Movies

Pedágio

Segundo longa da diretora e roteirista Carolina Markowicz junta a influência do Cinema Novo a outra atuação magistral de Maeve Jinkings

Texto por Abonico Smith

Foto: Paris Filmes/Divulgação

A palavra pedágio vem do latim medieval “pedaticum”, que significa “o direito de pisar em um determinado lugar”. Para exercer esse direito, desde lá atrás precisava ser paga uma quantia e valia para pessoas, animais e mercadorias. Hoje se utiliza mais em relação ao transporte terrestre, sendo a taxa cobrada pelo poder público ou uma empresa concessionária outorgada, para que os investimentos feitos na construção ou na conservação da via possam ser ressarcidos.

Suellen (Maeve Jinkins) acorda todo dia muito cedo e sai de casa antes mesmo do dia clarear. Ela trabalha em uma cabine de pedágio em uma rodovia que passa por Cubatão, cidade da região metropolitana da baixada santista. Todo santo dia sua função é cobrar cada carro que para ali pela cancela, quase sempre trocando dinheiro grosso e muitas vezes ouvindo cantadas sem graça de homens ao volante. Recebe uma mixaria de salário, mora mal e divide a casa com seu filho de quase 18 anos de idade. Quem também passa muito tempo por lá, só para comer e dormir, é o namorado Arauto (Thomas Aquino). O marasmo de sua vida combinado com um bofe aproveitador a tiracolo não a incomodam. Suellen não aceita mesmo é a sexualidade do adolescente, exposta pelo próprio através de vídeos de dublagem gravados toscamente no próprio quarto postados na internet. Enquanto vai levando a vida tolerando Tiquinho (Kauan Alvarenga), Suellen cai no papo de sua amiga de trabalho, a evangélica neopentecostal Telma (Aline Marta Maia), para pagar um curso de cura gay que será ministrado em seu templo por um “pastor que vem da Europa”. Só que o valor é alto e não cabe dentro do orçamento mensal. A não ser que, como é bem comum no Brasil, haja um jeitinho…

É exatamente neste ponto que Pedágio (Brasil, 2023 – Paris Filmes), o segundo longa assinado pela cineasta paulista Carolina Markowicz revela a sua temática principal. Ao contrário do que vem sendo falado por aí e divulgado até na sinopse oficial do filme, esta não é uma obra que finca seus pés na questão de como é ser LGBTQIA+ no Brasil e sentir na pele as dores que vêm do preconceito e discriminação sofridos no dia a dia. Sim, o assunto é importante e norteia a trama paralela do filho da protagonista, inclusive na convivência entre os dois. Só que esta é, acima de tudo, uma obra sobre escolhas. De objetivos de vida, de crenças e de percurso para o futuro. Tiquinho já fez a sua escolha. É firme e determinado dela, sabe bem o que quer e, do alto de sua quase maioridade penal, luta incansavelmente por ela – o que faz de Kauan, outrora incensado nos trabalhos anteriores em curtas, uma grande promessa da dramaturgia nacional. Arauto também tem a dele: ser um bon vivant no meio da malandragem, sem precisar se esforçar em trabalhos convencionais, perder um churrasco com amigos no meio da semana de tarde ou mesmo enrolar a companheira para conseguir benefícios na casa de Suellen. Telma também possui: dubla ser uma pacata e boa esposa de anos e anos para o marido e segue indo aos cultos.

Talentosa diretora e roteirista que é, Carolina coloca em cima da protagonista o foco principal desta questão das opções realizadas em atitudes que podem vir a mudar um futuro próximo. Nem é muito o fato de Suellen se jogar de cabeça nas novas decisões, mas o fato delas serem motivadas por outras pessoas. As escolhas não advêm de sua personalidade. Ela é sumariamente convencida pelo namorado ou por sua amiga para fazer coisas que, segundo eles, irão satisfazer as suas vontades/necessidades e melhorar logo a vida, sem pensar muito nas consequências que podem ser provocadas. Nessas horas, seu filho, que é quem mais lhe dá suporte dias após dia, é o que menos importa e este é o pedágio que lhe cabe pagar. Tudo isso, claro, embalado por mais uma magistral atuação de Maeve, que vem traçando tanto no cinema quanto no streaming uma carreira de intérprete que já a credencia para entrar no rol das maiores atrizes brasileiras deste século 21.

