Movies, Music

Nosso Sonho – A História de Claudinho & Buchecha

Não há como não se emocionar com a trajetória de sofrimento e perseverança da dupla que levou o funk carioca a outro patamar

Texto por Abonico Smith (com colaboração de Luciano Vitor)

Foto: Manequim Filmes/Divulgação

Na segunda metade dos anos 1980, quando o hip hop se popularizou nos Estados Unidos para muito além dos guetos, seus versos também sofreram um processo de transformação. Passaram das crônicas do dia a dia de seus habitantes – que variavam entre a celebração das festas dos finais de semana ao vício em drogas – para críticas sociais bem mais pesadas em profundas, retratando preconceito racial e os frequentes confrontos violentos com a polícia pelas ruas dos bairros de periferia. Até que o gangsta rap tornou-se praticamente sinônimo desse gênero musical.  Entretanto, uma turma oriunda de Miami e região começou a fazer sucesso ao optar por outra vertente lírica: a temática sexual, muitas vezes de modo bem explícito.

Logo, o miami bass – o nome foi dado por conta dos graves pesados embalados por uma batida eletrônica minimalista extraída de uma Roland TR-808, a mesma utilizada por nomes clássicos do electro como Afrika Bambaataa e Mantronix  – foi o incorporado ao léxico sonoro dos bailes funk realizados nas favelas e morros do Rio de Janeiro por equipes de som como a Furacão 2000 (que também investia em programas de TV). A malícia e a malemolência do jeito carioca de ser encontraram identificação imediata e então o funk caiu no gosto do carioca, a ponto de se tornar uma nova vertente musical acoplando o gentílico ao batismo.

Com o Plano Real e a troca definitiva do formato usado pelo mercado fonográfico (os compact discs substituindo os vinis nas lojas e se multiplicando feito chuchu na serra nos ambulantes com produtos piratas), o funk carioca logo cruzou fronteiras tanto estaduais quanto socioeconômicas, emplacou os primeiros hits nas rádios de todo o país e fabricou seus primeiros ídolos, como Abdullah, Mr Catra e Cidinho & Doca (“Rap das Favelas”). Aos poucos, por causa de linhas melódicas mais adocicadas e letras de cunho romântico, uma turma instaurou o segmento do funk melody. Assim se consagraram MC Marcinho (“Glamurosa”, “Garota Nota 100”) e Claudinho & Buchecha (“Quero Te Encontrar”, “Só Love”). Esta última dupla chegou a ultrapassar a marca do disco triplo de platina (750 mil cópias) com os dois primeiros álbuns e duplo de platina (500 mil) com o seguinte. Tudo isso num espaço de apenas três temporadas, entre os anos de 1996 e 1998. O quarto trabalho, registrado ao vivo e com repertório que pegava o melhor já feito até então, foi lançado no comecinho de 1999 e ganhou o disco de ouro (100 mil).

Onipresentes em quase todos os programas musicais da TV (inclusive os mais famosos, como os de Faustão, Xuxa, Gugu, Hebe e Eliana), os dois amigos do complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, voltariam a experimentar o gostinho de mais um hit nacional, “Fico Assim Sem Você”, composta pelo funkeiro pioneiro Abdullah. A letra citava duplas e dobradinhas impensáveis se rompidas (futebol sem bola, Piu-Piu sem Frajola, circo sem palhaço, beijo sem amasso, Romeu sem Julieta, queijo sem goiabada) para falar sobre solidão e incompletude. Contudo, como uma espécie de premonição (tão involuntária quanto sorrateiramente certeza), havia aqui também um verso como “Buchecha sem Claudinho”. A faixa foi incluída no sexto álbum Vamos Dançar, lançado no primeiro dia de abril e 2002. Pouco mais de três meses depois, ao retornar de uma apresentação na cidade paulista de Lorena, situada no Vale do Paraíba, próxima do sul do estado do Rio de Janeiro, veio a tragédia: o carro de propriedade de Claudinho saiu da estrada naquela madrugada chuvosa de 13 de julho e chocou-se violentamente contra uma árvore. O cantor, que dormia no banco do carona, morreu na hora com o impacto do acidente. A van em que estavam Buchecha e o resto da equipe dos artistas, viajava logo atrás. Encerrava-se desta maneira a trajetória de glória, fama e conquistas de uma das duplas mais queridas da música brasileira dos anos 1990.

Nosso Sonho – A História de Claudinho & Buchecha (Brasil, 2023 – Manequim Filmes) chega nesta semana aos cinemas justamente para contar esta trajetória. Da sólida amizade de infância ao instante fatal, passando pelo sonho adolescente de vencer na vida (fosse como artistas ou, no caso de Buchecha, trabalhando com carteira assinada como office boy) e superar traumas pessoais ligados a problemas de violência familiar e a tênue proximidade com o crime. De um lado o garoto expansivo e descontraído, que se joga nas atividades e inventa soluções criativas para fazer as coisas darem certo (como na já famosa cena do orelhão público servindo como telefone da “firma de agenciamento artístico”). Do outro, um guri mais tímido e racional, mas não menos talentoso e habilidoso com as palavras (a ponto de procurar e achar no dicionário termos nada usuais como abjudicar, só para usar em suas letras). Assim, a vida de Claudio Rodrigues de Mattos e Claucirlei Jovêncio de Sousa é contada em quase duas horas de maneira leve, descontraída e tão certeira quanto as canções gravadas por eles.

