Movies, Music

Back To Black

Cinebiografia traz um olhar terno sobre a fragilidade emocional de Amy Winehouse nos bastidores do mundo da música pop

Texto por Abonico Smith

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Amy Jade Winehouse dizia que gostaria de ser lembrada pelas pessoas como um grande alívio de cinco minutos, para que estas pudessem escutar sua voz nas canções e se esquecer dos problemas da vida por este instante. Não estava atrás de sucesso mercadológico como cantora: queria apenas se divertir e ser reconhecida pelo seu talento musical aliado ao serviço de instrumento para o sentimento alheio. Entretanto, a fama veio e também de modo enviesado. Ganhou vários prêmios (entre eles uma limpa de Grammy num mesmo ano), vendeu milhões de discos em todo o mundo e se transformou em principal objeto midiático de paparazzi e editores de tabloides sensacionalistas, que não se importavam em devassar, dia após dia, a sua problemática vida pessoal em fotografias e manchetes garrafais.

Depois de tanto batalhar pela carreira e atingir o auge para logo depois mergulhar em uma espiral de confusões e abusos, tentou se reerguer e ficar sóbria até 22 de julho de 2011. No dia seguinte, a tragédia: seu corpo foi achado em sua residência em Londres, depois de uma noite de recaída etílica. Amy Winehouse, então, juntava-se a nomes como Jimi Hendrix, Janis Joplin, Brian Jones e Kurt Cobain no grupo dos grandes ícones da música jovem que morreram aos 27 anos de idade.

Já com o devido distanciamento temporal da ascensão e queda da cantora, chega aos cinemas a sua cinebiografia Back To Black (França/Reino Unido/Estados Unidos, 2024 – Universal Pictures). A seu favor, a diretora Sam Taylor-Johnson, que não é marinheira de primeira viagem em adaptação da vida pré-fama de ícones pop (ela assinou O Garoto de Liverpool, que mostra a adolescência de um John Lennon antes dos Beatles), conta com um recorte temporal favorável: das primeiras aventuras da teenager Amy nos palcos da região boêmia de Camden Town à fantástica noite em que arrebatou seis Grammy em 2008 (gravação do ano, álbum do ano, canção do ano, revelação, álbum pop com vocais e performance feminina pop com vocais) não se passou nem uma década. Portanto, um período perfeito para ser trabalhado no roteiro de duas horas assinado por Matt Greenhalgh, que, por sua vez, também tem experiência na equação cinema + música (fez o mesmo trabalho em O Garoto de Liverpool e Control: A História de Ian Curtis).

Marisa Abela tem a dura missão de encarnar Winehouse nas telas. E a faz com competência, inclusive emprestando sua voz a clássicos da cantora e imitando seus maneirismos gestuais de modo a fazer com que quem veja abstraia o fato de não ser a própria popstar ali em cena. Nas cenas de maior dramaticidade também passa com louvor, imprimindo uma Amy tão durona quanto insegura. Jack O’Connell, como o controverso namorado/marido Blake Fielder-Civil, é outro a cumprir bem o seu papel, imprimindo a rusticidade um tanto quanto ingênua que a  imprensa sensacionalista britânica sempre atribui à sua imagem de bad boy. No núcleo familiar da personagem principal, a avó Cynthia (Lesley Manville) e o pai Mitch (Eddie Marsan), ambos apaixonadíssimos por jazz, também ganham peso na narrativa, conferindo um tanto de apoio emocional e segurança à cantora desde o início da trajetória artística. Isso reforça o objetivo de Matt e Sam, que é focar em uma Amy Winehouse além das canções e da mídia, mostrando um lado que a maioria de seus fãs não chegou a conhecer – mesmo, no caso de Mitch, indo contra a opinião frequente de que muitas vezes ele atrapalhava a carreira da filha e exercia uma certa dose de vilania junto a ela nos bastidores.

