Documentário resgata a história da escrava do Piauí do século 18 que foi reconhecida pela OAB como a primeira advogada brasileira
Texto por Janaina Monteiro
Foto: Divulgação
A esperança é a última que morre. Na mitologia grega, a esperança presa na caixa (ou jarra) de Pandora pode ser considerada um mal. Ou um bem. Depende da interpretação, do ponto de vista. Afinal, de todos os males liberados pela mulher criada pelos deuses, foi ela – a esperança – que ficou aprisionada.
Pelo viés pessimista nietzschiano, a esperança serve para que o homem não abandone a vida após ser torturado por todos os outros males – doenças, guerras, sofrimento. Por isso, é considerada o mal supremo, já que prolonga o nosso suplício. É como se fosse uma armadilha, que nos aprisiona na aceitação das coisas.
Por outro lado, a esperança pode ser encarada como o único bem: aquele que, justamente, torna a vida suportável, apesar de todo o mal. No Piauí do século 18, a Esperança com E maiúsculo e sobrenome Garcia foi escravizada, arrancada de sua família, maltratada, violentada, acorrentada. Diante de todos os infortúnios contidos numa caixa chamada fazenda Poções, ela escreveu uma carta que mudaria o seu futuro e de tantas outras mulheres. Por causa dessa carta, Esperança foi considerada autora da primeira petição escrita por uma mulher negra e, assim, reconhecida pela OAB como a primeira advogada do Brasil.
Esperança Garcia é a prova da benevolência desse sentimento que carrega seu nome de batismo. O pedido de socorro, escrito em um pedaço de papel ao governador da província, serviu de inspiração para o documentário A Carta de Esperança Garcia (Brasil, 2023), com roteiro e direção de Douglas Machado e pesquisa da advogada Maria Sueli Rodrigues de Sousa.
Esperança Garcia nasceu em 1751, na fazenda Algodões, em Nazaré do Piauí, e foi arrancada da família e enviada para a fazenda Poções, em Isaías Coelho. Em 6 de setembro de 1770, aos 19 anos de idade, decidiu denunciar as condições desumanas pelas quais ela, seus filhos e outros escravos eram submetidos.
A carta dizia assim: “Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda Algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha os olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.”
O filme, rodado na comunidade quilombola Algodões, onde Esperança Garcia viveu, é dividido em quatro partes e se inspira na carta-denúncia da escrava piauiense para retratar a vida de mulheres que dão continuidade ao movimento de resistência contra as ressonâncias da escravidão, da opressão, da violência, da discriminação. Mesmo porque havia pouca informação sobre Esperança.
“Só sabíamos a história da carta. E que Esperança, de 17 anos, havia se casado com Ignácio, de 57”, disse o diretor Douglas Machado, durante uma sessão de exibição do documentário no Cine Passeio, em Curitiba.
O fato de ter sido alfabetizada – possivelmente pelos jesuítas – e de carregar a força de uma mulher guerreira lhe possibilitou mudar o seu futuro e das outras “Esperanças”, como Chitara Souza, Luíza Miranda, Tina Ribeiro e Catarina Santos, que mostram como é o cotidiano no quilombola: uma vida simples, de pés no chão e gingado de capoeira, comida feita no fogão a lenha, fava colhida na árvore e algodão, do pé.
Para transmitir essa aura bucólica porém de muito trabalho e luta de Algodões, Machado organizou oficinas de filmagem com as moradoras para que elas mesmas pudessem registrar as cenas do cotidiano. Assim mesmo, no improviso. Como a vida é. Além de Tina, Chitara, Luíza e Catarina, também fazem parte do elenco a primeira governadora negra do Piauí, Regina Sousa, mais a atriz e cantora Zezé Motta, que na última parte do documentário conduz uma entrevista com todas as personagens reais.
Ao resgatar a cultura brasileira e tocar num assunto urgentíssimo que é a reparação pela escravidão, o documentário traz à tona algo que ainda nos incomoda: o descaso com a memória do povo brasileiro. Tudo o que resta da carta de Esperança Garcia é uma cópia guardada no arquivo municipal da capital Teresina. Não se sabe como, nem quando, muito menos quem foi o responsável pelo sumiço da original – sendo que um documento histórico como esse deveria estar num museu, emoldurado, para todos terem acesso. Ao contrário disso, porém, seu paradeiro é desconhecido. Não se sabe se foi furtada ou até mesmo está em Portugal. Segundo Machado, o pedaço de papel do século 18 vivia sendo manuseado e transportado de um lado para o outro, apresentado em eventos e exposições sobre a escravidão no Piauí. Até que um dia ele desapareceu.