Rodado em dois meses na cidade de Cubatão – famosa por suas fábricas que despejam sem parar uma poluição que acaba contrastando com a beleza da natureza local – este novo filme de Markowicz reforça a sua tendência pela crueza das imagens. Locações reais, looks cotidianos, histórias com muita verossimilhança em diálogos, ações e construções de personagens.  Tem os dois pés ali no terreno do neorrealismo italiano como grande influência na sétima arte desde os tempos do Cinema Novo. Toca, comove, emociona, justamente por saber transformar em um breve momento de entretenimento questões socioculturais, principalmente relacionadas à classe trabalhadora, com altas doses de humanidade. Quase impossível não sair do cinema sem pensar em muito daquilo que a cineasta conta na história.

Music

Gross – ao vivo

Rock’n’roll, uma estrada deserta e nuances musicais: a noite de um show impecável do ex-guitarrista da Cachorro Grande

Texto e foto por Frederico Di Lullo

Era 18 de maio e passava das 20h30 quando peguei a estrada saindo da cidade de Palhoça com destino certo: a Dubai Brasileira. Também conhecida como Balneário Camboriú (ou até mesmo BC), a localidade iria receber a primeira data da turnê por Santa Catarina de Marcelo Gross, que também teria cidades como Joinville e Blumenau no roteiro. As Próximas Horas Serão Muito Boas, segundo álbum da Cachorro Grande, gravado no icônico estúdio Bafo de Bira lá em 2003 e lançado no ano seguinte encartado na “revista do Lobão”, foi a trilha sonora que balançou a trip semanal, numa espécie de culto do que estaria por vir naquela quinta-feira.

Após algumas paradas técnicas, cheguei ao local do show, a charmosa ArtHouseBC. Eu não conhecia o espaço artístico-cultural e fiquei surpreendido positivamente. No local funcionam cinema, auditório, coworking, bar, café, loja e estúdio… TUDO NO MESMO LUGAR E MEIO QUE AO MESMO TEMPO! O conceito é incrível e, por vez, depois de algumas cervejas, era possível fechar os olhos e se imaginar em algum local de Londres ou Amsterdam. Mas que bom que estávamos no sul do sul do mundo e prestes a assistir a um dos maiores músicos da contemporaneidade: o exímio compositor e eterno guitarrista da Cachorro Grande.

Passava das 23h, quando  a banda chegou ao ArtHouseBC e sem muitas firulas e iniciou com “Alô, Liguei” e “Me Recuperar”. Ambos são clássicos da carreira solo de Gross, que estão presentes em Chumbo & Pluma, trabalho de 2017. Com uma plateia ansiosa e em êxtase apesar de pequena, o trio era iluminado não só pela luz do palco mas sim pelo brilho que a banda como um todo emana, capitaneada pela guitarra e a voz de Marcelo. Isso sem mencionar o lendário baterista Julio Sasquatt e o baixista Lucas Chini, que atualmente formam a banda de apoio. Muito talento. Muita luz. Muita energia. Muito rock’n’rollbaby! E, sim, desde o primeiro acorde, desde a primeira nota, todos os presentes ficaram cativados.

Cabe destacar que o atual show de Gross, chamado Tour 50 Anos de Rock, é uma visita a todos os momentos da carreira do guitarrista. Por isso, o clima teve ares de nostalgia. Com isso, ao longo da apresentação, ficou cada vez mais nítida a habilidade excepcional dele na guitarra. Seus solos eram precisos e cheios de paixão. Sua voz rouca e marcante embalou “Eu Aqui e Você Nem Aí”, “Que Loucura”, “Lunático”, “Purpurina”, “Sinceramente”, “A Dança das Almas” e “O Novo Namorado”, dentre outras tantas músicas que viabilizaram o espetáculo. Aliás, a última faixa mencionada foi, pra mim, uma grande surpresa! Afinal de contas, Júpiter Maçã e os Pereiras Azuiz a lançaram em 1995 (mas isso é papo para outra resenha!).

Cada canção, meu amigo, era uma jornada musical repleta de saudosismo e acabou me envolvendo completamente. Em resumo, esta noite de maio em Balneário Camboriú foi uma verdadeira e honesta ode ao rock cantado em português (mesmo com uma cover dos Beatles encaixada no repertório). Performance impecável, presença de palco cativante, clima intimista, interação com o público e cerveja gelada foram os atenuantes de uma experiência memorável para todos os presentes.

