo que anda em falta nas bandas mais tradicionais de rock: sagacidade, rebeldia e periculosidade intelectual. Na segunda, os DJs e MCs individuais cederam o palco ao Planet Hemp, que veio do Rio de Janeiro para mostrar que a produção do festival cometeu um grande erro ao não escalá-lo. Com a banda afiadíssima e misturando hardcore, psicodelia, samba e jazz ao canto falado de Marcelo D2 e BNegão, o PH é uma das poucas bandas brasileiras de rock realmente avassaladoras ao vivo hoje em dia. Peso, contundência e, claro, aquela chama capaz de nunca se apagar. Tanto uma metade quanto a outra pode ser definida como uma oportunidade para celebrar o amor, a música e a possibilidade de se estar junto àquelas pessoas que amamos. E não bastasse esses lados A e B do novo concerto, houve ainda um “prefácio” tocante com Michele e Mônica Agena dedilhando lentamente suas guitarras e tornando “My Hero” ainda mais emocionante. No fim, depois do Planet Hemp, mais uma homenagem direta a Hawkins. O Ego Kill Talent, banda brasileira escalada para abrir a última turnê brasileira do FF em 2018, encerrou as atividades com duas músicas: uma autoral mais “Everlong”, a primeira cover tocada pelo quinteto durante toda a sua trajetória de shows. Se em um primeiro momento tudo parecia triste, perdido e arrasado para o encerramento de domingo do Lolla, depois dessa turma toda ninguém mais teve dúvida de que valeu muito a pena ter ido ao Autódromo ou ficar vendo pela TV toda aquela competente gambiarra improvisada horas antes.
#ForaBolsonaro
Sabe aquele tiro que sai pela culatra? Pois foi bem o que aconteceu neste Lollapalooza. Na sexta-feira, um fã deu a Pabllo Vittar uma bandeira com a cara e o nome de Lula e ela saiu correndo com o objeto, tremulando-o ao vento, em disparada pelo corredor que separa uma metade da outra do público. A foto saiu estampada em todos os portais de notícias. Em outro palco, a cantora galesa Marina Diamandis mandou, em alto e bom português, um “#ForaBolsonaro”. Os Strokes saíram do palco usando o microfone para falar a mesma coisa. Foi o que bastou para Jair Bolsonaro ficar nervosinho e, disfarçando sob a assinatura de seu novo partido, pedir judicialmente a reativaçãoo da censura a artistas, proibindo-os de expressar suas opiniões travestidas de, segundo suas palavras, “campanha para presidente antes do período determinado pela lei”. Só que ele pode e sempre faz isso. E o pior: o mesmo ministro do TSE Raul Araújo que endossou o pedido e faz voltar a valer a censura neste país foi aquele que, semanas antes negara pedido de retirada de outdoors irregulares fazendo campanha para Bolsonaro em uma cidade de Mato Grosso do Sul. Mas de nada adiantou esse passo rumo ao retrocesso. Depois de sábado, quando a notícia estourou pelos bastidores, foi um tal de “cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu” (como disse Lulu Santos ao adentrar o palco do Fresno para uma participação especial). No mesmo dia, Silva puxou o coro do incentivo para que jovens entre 16 e 18 anos (faixa etária para a qual o voto é facultativo) tirassem seu título de eleitor para poderem ir às urnas em outubro próximo. O grupo gaúcho também mandou um #ForaBolsonaro no telão. Logo depois, Gloria Groove entrou com uma blusa semelhante a um uniforme de time de futebol, tendo escrito atrás seu nome e o número 13. Emicida, tanto no sábado quanto no domingo, reforçou que o amor vale mais que o ódio e também mandou a hashtag mais famosa destes últimos quatro anos no país. Criolo não disse nada, apenas vestiu uma camiseta com a urna eletrônica na frente, mais um título de eleitor atrás. Bivolt demonstrou toda a sua insatsifação com o atual desgoverno federal no rap freestyle. Mas, claro, a maior vociferação contra a absurda ação autocrata