No final do documentário, uma nova carta escrita pela pesquisadora Sueli traz uma lista com demandas atuais. Sueli sofria de uma doença degenerativa que lhe paralisou os movimentos do corpo. Ela morreu antes de ver o filme finalizado e deu novo sentido ao verbo “esperançar”.
Oito motivos para lembrar sempre o pioneiro do rock’n’roll que protagonizava performances matadoras ao piano
Texto por Abonico Smith
Fotos: Reprodução
No último dia 28 de outubro, horas depois de um alarme falso que ecoou na imprensa mundial e ocasionou erratas informando que ele ainda estava vivo, foi enfim anunciada pelo seu empresário a morte de Jerry Lee Lewis, aos 87 anos. O cantor e pianista era o último da gangue pioneira do rock’n’roll a falecer. Pertencente à mesma geração de ícones como Elvis Presley, Johnny Cash, Little Richard, Chuck Berry, Fats Domino, Bo Diddley, Bill Haley, Roy Orbison e Buddy Holly, que no decorrer da década de 1950 ajudaram a criar um novo gênero musical que viria a ser determinante na cultura jovem de toda a segunda metade do século 20. Por falar em cultura jovem, também foi o rock que consolidou o conceito de adolescência naqueles mesmos anos tão efervescentes na criatividade quanto turbulentos na quebra de barreiras e costumes no território do social.
O Mondo Bacana elenca agora oito motivos que atestam a suma importância de Lewis na história do rock.
Cinebiografia
Astro do cinema pop dos anos 1980, Dennis Quaid foi chamado para interpretar Jerry Lee Lewis na biopic do músico lançada em 1989. Este longa-metragem conta a formação musical do jovem pianista, que ainda criança, saía com o primo de segundo grau para espiar às escondidas, festas promovidas e frequentadas pela comunidade negra do leste da Louisiana, onde crescera. No filme Great Balls Of Fire (que no Brasil ganharia o infeliz título de A Fera do Rock) Alec Baldwin interpreta o tal primo, Jimmy Swaggart, que depois de adulto (mais precisamente nos anos 1970/1980) se transformaria em um famoso pastor presbiteriano, capaz de atrair multidões com seus programas televisivos em que também explorava seus dons artísticos. Outro nome famoso do elenco é a então adolescente Winona Ryder. Ela faz o papel da prima (também de segundo fgrau) Myra Gale, que se casa com o jovem artista com apenas 13 anos de idade, no dia 12 de dezembro de 1957. Foi esta relação, condenada pela sociedade americana quando descoberta pela imprensa britânica e que lhe rendeu acusações de pedofilia, que jogou por água abaixo a ascendente carreira do músico logo depois, quando também passou a abusar do álcool. Também participa de A Fera do Rock o músico, ator e poeta John Doe, também conhecido como o baixista da banda punk X, de Los Angeles. Doe é o baixista JW Brown, pai de Myra.
Boogie woogie
Ainda durante a infância seus pais perceberam os dons artísticos de Jerry Lee Lewis e deram-lhe de presente um piano, mesmo precisando hipotecar a pequena fazenda da família para isso. Junto ao treinamento diário e ao hábito de assistir a concertos junto aos pais e a tia, o garoto passou a acalentar o sonho de ser músico quando ficasse adulto. Aos 13 anos saiu de casa para tocar na noite e fez seu primeiro show no estacionamento de uma concessionária de carros como integrante de uma banda de country & western. Desde então, passou a viver um dilema pessoal quase infinito: como se equilibrar na corda bamba de sua fé cristã fervorosa e ao mesmo tempo participar ativamente do mundo contrário regido pela boemia e diversão mundana, sob o comando da tríade drogas, sexo e rock’n’roll. Tudo isso, de uma certa forma, ficou personificado no piano boogie woogie de Lewis sendo martelado com toda força e rapidez mas mantido, também, nos arranjos mais lentos e cadenciados de outras canções tocadas por ele. A paixão pelo boogie woogie, vale lembrar, veio de tanto presenciar os bailes de música negra. O gênero, forte na comunidade afro-americana de estados sulistas dos EUA (Louisiana, Texas) desde os anos 1870, é baseado no uso sincopado da mão esquerda (os baixos), o que induz irresistivelmente aos passos da dança. Ganhou mais popularidade por todo o país entre os anos 1920 e 1930, espalhando-se em bares, bailes e gravações fonográficas até voltar a ter destaque formando belos casamentos com o swing nos 1940 e o rhythm’n’blues nos 1950.