No final, aplausos entusiasmados ecoaram na sala do ArtHouseBC. Isso só demonstrou o reconhecimento e o carinho do público. Marcelo Gross não precisava provar nada a ninguém, mas detém genialidade musical e carisma inegável. Sem sombra de dúvida, ele é um dos grandes nomes do rock. Não só o gaúcho, mas sim do Brasil todo.

Quando o show acabou, só restou achar um pico para bater um lanche, pegar a estrada, colocar La Máquina de Hacer Pájaros no bluetooth e depois descansar para acordar cedo e enfrentar o último dia útil da semana. Enfim, só sabia que aquelas próximas horas seriam muito boas.

Set list: “Alô, Liguei”, “Me Recuperar”, “Eu Aqui e Você Nem Aí”, “Que Loucura”, “Carnaval”, “Lunático”, “O Novo Namorado”, “Disfarça”, “Taxman”, “Bom Brasileiro”, “A Dança das Almas”, “Dia Perfeito”, “O Buraco da Fresta”, “Sinceramente” e “Purpurina”.

Music

Floripa Eco Festival – ao vivo

Jorge Ben Jor, Planet Hemp, Baco Exu do Blues, Donavon Frankenreiter, Emicida e outros grandes shows aliados à discussão sobre sustentabilidade

Jorge Ben Jor

Texto e fotos por Frederico Di Lullo

Um festival Massa. Com M maiúsculo. No dia 18 de setembro, todos os caminhos levaram ao Eco Festival, com shows nacionais e internacionais de renome, lembrando até os bons e velhos Planetas Atlântida que rolavam na temporada de verão de Florianópolis na primeira década (e parte da segunda) deste milênio. Como esse é um papo saudosista, esse detalhe fica para outro momento. Vamos, então, viver o hoje e falar um pouco do que vivemos na atualidade. 

Infelizmente, a cidade sofre com acessos restritos e, por isso, naquele sábado chegamos ao Centro de Eventos Luiz Henrique da Silveira quando o Floripa Eco Festival já estava aquecendo todos os presentes. Era a vez de Mike Love, num tremendo pôr-do-sol, agitar a todos com seu reggae, numa perfeita simbiose com o fim de tarde da capital catarinense. Assim, o músico havaiano passou pelos principais sucessos de sua extensa carreira. Sem dúvida, apreciar a performance dele em “Permanent Holiday” e “Human Race” foi um dos pontos altos do evento. E isso que ele estava só começando!

Com uma produção impecável e pontualidade britânica, o Eco Festival continuou com nada menos do que Donavon Frankenreiter. Não se pode deixar de citar aqui que a combinação de surfista e artista é a cara da Ilha da Magia. O cantor mandou um set list com seus maiores clássicos, entre eles as necessárias “Big Wave”, “Free”, “It Don’t Matter” e “Shine”, tudo numa vibe muito especial. Sempre ouvimos que amor de festival tende a ser para sempre. Por isso, acreditamos que casais que assistiram juntos ao show do californiano tendem a ficarem juntos. Mas não foi o nosso caso: pouco antes de Donavon acabar já estávamos posicionados no outro palco para a atração que estava escalada para depois: o aguardado Baco Exu do Blues.

Antes de continuar, não há como deixar de comentar a respeito o objetivo do evento, que une música e sustentabilidade. Numa proposta muito utilizada em 2022, quando muito se fala sobre os impactos de ações da sociedade para um mundo melhor, precisa-se lembrar que, além dos shows de sábado, houve nos dois dias anteriores o Eco Summit. O congresso reuniu conteúdo em prol da sustentabilidade ambiental, por meio de workshops, apresentações, mesas de debate e apresentações de cases de sucesso. Sim, é necessário discutir o entretenimento para além do entretenimento e a Sleepwalkers, empresa que produziu o festival, fez isso de maneira exemplar. Parabéns, amigos!