veio de Marcelo D2. “Não, hoje #EleNão. Hoje #EleNão vai fazer a narrativa. A gente vai fazer a narrativa. Isso aqui é sobre amor. É sobre Taylor Hawkins. Sobre Chorão. Sobre Chico Science. Sobre Sabotage. Sobre Speedfreaks e Skunk.”, mandou logo ao entrar com o Planet Hemp, lembrando os nomes de amigos e ídolos já falecidos, sendo os dois últimos um ex-colaborador e um dos fundadores do PH. Aí mandou a letra de “Banditismo Por Uma Questão de Classe”, manifesto antinarrativa de direita da Nação Zumbi. Depois emendou “Distopia”, música inédita “sobre esperança” com base jazzy que estará no disco da banda que será lançado do próximo semestre. O refrão trazia um jogo de palavras hipnótico (“Desobedeço o obedeça/ Obedeço o desobedeça”) enquanto o telão repetia outra parte da letra (“Repense Reflita Resista Recuse”). Em “Dig Dig Dig” reviveu o canto de Zumbi eternizado por Jorge Ben (“Zumbi é o Senhor das Guerras/ Zumbi é o Senhor das Demandas/ Quando Zumbi chega/ É Zumbi é quem manda”). Antes de “queimar tudo até a últimaponta”, aproveitou para xingar diretamente Bolsonaro. Depois, lembrou que a musica “Zerovinteum”, há quase trinta anos, já falava sobre o problema das milícias no Rio de Janeiro – e ainda atestou estarem presentes sempre os assassinados Marielle e Anderson. Também levou um improvável hino do Ratos de Porão ao palco do grande festival mainstream com a cover de “Crise Geral” e antecipou a execução de “Contexto” dizedo que de nada adianta acreditar em um salvador da pátria e só fazer algo ao ir lá votar no dia da eleição. Ah, sim: não deixou de entoar a famosa musiquinha adaptando-a para homenagear o festival: “olê olê olá! Lolla, Lolla!”. Os artistas sambaram bonito em cima da cara do “é melhor Jair embora de uma vez”. Em tempo: o festival não foi notificado pela justiça porque o pedido de censura foi tão incompetente que nenhum dos dois CNPJs informados ali batiam com os responsáveis pelo evento. Em tempo 2: na segunda-feira, quando não adiantava mais nada porque tudo já acabara no domingo, Araújo suspendeu as manifestações políticas no Lolla afirmando que o texto da solicitação do PL o havia induzido a erro. A emenda ficou, de vez, pior que o soneto…
Fãs se despedem do grande monstro do thrash metal em celebração devastadora em São Paulo
Texto e fotos por Fábio Soares
Trinta e oito anos de carreira, fãs espalhados pelos quatro cantos do planeta e clássicos que marcaram a vida de quase três gerações. Um gigante exponencial que possui um estilo musical para chamar de seu, influenciando 3/4 da cena do metal desde então. O anúncio da última turnê do Slayer pode ter pego meio mundo de surpresa mas não a mim. Sabia-se muito bem que os bastidores deste tiranossauro é (há tempos!) impulsionado por um rancor e quase ódio entre seus fundadores. Tom Araya e Kerry King movem a máquina desde o início mas escreva aí: um não compraria uma bicicleta usada do outro. Tamanha tensão tornou o ambiente insuportável culminando, inclusive, no par de saídas do lendário Dave Lombardo da formação. Pessimismo este impulsionado de maneira voraz com a morte do guitarrista Jeff Hanneman, em 2012.
Isto posto, o dia 2 de outubro último já começou por muita expectativa aos fãs. Já que a banda é uma religião, 8 mil fiéis superpovoaram o Espaço das Américas, na Zona Oeste para a última celebração à “banda da vida” em terras paulistanas. Coube aos veteranos do Claustrofobia abrirem os trabalhos às 20h45. O trio formado por Marcus e Caio D’Angelo (guitarra e bateria, respectivamente) mais Rafael Yamada (baixo) trouxe peso, competência e ainda uma dose de ironia quando o vocalista incentivou a plateia a formar rodas de pogo, tendo em vista que a produtora do evento havia “proibido” tal prática num comunicado na véspera.