A química entre os dois protagonistas é tão impressionantes quanto a dos biografados. Poucas vezes, inclusive, foi visto no cinema nacional uma interpretação tão visceral quanto a de Lucas Penteado na pele de Claudinho. O jeito despachado e de eterno moleque, a língua presa, o sonhar que se permite voar alto e ir atrás para cavar as oportunidades e consegui-las. Mesmo não sendo o foco maior na narrativa, acaba por hipnotizar qualquer espectador. Já o contido Buchecha de Juan Paiva também cativa e conquista um lugar especial para quem assiste ao filme. Dividido entre o temor pela instabilidade da vida de artista e o grande respeito às responsabilidades e obrigações carregados junto com o status social de sua profissão (inclusive na hora de compor versos de pura genialidade como “controlo o calendário sem utilizar as mãos”), o jovem também narra várias cenas e tem sua vida pessoal mais esmiuçada no roteiro. Suas dificuldades são transpassadas na tela diretamente ao coração de todos nós, principalmente na turbulenta relação com o pai, que junta na mesma equação amor, perdão, abusos e sofrimento. Curiosidade: os dois atores trabalharam juntos em Viva a Diferença, a mesma (cultuada e bem-sucedida) temporada de Malhação que revelou a forte união em cena das cinco atrizes que depois viriam a fazer a série As 5ive.

O time de coadjuvantes também brilha. Tal como Lucas, Nando Cunha cresce nas cenas intensas em que faz o Buchechão, muitas delas também envolvendo a paixão pela música. Antonio Pitanga (Seu Américo, o dono do bar frequentado pelo pai de Claucirlei); Tatiana Tiburcio (a mãe, Dona Etelma, que sempre quer imprimir ao adolescente Buchecha uma vida correta e digna); Lellê e Clara Moneke (as namoradas/esposas dos astros, em pequenas grandes pontas); Marcio Vito e Isabela Garcia (Seu Toco e Dona Judite, respetivamente o patrão e a chefe do jovem office boy) abrilhantam o elenco com atuações fidedignas. Se o roteiro não sai muito do trivial, o diretor Eduardo Albergaria aproveita diálogos, interpretações e pequenos trechos musicais (cantados pelos próprios Lucas e Juan, diga-se) para fazer seu filme voar junto com a dupla de funk melody.

Acompanhar todo o corre vivido por Claudinho & Buchecha faz a gente traçar paralelos com a perseverança, a luta, o sonho e o sofrimento de outros artistas que vieram do underground da música brasileira, lendas como Cartola e Lupicínio Rodrigues ou gente contemporânea como Negro Leo e Lê Almeida. O longa sobre a inocência e a descoberta de um novo mundo para quem veio de uma das muitas comunidades regionais sem a assistência do poder público é um dos mais belos e emocionantes enredos cinematográficos nacionais deste ano.

Movies

No Calor da Noite

Drama protagonizado por Sidney Poitier discute o preconceito racial no sul dos Estados Unidos em mostra clássica do festival Olhar de Cinema

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: United Artists/Divulgação

O Olhar de Cinema, que é o Festival Internacional de Cinema de Curitiba, foca em novos olhares e lançamentos em suas mostras principais, mas também oferece a icônica Olhares Clássicos, revisitando a história do cinema em busca de recortes dignos de nossa percepção. Neste ano, além de Jeanne Dielman e A Rainha Diaba (ambos com críticas publicadas no Mondo Bacana – leia aquiaqui, respectivamente), a seleção contou com o casal Straub-Huillet, Carlos Saura e No Calor da Noite (In The Heat Of The Night, EUA, 1967 – United Artists), clássico drama policial de Norman Jewison com Sidney Poitier.

Primeiro filme cuja fotografia ilumina corretamente a pele negra, esta é a história do policial Virgil Tibbs (Poitier), que é detido e maltratado pelo departamento de polícia de Sparta, uma pequena cidade no sul racista dos Estados Unidos. A contragosto, o chefe Gillespie (Rod Steiger) aceita a ajuda de Tibbs em um caso complexo que se mostra incapaz à equipe amadora da cidade: o empresário Colbert, que estava prestes a inaugurar uma fábrica no município, é encontrado morto na madrugada. 

Sétimo dirigido por Norman Jewison em apenas cinco anos de carreira, No Calor da Noite é composto pelo melhor da narrativa clássica norte-americana, amparada pelas composições eletrizantes de Quincy Jones e a fotografia de Haskell Wexler, que abusa de um claro-escuro tipicamente neonoir e torna a câmera sempre parte da ação do filme. No solo dos descendentes dos confederados, os espaços fechados e sombras duras oprimem a figura negra impassível que é Poitier. Não à toa, demoramos quase metade do filme para vê-lo nas ruas de Sparta durante o dia. 