Baco Exu do Blues

Voltando a aquele sábado, um dos concertos mais aguardados iniciou, apresentando as músicas do recente trabalho Quantas Vezes Você Já Foi Amado?, lançado em janeiro deste ano. Foi assim que as mais de 22 mil pessoas presentes cantaram as já clássicas canções “20 ligações”, “Samba In Paris”, “Lágrimas” e “Mulheres Grandes”. Sim, estamos falando de Baco, caso você não tenha entendido! Também não faltaram “Flamingos”, “Hotel Caro” e “Me Desculpa, Jay Z”. Todo mundo cantou e dançou junto. Foi uma vibe incrível!

Logo após chegou a vez de apresentar a prata da casa. Muita gente que não mora em Floripa ou até mesmo nos limites de Santa Catarina se perguntava quem era essa tal de Dazaranha. Mas os veteranos nativos jogavam em casa e fizeram um show incrível, como sempre, impressionando quem não os conhecia e entregando a qualidade de sempre para quem já os acompanha há mais de 20 anos. E, acredite, praticamente todos os presentes cantaram boa parte dos refrãos das músicas. No repertório não faltaram clássicos como “Fé Menina”, “Salão de Festa a Vapor” “Vagabundo Confesso” e “Com ou Sem”. Pelo menos pra nós, contudo, o ponto alto foi “Afinar as Rezas”, quando se presenciou a maior interação com a plateia. E ainda tinha mais coisa para apresentar…

Sim, apesar do cansaço, como ficar parado na hora de Jorge Ben Jor? E se tem algo que o morador do Copacabana Palace sabe é fazer apresentações memoráveis. Acompanhado por uma banda afiada, Ben Jor colocou todos os presentes para dançar com clássicos como “Take It Easy My Brother Charles”, “Oba, Lá Vem Ela”, “Menina Mulher de Pele Preta”, “Chove Chuva”, “Mas Que Nada”,  “Balança a Pema”, “Magnólia”… Poderíamos citar todo o repertório e ainda faltariam adjetivos para descrever Jorge. O tempo passa e, aos 83 anos, cada vez fica mais evidente que ele é um alquimista e tem a pedra filosofal da imortalidade do corpo –  porque a do trabalho está mais do que assegurada.

Minutos depois, o público foi à loucura quando Emicida iniciou sua performance com uma introdução em vídeo necessária nos tempos atuais. Ele não veio sozinho também: reuniu em cima do palco os maiores nomes do rap nacional na atualidade: Criolo, Rael e Rashid. Cada um no seu momento, participaram do show emplacando os clássicos como “Levanta e Anda”, “Passarinhos”, “AmarElo”, “Libre”, “Paisagem” e “Eminência Parda”. De repente, Marcelo D2 e BNegão se juntam à trupe para uma performance incrível em conjunto na música “Grajauex” de Criolo. Mais uma das cenas que cravaram o festival no coração de todos os presentes.

Tinha tempo para mais? Sim. Eram quase duas da madrugada quando a ex-quadrilha da fumaça pousou no Eco. Era o Planet Hemp, mais Hemp do que nunca! Não dá para negar que é uma das nossas bandas favoritas, seja pela mistura entre rap, rock, reggae e hardcore, tão característica pela sonoridadeou pela ideologia. O fato é a trupe comandanda por BNegão e D2 incendiou tudo até a última ponta, num show fod@ pra c@r@lho, com uma vibe renovada, que nos traz a esperança de um mundo melhor. Começando com “Não Compre, Plante!” e passando por músicas como “Legalize Já“, “Maryjane”, “100% Hardcore”, além da cover de “Crise Geral”, do Ratos de Porão, a banda tirou as últimas forças de energia que ainda restavam da galera presente, fechando o line up com chave de ouro.

Sem dúvida, o Eco Festival foi um dos festivais do ano. E já foi anunciada sua próxima edição, para 2023. Ficamos ansiosos e expectantes por novas experiências musicais. Agora é esperar e descansar.

Movies, Music, Series, TV

The Beatles: Get Back

Os bastidores do Rooftop Concert, que marcou a despedida da banda em show feito no terraço da Apple e chega agora aos cinemas brasileiros

Texto por Taís Zago

Fotos: Disney+/Divulgação

The Beatles: Get Back (Reino Unido/Nova Zelândia/EUA, 2021 – Disney+), é uma despedida. É sobre as sessões de filmagem dos ensaios dos Fab Four, em janeiro de 1969 no Twickenham Studio (depois no Apple Corps Studio), para o novo álbum com 14 músicas e para um projeto especial/documentário, que, em teoria, deveria marcar a volta da banda, mas que culminou com o fim dela com o famoso último show no terraço da AppleCorps em Londres. São três episódios divididos pelos 21 dias de filmagens, num total de 468 minutos de duração. O último deles, o tal Rooftop Concert propriamente dito, chega aos cinemas brasileiros em sessões especiais espalhadas por redes de dez cidades até o próximo domingo, 13 de fevereiro.