O olhar terno de Taylor-Johnson sobre a fragilidade emocional de sua protagonista pode até decepcionar muitos fãs que desejariam ver retratada nas telas a Amy poderosa, que não tardou a conquistar o mundo com seu misto retrô de visual e sonoridade (penteado colmeia, roupas de brechó vintage, pop de girl groups dos anos 1960) e um punhado de hits baseados em versos tão hiperconfessionais quanto suas tatuagens, depois de mudar o direcionamento artístico outrora mais voltado à tão adorada influência caseira do jazz. Back To Black chegou dividindo opiniões lá fora. Entretanto, é uma obra competente, mesmo enfrentando as limitações habituais impostas no suporte cinematográfico a uma proposta biográfica. Vale a pena ser visto mesmo por quem esperava muito do filme já há algum tempo.

Music

Rick Wakeman – ao vivo

Ícone do rock progressivo traz a Curitiba sua turnê de despedida com o repertório montado para emocionar os seus fãs

Texto por Daniela Farah

Fotos: Abonico Smith

De todas as promessas de turnê derradeira de um artista, a Final Solo Tour de Rick Wakeman é, com certeza, uma das únicas com as qualificações para cumpri-las. O show, que passou por Curitiba no dia 15 de abril, na Ópera de Arame, é uma homenagem muito sensível e delicada para os fãs. E é tão bonito quando essa relação entre artista e fã atinge esse nível de respeito.

O conforto que a vida digital proporciona pode se tornar um impedimento para que os fãs saiam de casa e encontrem o artista tête-à-tête. E ainda assim, Rick conseguiu praticamente encher a casa em plena segunda-feira chuvosa na cidade. Aliás, essa foi a parte fácil, o difícil mesmo foi fazer as pessoas irem embora depois das luzes se acenderem.

De outro ponto de vista, há muitas turnês finais que se tornam extremamente lucrativas e é visível os olhos dos artistas brilharem em dólar enquanto fazem estripulias no palco. Mas não para Wakeman. O gênio compositor dos teclados montou um concerto belíssimo, para quem é fã ver. Ele repassou grande parte de suas obras e deu o melhor de si no palco, ainda que visivelmente debilitado pela idade.

Uma das frases mais impactantes ditas pelo músico foi a que ele dividiu o palco com diversas pessoas, incluindo orquestras e coros, mas que dessa vez estaria sozinho. E ele fez isso em um palco limpo, sem qualquer uma das grandes afetações que ele tanto gostava quando era mais novo.

Rick é um conversador nato e entre as poucas coisas que conhece sobre o Brasil estão os craquesde futebol Pelé e Rivelino. E no palco da Ópera de Arame ele se dividiu entre um piano e dois sintetizadores, enquanto compartilhava algumas poucas histórias. As primeiras foram o fato de que Henrique VIII teve seis esposas mas ele, apenas quatro. Uma brincadeirinha leve para anunciar que tocaria “Catherine Howard”, de seu álbum solo The Six Wives Of Henry VIII, lançado em 1973.

“Eu toquei em muitos discos, para muitas pessoas. Alguns eram muito bons, outros eram terríveis, provavelmente por causa de mim. Tem uma pessoa que eu adorei tocar, que foi o David Bowie. Aqui vão duas peças que eu gravei com ele: uma é ‘Space Oddity’ e a outra é ‘Life on Mars?’”, disse Wakeman, já na metade do repertório.

As marcas autobiográficas do show vão desde as histórias ao set list, que é constituído basicamente por um resumo de sua obra. Assim, ele incluiu sua carreira como pianista de estúdio, aqui foi representada pelos trabalhos com o Bowie, mas ele também tem em sua lista de preferidos nomes como Elton John, Lou Reed, Cat Stevens, entre outros. Na sequência da dobradinha de Bowie veio o álbum de 1975, The Myths And Legends Of King Arthur And The Knights Of The Round Table, representado pelo medley de “Arthur”, “Guinevere”, “The Last Battle”, “Merlin The Magician”.