Após a competente abertura do trio brasileiro, um clima de comoção tornou conta da casa quando vieram os primeiros acordes de “Repentless”. O Slayer decolava pela última vez na capital paulista e um verdadeiro pandemônio tomou conta da plateia, evidenciando algo logo de cara: por mais que Gary Holt (guitarra) e Paul Bostaph (bateria) façam a máquina girar, é a unidade antagônica da dupla Araya-King que atraía todos os olhares. A celebração teve em “Evil Has No Boundaries” (do seminal Show No Mercy, álbum de 1983) um estopim para uma explosão que viria a seguir. Em “World Painted Blood”, o mundo proposto pelos vocais de Araya era catártico, caótico, anárquico, enésimo e outros adjetivos proparoxítonos não cabíveis aqui. A plateia, já entregue, deixava-se levar num transe coletivo e definitivo. Era a última vez e nada poderia se perder. Ponto altíssimo da apresentação, a trinca de ases “War Ensemble, “Gemini” e “Disciple” despejou devastadores decibéis aos quatro cantos do recinto, tendo o refrão da terceira (o verso “God hates us all”) literalmente URRADO em uníssono.
A parte final da apresentação teve no álbum Seasons In The Abyss seu carro-chefe. Bolacha predileta de nove entre dez fãs da banda, o disco de 1990 foi o turíbulo essencial nesta derradeira missa campal. “Temptation”, “Born of Fire” e a faixa-título não perderam seu peso passadas quase três décadas após seu lançamento. No palco, os vocais de Tom Araya (mesmo aos 58 anos de idade) permanecem impecáveis, assim como a habilidade de Kerry King ao domar sua Flying V após tanto tempo. A trilha sonora de uma vida inteira estava próxima e coube a “Dead Skin Mask” materializar o fanatismo dos presentes numa densa onda de celebração. Uma das maiores faixas da história do metal permanece sublime e mais perturbadora que nunca.
O epílogo já tradicional e conhecido infelizmente chegaria a seguir. “Angel Of Death”, a maratona sonora de cinco minutos, acelerava, desacelerava, cadenciava, disparava e retorna a seu compasso inicial como uma agoniante sinfonia da morte. Inimaginável hecatombe para um final digno, sagaz e emocionante ao extremo. Já com as luzes acesas, um solitário Tom Araya permanecia no palco por mais de cinco minutos, observando a multidão à sua frente. Sabendo que nunca mais voltará à maior cidade da América Latina com o monstro sonoro que ajudou a criar, cruzou os braços sobre o peito e timidamente disse ao microfone: “Sentirei saudades”.
Após quase quatro décadas de carreira, o Slayer saiu de cena no auge, tendo garantido seu lugar na História. Um triste fim, porém necessário. Uma bela maneira de morrer.
Set List: “Repentless”, “Evil Has No Boundaries”, “World Painted Blood”, “Postmortem”, “Hate Worldwide”, “War Ensemble”, “Gemini”, “Disciple”, “Mandatory Suicide”, “Chemical Warfare”, “Payback”, “Temptation”, “Born Of Fire”, “Seasons In The Abyss”, “Hell Awaits”, “South Of Heaven”, “Raining Blood”, “Black Magic”, “Dead Skin Mask” e “Angel Of Death”.
Em agosto de 2008, o Mondo Bacana publicava a resenha do show que celebrava os 50 anos do primeiro disco da bossa nova
Texto por Rodrigo Browne
Foto: Divulgação/Beti Niemeyer
João Gilberto morreu há um mês, no último dia 6 de julho. Sua obra, no entanto, é imortal. Na semana do seu falecimento, todos os noticiários esgotaram todos os adjetivos para esse artista que pode ser definido em uma única palavra: genial. Sua importância para música internacional é reconhecida pela crítica especializada em todos os cantos do mundo. Por isso, vamos relembrar a resenha publicada em 2008 pelo Mondo Bacana, sobre o show histórico que João (um banquinho e um violão) fez para celebrar os 50 anos da Bossa Nova em agosto de 2018 no Theatro Municipal do Rio de janeiro. Foi um espetáculo inesquecível.
***
Há 50 anos, em agosto de 1958, chegava na Lojas Assunção, em São Paulo, um disco emblemático: o compacto “Chega de Saudade”, de um quase desconhecido baiano chamado João Gilberto. Depois de ouvir a faixa-título de um lado e o baião “Bim-Bom” do outro, o gerente da loja, Álvaro Ramos, não resistiu: quebrou o disco. Indignado com a “porcaria” que os cariocas tinham lhe enviado exclamou: “por que gravam cantores resfriados?”.