A atuação de Poitier é central e sua seriedade e assertividade contrastam em tema àquilo que o longa-metragem tenta exprimir em forma. Tibbs só consegue fazer seu trabalho porque ele interessa à esposa de Colbert (Lee Grant) – ou seja, o racismo só “pausa”, pois não acaba, por conveniência da classe dominante. Este é um ponto-chave, pois No Calor da Noite não é um filme que se ancora apenas no conflito racista entre Norte e Sul. Mesmo após a Guerra Civil americana, que termina com a dissolução da confederação escravagista, os estados perdedores continuaram com uma cultura largamente agrária e racista. Por outro lado, os estados do Norte gozaram de maiores avanços socioeconômicos, com ênfase à segunda fração desse termo. 

Senhor Tibbs, como é chamado em seu estado natal, tem mais experiência, mais cultura e, claro, muito mais salário que os policiais de Sparta. É a mão preta de Sidney Poitier que desvela os mistérios da trama e seu olhar irascível que insiste em corrigir os erros da incompetência branca. Enquanto isso, o povo negro do município é visto em situações marginais, quando não na lavoura de algodão de Endicott, um dos antagonistas do filme e claro ex-senhor de escravos da região. A fábrica de Colbert, que também veio do Norte, promete mudar essa dinâmica, garantindo 50% dos postos de trabalho para pessoas pretas. De um jeito ou de outro, a lógica colonial sulista é ameaçada pelo avanço imparável da revolução econômica do pós-guerra nos Estados Unidos. O capital é uma força impassível, que dissolve, de um jeito ou de outro, a marginalidade negra na região – mas só o faz para beneficiar-se, fazer uso da mão de obra.

Este é o grande trunfo de No Calor da Noite, sua capacidade de explicitar um conflito central à industrialização americana do século 20. Aqui no Brasil, o filósofo Roberto Schwarz coloca essa tensão entre metrópole e colônia como um dos mais importantes para a definição do que é ser brasileiro. Se adotamos a hipótese deste filme, os Estados Unidos já tomam essa questão como resolvida: o que importa, acima de tudo, é que todos estejam à mercê do capital da forma que mais lhe convém. No fim, o racismo só “se resolve” quando beneficia a elite branca. 

Music

RPM

Luiz Schiavon, que faleceu aos 64 anos, foi o principal responsável pela popularidade do sintetizador na música brasileira dos anos 1980

O RPM em 1985: Fernando Deluqui, Paulo Ricardo, Luiz Schiavon e PA

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Divulgação/CBS

Na manhã da última quinta-feira, 15 de junho, recebemos a notícia da morte de Luiz Schiavon, tecladista e fundador do RPM, aos 64 anos. Além de ser precoce, é uma perda enorme para a música brasileira, uma vez que Schiavon foi um dos grandes nomes – talvez o maior – da inserção do sintetizador nas paradas pop dos anos 1980 em diante. Ele não foi exatamente o pioneiro, mas estava neste momento peculiar do tempo, no qual o instrumento de teclas se uniu à produção em escala cada vez mais massificada. A bordo do RPM, grupo que ele fundou em 1983, Schiavon assumiu condição de protagonista criativo, elaborando o conceito da banda e seu direcionamento musical.

Com a chegada do vocalista Paulo Ricardo – que também assumiria o baixo – um ano depois e mais as presenças de Fernando Deluqui e Paulo Pagni (conhecido como PA) na guitarra e na bateria, o RPM iniciou sua produção de canções, que resultaria num bom contrato com a CBS da época (hoje Sony) e num álbum, que se chamou Revoluções Por Minuto, lançado em 1985. É possível dizer que o quarteto se tornou, ainda que por cerca de um ano e pouco, a banda mais importante do Brasil em termos de execução e vendas de discos. Isso se devia à figura de Paulo Ricardo, que impunha doses generosas de sensualidade em suas interpretações e, sim, à qualidade das canções apresentadas.

Deste primeiro trabalho, o grupo cravou seis singles nas paradas, “Louras Geladas”, “Rádio Pirata”, “A Cruz e a Espada”, “Olhar 43”, “Revoluções Por Minuto” e “Juvenília”, que tocaram em todas as rádios e programas de auditório do país entre março de 1985 e todo o ano de 1986. A estabilidade econômica do Brasil à época, materializada pelo Plano Cruzado, turbinou as vendas deste primeiro álbum e assegurou o lançamento acelerado do segundo, Rádio Pirata – Ao Vivo, que saiu no fim de 1986.

Com este disco gravado ao vivo, o RPM tapava a lacuna da demanda por mais canções do grupo, que, exausto após turnês subsequentes por dois anos, estava esgotado e à beira do fim por conta dos desentendimentos internos. Ainda que parecesse uma usina de sucessos imparável, o RPM era palco de disputas criativas, sempre com Paulo Ricardo desejando inserir mais elementos roqueiros e Schiavon pendendo a balança para os timbres derivados do tecnopop e do new romantic, então vigentes na produção pop anglo-americana. Mesmo assim, a presença de covers de Caetano Veloso (“London, London”) e Secos & Molhados (“Flores Astrais”) no segundo álbum, além de um dueto com Milton Nascimento em “Feito Nós”, single de 1987, mostrava que a banda tinha mais do que o desejo simples pelo sucesso.