E quanto ao Yes? Seria uma tarefa um tanto árdua escolher uma ou outra música entre suas idas e vindas com uma das bandas mais famosas do rock progressivo. Wakeman não escolheu, portanto. Eis que faltava um traço de seu grandiosismo no show e isso foi representado justamente na hora do Yes.

“Desta vez eu queria fazer algo diferente”, declarou ao microfonou no momento reservado ao grupo britânico. “Em vez de tocar uma peça do Yes, vai ser cerca de 30. E o que fiz foi pegar os temas e melodias e colocá-los em uma longa peça musical, chamado “Yessonata’. É longo, leva cerca de quatro horas… (risos) Então veja quantas peças do Yes você consegue identificar”. E os fãs responderam cantando, aplaudindo ou gritando ou mesmo fechando os olhos e jogando a cabeça para trás para entrar em delírio cada vez que reconheciam uma melodia.

Para finalizar, ele fez sua própria versão de “Help!” e “Eleanor Rigby”:“eu faço um pouco diferente do que eles (John Lennon e Paul McCartney) fizeram.”, disse um divertido e até atrevido Rick. “Eleanor Rigby”, então, veio como um mamute de peso absurdo.

O concerto poderia muito ter acabado aqui e o público já estaria em êxtase. O pianista até agradeceu e saiu do palco. Mas como encerrar a última turnê sem tocar Journey To The Centre Of The Earth? O álbum de 1974 foi um marco tanto em sua carreira, quanto na história da música – que, aliás, muitas vezes se confundem.

Mas Rick Wakeman fez esse show para os fãs, e essa é sua última turnê. Portanto, ele voltou ao palco, ovacionado, claro! “Em 1974, quando eu era bem pequeno… (risos) eu escrevi uma peça que se chama Journey To The Centre Of The Earth. Eu gravei com uma grande orquestra, um grande coro, uma grande banda. Mas eu a escrevi no piano e assim é como eu criei”, disse se sentando-se ao instrumento de cauda.

Rick agradeceu, foi novamente ovacionado e, enfim, retirou-se do palco. Já o público demorou mais um tempo e se dividiu entre os que precisaram absorver o processo do que acabara de acontecer e entre os que formaram uma longa fila pedindo para que alguém da produção carregasse um disco ou um pôster para o músico autografar ou mesmo aguardando no portão que levaria à entrada para o camarim. 

Set list: “Jane Syemour”, “Catherine Howard”, “Space Oddity/Life On Mars?”, “Arthur/Guinevere/The Last Battle/Merlin The Magician”. “Yessonata” e “Help!/Eleanor Rigby”. Bis: “The Journey/Recollection”.

Music

Beatles

Resgatada a partir de uma fita demo de John Lennon nos anos 1970, canção “final” do grupo se revela um paradoxo de viagem pelo tempo

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Reprodução

Neste último dia 2 de novembro chegou aos ouvidos do mundo “Now And Then”, a canção “final” dos Beatles. Construída a partir de uma fita demo gravada por John Lennon no fim dos anos 1970, ela foi uma das três obras dele a chegar nas mãos de George Harrison, Paul McCartney e Ringo Starr, quando estes decidiram levar adiante o projeto Anthology, em 1994. As três canções ficaram de fora do álbum póstumo de John, Milk And Honey, lançado em 1982, no qual as últimas gravações dele foram aproveitadas.

Na época não havia nem traço da tecnologia que se estabeleceu ao longo dos anos seguintes. Se foi possível trazer à vida em 1994/95 “Free As A Bird” e “Real Love”, as outras duas obras perdidas de John, o mesmo não aconteceu com “Now And Then”. Alegações sobre o estado da gravação e, sobretudo, a precariedade do registro de sua voz, sentenciaram a canção aos arquivos e, quem sabe, ao limbo por quase vinte anos. Até que entrou em cena o cineasta neozelandês Peter Jackson. Responsável pela revisão mais recente dos arquivos dos Beatles, Jackson e sua equipe reencontraram o registro primordial de John e, com todo o aparato técnico de hoje, conseguiram resgatar a voz dele e acenar com a chance de gravar “Now And Then”, cerca de 45 anos depois de sua concepção. O resultado é 100% Beatles. Mas, acima disso, 150% John nos anos 1970.