(ACHTUNG! Daqui dá pra pular direto pras conclusões finais para quem não tem paciência para as minhas chorumelas de fã ou não suporta SPOILERS de qualquer tipo).

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Tá aí ainda? So here we go

Primeiramente (dedinho em riste!), sou beatlemaníaca. Daquelas que detestou o filme piadista Yesterday ou a romcom Across The Universe, que lê tudo que acha sobre os caras e ama a música desde sempre (ou pelo menos desde que aprendi o que era música na infância). Então este texto não é isento de idolatria, não é imparcial e muito menos é justo com todos os envolvidos. É passação de pano. TEJEM AVISADOS!

“Segundamente”, quero deixar claro que não sou lá muito fã do estilo bigger/brighter/better/greater de Peter Jackson. O cara adora um filme que nunca acaba. As 7+ horas de O Senhor dos Anéis me pareceram mais longas do que ler a trilogia, que, casualmente, eu adoro e tem um local especial no meu coraçãozinho nerd

EPISÓDIO 1 – Dias 1 e 7

Começo logo com papo de groupie: o fenômeno Yoko Ono não pode ser ignorado. Ela estava em todo o lugar. Tava ali na frente da câmera costurando, comendo, escrevendo, pintando, escondendo a cara nas filmagens, cutucando o Lennon, deitando no ombro dele, sentada junto no banco do piano ou numa cadeira colada com a dele. Ela tava ali, quase como uma segunda pele do John. A única pessoa fora da banda e fora da equipe de produção com essa proximidade toda em todos os 21 dias de filmagens. Linda Eastman, assim como outras moças, também aparece, mas fica tirando fotos de longe, observando. É uma presença relaxante. Ela não reivindicou pra si quaisquer protagonismo e meio que alfineta a Ono nisso (tenho que registrar!). E não, não se trata de machismo: poderia ser o filho, a mãe, o namorado de qualquer um ali. Me pareceu um tanto intromissivo e inconveniente.

Já nos primeiros 15 minutos do episódio (e nos 15 últimos, com a Ono berrando no microfone no chamado “Freak Out”) isso me incomodou. Aí eu me perguntei: forçaram a barra pra provar a teoria do efeito Yoko Ono na edição? Quiseram tirar o fiofó do George, do Paul e do próprio John da reta na culpa pela separação? O Lennon obrigava a Yoko a ficar junto dele pra receber o tempo todo aprovação? Ou a relação dela com o Lennon era realmente a de dois carrapatos insuportáveis que não davam um peido sem o outro atrás cheirando? Eu não sei a resposta. Mas me deu incômodo me imaginar no lugar dos outros três músicos que estavam ali. Talvez porque eu seja uma pessoa que detesta ter alguém olhando por cima do meu ombro ou colado em mim enquanto trabalho. Se Lennon e Yoko fossem hoje um casal, acho que seriam daqueles com perfil compartilhado no fêice chamado “Yonnon/Leko”. Not a good picture. Pelo menos não para mim, que curto não ter um gêmeo siamês como par romântico. 

Eu também vi aqui claramente quatro caras que se sentem meninos e sentam no colo das suas mulheres (ou pelo menos John e Paul). Sim, tem aquela infantilização masculina clássica. Os Beatles não foram os primeiros e nem os últimos nisso. E não estou normalizando comportamento tóxico. As mulheres são forçadas em posições desconfortáveis, onde fatalmente são pintadas como bruxas por orbitarem em torno de seus reizinhos (que demandam isso delas).