Essa história – lembrada pelo escritor Ruy Castro no livro Chega de Saudade – revela uma reação natural a quem estava acostumado com um estilo de cantores brasileiros e que – de repente – fica sem chão quando se depara com algo absolutamente diferente, uma “bossa nova” que estava surgindo para revolucionar a música brasileira e que, posteriormente, viria a influenciar uma enorme geração de músicos do Brasil e do exterior.
O Brasil vivia então um período de crescimento econômico fabuloso com a era JK, a seleção brasileira conquistava na Suécia sua primeira Copa do Mundo de futebol. Com tantas novidades, esse estilo musical tornou mais democrático a possibilidade de novos artistas cantarem sem a necessidade da impostação de voz, tão comum nos grandes nomes da época de ouro do rádio nacional.
O baiano João Gilberto mostrava que era possível fazer boa música cantando baixinho, suave e acompanhado apenas de um banquinho e um violão. Somava-se a esse quadro o início de carreira de grandes nomes da música brasileira como Tom Jobim e do diplomata e poeta Vinicius de Moraes, que serviram como régua e compasso para a novidade musical que – sem eles imaginarem – estava começando a conquistar o mundo.
De lá para cá são seis décadas que consolidaram a moderna batida da MPB. Além dos músicos já citados, no primeiro momento a bossa nova tem nomes fundamentais como Elizeth Cardoso (que também gravou “Chega de Saudade” em 1958, poucos meses antes, mas sem a batida joão-gilbertiana), Carlos Lyra, Marcos Valle, Johnny Alf, João Donato, Nara Leão, Roberto Menescal, Zimbo Trio, Oscar Casto Neves, Baden Powell, Newton Mendonça, Silvia Teles, Os Cariocas e Dick Farney entre outros medalhões do movimento.
Posteriormente, na década de 1960, uma outra legião de grandes músicos foi influenciada por eles, com destaque para Chico Buarque, Joyce, Caetano Veloso, Miúcha, Toquinho, Leny Andrade, Gilberto Gil e Elis Regina. Estes são alguns dos muitos artistas que começaram sua carreira musical com os acordes da bossa nova.
Para comemorar os 50 anos de Bossa nova, em 2008, foram agendados dois concertos no Theatro Municipal do Rio de Janeiro: o primeiro, um encontro de Caetano Veloso e Roberto Carlos; no dia seguinte, uma apresentação com João Gilberto sozinho no palco. Se a apresentação de Caetano e Roberto foi excelente, a noite de João Gilberto foi histórica. Irrepreensível do início ao fim, o “papa” da bossa nova abençoou o público presente no domingo, dia 24 de agosto, com um show perfeito e emocionante que certamente será lembrado para sempre na história da música brasileira.
Logo no início – com seu protocolar atraso (55 minutos!) para o qual ninguém deu bola – João Gilberto começou com uma homenagem ao conterrâneo Dorival Caymmi, recém-falecido, emplacando os sambas “Você já foi à Bahia?”, “Doralice” e “Rosa Morena”. Seu jeito macio de cantar baixinho aos poucos foi invadindo cada canto do teatro silencioso. O respeito obsequioso da plateia agradou o músico que – para surpresa de muitos – estava num daqueles dias inspirado e, melhor ainda, muito bem humorado.
E o show foi acontecendo. Generoso, ele interpretou no melhor estilo voz & violão (que no caso de João fundem-se harmoniosamente de forma indissociável, como se fosse um único instrumento) um vasto repertório (veja o set list logo mais abaixo) que incluía clássicos da bossa ao lado de sambas não tão conhecidos, como o ótimo “13 de ouro” (de Marino Pinto e Herivelto Martins) ou as canções da Sinfonia do Rio de Janeiro “Hino ao Sol”/“O Mar” (compostas por Tom Jobim e Billy Blanco). A cada canção um arranjo surpreendente, uma reinvenção de acordes – como em “Lígia”, “Samba do Avião” ou na belíssima “Retrato em Branco e Preto”.