“Now And Then” é uma canção de amor, de preocupação com a permanência do sentimento ao longo dos anos, com a força que a gente precisa ter para sentir o mesmo por alguém mesmo com tanto tempo transcorrido. É uma bela declaração de amor a Yoko Ono, a musa de John, a responsável por boa parte de sua formação artística a partir de meados dos anos 1960. Repito sempre esta frase: “quem implica com a presença de Yoko na vida de John esquece que seu papel foi decisivo na transformação de Lennon no mito que se formou. Sua combatividade política, sua postura diante do mundo, sua atuação como pai, tudo isso tem a ver com a interação com Yoko. E foi da generosidade dela – que cedeu a fita original de Lennon aos beatles remanescentes em 1994 – que temos esta canção, direto do Túnel do Tempo.

George, Paul e Ringo participam da gravação. Harrison, morto em 2001, deixou registros nas sessões de gravação para as Anthologies, enquanto Paul e Ringo, que também participaram daqueles encontros, acrescentaram partes novíssimas em 2023. Quem produz é Giles Martin, responsável pelas sensacionais remasterizações que a obra dos Beatles vem recebendo desde a década de 2000. Ele aproveitou as pré-produções de Jeff Lynne dos anos 1990 e recrutou uma orquestra, que trabalhou sem saber que gravaria algo para… uma canção dos Beatles.

Pois bem. Com a canção no mundo, é de se esperar uma comoção generalizada, certo? Bem, sim. Muitos fãs da banda abraçaram a chegada de “Now And Then” como deve ser, um presente. Pense bem: por que diabos os envolvidos no processo criativo se dariam ao trabalho de resgatar uma canção dos Beatles a esta altura do campeonato? O legado do grupo está consolidado há décadas, seu catálogo é imaculado, todas as ações de revisão da obra dos Fab 4 são extremamente criteriosas, bem feitas e respeitosas. Por que então alguém resolveria provocar os fãs de música em 2023 com um artefato que já nasce atemporal? Porque a função da arte é essa, provocar. E “Now And Then” é arte em vários sentidos. Além de ser uma canção pop por excelência – em estrutura, duração, conceitos, estética – ela é uma peça dotada de sentidos únicos. Ela é de outro tempo, foi feita em um contexto que impediria – e impediu durante muito tempo – a sua existência. Ela só foi lançada por conta de um esforço de décadas. Enquanto isso, a música pop de 2023 é lançada após poucas horas num estúdio caseiro, postada online num serviço de streaming, esperando a atenção das pessoas.

“Now And Then” vai contra tudo isso. Mesmo assim, ela está longe de ser conservadora ou despertar a nostalgia das pessoas. A rigor, ela é um produto de seu tempo – ou seja, o nosso. Ela é um paradoxo: uma canção dos Beatles, que encerraram suas atividades em 1970, composta por um dos integrantes, morto em 1980, trabalhada em 1994 e finalizada em 2023. Ela é uma distorção temporal, das mais adoráveis. Mas ser um produto de 2023 a expõe aos detritos da época atual, que se materializam em comentários lamentáveis feitos sobre sua chegada. Repito: ninguém é obrigado a gostar de nada, concordar com nada, muito menos com meu ponto de vista neste texto. Contudo, qualquer fã de música com o mínimo de noção de que ela é produzida num determinado espaço de tempo e que, via de regra, aspira a transcendência deste tempo, precisa celebrar a chegada da música dos Beatles. Já li críticas à arte do single, já vi gente desprezando a produção de Martin e McCartney (veja bem, de Giles Martin e Paul McCartney), bem como atacando a relevância da gravação. Vi gente se referindo a “Now And Then” como “sobra de estúdio do Lennon”. Via de regra, essas pessoas aplaudem gravações de bandas como Foo Fighters, Coldplay, Red Hot Chili Peppers, isso só para ficar num terreno conservador e rock de opinião, pois, via de regra, essas pessoas enaltecem registros de artistas muito, muito menos interessantes ou com uma obra minimamente próxima da dos Beatles.