Intrigas/fofocas/brigas à parte. Que banda, meus amigos! Que banda! Quem nessa vida já assistiu a alguma gravação, ou ensaio ou mesmo uma jam de músicos sabe do que tô falando. Eles eram uma fonte exuberante de criatividade e talento. O som não mente. A gente entende a grandeza dessa instituição que começou como uma boy band produzida pelo Brian Epstein. A gente escuta e vê, é trabalho, é cansaço, é um estresse tremendo, mas também é prazer. A gente enxerga isso nos olhares trocados, nas discussões, nos sorrisos, nas lembranças. O talento flui dos dedos e das bocas.

Mas sim, também é (era) NEGÓCIO. Dinheiro pra muita gente. Muito dinheiro. As trivialidades do backstage de uma banda mundialmente famosa: onde fazer show? Qual figurino? Com ou sem barba? Qual música? Vale cavocar na caixinha das esquecidas? E as lembranças que elas trazem?

Perto do final do episódio, George abandona a banda. John atira: “Se ele não voltar, chamamos o Clapton”. Fade out.

EPISÓDIO 2 – Dias 8 a 16

A pressão sobre a banda é imensa, principalmente a vinda da parte do diretor das filmagens, o tal mala, wannabe vilão do charuto Michael Lindsay-Hogg. Em 1969, as pessoas ainda não viviam em tempos onde se tem responsabilidade emocional (na maior parte, ainda elas não têm). Os produtores não medem as palavras, dão na lata que já faz quatro anos desde o último álbum-show e que esse tem que dar certo. Paul e John já estão afastados. John vive na bolha cor-de-rosa dele com a Yoko. Paul ressente o fato da banda não funcionar como um relógio suíço. Ringo e George não têm o mesmo protagonismo. Mas George foi o primeiro a levantar acampamento, principalmente pelas implicâncias de Lennon.

Numa reunião com a presença de Linda, rola uma reclamação sobre a Yoko falar pelo John. Não sei se foi proposital (por estar na frente das câmeras) ou não. Paul sai em defesa do young love dos dois. Fica claro que John tem dificuldades de conciliar seu amor pela Yoko e a dedicação necessária para os Beatles. O problema é, obviamente, o conflito de John. Alguém curte que alguma pessoa fale no lugar de um colega de trabalho/amigo? Eu não curto. E detesto que falem por mim. Talvez John não tivesse coragem de expor o que realmente sentia aos colegas de banda (chegou a pincelar esse assunto numa conversa com Paul) e usou Ono pra isso – ou não. Aqui as versões divergem, dependendo do testemunho. Porém fica claro que todos se sentem incomodados com a onipresença e a interferência da Ono. Machismo? Não sei. Nesse ponto restaram dois beatles: Ringo e Paul. E ninguém parece saber como continuar. Linda tenta participar das discussões e Paul rebate: “Fique fora disso, Yoko!”. Todos riem, inclusive Linda.

Outro take, outro dia. Do nada, aparece Peter Sellers pra um chit chat com John, Ringo & Paul. Assim como aparece, também some. Nonsense e encheção de linguiça. Aqui Peter Jackson mostra a sua incapacidade de síntese.

Os Beatles pleiteam a volta de George e John e mudam as gravações para os estúdios da Apple Corps e abandonam a ideia do especial para a TV. As coisas parecem melhorar. 

Ear candy pros fãs: começam as gravações, e a gente se sente um mega stalker adentrando solo sagrado. “Don’t Let Me Down”, “She Came In Through The Bathroom Window”, “Oh Darling”, “Get Back”, “Across The Universe”, “Dig A Pony”, “The Long And Winding Road”, “I’ve Got a Feeling”, “Two Of Us”, “Let It Be”. Tem tudo ali, como sai, como foi criado. Assim como a aula sobre centenas de artistas (muitos de blues) que inspiraram o som dos Fab Four. Lennon/McCartney é a dupla criativa dos sonhos (pelo menos para mim), George também tem suas participações, mas Ringo é quase um baterista contratado, sua contribuição não é extensiva. Se isso já não fosse claro antes, fica muito óbvio em “Get Back”. Assim como a assimetria das suas sobrancelhas.

Mas a força motriz, que finalmente impulsiona as gravações, chega na figura de Billy Preston (tecladista de Little Richard). Amigo de longa data dos Beatles (ainda do tempo da turnê em Hamburgo), ele assume o piano e parece resolver o último impasse técnico-criativo nas gravações. Oficialmente, Billy passou no estúdio apenas pra dar um “oi”. E ficou. Billy vira o quinto beatle no álbum. 