Foi preciso muito poder de convencimento para a CBS recolocar o RPM em estúdio para a gravação do terceiro álbum. Ofertas de discos solo dos participantes, mixagem em Los Angeles, orçamento polpudo liberado, tudo foi posto na mesa para que o grupo entregasse mais uma fornada de possíveis hits. Talvez os conflitos internos, talvez uma mudança de perspectiva, talvez o espírito daquele 1988, no qual a lambada já surgia como uma alternativa viável para o público jovem, sabe-se lá, mas o fato é que o novo disco, intitulado simplesmente RPM, veio muito mais profundo e “difícil” em relação aos dois discos anteriores. A preocupação estética da banda com arranjos, timbres e letras afastava o álbum do sucesso almejado, ainda que canções como “Partners”, “Um Caso de Amor Assim” e “Quatro Coiotes” tenham tocado medianamente nas rádios. Foi uma pena, pois este álbum tem detalhes interessantes e excêntricos, como a presença de Bezerra da Silva em “O Teu Futuro Espelha Essa Grandeza”. Poucos meses depois desse lançamento, o RPM encerrou as atividades. 

Nos anos seguintes até a semana passada, quando lançou o fraquíssimo single “Liberdade”, o RPM veio e foi, em diferentes encarnações. Na mais importante delas, em 2002, a banda gravou um disco ao vivo para a MTV, além de canções inéditas (como “Vida Real”, que se tornou o insuportável tema do não menos insuportável Big Brother Brasil). Alguns discos foram lançados, shows e apresentações aconteceram, além de mais e mais disputas judiciais entre os integrantes da banda. Nada do que foi feito depois de 1988 vale a pena ser considerado seriamente na antologia da banda.

Luiz Schiavon, por sua vez, também trabalhou em trilhas sonoras para a TV, como as das novelas O Rei do GadoTerra Nostra e Esperança, para as quais também escreveu canções originais, além de selecionar músicas que fizeram parte das tramas. De 2004 a 2010, foi diretor musical do Domingão do Faustão, interagindo frequentemente, ao vivo, com o apresentador do programa de auditório da Rede Globo.

Music

Gal Costa

Oito motivos que confirmam a suprema importância da cantora na história da música popular brasileira das últimas décadas

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução/Divulgação 

O país todo foi pego de surpresa com a notícia da morte de Maria da Graça Costa Penna Burgos na manhã desta quarta-feira, 9 de novembro. Gal Costa faleceu aos 77 anos, em sua casa, na cidade de São Paulo. A causa não foi revelada pela sua assessoria, mas sabe-se que a cantora estava se recuperando de uma recente cirurgia para a retirada de um nódulo na fossa nasal direita. Por conta disso, cancelara seus compromissos oficiais neste mês, como uma passagem pela Europa com a turnê As Várias Pontas de uma Estrela (na qual relembrava grandes sucessos da MPB dos anos 1980) e a participação no festival Primavera Sound São Paulo, realizado no último final de semana.

A voz tamanha de Gal Costa fazia muita gente creditar a ela a condição de maior cantora do Brasil. Nascida em 26 de setembro de 1945, ela estreou nos palcos aos 18 anos de idade, ainda em Salvador. O espetáculo, chamado Nós, Por Exemplo, era formado por jovens músicos locais que tinham a intenção de renovar a música popular brasileira, ainda fincada nos pilares bossanovísticos de alguns anos atrás. Além de assinarem a direção artística, Gilberto Gil e Caetano Veloso também participavam do elenco. A turma ainda contava com Maria Bethânia, Tom Zé e Carlos Lyra (que propunha estabelecer uma conexão entre canções de Milton Nascimento e a obra gravada por ela). Já transitando no eixo Rio-São Paulo, anos depois, fez parte da Tropicália, movimento que a levou a iniciar a carreira fonográfica. Deixou mais de 40 discos gravados, entre produções inéditas de estúdio e registros ao vivo.

Em homenagem a Gal, o Mondo Bacana destaca oito motivos de sua suma importância na história da música em verde e amarelo das últimas seis décadas.