Uma crítica básica e simples é aquela que desmerece “Now And Then” em relação às suas irmãs gêmeas “Free As A Bird” e “Real Love”, gravadas em 1994/95. Pense: são canções que estão disponíveis para audição há cerca de quase trinta anos e, portanto, já criaram nos ouvintes um sem-número de laços afetivos e referências que são fruto do tempo transcorrido. “Now And Then” chegou… ontem! Além disso, é uma triste tendência do ser humano optar pela acomodação pela segurança do que conhece.

Sendo assim, esta nova canção ainda tem um caminho a percorrer, uma trajetória a criar, um lugar a buscar no imaginário dos fãs de música. Ela estaria num Top 10 da banda? Num Top 50? Não sei. No meu caso, “Free As A Bird” se tornou uma das minhas canções preferidas dos Beatles em todos os tempos. Além da beleza da melodia e do resultado final, ela me proporciona lembranças e associações que são só minhas e que significam muito para mim. Mas isso não faz dela uma unanimidade, pelo contrário. Sendo assim, a “canção final” dos Beatles ainda tem muito o que viver. Ainda bem.

Se você é um dos fãs audiófilos, com acesso aos estúdios de gravação mais modernos, com uma sensibilidade ímpar e um conhecimento/capacidade de expressão à prova de falhas, além de uma vasta experiência no assunto, dê mais uma chance à pobre obra dos Beatles. Por favor.

Só falando assim.

Music

Ira!

Oito motivos para não perder o show que recria na íntegra as oito faixas de Psicoacústica, o disco mais conceitual e cultuado do quarteto

Texto por Abonico Smith (com colaboração de Filipe Silva)

Foto: Ana Karina Zaratin/Divulgação

Deus escreve certo por linhas tortas, já dizia aquele velho provérbio. A frase parece se encaixar bem quando o assunto é Psicoacústica, o terceiro álbum da carreira do Ira!. Lançado em maio de 1988, o trabalho foi precedido por uma grande expectativa. O quarteto paulistano vinha de dois primeiros discos muito badalados por crítica e público, tendo o segundo, de dois anos antes, ultrapassado a marca das 250 mil cópias vendidas. Pegou o tempo das vacas gordas do Plano Cruzado e impulsionou a carreira, ainda curta, de uma banda que apresentava aos jovens brasileiros a sonoridade dos mods britânicos da década de 1960. De quebra, jogou o grupo, já bastante conhecido do circuito underground, ao estrelato nacional, chegando a garantir uma escalação para a primeira edição do megafestival internacional Hollywood Rock, surgido na cola do Rock In Rio.

Com a moral alta dentro da gravadora, ficaram livres para fazer o que quiseram durante a concepção e gravação do álbum, inclusive tendo orçamento generoso e tendo o privilégio de poder produzir a própria obra. Contudo, o resultado flopou. Pelo menos comercialmente falando. Oito faixas longas no vinil, arranjos extensos e nada radiofônicos. Não havia quase refrão e a viagem sonora levou Nasi (voz), Edgard Scandurra (guitarras), Gaspa (baixo) e André Jung (bateria) a explorarem sonoridades e ritmos que ainda não cabiam direito nos ouvidos da multidão que consumia aquele “novo” nicho fonográfico brasileiro chamado rock. Resultado, o disco não ganhou videoclipe para a divulgação na TV aberta e tocou bem pouco nas emissoras que abriam (muito) espaço em sua programação a outros colegas de gênero. A chegada a “apenas” 50 mil exemplares adquiridos nas lojas foi considerada decepcionante.