Depois de vinte músicas, João saiu de cena. Atendendo aos pedidos de bis, ele voltou. E, para surpresa geral, estendeu sua apresentação por mais meia hora. Foi nessa parte que se deu um fato fabuloso. João iniciou o clássico “Chega de Saudade”. O público começou a acompanhar baixinho a canção, no mesmo tom do cantor, que normalmente é arisco a essas “intromissões”. Mas (surpresa!), ele a-do-rou e, após mais duas músicas, virou-se para a plateia e a convidou a cantar “Chega de Saudade” novamente, com ele tocando e fazendo o contracanto. A sensação foi de um transe coletivo, como num mantra, que transformou o Theatro Municipal numa espécie de templo da música brasileira.
Sorridente e feliz da vida, ele disparou: “O problema é que agora eu não quero ir embora”. Mas foi. Retirou-se. O público aplaudiu de pé durante cinco minutos. Na volta, a caminho de Ipanema, da janela do táxi, eu vi o Redentor. Que lindo!
Set List: “Você já foi à Bahia?”, “Doralice”, “Rosa Morena”, “13 de Ouro”, “Meditação”, “Preconceito”, “Samba do Avião”, “Hino ao Sol”, “O Mar”, “Ligia”, “Caminhos Cruzados”, “Não Vou pra Casa”, “Disse Alguém”, “Corcovado”, “Chove lá Fora”, “Nosso Olhar”, “Wave”, “De Conversa em Conversa”, “Desafinado”, “Estate” e “Isto Aqui o que é?”. Bis: “Aos Pés da Cruz”, “Da Cor do Pecado”, “Retrato em Branco e Preto”, “Você Não Sabe Amar”, “Tim Tim por Tim Tim”, “Chega de Saudade”, “Garota de Ipanema” e “O Pato”.
À frente de seu power trio, australiana dá aos brasileiros duas raras oportunidades de ver um artista tocando no auge da carreira
Textos por Fábio Soares (São Paulo) e Luiz Espinelly/Josephines (Porto Alegre)
Fotos por Fábio Soares (São Paulo) e Mayra Silva (Porto Alegre)
Como é bom presenciar in loco um artista independente no auge de sua forma!
Foi este presente o que cerca de mil sortudos tiveram na noite da última quinta-feira (21 de fevereiro de 2019) muito chuvosa em São Paulo. Courtney Barnett estava entre nós e um acontecimento desses, havia de ser celebrado. A abertura desta Popload Gig ficou por conta do quarteto goiano BRVNKS. Com o vocal de Bruna Guimarães, o grupo desfilou, por meia hora, seu indie lo-fi agradável aos ouvidos da audiência. Com três anos de carreira, o que se viu foi uma banda muito segura no palco e sem sentir o peso de abrir o show para alguém do quilate de Barnett. Pouco tempo depois, Courtney surgia no palco da Fabrique ladeada apenas do baterista Dave Mudie e do baixista Bones Sloane. E foi com essa formação de power trioque os primeiros acordes de “Hopefulessness” (do aclamado Tell Me How You Feel, álbum de 2018) foram ouvidos. Com andamento marcial do início ao fim, a balada é uma síntese confessional da australiana em sua letra (“Pegue seu coração partido e o transforme em arte/ Eu não quero/ Eu não quero saber”).
Muito tímida ao microfone e, em certos momentos econômica nos movimentos (o cansaço e o jet lag devem ter pesado após apenas 72 horas de sua apresentação em Houston, no Texas), Courtney parecia estar em transe quando pluga sua guitarra. Declaradamente influenciada por Nirvana, tem em Kurt Cobain seu mentor intelectual e o “encarna” sem cerimônia em algumas passagens em cima do palco. Em “Need a Little Time”, por exemplo, fechava os olhos e refletia sobre sua depressão (“Você parece ter o peso do mundo sobre seus ombros ossudos/ Aguente firme”). Em “Are You Looking After Yourself”, a veia folk e o sarcasmo (“Eu deveria arrumar um emprego, ter um cachorro, casar, ter filhos e assistir a todos os telejornais”) eram extravasados num dos momentos mais descontraídos da noite.