Resistência tropicalista

Quando Gil e Caetano optaram por deixar o país para continuarem vivos e produzindo no exílio europeu naquele comecinho de 1969, coube a Gal liderar a resistência da Tropicália em solo brasileiro. Neste ano lançou seu primeiro álbum de estúdio de fato (antes, gravara um dividido com Caetano), considerado um dos mais importantes trabalhos da música popular brasileira. Gal seguiu a cartilha dos amigos e achou o ponto de fusão exato entre as sonoridades brasileiras (bossa nova, xaxado) e vertentes que rolavam solto no eixo anglo-americano (psicodelismo, soul). Com a direção assinada pelo maestro Rogério Duprat e nomes como Lanny Gordin e Jards Macalé na banda de apoio. Além de releituras personalíssimas de “Sebastiana” (Jackson do Pandeiro), “Namorinho de Portão” (Tom Zé), “Se Você Pensa” (Roberto e Erasmo Carlos) e “Que Pena (Ela Já Não Gosta Mais de Mim)” (Jorge Ben). São deste disco outros três clássicos supremos da Tropicália, todos compostos por Caetano. “Baby”, “Não Identificado” e “Divino, Maravilhoso”. O último, também assinado por Gil, transformou-se em hino da resistência aos anos de chumbo pós-AI-5. Suas estrofes alertavam para a mão pesada do regime militar no Brasil, enquanto o refrão decretava “É Preciso estar atento e forte/Não temos tempo de temer a morte”. Por isso, a composição é celebrada até hoje, mais de meio século depois de estremecer as estruturas da quarta edição do Festival da Record, realizada em 1968.

Fa-Tal – Gal a Todo Vapor

Álbum duplo lançado em 1971, o segundo de toda a história da música brasileira. Com pouco mais de uma hora de duração, traz o registro, na íntegra e com direito a erros e improvisos, de uma noite de série de concertos realizada em dez semanas no Teatro Tereza Rachel no Rio de Janeiro. Sob a batuta criativa do poeta Waly Salomão, então com apenas 28 anos e um dos principais nomes daquele período da contracultura brasileira, Gal tinha a companhia de uma banda de bambas como Jorginho Gomes (irmão de Pepeu e também integrante dos Novos Baianos) na bateria, Novelli no baixo e Lanny Gordin na guitarra e assinando os arranjos. Lanny, então com apenas 20 anos de idade, já demonstrava ser um monstro nas seis cordas, o que se prova com toda a quebradeira jazzy deste disco. Na primeira parte do concerto, Gal apresenta-se sozinha ao violão, sentada de pernas abertas, mesclando sambas tradicionais de Ismael Silva e Geraldo Pereira com obras de Caetano (“Como Dois e Dois”, “Coração Vagabundo), Roberto e Erasmo (“Sua Estupidez”, então recém-lançada por ela em compacto duplo) e um trecho de Jorge Ben (“Charles Anjo 45”). Com a entrada do trio na segunda e última parte (com direito a mais um convidado na percussão), Gal solta o vozeirão ao fazer uma polaróide da poesia marginal carioca daquela época. Apresenta ao público uma canção de amor que o então desconhecido Luiz Melodia fez inspirado por um travesti (“Pérola Negra”); traça um paralelo metafórico entre drogas e ditadura militar em duas parcerias de Waly com Jards Macalé (“Vapor Barato”, também presente naquele mesmo compacto, e “Mal Secreto); homenageia a urbanidade fora-do-sítio dos Novos Baianos em “Dê um Rolê”) e faz um passeio pelo Nordeste com o frevo “Samba, Suor e Cerveja” (de Caetano), a toada sertaneja “Assum Preto” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira). Somando a tudo isso vem uma nova versão elétrica e mais pesada de “Como Dois e Dois”, mais Waly e Jards (agora separados, com “Luz do Sol” e “Hotel das Estrelas”) e uma vinheta com “Maria Bethânia” (homenagem à amiga, outra composta pelo irmão dela) e inserções de canções de domínio público (“Gigoia”, “Bota a Mão nas Cadeiras”). Com todo esse repertório incendiário e um figurino ousado (cabelos longos ondulados, batom vermelho e roupa hippie) à frente de um palco com cenografia avermelhada, Gal exorcizou como nunca havia feito sua persona política, desafiando a ditadura e reunindo a cada noite, naquela plateia de apenas 600 pessoas, um pequeno recorte de toda a resistência poético-comportamental do Rio de Janeiro, que logo depois se espalharia por outras capitais brasileiras com outras minitemporadas fervorosas do mesmo espetáculo. A efervescência ainda se estendeu a comentários bastante empolgados de uma imprensa musical estupefata com todo aquele furacão sonoro e visual. Resultado: o registro nu e cru do ápice do desbunde brasileiro contra a ditadura.

Ousadia e liberdade

Durante toda a sua carreira Gal serviu de inspiração para meninas e mulheres, foi sinônimo de liberdade e ousadia, tanto nos figurinos e performances quanto nas atitudes de vida. Gal irritou a ditadura militar com as fotos da capa do álbum Índia (1973), seu sexto álbum, produzido por Gil. Ela estava de tanga vermelha e com uma saia de palha indígena caindo pelas coxas. A fotografia, estendida para a contracapa, revelava ainda os seios desnudos, apenas cobertos por colares. A Censura Federal, sempre burra e estúpida, detestou a personificação de uma índia seminua (num tempo em que revistas com Status e Playboy ainda não existiam por aqui) e decretou que o disco só poderia ser vendido nas lojas envolto em um saco plástico. Era “imoral”, acima de tudo. Em 1985, aos 40 anos, posou nua para a Status. Em 1994, na turnê chamada O Sorriso do Gato de Alice, dirigida por Gerald Thomas, provocou frenesi no público carioca ao cantar a icônica “Brasil”, de Cazuza, com todos os botões da camisa abertos. Quando levantava o braço no brado final da música, com o nome do nosso país, seus seios apareciam para o público. Nunca defendeu bandeiras sobre a sexualidade ou o feminismo, tampouco gostava de abordar os assuntos em entrevistas. Teve relacionamentos com outras artistas, como a atriz Lucia Veríssimo e a cantora Marina Lima. Estava casada com a empresária Wilma Petrillo, sua produtora, desde 1998. Gal e Wilma eram mãe de Gabriel, adotado pela cantora aos 60 anos de idade – ela sempre desejara ser mãe mas problemas de saúde a impediram de realizar qualquer gestação.