Psicoacústica foi uma espécie de rebeldia do Ira! frente ao pertencimento ao mundo da fama e do mainstream. A banda renegou o modus operandi de fazer playback em programas de auditório. O dinheiro torrado pela gravadora meio que queimou o filme dentro da própria casa – outros três álbuns chegaram a ser lançados pela Warner (então WEA), mas nem a atenção da gravadora nem as vendas conseguiram voltar aos velhos tempos – tanto que o lançamento em CD levou anos e anos e anos para acontecer, mesmo com a explosão do consumo do formato nos anos seguintes ao Plano Real, em meados dos 1990s. Só que, por outro lado, do fracasso nasceu o culto: muitos fãs fiéis amaram o disco e fizeram com que ali nascesse uma das fases mais queridas da banda. Não à toa, listas de melhores elaboradas pelas revistas Rolling Stone e Billboard já neste século 21 consideram o conjunto destas oito faixas “estranhas e esquisitas” um dos cem melhores trabalhos da música brasileira de todos os tempos.

Por isso, Psicoacústica é considerado hoje um dos grandes ativos dentro da trajetória do Ira!. Hoje com a formação modificada (Evaristo Pádua na bateria e Johnny Boy Chaves no baixo, ambos com passagens pela banda solo de Nasi), o grupo resolveu celebrar os 35 anos de Psicoacústica levando-o na íntegra aos palcos. O show leva, no decorrer deste ano, aos espectadores de algumas grandes cidades brasileiras a mesma ordem original das faixas. A estreia ocorreu em primeiro de abril em São Paulo. Ontem foi a vez de Porto Alegre. Hoje (7 de outubro), quem recebe o espetáculo é Curitiba (clique aqui para mais informações sobre horário, local e ingressos).

Mondo Bacana destaca abaixo oito motivos para você não perder esta apresentação especialíssima de poucas datas espalhadas pelo calendário de 2023.

Fartos do rock’n’roll

Com moral dentro da gravadora, o Ira! conseguiu fazer com que um barracão no bairro paulistano da Barra Funda com a instalação até de uma estrutura de palco vinda do Radar Tantã (danceteria paulistana que ficava no lugar depois consagrado pela marca AeroAnta). Assim, os quatro tiveram liberdade de tempo e pressão para criar, através de jam sessions, algumas faixas que viriam a ser gravadas em Psicoacústica. A ideia, entretanto, era fugir do esquema de banda mod que predominara nos dois álbuns anteriores. Então surgiram arranjos mais longos e pesados, novas timbragens, canções sem aquele esquema tradicional de estrofe e refrão intercalados e flertes com outros ritmos e gêneros, como o psicodelismo, o hard rock, o reggae, a embolada e o hip hop. Edgard compôs uma canção, com muito humor, chamada “Farto do Rock’n’Roll”, que foi incluída no lado B do vinil, só que (ironia das ironias!) o arranjo é capitaneado por uma guitarra bem pesada e que dobra o riff de baixo criado por Gaspa. Depois um longo tempo trabalhando em estúdio (fazendo prés em Sampa, gravando oficialmente no Rio) possibilitou mais experimentos que rompessem com o padrão do rock básico do power trio com guitarra, baixo e bateria. Edgard explica. “Todos os trabalhos do Ira! sempre foram conceituais. Não digo discutidos anteriormente, pensados, mas às vezes intuitivamente acabaram criando um caminho a se trilhar, de sonoridade, de conceito, de paisagem musical. E assim foi com o Psicoacústica. A gente mudou um pouco os timbres, os efeitos, usando mais tecnologia. Acho que no princípio o Ira!, de criação, era muito inspirado nos nossos ídolos, e os ídolos como os Beatles. Vamos dizer que não seja a maior influência da gente, mas tem um Sgt Pepper’s na sua carreira. Assim como Clash tem o Sandinista, o Who tem o Quadrophenia. E outros artistas têm um disco especialmente conceitual. Acho que o Ira! tem esse objetivo de fazer discos diferentes que deixem marcas mesmo e o Psicoacústica foi feito pra não ser uma continuidade, teve um rompimento ao mesmo tempo que expunha o melhor de todos nós.”

