Damon Albarn e sua orquestra mezzo live action mezzo virtual trazem o futuro a uma Curitiba que parece fazer questão de sempre olhar para trás
Texto por Abonico Smith
Fotos: iaskara
No auge do sucesso com o Blur, lá pela segunda metade dos anos 1990, Damon Albarn se encontrava enfastiado com a sonoridade regressiva das guitarras do britpop. Por isso decidiu se permitir e inventar algo completamente diferente do que já andava fazendo à frente do quarteto. Calcado nos seus outros gostos musicais da adolescência (rap, trip hop, dub, ska e demais grooves de raiz preta), uniu-se a Jamie Hewlett, cartunista de origem undergound, e montou o Gorillaz. Som com imagem, música com desenho animado. Os instrumentistas não seriam de carne e osso, mas sim quatro seres fictícios que estrelariam os videoclipes, capas e encartes dos discos. No estúdio, para dar forma às canções, passou a chamar um turbilhão de amigos para gravar vozes, batidas e bases harmônicas. Mal poderia saber que não só estaria prevendo o futuro da música pop no século 21 como também daria à luz quem logo viria a se transformar em seu principal projeto musical com o subsequente arrefecimento do mesmo Blur.
Desde 2001, o Gorillaz já conta com onze álbuns (sete de material original e três coletâneas com singles, remixes e raridades) e intensa atividade de concertos, dando giros ao redor do planeta. Neste último mês de maio, na fase de pontapé inicial da aguardada turnê mundial pós-pandemia, Damon trouxe sua orquestra mezzo virtual mezzo live action para o Brasil. Foram dois shows como headliner do Mita Festival (em São Paulo e no Rio de Janeiro) e, no meio destes, uma apresentação “solo” em Curitiba, no sideshow denominado Mita Day e em uma Pedreira Paulo Leminski congelante na noite do último dia 18 de maio.
Receber na capital paranaense um grande nome do rock que não esteja de alguma forma ligado ao binômio hard rock/heavy metal já pode ser considerada uma bênção para esta cidade que não aguenta mais receber sempre os (quase) mesmos artistas em concertos massivos. Só que alguém poderia ter ao menos dado um toque no colocador de som para tentar fazer o esquenta (na linguagem metafórica, bem verdade, já que o sentido literal se fazia impossível naquele frio abissal que congelava orelhas e cabeças de quem não vestia capuz ou gorro). No mínimo a pessoa não fazia nem ideia de quem faz parte de grande parte dos fãs da banda. Foi Black Sabbath para lá, Guns N’Roses para cá e AC/DC em imperdoável dose tripla. Alguém bem que poderia ter lembrado à pessoa que as passagens de Metallica e Kiss por estas terras se deram dias antes. Quando muito rolou uma obviedade como “Song 2”… do Blur! A situação só melhorou quando a equipe do Gorillaz assumiu a sonorização para colocar a playlist do próprio artista. Antes tarde do que nunca…
Quando o telão passou a mostrar a vinheta The Static Channel, o prelúdio imagético que já anuncia uma novidade que vem em breve por aí, a noção de que o futuro da música havia chegado de fato à Pedreira era real. A partir de então, por quase duas horas, o que se viu foi um belíssimo concerto que não se baseava somente em algo sonoro. Aquilo que a MTV já revelara nos anos 1980, o Gorillaz confirma como sua essência: a condição do sensível é cada vez mais visual e harmonias e melodias precisam, mais do que nunca, ter os olhos como complemento dos ouvidos. Inclusive na performance cênica. Tudo milimetricamente ensaiadinho e cronometrado, para coincidir performance ao vivo dos músicos de carne e osso com o disparo de telões e bases sonoras pré-gravadas. No fundo e nas laterais do palco, as criaturas animadas Murdoc, 2-D, Noodle e Russel desfilavam em trechos dos videoclipes originais e ainda recebiam convidados especiais virtuais como Elton John e Robert Smith. Tudo ali, sequenciado ao vivo, na frente dos olhos de umas milhares de pessoas, sem a facilidade do suporte do videotape.