Voz feminina de Caetano

Quer uma tarefa árdua? Pegue a discografia de Gal Costa e conte quantas canções ela gravou que foram compostas por Caetano Veloso, então. Desde Domingo (1967) até A Pele do Futuro Ao Vivo (2019) a lista é extensa – tem até um disco de estúdio, Recanto (2011), cujo repertório é TODO assinado por ele, além da direção musical. A química artística entre os dois era enorme e até se refletia na relação cotidiana: a jornalista Dedé Gadelha, primeira esposa de Caetano, era amiga de infância de Gal. Só para citar três dezenas de nomes de obras dele que receberam fino tratamento na voz dela: “Divino, Maravilhoso”, “Não Identificado”, “Baby”, “London, London”, “Samba, Suor e Cerveja”, “Como Dois e Dois”, “A Rã”, “Um Índio”, “São João, Xangô Menino”, “Os Mais Doces Bárbaros”, “Flor do Cerrado”, “Tigresa”, “Caras e Bocas”, “Força Estranha”, “Paula e Bebeto”, “Meu Bem, Meu Mal”, “Dom de Iludir”, “Luz do Sol”, “Vaca Profana”, “Tenda”, “Tropicália”, “Odara”, “O Quereres”, “Língua”, “Cajuína”, “Milagres do Povo”, “O Ciúme”, “Sertão”, “Desde que o Samba é Samba” e “Recanto Escuro”.

Doces Bárbaros

Quando estabeleceram as diretrizes para a Tropicália, em 1967, Caetano e Gil tinham como intenção primeira dar uma bela sacudida na música brasileira. Em 1976, para celebrar os dez anos de carreira artística individuais, chamaram Gal Costa e Maria Bethânia para ser criado o supergrupo Doces Bárbaros. A intenção, de novo, era dar uma nova sacudida da MPB, voltando a misturar o regionalismo com influências pontuais vindas do exterior: desta vez a tônica não era bem a sonoridade psicodélica, mas mais a estética hippie, reproduzida nos figurinos e cenografia do palco. Tudo isso para dar um choque na pauta de costumes do Brasil ainda mergulhado no regime militar ditatorial (era o ano em que o general Ernesto Geisel fingia estar começando a distender a mão de chumbo), responsável pela prisão dos dois baianos e o consequente exílio de pouco mais de um ano na Europa. Um repertório foi criado somente para o espetáculo, ensaiado em apenas quinze dias. No set list estavam canções como “O Seu Amor” (um recado nas entrelinhas subvertendo o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”, mas usando os verbos em nome do amor e da liberdade), “Um Índio”, “São João, Xangô Menino”, “Esotérico”, “Chuck Berry Fields Forever”. Ao lado de sete músicos de apoio, o quarteto rodaria em turnê que passaria por várias capitais brasileiras e ainda renderia um álbum duplo gravado durante os concertos. De quebra, o cineasta iniciante Jom Tob Azulay, recém-chegado de Los Angeles, onde trabalhara como diplomata e fizera um curso de cinema, comandaria um documentário com registros de viagens, shows, entrevistas para a imprensa e cenas de bastidores. Depois da estreia em São Paulo, porém, um imprevisto mudou os rumos da trupe: a polícia – que, assim como o governo, estava “acompanhando de perto” o projeto – deu uma batida no hotel onde estavam hospedados os músicos e prendeu Gil (de novo!) e o baterista Chiquinho sob a acusação de porte de maconha. Depois de algumas semanas de esfriamento da turnê e cancelamento de datas, o grupo voltou aos palcos no Rio (no extinto Canecão, tradicional casa de espetáculos da zona sul carioca) e o documentário acabou saindo. Nele se revela todo o furacão provocado pelos quatro juntos no palco, sobretudo na química do afiado jogral ou nos passos e improvisos das performances de dança. Gal e Bethânia, então, são soberbas em suas interpretações gestuais, corporais, visuais e vocais.