Million Dollar Quartet
Elvis Preseley já era um astro do rock em seu primeiro ano na RCA-Victor quando visitou, durante um retorno à Memphis, seu ex-patrão na Sun Records Sam Phillips no dia 4 de dezembro de 1956. Carl Perkins, autor de “Blue Suede Shoes”, hit nacional na voz de Elvis, estava gravando em estúdio. Phillips havia levado àquela sessão, para tocar um piano Wurlitzer, o mais novo contratado do selo, um jovem apenas 21 anos chamado Jerry Lee Lewis, em quem logo apostaria suas fichas. Mas quem chegara primeira à reunião foi outro artista-chave da Sun, Johnny Cash, nome mais voltado à country music, que queria estar presente ao local para assistir às gravações de Perkins. Com os quatro juntos no aquário, bastou uma pequena faísca sonora para servir de estopim ao registro de puro improviso de um punhado de canções country, bluegrass, spiritual e gospel. e sucessos do rock lançados por Elvis e Chuck Berry. Nascia ali um “supergrupo de um dia e um disco só”. The Million Dollar Quartet batizou o disco, lançado apenas em 1981, mais de uma década depois que o produtor fonográfico Shelby Singleton comprou o acervo e os direitos da Sun de Sam. A descoberta da “fita perdida” se deu graças ao interesse de Shelby em lançar material raro e inédito em disco no mercado europeu. Em 1987, um álbum duplo de 46 faixas chegou às lojas com a adição de novos registros feitos pelos três sobreviventes em 1982. Curiosidade: Em 1982, os três sobreviventes voltaram a gravar um disco juntos, na Alemanha, durante um dia de folga durante uma turnê em conjunto pela Europa. O disco, claro, chamou-se The Survivors. Em 1986, Perkins, Cash e Lewis voltariam a se reencontrar em uma mesma gravação ao vivo de estúdio, agora contando com a presença de Roy Orbison, que participara do elenco da Sun Records naquela mesma época. Este disco foi batizado Class Of 55.
“Whole Lotta Shakin’ Goin’ On”
Sam Phillips estava certo ao bancar Jerry Lee como o próximo grande astro de seu solo. Em fevereiro de 1957, colocou Lewis em estúdio para gravar (em mono e com apenas um microfone) a sua versão peculiar para este estandarte do rhythm’n’blues cujo primeiro registro acontecera dois anos antes na voz da cantora Big Maybelle. Sob o comando do piano do jovem artista da Sun, a canção ganhou potência comercial, chegando aos primeiros lugares das paradas da Billboard (número um da lista de r&b, terceira posição da de pop geral, trinta semanas consecutivas entre os mais vendidos, seis milhões de cópias do compacto de sete polegadas) e da Grã Bretanha (oitava colocação entre os singles mais vendidos da ilha). Desde 1954 Jerry Lee já a tocava ao vivo, sempre obtendo bastante resposta de seu público e recebendo pedidos consecutivos para repeti-la no palco. Como em muitas outras composições criadas e cantadas por artistas negros da época, sua letra é bastante dúbia, cheia de metáforas e gírias das ruas e guetos reforçando um subtexto de conotação sexual.
“Great Balls Of Fire
“You shake my nerves and you rattle my brain/ Too much drink drives a man insane/ you broke my will, but what a thrill/ Goodness gracious, great balls f fire!”. O começo da canção, somente com o vocal avassalador de Jerry Lee Lewis casado aos acordes em stacatto e pausas ao piano, não deixa a menor dúvida: quando o resto do arranjo entrar, com o acréscimo de baixo e bateria apenas, deixa tudo tão demolidor e ninguém mais consegue resistir à canção. Hit nato desde a gravação nos estúdios da mítica Sun Records em 8 de outubro de 1957, a canção (o compacto subsequente de “Whole Lotta Shakin’ Goin’ On”) foi lançada em novembro e gravada para a trilha sonora do filme Jamboree! (uma produção de baixíssimo orçamento que estrearia nos cinemas em dezembro em uma tentativa da gigantesca companhia cinematográfica Warner Bros para atrair os dólares dos adolescentes branco e de classes mais abastadas que acabaram de descobrir ídolos no rock’n’roll e já gostavam de ver os seus shows e ouvir suas músicas nas poltronas das salas de projeção, que ainda reinavam absolutas no topo da preferência do entretenimento juvenil da época). Escrita por Otis Blackwell sob comissão de 50% dos direitos autorais após uma primeira tentativa descartada por Jack Hammer (quem havia sido de fato contratado para criá-la), “Great Balls Of Fire” descreve um frenesi sexual incontrolável provocado pelo protagonista dos versos por uma bela menina casa perfeitamente com o piano honky tonky de Lewis acelerado pela adrenalina dos hormônios em fúria. O título usa de forma metafórica uma popular expressão daqueles estados do sul dos EUA, regidos por uma sociedade de forte teor religioso e conservador. Na verdade, a expressão “grandes bolas de fogo” vem de passagens bíblicas do Velho Testamento que falam sobre acontecimentos de grandes proporções provocados por fenômenos vindos do céu. Ligado no frescor cultural da juventude daquela época, Blackwell ligou os pontos e construiu uma canção que, com apenas três acordes e durando menos de dois minutos, não deixa ninguém impassível ao ser executada.