No impasse sobre o show/apresentação ao vivo para a TV previsto no começo das filmagens, todas as sugestões dadas são abandonadas, para o descontentamento de Paul. O que vejo é que ele simplesmente não queria que a experiência acabasse sem uma apresentação da banda. Interesse comercial? Apego saudosista? Whatevah. Achei fofo, sim. No final, alguém surge com a ideia de fazer o show no rooftop da Apple Corps. Paul se entusiasma na hora.

EPISÓDIO 3 – Dias 17 a 22

O terceiro episódio inicia com um raro momento somente entre Ringo e George, quando Ringo apresenta pra ele “Octopus’s Garden” ao piano. John chega e assume a bateria. Mais um clássico surgindo da jam das filmagens para o Abbey Road de 1969 (não tô citando nem de longe tudo que os quatro nos apresentam nessas oito horas de documentário… Watch and hear!).

Heather visita o estúdio com Paul. Primeira e única criança a fazer aparição no reality. Tem momentos fofura dela com a banda, inclusive no colo de Paul com ele tocando “Let It Be” ou brincando na bateria de Ringo. Mas assim como aparece ela some de novo e daí temos pela terceira vez (uma por episódio) a Yoko Ono berrando desafinada no microfone, no que chamam de “Freak Out”(imagino que fosse um exercício de descontração para todos). Pessoalmente esse seria o momento que eu, estando na produção, sairia pra fumar um baseado na rua ou tomar um rivotril. Imagino que tenha muita gente que deva achar os grunhidos e gemidos da Ono uma performance poderosa e libertadora. Count me out, eu não acho.

As discussões em torno dos aspectos técnicos das gravações são incessantes. Principalmente Paul mostra insatisfação com os PAs. A captação do som não é satisfatória: os quatro reclamam que não se escutam. Paul se coloca o tempo todo sob pressão e, como não teria como deixar de ser, quem se coloca sob enorme pressão exerce essa mesma pressão nos outros. Paul é um perfeccionista. Ainda não enxergo a pura ambição financeira, apenas a (auto)exigência artística. Portanto, acusar Paul de pensar apenas nos Beatles como uma “empresa” (como ele é frequentemente acusado) é um tremendo erro de julgamento (do ponto de vista de uma fã).

George apresenta “Something”, na qual ele trabalhou nos últimos seis meses. E a gente se derrete escutando. Só não derrete quem é feito de pedra diante de tanta doçura. Billy Preston testa um stylophone trazido pelo John ao estúdio. O mesmo modelo que dei de presente pra alguém num passado longínquo, o prateado original. Get Back is also forcing me back to old memories. Faz parte.

Paul fala: “O melhor de nós sai quando estamos sob pressão. With our backs against the wall”. Não acho que isso se aplique aos quatro da mesma forma. E, contrariando expectativas, John concorda com Paul. O ponto de divergência parece ser bem mais George. Ringo segue sendo Ringo, entrega o que se espera dele sem drama e sem crises. John quer mais pelo menos seis semanas no estúdio.

Dia 20 das gravações e apenas sete músicas são consideradas “prontas”. Michael, o “diretor” do filme, é uma figura extremamente irritante. Vemos aqui os tempos pré-reality/documentário de música, quando a expectativa é apresentar uma imagem polida e ordenada da banda. George não quer subir no terraço para a apresentação, contrariando os outros três que curtiram a idéia. Eles começam a ensaiar para o show.

Abbey Road encontra Let It Be. George quer partir para a carreira solo. “Fuck all that, I’m gonna do ME for a bit.”

Chega o dia do antológico Rooftop Concert. Câmeras foram posicionadas no prédio do outro lado da rua da Apple Corps. Dentro do estúdio, Glyn Johns (engenheiro de som) se prepara para gravar a apresentação. As pessoas começam a se juntar em telhados e na rua em frente ao prédio e a espicharem pescoços nas janelas. Em meia hora de show, a polícia londrina recebe 30 chamados de perturbação do silêncio. A produção faz o que pode pra impedir que os coppers invadam o terraço e acabem com a festa.

A partir daqui nem tem como narrar mais nada. Só ouvir mesmo. Esse spoiler eu não dou. É só arrepios.

The End.