Ícone LGBT

Gal, apesar de não expor isso publicamente em atitudes e entrevistas, relacionava-se com mulheres. Mas não foi pela sua orientação sexual que acabou se transformando, ao longo dos anos 1970 e 1980, em um dos maiores ícones gay do país. Desde que a baiana se estabeleceu como um dos pilares da música brasileira, com sua voz encantadora (e que de vez em quando alcançava uns agudos de arrepiar), figurino ousado (quando não colorido e cheio de apetrechos), os negros cabelos volumosos e performances cênicas arrebatadoras, também passou a ser homenageada por trans, travestis e drags em shows de dublagens nas boates de norte a sul. Personificar Gal Costa sob as luzes de um ribalta – por menor e mais escondida no mapa que ela seja e esteja – não significa somente um ato de libertação. É também uma sensação extrema de empoderamento, apesar da efemeridade. Empoderamento sexual e artístico, diga-se de passagem.

Rainha das trilhas de novela

Não foi só a carreira de Gal e dos outros baianos tropicalistas (ou quase isso, no caso de Bethânia) que se consolidou na música brasileira dos anos 1970 para cá. Outra presença significativa no segmento foram as trilhas sonoras das novelas da Rede Globo. Até a transformação do consumo musical no mercado fonográfico virar praticamente digital, na década passada, eram justamente as coletâneas dos folhetins globais quem mandavam e desmandavam nas vendagens dos formatos físicos (LP ou CD). E mais: ter uma faixa incluída em um destes discos (sobretudo os das novelas do horário nobre – antigamente às oito e agora ali pelas nove da noite) era para um artista daqui praticamente o mesmo que ter um bilhete premiado na loteria. São muitas dezenas as vezes em que uma soundtrack televisiva contou com a voz de Gal Costa. Teve canção que já apareceu em duas ou até três vezes em novelas distintas. E ela também proporcionou o embalo musical de aberturas inesquecíveis de tramas não menos inesquecíveis. Só para citar duas delas. “Modinha Para Gabriela” foi composta Dorival Caymmi sob encomenda para Gabriela, novela da emissora veiculada na faixa das 22 horas entre abril e outubro de 1975. A história de Walter George Durst se baseava no romance literário Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado e, por isso, a letra descreve o eterno espírito livre da protagonista. A Globo chegou a sugerir que Gal interpretasse o papel principal, mas ela recusou a proposta exatamente por não se achar atriz, apenas cantora. Coube então a Sonia Braga personificar Gabriela e criar um dos mais icônicos personagens dos telefolhetins nacionais. A outra vez em que os créditos de abertura foram exibidos ao som de uma Gal Costa contundente e afiada foi em Vale Tudo, de maio de 1988 à primeira semana de 1989. Até hoje cultuada e exibida em reprises na Globo e no Canal Viva, a novela escrita por Gilberto Braga era centrada na relação de desprezo que uma filha má e alpinista social (Maria de Fátima, papel de Glória Pires) mantém pela mãe, uma modesta senhora de vida simples e vendedora de sanduíches na praia (Raquel, vivda por Regina Duarte). Entre as pessoas em órbita dela estava a multimilionária Odete Roitman (Beatriz Segall), assassinada por um tiro disparado por um misterioso nome revelado apenas no último capítulo (e que embalou o país todo na pergunta sobre quem a havia matado). Ao expor as mazelas da luta de classes no país e ainda escancarar barbaridades proporcionadas por atitudes do povo, Vale Tudo esfregou na cara do Brasil os podres do próprio Brasil, isso trinta anos antes da chegada de um certo nome à presidência da república (atenção para o quase spoiler: repare bem em dois nomes centrais do elenco e o quanto eles significam ontem e hoje para as nossas dramaturgia e política!). Para completar, a música-tema era mais um tapa na cara da bandeira nas cores verde e amarela: o hino “Brasil”, composto e gravado originalmente por Cazuza, que bradava contra o fedor da burguesia. Entretanto, o autor – que havia acabado de lançar um contundente álbum chamado Ideologia –  ainda estava restrito ao nicho da zona sul carioca e dos intelectuais nacionais. A convite da Globo, Gal regravou a canção para a novela, tornando-a, assim, popular de norte a sul do país e levando-a para gente de todas as classes sociais e econômicas.

Voz suprema de todos os gêneros

Cantar sempre foi um dom natural para Gal Costa. Suas próprias colegas de profissão, gente respeitada da música, não escondem tanto a admiração quanto a estupefação ao ouvi-la soltar o gogó ao microfone. Não apenas por atingir os agudos inacreditáveis como mostrava em “Meu Nome é Gal”, mas sobretudo pela leveza com a qual levava toda e qualquer canção, sem qualquer dificuldade durante o exercício em cena. Toda essa fluidez ainda se estendia às escolhas de repertório de Gal. Como em um passe encantado de mágica, a voz tamanha dela se encaixava em todo e qualquer gênero que escolhesse. Do rock ao jazz, do frevo à balada romântica, da marchinha carnavalesca ao bolero, da bossa nova ao forró, do samba ao standard do pop norte-americano. Gal passeou por todos estes territórios em sua imensa discografia. Até para o público infantil ela fez algo. Isto foi em 1985, quando foi um dos nomes convidados (ao lado de Xuxa, Pelé, Menudo, Fevers, Lucinha Lins e Carequinha) para participar do primeiro álbum oficial Trem da Alegria. O grupo vocal era formado por três pré-adolescentes: Patricia Marx e Luciano Nassyn (que já haviam realizado juntos, no ano anterior e com a apresentadora Xuxa, o disco da trilha sonora do programa Clube da Criança, exibido pela TV Manchete) mais o recém-chegado Juninho Bill. A Gal coube entoar com os meninos os versos da versão em português da valsa “Lili (Hi Lili Hi Lo)”. Mas ela não foi o único nome externo do Trem da Alegria aqui. Ela carregou consigo seu afilhado Moreno Veloso, filho de Caetano e da amiga de infância Dedé Gadelha, então com 11 anos e em sua estreia no mundo musical.