Avô do punk rock
Não foi à toa que Jerry Lee ganhou o apelido de Killer. Suas performances ao vivo eram para lá de explosivas, chegando a ser literalmente incendiárias a ponto de colocar fogo no piano quando estava bem puto com questões de bastidores. Muitas vezes chutava o banquinho para trás e tocava de pé, muitas vezes colocava o pé nas teclas sem parar de martelá-las com os dedos das mãos. Isto em pela segunda metade dos anos 1950, quando os EUA ainda chafurdavam em um conservadorismo extremo comandado pelo senador Joseph McCarthy e o rock’n’rollcontinuava sendo compbatido com todas as forças pelos setores mais retrógrados da sociedade. O que não deixa dúvida para se afirmar que, se o Velvet Underground foi o pai do punk rock nos anos 1960, um pouco antes Lewis fora o avô do subgênero mais contundente e afiado da cultura jovem nascida na década anterior junto ao conceito de adolescência.
Ao vivo na Third Man Records
Jack White sempre teve obsessão em resgatar a carreira de importantes astros “esquecidos” do rock, rockabilly e country e dar a eles, além de oportunidade de visibilidade para as gerações mais novas, a gravação de um disco bacana sob a sua direção. Jerry Lee foi um destes escolhidos por White. Em 17 de abril de 2011, ele gravou ao vivo, no misto de estúdio e gravadora própria, doze faixas cantadas e tocadas pelo pioneiro do rock’n’roll em companhia de um trio especial, formado pelo lendário guitarrista Steve Cropper (responsável por boa parte do catálogo clássico da Stax), o baterista Jim Kelter (que participou, nos anos 1970, de discos solo e turnês dos ex-Beatles John Lennon, George Harrison e Ringo Starr) e o baixista Jack Lawrence (companheiro de Jack na formação das bandas paralelas Raconteurs e Dead Weather. O repertório de Live At Third Man Records é formado por clássicos gravados por Chuck Berry (“Sweet Little Sixteen”), Roy Orbison (“Down The Line”), Ray Charles (“Georgia On My Mind”) e do próprio Lewis (o gran finale com a dobradinha “Great Balls Of Fire” e “Whole Lotta Shakin’Goin On”).
Neste último dia 13 de março foi anunciada a morte do ator William Hurt, aos 71 anos de idade, de causas naturais. O ator norte-americano deixou uma extensa trajetória com seu nome nos créditos de interpretação de 106 filmes.
Para os brasileiros, o mais conhecido e importante foi, com certeza, O Beijo da Mulher Aranha. Na produção de 1985, com produção dividida entre Brasil e Estados Unidos e cenas dirigidas por Hector Babenco em São Paulo, sua presença em cena foi tão esfuziante que arrebatou o Oscar de melhor ator daquela temporada.
Em homenagem a Hurt, o Mondo Bacana enumera os oito trabalhos mais significativos de toda a carreira, marcada por uma série de grandes longas-metragens nos anos 1980, praticamente um emendado após o outro.