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CONCLUSÃO (pulem pra cá se vocês não tiveram saco pro textão):

The Beatles: Get Back é sobre reminiscências. É uma espécie de ajuste de contas poético. Me senti uma penetra. Mesmo sem estar ali na cadeira entre Paul e John (como a Yoko Ono aparece em vários takes). Eles tinham um mundo só deles, por mais que divergissem em quase tudo. E eu admiro essa conexão, mesmo sabendo do risco e da intensidade desse tipo de comprometimento e suas consequências.

A qualidade de som e vídeo, a maestria de combinar o som com as imagens é indiscutível. É uma obra impecável (não esperaria diferente dessa parceria Disney/Jackson). Geral anda chamando Get Back do “Melhor Reality do Mundo”. Pra mim vai além, é uma documentação histórica.

Vale a pena, mas só pros fãs (tanto dos Beatles como do processo de criação musical). O que já inclui MUITA GENTE. 

Quem tem ranço dos Beatles ou não tem paciência para o formato “ensaio”/reality involuntário, já aviso: fica longe. Tu vai dormir.

Movies

Georgetown

Christoph Waltz acerta em sua estreia na direção ao dar uma demonstração na prática como tornar mentiras convincentes

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Paris Filmes/Divulgação

Filme de estreia de Christoph Waltz na cadeira de diretor de cinema, Georgetown (EUA/Áustria, 2021 – Paris FIlmes) retrata a história de um, se muito, anti-herói – também interpretado por Waltz, ator imortalizado como o personagem Hans Landa, de Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino. Aqui, ele é Ulrich Mott, um diplomata de sua própria ONG financiado – e tutorado – pela esposa Elsa Breht (Vanessa Redgrave). Quando ela, já com seus 91 anos, é encontrada morta em seu apartamento, o também general de brigada do exército iraquiano é considerado o principal suspeito. Começam, então, as investigações sobre o passado de Mott.

O filme é escrito por David Auburn e inspirado livremente em um artigo jornalístico sobre uma história real bem similar a esta. Em seu roteiro, bem como na mise en scène de Waltz, o longa-metragem convida o espectador ao ceticismo a todo momento, ilustrando de maneira muito bem-humorada o conceito de pós-verdade. Somos constantemente apresentados a exageros, narrativas falaciosas e mentiras descaradas, que são a fundação dos feitos de Mott. Nessa teia de dúvidas, Waltz imprime um protagonista muito carismático, que encontra tamanho eco na química com Breht que assistimos suas manobras com entusiasmo e, por vezes, esquecemos sua suspeição.

A arquitetura sutil das mentiras (ou pós-verdades) de Mott é confrontada com igual delicadeza – seus dois “antagonistas”, a enteada Amanda (Annette Bening) e o advogado Volker (Corey Hawkins), tratam-no de maneiras muito distintas, mas nunca recebemos diálogos condescendentes. Quando interagem entre si, prova-se como a figura de Ulrich é capaz de suscitar questionamentos a qualquer um, a todo momento.

Em seu longa de estreia, Waltz não brilha com um formalismo ímpar, quadros e movimentos dinâmicos ou um maneirismo que salta os olhos. Pelo contrário, sua abordagem à mise en scène é, por vezes, convencional, restando à montagem das sequências, construída por Brett M. Reed, o frescor do novo diretor. Ele demonstra cada passo de seu personagem rumo ao sucesso político com foco naquilo que costuma cair nas salas de edição. A elipse criada por sua direção omite, precisamente, nos diálogos mirabolantes e argumentos que Mott usou para receber o dinheiro de George Soros, Robert McNamara e afins. Waltz se interessa em mostrar-nos o nervosismo da cozinha durante um jantar, até mesmo o papo nervoso com a secretária antes de uma reunião.

Georgetown apresenta momentos brilhantes de demonstração prática de como se constroem as mentiras convincentes, especialmente em meio político. Contudo, para uma análise frutífera de sua construção de linguagem, são necessários muitos spoilers, o que torna esse caminho textual inviável aqui. No entanto, à medida que se acostuma com a imprevisibilidade, é possível enxergar padrões narrativos tornando a história previsível. Se no começo Georgetown prende o público com redes bem amarradas de versões (verdadeiras ou não), seu arco é concluído com cartas que já víamos antes de expostas e um ritmo aquém dos minutos iniciais.