Mas é com sua guitarra distorcida que Barnett sente-se mais à vontade. Isso foi presenciado mais uma vez em SP. Ninguém ficou parado durante a execução de “Pedestrian At Best”, com seu refrão matador (“Me coloque em um pedestal e te decepcionarei/ Diga que sou única e irei te explorar”) em volume altíssimo. Neste momento, a plateia já estava entregue antes do triunvirato do bis: a belíssima “Let It Go”, lançada no álbum Lotta Sea Lice (concebido em 2017, parceria com Kurt Vile); “Kim’s Caravan”, na qual Courtney reafirmava que sua guitarra é sua melhor parceira com as microfonias jogando a seu favor; e a derradeira “History Eraser”, de final apoteótico e as seis cordas tocadas no mais alto volume.
Barnett se despediu e rapidamente saiu do palco. Para ela, mais um capítulo de sua extensa turnê do mais recente álbum. Para nós, a certeza de que são raros nos momentos em que, aqui no Brasil, podemos ir a shows de artistas no auge da carreira e que oportunidades assim não devem nunca serem desperdiçadas. (FS)
***
O rock morreu? Vida longa ao rock!
Apesar do forte calor, o show de Courtney Barnett pela Popload Gig em Porto Alegre (22 de fevereiro de 2019) levou um bom público ao Opinião, tradicional casa noturna da capital gaúcha. A anedota corrente antes do show, na banquinha de merchandising, era que a australiana estava tão bem ambientada em Porto Alegre que estavam vendendo camiseta de “I ❤ CB” – que todos locais leem como “I love Cidade Baixa” (o bairro boêmio de Porto Alegre).
Gauchices à parte, Barnett entrou no palco pontualmente às 21h, sem banda de abertura. O chapéu meio Cachorro Grande do baterista foi o único mau presságio da noite, rapidamente dissipado nos primeiros acordes de “Hopefulessness”, faixa de Tell Me How You Really Feel, um dos melhores álbuns de 2018. A bela canção, de começo suave com andamento marcial, conduziu banda e plateia em um crescente arrebatador, sob luz vermelha como a capa do disco e apresentando as credenciais da banda, com o baterista Dave Mudie e o baixista Bons Sloane fazendo uma cozinha competente para Courtney brilhar na guitarra e no microfone.
Na plateia, a maior parte parecia de jovens saídos da série Sex Education, mas também estavam presentes aquele pessoal com cara de quem vai em loja de disco todo sábado pela manhã. Ou seja, Courtney Barnett jogava em casa e com torcida a favor. No palco, o power trio tocou um pouco mais de uma hora. Com uma estrutura simples, sem telão e apenas com luzinhas tumblrfazendo a decoração, Courtney apresentou suas canções de forma crua, despindo-as dos truques batidos do universo pop e apostando na essência de seu lirismo. Enquanto a banda alternava dinâmicas e dava espaço para longos solos distorcidos, Courtney tocou os principais sucessos do primeiro e do segundo disco – além do bis com uma canção de seu álbum com Kurt Vile. Sem palheta, solando na ponta dos Martens, ela tocou suas Fender (alternou entre vários modelos de Jaguar, uma Strato e uma Tele) como uma guitar heroine, subiu na estrutura da bateria, cantou alto letras confessionais e olhou nos olhos do público, sorrindo com cumplicidade.
Com o mesmo set list do show de São Paulo e sem covers, a australiana apresentou suas músicas de forma menos polida que nos discos. Com um punch extra e alguns momentos de pegada mais forte da banda, Barnett abusou das distorções, evocando microfonias e longos solos, entregando que andou ouvindo Neil Young & Crazy Horse. O que combina bem com sua verve Lou Reediana e deu um sabor diferente aos sucessos indie registrados de forma mais contida nos álbuns.
Pontos altos: o começo com a dobradinha “Hopefulessness” e “City Looks Pretty”; “Nameless, Faceless” e “Depreston”, cantadas em coro pela plateia; e o bis com “Kim’s Caravan”, dos versos “so take what you want for me”, repetido também em coro pelo público enquanto Courtney entregava justamente o que os fãs queriam: uma catarse através do rock’n’roll. (LE)
Set List de São Paulo e Porto Alegre: “Hopefulessness”, “City Looks Pretty”, “Avant Gardener”, “Small Talk”, “Need a Little Time”, “Nameless Faceless”, “Small Poppies”, “Depreston”, “Are You Looking After Yourself”, “Sunday Roast”, “Lance Jr”, “Charity”, “Pedestrian At Best”. Bis: “Let It Go”, “Kim’s Caravan” e “History Eraser”.