Corpos Ardentes (1981)
Lawrence Kasdan escreveu o roteiro de dois filmes marcantes do início dos anos 1980: O Império Contra-Ataca e Os Caçadores da Arca Perdida. O passo seguinte natural seria estrear como diretor e ele optou por fazer uma releitura de Pacto de Sangue, clássico filme noir dirigido em 1944 por Billy Wilder. Em Corpos Ardentes, acompanhamos o dia a dia de um advogado comum e sem ambições, Ned Racine, vivido por William Hurt. A vida dele se resume aos poucos clientes que defende e aos dois amigos com quem costuma beber no bar de uma quente cidade da Flórida. Certo dia, ele conhece Matty Walker, papel de estreia de Kathleen Turner, que diz para Ned: “Você não é muito esperto. Gosto disso em um homem”. Tem início um tórrido romance entre os dois que culmina na morte do milionário esposo de Matty. O diretor Kasdan, também autor do roteiro, revela um domínio absoluto de sua narrativa. Todo o elenco merece um destaque especial. Principalmente, Hurt e Turner, que exalam uma química arrebatadora quase sem igual no cinema. Preste atenção na participação de Mickey Rourke, em início de carreira. Corpos Ardentes é simplesmente imperdível.
O Reencontro (1983)
Em sua estreia como diretor, no drama noir Corpos Ardentes, Lawrence Kasdan tinha chamado a atenção da crítica. Ele resolveu, então, partir para uma história mais pessoal e introspectiva e realizou O Reencontro. O filme conta a história de um grupo de sete amigos que estudaram juntos na Universidade de Michigan. Dez anos depois da formatura, ele se reencontram em uma pequena cidade do interior da Carolina do Sul para o funeral de Alex, que se suicidou. Os outros seis: Sam (Tom Berenger), Michael (Jeff Goldblum), Nick (William Hurt), Harold (Kevin Kline), Chloe (Meg Tilly) e Sarah (Glenn Close) aproveitam o momento para fazer um balanço de suas vidas. Kasdan, que escreveu o roteiro junto com Barbara Benedek, inspirou-se em seus amigos dos tempos de faculdade. O Reencontro se desenrola praticamente todo em um mesmo cenário. As personagens falam sem parar e lavam bastante roupa suja. Parece filme francês, mas é americano. E dos bons. O elenco, hoje famoso, na época, em início de carreira, está excepcional. Duas curiosidades: 1) Kevin Costner fez o papel de Alex, mas as cenas de flashback foram cortadas na montagem final. Para compensar, o diretor o colocou em papel de destaque em seu filme seguinte, Silverado (1985); 2) Kasdan pediu ao elenco que ficasse junto antes das filmagens para que desenvolvessem aquela naturalidade comum em velhos amigos. O Reencontro foi indicado a três Oscar: filme, roteiro original e atriz coadjuvante (Glenn Close). Não ganhou nenhum. Ao invés disso, tornou-se cultuado por toda uma geração.
O Beijo da Mulher-Aranha (1985)
“Ela é… bem, ela é algo um pouco estranho. Isso é o que ela percebeu, que ela não é uma mulher como todas as outras. Ela parece toda envolta em si mesma. Perdida em um mundo que ela carrega fundo dentro de si”. É assim que Molina (William Hurt) começa a contar a história de uma mulher misteriosa para Valentin (Raul Julia). Ambos estão presos. O primeiro, é homossexual. O segundo, é um prisioneiro político. Molina adora cinema e para fugir daquela triste realidade, inventa enredos cinematográficos cheio de mulheres fatais, mistério e romance. Uma de suas heroínas é a Mulher-Aranha (Sonia Braga). Primeiro filme internacional dirigido por Hector Babenco, O Beijo da Mulher-Aranha é baseado no livro homônimo escrito pelo argentino Manuel Puig. Após o sucesso de Pixote (1981), Babenco teve as portas de Hollywood abertas e optou por uma trama próxima do universo narrativo com o qual ele estava acostumado. É curioso observar no desenrolar do filme a maneira como os estereótipos vão sendo trabalhados. Nem sempre o mais forte é o mais valente e muito menos o mais fraco se revela um covarde. Uma direção ao mesmo tempo seca e poética, característica marcante do cinema babenquiano. Além disso, estamos diante de um elenco estupendo e de William Hurt em estado de graça. Ele, que conquistou, merecidamente, o Oscar de melhor ator e também diversos outros prêmios de atuação naquele ano. Rodado em São Paulo, o filme teve uma excelente acolhida de crítica e público, o que possibilitou ao diretor outros trabalhos no exterior, mas sem o mesmo sucesso obtido por este.