Flerte com o hip hop

Lançada no mesmo ano de Psicoacústica, a coletânea Hip Hop Cultura de Rua significou o marco zero do rappaulistano no mercado fonográfico. O álbum reúne os grupos e pessoas que costumavam se encontrar na estação de metrô do Largo de São Bento para dançar break, falar sobre grafite, trocar informações sobre o efervescente gênero que vinha dos guetos negros dos grandes centros americanos e ainda compor as primeiras letras. Nasi e André foram dois dos produtores destas gravações. O diálogo constante com essa turma toda se refletiu no disco do Ira!. Em “Farto do Rock’n’Roll”, o vocalista usa e abusa dos scratches. Já o canto falado em cima do ritmo aparece em “Advogado do Diabo”. E o sampler copia trechos incisivos do filme O Bandido da Luz Vermelha em “Rubro Zorro”.

Prévia do manguebit

Chico Science gostava tanto de “Advogado do Diabo” que às vezes incluía a música no set list de seus shows. Tudo porque, alguns anos antes do manguebit surgir em Recife para ser exportado para o resto do país e o mundo, o Ira! já conectava o regionalismo musical brasileira (no caso, a percussão nos pandeiros da embolada nordestina) com o que as antenas captavam de sonoridade vinda do exterior (no caso, o hip hop nova-iorquino). Sem falar no teor extremamente crítico da letra, que também já antecipava toda a esculhambação que temos visto ultimamente nos meios da politica e da justiça neste país. No disco, a faixa ainda acaba com o sample de discurso de uma conhecida celebridade que transita entre o religioso e a caridade, mandando ver na conjunção entre o fascismo e o neoliberalismo nas ondas de uma emissora AM: “Não adianta, tem que haver rico, tem que haver pobre; tem que haver negro, tem que haver branco; tem que haver patrão, tem que haver empregado; por que o povo quer assim!”.

Verão da lata

Era uma vez um navio de bandeira panamenha chamado Solana Star, que partiu da Tailândia rumo aos Estados Unidos no segundo semestre de 1987. Além de pescados, a tripulação também traficava 22 toneladas de maconha acondicionadas em 15 mil latas. Contudo, a agência americana de combate às drogas descobriu o plano e avisou a polícia federal brasileira porque a embarcação precisaria aportar em nosso país para fazer alguns reparos. Com a delação do chefe do bando, o Solana Star precisou se livrar do material ilícito e a solução foi jogar tudo em águas internacionais antes de chegar por aqui. Resultado: o verão tupiniquim, da Bahia ao Rio Grande do Sul, foi infestado a partir de dezembro por estas latas trazidas pelas ondas até as praias. Quem provou da erva atestou que nunca existiu (e nem deverá existir) qualquer outra coisa parecida ou melhor no ramo. Foi tanto fuzuê que a PF paralisou todas as outras atividades naquele momento e se concentrou somente neste caso. Enquanto isso, muita gente aproveitou a remessa gigante para ganhar dinheiro com vendas posteriores ou então viajar bastante com o consumo. E o Ira!, enquanto gravava o disco, ficou fã. O que acentuou ainda mais o psicodelismo de Psicoacústica. Sobretudo na última faixa do lado B, “Mesmo Distante”. Nela, Edgar sobrepõe camadas e texturas de craviola, violão e guitarras cheias de efeito. Tem até loop do instrumento tocando ao contrário. Para Scandurra, a época do fumo da lata foi importante. “A gente já estava querendo alguma coisa que transpusesse a coisa do experimentalismo técnico, de ficar experimentando ritmos musicais como se fosse um trabalho acadêmico. A gente buscava uma essência que talvez a lata tenha nos ajudado a atingir. Principalmente quando você fica mais de um mês dentro do estúdio gravando. Era um disco de oito músicas, não um disco de muitas faixas. Um disco de oito músicas densas, grandes, longas. Acho que a lata foi importante para a coisa recreativa, da diversão, que a cannabis produz, provoca na pessoa, e na inspiração mesmo, relaxamento.”

O terceiro mundo vai explodir!