O futuro previsto pelo Gorillaz também está na embalagem musical. É rock mas não é aquele rock congelado com guitarras em primeiro plano. Elas existem, por vezes são bem pesadas e distorcidas, mas dialogam bastante com as batidas dançantes, inclusive cedendo espaço para outros instrumentos virem à frente. É rap também, inclusive com a presença de rappers invadindo o palco no final do set como convidados especiais em uma ou duas músicas cada – como o famoso DJ de reggae e toaster britânico Sweetie Irie (que participou da versão remix acelerada de “Clint Eastwood”) e as lendas do hip hop americano dos anos 1990 Bootie Brown e Posdnous. Brown, um dos fundadores do grupo Pharcyde, comandou mais dois clássicos, “Stylo” e “Dirty Harry”. Pos, uma das vozes marcantes do trio De La Soul, fez “Superfast Jellyfish” e “Feel Good Inc” (que não perdeu em nada mesmo ficando sem a risada malévola do outro integrante, Maseo, que também participou da gravação original). É pop (“Strange Timez” e “On Melancholy Hill” são duas pérolas ainda escondidas no repertório), é eletrônico (“Tranz”, “Aries” e “Andromeda” transformam a arena em uma gigantesca pista de dança), é jazz (“O Green World”), é bossa nova (“El Mañana”), é gospel (os quatro backings dão um suporte poderoso em vários momentos do espetáculo até uma delas, Michelle Ndegwa voar solo ao soltar o vozeirão em “Kids With Guns”), é electro (“Stylo” e “Dirty Harry” remetem ao comecinho dos anos 1980, quando Afrika Bambaataa apresentou o rap aos sintetizadores), é punk (“M1A1”, “Momentary Bliss”). Na sonoridade, Damon comanda uma mistura de tudo e mais um pouco, sem pesar a mão para qualquer direção. E está tudo bem assim, casando perfeitamente, deste modo, com a vibe do público millennial.
Com a ajuda de músicos tarimbados para transpor com fidelidade as gravações para o palco (com o destaque para o baixista Seye Adelekan, o tecladista Mike Smith, o guitarrista Jeff Wooton e o percussionista Remi Kabaka Jr, que também participa das sessões de criação nos estúdios) e um figurino megacaprichado (com todos os músicos se encaixando na paleta de cores que flutua entre o rosa e o preto), Damon Albarn se mostra visivelmente confortável para assumir de vez a condição mista de entertainer e ídolo pop à qual quase chegou se o Blur não tivesse ficado no meio do caminho lá pelo 19-2000. De qualquer forma, não há quem possa acusá-lo de comodismo ou fazer algo sem esmero e qualidade. Seja no Blur, no Gorillaz ou em outros projetos bissextos como a carreira solo, os flertes com a sonoridade africana e oriental, as trilhas sonoras ou os grupos Rocket Juice & The Moon e The Good, The Bad & The Queen. Mas, enquanto Damon sempre olha para a frente, a mesma Curitiba que lhe acolheu sob baixíssima temperatura (no início do show ele chegou a brincar, dizendo ao público que estar ali na Pedreira lembrava a experiência de tocar no verão britânico) faz questão de reproduzir mecanicamente o que esta fácil e estabelecido e olhar para trás mesmo sendo arrastada para o futuro, tal qual o anjo do quadro Angelus Novus, de Paul Klee.
Set List: (The Static Channel), “M1A1”, “Strange Timez”, “Last Living Soul”, “Tranz”, “Aries”, “Tomorrow Comes Today”, “Every Planet We Reach Is Dead”, “Rhinestone Eyes”, “19-2000”, “Saturnz Barz”, (Interstitital), “Glitter Freeze”, “Cracker Island”, “O Green World”, “Pirate Jet”, “On Melancholy Hill”, “El Mañana”, “Kids With Guns”, (Elevator Going Up) ”Andromeda”, “Superfast Jellyfish”, “Feel Good Inc”, “Dirty Harry”, “Momentary Bliss”, “Plastic Beach”. Bis: “The Pink Phantom”, “Stylo”, “Clint Eastwood” e “Clint Eastwood (Ed Case/Sweetie Irie Re-Fix”).