Nos Bastidores da Notícia (1987)
Se James L. Brooks tivesse apenas produzido Os Simpsons, só isso já seria suficiente para que ele tivesse seu nome marcado na história da TV americana. Brooks, entretanto, fez muito mais do que isso. Ele é a mente criativa por trás de outras séries populares como Mary Tyler Moore e Taxi. Paralelo a seu trabalho na televisão, ele escreveu, produziu e dirigiu alguns filmes para cinema. Um deles trata justamente de um lugar que ele conhece muito bem: uma emissora de TV. Em Nos Bastidores da Notícia acompanhamos um triângulo amoroso-profissional que se estabelece entre as personagens de Tom (William Hurt), Jane (Holly Hunter) e Aaron (Albert Brooks). O filme é uma comédia romântica. Porém, mesmo sem se aprofundar nas questões propostas pelo roteiro, provoca uma discussão sobre ética jornalística e a espetacularização da notícia. Brooks é um ótimo roteirista e um excelente diretor de atores. É fácil comprovar isso pela maneira como o trio principal é apresentado no prólogo e a forma harmoniosa de interação em cena de todo o elenco.
O Turista Acidental (1988)
Existem aqueles que adoram viajar. Outros precisam por conta do trabalho. Alguns até viajam, mas gostam de se sentir em casa quando estão fora. Para este último grupo existe o guia do “turista acidental”. Este é o caso de Macon Leary (William Hurt), que detesta viajar e fazer qualquer coisa fora de sua rotina já programada. No entanto, o trabalho de Macon o “obriga” a viajar continuamente. Ele escreve guia de viagens para quem não gosta de viajar. Baseado no livro de Anne Tyler e adaptado e dirigido por Lawrence Kasdan, esse é o mote inicial de O Turista Acidental. Macon é metódico e vem de uma família igualmente metódica. Sua vida vira de cabeça para baixo quando uma tragédia familiar modifica completamente sua vida e motiva a separação de sua esposa, Sarah (Kathleen Turner), que não entende a aparente indiferença do marido. Um pequeno acidente doméstico faz com que ele conheça Muriel Pritchett (Geena Davis, no papel que lhe rendeu um Oscar de atriz coadjuvante). Kasdan, que iniciou a carreira como roteirista, sabe muito bem como estruturar uma história e faz isso com maestria neste tocante drama que tem seus bons momentos de “respiro” de humor, seja com a figura extrovertida de Muriel ou com a excêntrica família de Macon. E o elenco é de primeira.
Um Golpe do Destino (1991)
É comum ouvirmos dizer que os médicos se sentem como deuses. Muitos deles parecem insensíveis e não costumam estabelecer qualquer tipo de relação mais próxima com os pacientes. Pode até ser verdade, mas, em alguns casos, trata-se de um mecanismo de defesa. O doutor Jack MacKee (William Hurt) se enquadra perfeitamente nos dois grupos citados: sente-se um deus e sem compaixão alguma. Tudo, porém, muda em sua vida quando ele descobre-se um paciente também. Este é o mote deste filme dirigido em 1991 por Randa Haines. O roteiro, escrito por Robert Caswell, baseia-se no livro homônimo de Ed Rosenbaum. A diretora conduz sua narrativa “transitando” em uma tênue linha. Daquelas que têm todos os elementos para cair em melodrama carregado de clichês. Haines consegue escapar das armadilhas e tem em seu elenco o suporte necessário para manter a trama nos trilhos. Um Golpe do Destino fala de mudanças e superações. No entanto, o faz de maneira convincente, sem “forçar a barra”.
Cortina de Fumaça (1995)
“Se você não puder dividir seus segredos com seus amigos, então que tipo de amigo é você?”, pergunta Auggie para Paul. Este responde: “exatamente… a vida não valeria a pena”. Cortina de Fumaça tem como cenário principal uma tabacaria. Muitos dos diálogos do filme giram em torno de cigarros e charutos. Mas isso, como o próprio título nacional já anuncia, isso é apenas uma distração. O filme, dirigido por Wayne Wang, um chinês radicado nos Estados Unidos, a partir de um roteiro do escritor nova-iorquino Paul Auster, é uma ode à amizade. Auggie Wren (Harvey Keitel), é gerente de uma tabacaria no Brooklyn, em Nova York. Seu melhor cliente é o escritor Paul Benjamin (William Hurt), alterego de Auster. Ao redor dos dois orbitam diversas outras personagens e histórias. Auggie, todos os dias, no mesmo horário, bate uma foto da esquina de sua loja. Ele faz isso há anos. Paul precisa escrever um conto de Natal para uma revista e pede ao amigo que lhe conte uma história. É difícil descrever um longa como Cortina de Fumaça. As coisas acontecem de maneira sutil e envolvente. Sem pressa, o roteiro de Auster e a direção de Wang nos conduzem pelas vidas dessas pessoas que, de início, não conhecemos. Quando o filme termina, eles se tornaram nossos melhores amigos. Diálogos inspirados e personagens bem construídas são uma combinação infalível. De cara, você já aprende como medir o peso da fumaça. E no final, ao som da bela “Innocent When You Dream”, cantada por Tom Waits, somos brindados com um belo conto de Natal. E olha que ainda toca uma das melhores versões de “Smoke Gets in Your Eyes”, na voz de Jerry Garcia. Vencedor do Urso de Prata do Festival de Berlim de 1995, Cortina de Fumaça é daqueles filmes para se ter em casa e rever e rever e rever, sempre. Em tempo: logo após as filmagens, Paul Auster dirigiu junto com Wayne Wang, a partir de improvisos dos atores e de alguns outros convidados, uma continuação chamada Sem Fôlego (1995), que é legal, mas não tem o mesmo brilho. O DVD lançado no Brasil pela Editora Europa traz os dois filmes.