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Movies

Argentina, 1985

Ricardo Darin brilha como o procurador que levou a punição a muitos dos crimes cometidos pelos militares durante a ditadura recente no país vizinho

Texto por Tais Zago

Foto: Amazon Prime Video/Divulgação

Sejamos honestos. A Argentina fez o que não fizemos no Brasil. Puniu os crimes (pelo menos de alguns) dos militares responsáveis pelos sumiços, assassinatos, torturas, coações, estupros, ameaças e mordaças aplicados aos seus cidadãos durante a última ditadura civil-militar que levou o país aos joelhos entre os anos de 1976 e 1983. Em um julgamento de magnitude somente vista antes em Nürnberg após a Segunda Guerra Mundial, os crimes atrozes, detalhados em centenas de depoimentos de sobreviventes e familiares de vítimas, chocaram os presentes, os argentinos e o resto do mundo. 

Em 1985, pouco após a queda do regime e durante o governo Alfonsín (1983-1989), onde foi anulada a Lei de Auto-Anistia, foram assinados decretos que possibilitaram o julgamento dos militares pelos crimes de lesa-humanidade cometidos. Queda essa, precisamos lembrar, que ocorreu graças à incansável resistência de agrupamentos do povo – como o das Mães da Praça de Maio, que lutavam pelos seus filhos desaparecidos – greves gerais, denúncias internacionais de violações dos direitos humanos e uma forte crise econômica. Finalmente, após as forças armadas jogarem a batata quente para o âmbito civil, generais das forças armadas sentaram no banco dos réus. Porém, tais figurões, ainda calcados no poder que exerciam sobre boa parte da população e das instituições governamentais, entraram confiantes de um veredito de inocência. 

Mas eles não esperavam encontrar pelo caminho o procurador Julio Strassera (Ricardo Darin), o procurador-adjunto Luis Moreno Ocampo (Juan Pedro Lanzani) e um grupo de jovens advogados e servidores públicos que viajaram toda a Argentina e juntaram, em pouco mais de quatro meses de trabalho, uma infinidade de casos e provas contra os militares e seus subordinados. A estimativa é que havia um total de 30 mil pessoas desaparecidas durante o “reinado” do ditador Videla e seus comparsas.

Temos em Argentina, 1985 (Argentina/Reino Unido/EUA, 2022 – Amazon Prime Video) um clássico filme de tribunais. E com as etapas que já conhecemos: investigação, captação de provas e depoimentos, estratégias de advogados, testemunhas acuadas, ameaças constantes de morte e um julgamento que, se não plenamente bem sucedido, serviu como inspiração, impulso e precedente para pelo menos mil outros processos desde então. Vemos aqui a Buenos Aires da metade dos anos 1980, com seus prédios imponentes, orelhões vermelhos, bancas de jornais e pequenos restaurantes de bairro. Apesar de pouco se passar fora da sala do tribunal ou de repartições públicas, há um apreço pelos detalhes na produção. O diretor Santiago Mitre, que já trabalhou diversas vezes com o ícone Darin, mostra-nos um Strassera lacônico e de humor esparso. Um promotor que não perde a cabeça por bobagens, mas que, quando convocado, não retrocede e nem desvia por um minuto sequer do seu objetivo. O ator está espetacular como o funcionário público que, apesar de obediente, não desperdiça uma chance de trazer justiça para as vítimas – e mesmo após o veredito continua trabalhando arduamente. Lanzani, como Moreno Ocampo, um típico jovem criado em família militar mas que nunca tolerou o regime, exagera um pouco na dramatização do papel. Uma pontinha de exagero que destoou um pouco da atuação certeira e pontual de Darin – Strassera era protocolar no trabalho e ao mesmo tempo um pai terno em casa. 

Também não é de se ignorar uma certa pecha hollywoodiana na obra. A presença do filho de Strassera em diversas cenas, transferindo para o olhar infantil o desenrolar dos acontecimentos, poderia ser deixada de lado. No mais, as atuações são comedidas tanto nos momentos mais tensos quanto nos mais leves. É essa dosagem que torna Argentina, 1985 uma obra indispensável, tanto como entretenimento quanto material educacional (principalmente no momento atual brasileiro, onde sentimos na pele o resultado de uma anistia e o esquecimento dos horrores da ditadura). Os argentinos festejam a lembrança das derrotas e vitórias do seu passado. Com respeito, mas também com orgulho. Exatamente para que a sua democracia continue forte e viva.