A Vila (2004)
Nem sempre é bom quando um artista chama muito a atenção em seus primeiros trabalhos. Quando o cineasta americano de origem indiana M. Night Shyamalan realizou O Sexto Sentido (1999), foi apontado como gênio e por conta da grande surpresa daquele filme criou-se uma enorme expectativa em relação aos seus trabalhos seguintes. De certa forma, Shyamalan, que é um diretor de muito talento, ficou estigmatizado. Não foi diferente com A Vila, lançado cinco anos depois. Aqui, acompanhamos o dia a dia de uma pequena e isolada aldeia que vive sob a contínua ameaça de criaturas que habitam seus arredores. Existe uma espécie de pacto entre os aldeões e os seres estranhos que moram na floresta. Um dos jovens moradores da vila, Lucius Hunt (Joaquin Phoenix), decide explorar a região além da floresta e essa ação provoca uma ruptura no tênue acordo existente. Mais uma vez Shyamalan desenvolve sua história como uma parábola e faz desta história um espelho da sociedade americana. Munido de um elenco dos sonhos, o diretor-roteirista-ator (ele faz uma ponta no filme!) discute, metaforicamente, a violência urbana e questões como segurança, relações familiares e choque de gerações. Conduz sua trama com habilidade e sutileza e nos reserva boas “surpresas”, que funcionam muito bem. Principalmente se o espectador não criar expectativas grandes demais e esperar ver um novo O Sexto Sentido.
Mestres do bandolim e do acordeão se reúnem para imprimir ao mesmo tempo sofisticação e descontração em clássicos do cancioneiro popular
Texto por Janaina Monteiro
Foto: Rodrigo Simas/DeckDisc/Divulgação
Só mesmo dois músicos virtuosos para unir no mesmo disco Stevie Wonder, Chitãozinho e Xororó, Gilberto Gil, Adoniran Barbosa e Astor Piazzolla. Quem conseguiu essa proeza foram os mestres Hamilton de Holanda, pernambucano e às do bandolim, e o sanfoneiro Mestrinho, sergipano cujo nome artístico dispensa elogios. Os dois soltaram dias atrás um álbum com arranjos originais sofisticados e ao mesmo tempo descontraídos, uma característica do cancioneiro popular.
Nas redes sociais, Hamilton contou que Canto de Praya – Ao Vivo (patrocinado pela cerveja Praya e lançado pela DeckDisc) nasceu de uma vontade descompromissada de encontrar os amigos e fazer música. Felizmente a reunião aconteceu no final de 2019, antes que a pandemia provocasse o isolamento social. O registro ao vivo e intimista é o segundo fruto do projeto (o primeiro teve como convidado João Bosco, parceiro de Aldir Blanc, falecido no último mês de maio, vítima da covid-19).
O álbum abre animado e acelerado com os forrós “Modulando” e “Escadaria”. Na sequência, a calmaria aparece com a releitura de “Te Devoro”, de Djavan, praticamente irreconhecível até 1’45”. A única parte cantada surge no final com o duo chamando a plateia para acompanhar o verso “Eu quero mesmo é viver pra esperar, esperar, devorar você”.
A improvisação toma conta de “Beijo Partido” (composição de Toninho Horta) e a versão de “Drão” (que Gil fez para a ex-mulher SanDrão Gadelha) também é toda cantada. Acordeão e bandolim, chorinho e forró, seguem lado a lado e a criatividade dos músicos transforma o hit “Evidências” (José Augusto/Paulo Sergio Valle), sucesso da dupla Chitãozinho e Xororó, num misto de tango com lamento sertanejo. Mas a surpresa maior fica com “Isn’t She Lovely”, de Stevie Wonder. Graciosa, a faixa leva a audiência acompanhar com palmas logo na introdução. O bandolim começa sutil, dá a vez para a sanfona e, nos últimos minutos da música, a dupla promove um show de improviso, que deixaria o compositor americano de boca aberta.
O clássico do chorinho “Brasileirinho” (Waldir Azevedo) ganha neste disco uma roupagem diferente, mais agressiva se comparada com outras versões já gravadas até hoje. Hamilton e Mestrinho travam um diálogo espontâneo entre seus instrumentos, que se transforma num duelo ligeiro e nervoso quando se aproxima o final.
Sobre a formação do repertório, Hamilton explicou: “Fomos escolhendo as músicas que gostávamos e que tivessem alguma ligação com o popular mesmo. Aquela faixa que a gente ouve e logo já vê um apelo popular”. A inclusão de “Libertango”, por exemplo, é um homenagem ao compositor argentino Astor Piazzolla. De fato, o tango, caracterizado pela melodia triste e nostálgica, vem bem a calhar nesta época de incertezas.
Cantor e compositor lança novo disco de surpresa, no qual revisita algumas velhas músicas suas em dueto com o clarinetista criado na Bahia
Texto por Janaina Monteiro
Foto: Divulgação
Sem alarde nem aviso prévio, Caetano Veloso lançou seu novo disco via streaming com nove versões de composições de sua autoria num dueto com o clarinetista Ivan Sacerdote. O álbum-surpresa também conta com participações do primogênito Moreno Veloso na percussão mais o sambista Mosquito e o violonista Cezar Mendes.
Caetano Veloso & Ivan Sacerdote é fruto da casualidade e encantamento do baiano pelo som cativante de Ivan. Nascido no Rio de Janeiro mas criado na Bahia, o clarinetista tem formação universitária no instrumento, foi solista em rodas de choro e acompanhou nomes expressivos da MPB, como Rosa Passos. A parceria gerou um álbum despretensioso que realça o ápice do amadurecimento do cantor e músico de 77 anos de idade, seja no tom mais grave de sua voz ou na sutileza do dedilhado. O doce sopro da clarineta de Ivan abre o disco e acompanha o violão de Caetano, imprimindo uma vivacidade alegre e serena ao repertório com faixas lado B como “O Ciúme” (originalmente de 1987), selecionadas conforme a preferência dos envolvidos no trabalho. Ivan passeia à vontade pelas melodias do mestre tropicalista, com seus solos improvisados, como se estivesse pincelando notas num jardim recriado por Monet. É um trabalho belo, sutil, tranquilo, para se deleitar com os arranjos singelos que mesclam jazz, samba e bossa nova, e aproximam Caetano cada vez mais do gênio João Gilberto, sua fonte inspiradora no início da carreira.
A primeira faixa do álbum, de Uns (1983), foi um pedido de Ivan. Em “Peter Gast” (pseudônimo de Johann Heinrich Köselitz, amigo do filósofo Friedrich Nietzsche) Caetano filosofa “Eu sou um/ Ninguém é comum e eu sou ninguém”. Do premiado disco Livro, de 1998, surgem “Minha Voz Minha Vida” e “Manhatã”, em que o clarinetista nos proporciona a sensação de levitar.
As duas canções mais conhecidas são “Trilhos Urbanos”, de Cinema Transcendental (1979), e a belíssima “Desde Que o Samba é Samba” (com a participação de Mosquito), gravada por Caetano no álbum-marco Tropicália 2 (1993), e que abre o disco João Voz e Violão, com a refinada interpretação do mentor da bossa nova.
Como diz o primeiro verso da quinta faixa, “Você Não Gosta de Mim”, você pode não gostar de Caetano e toda a sua polêmica e imperatividade que por vezes lhe conferem um ar de errônea arrogância. Entretanto, é indiscutível o seu legado para a MPB. Ele sempre foi um contestador, seja encabeçando o movimento tropicalista ou cantando sobre os “ridículos tiranos” (na letra de “Podres Poderes”, de Velô, de 1984). A pouco de completar oito décadas de vida, Caetano se apropria da idade da serenidade e deixa de lado os discursos eloquentes para combater as trevas usando suas armas mais poderosas. Que são a sua voz e a sua arte.