Nasi dá seu atestado sobre o período de concepção de Psicoacústica: “vivíamos um período muito conturbado do Brasil, prestes a ter sua primeira eleição a presidente [o que aconteceu em 1989], saindo de uma ditadura, crise econômica séria, vindo do final de um governo corrupto e inadequado como foi o Sarney, um vice [presidente] incompetente e cheio de oligarquias ao seu lado. Acho que tudo isso, assim como os dois primeiros discos do Ira! refletem uma fase mais solar, digamos, mais esperançosa do pais, 1985, 1986, esse momento do país refletiu muito nesse ar sombrio do disco, nessa atmosfera carregada dele, em letras por vezes pessimistas ou então questionadoras, como ‘Pegue Essa Arma’. Por isso que o Psicoacústica é muito diferente em atmosfera e em letra dos dois primeiros”. Na citada “Pegue Essa Arma”, que também antevia o Brasil desses últimos anos de (des)governo violento e superarmamentista, o vocalista ainda encaixou um sample com duas frases extraídas do filme O Bandido da Luz Vermelha: “O terceiro mundo vai explodir! E quem tiver de sapato não sobra!”. 

Bandido da Luz Vermelha

João Acácio Pereira da Costa aterrorizou São Paulo praticando crimes pela madrugada durante cinco anos na década de 1960. Estupros, roubos, assaltos e assassinatos foram atribuídos pela polícia a ele, que para suas atividades ilícitas se utilizava de quatro personalidades diferentes. Uma delas era o Bandido da Luz Vermelha. O fato de carregar uma lanterna com lente vermelha chamou a atenção da imprensa que o popularizou com este apelido. O cineasta Rogerio Sganzerla pegou a história de João Acácio como base e fez em 1968 um filme de mesmo nome, com o ator Rogério Villaça como o protagonista. Muita gente acha que este longa-metragem foi a inspiração para a faixa de abertura de Psicoacústica. Afinal, “Rubro Zorro” já começa com o slogan “Trata-se de um faroeste sobre o terceiro mundo”, extraído de lá. Só que o que quase ninguém sabe é que a inspiração de João Acácio veio dos Estados Unidos. Caryl Chessman foi condenado à morte em 1948 pela mesma série de crimes ocorridos nas redondezas de Los Angeles, também sob a pecha de utilizar uma lanterna de luz avermelhada. Depois de ser preso, nos anos 1950, tornou-se popular mundo afora por ter estudado Direito, ter sido o próprio advogado e escrito um romance e três livros autobiográficos que despertavam sentimentos extremos e difusos, de compaixão a raiva. Caryl foi executado na câmara de gás em 1960 e vários versos escritos por Nasi para esta canção fazem referência a ele. Depois da morte de Sganzerla, a viúva do cineasta colocou vários trabalhos inéditos feitos por ele, inclusive um clipe como cenas de seu longa-metragem para esta faixa do Ira!. Na época, Nasi o convencera de dirigir o vídeo de “Pegue Essa Arma”, mas a gravadora deu para trás e nada rolou.

Poema português

Quando serviu o exército, Scandurra conheceu outro soldado, de sobrenome Esteves, que lhe deu um poema escrito num papel. Este poema acabou virando uma música. “Receita Para Se Fazer Um Herói” já estava no repertório do Ira! havia algum tempo mas só foi gravada em Psicoacústica e virou a única faixa a emplacar execuções radiofônicas. Só que algum tempo depois a banda descobriu que, na verdade, o poema – bastante sarcástico, por sinal – era de Reinaldo Ferreira, um dos maiores poetas da História portuguesa, com especialistas comparando-o a Fernando Pessoa.

Complemento do set list

Nasi brinca que o show não duraria nem 40 minutos se a banda tocasse somente as oito faixas de Psicoacústica. Então, acabada a reedição mas uso poucoo mas uso poucoo ao vivo deste cultuado álbum, entra uma segunda parte do concerto, que privilegia várias de suas principais músicas espalhadas pela extensa discografia. Vai ter também grandes hits, como “Núcleo Base”, “Dias de Luta”, “Flores em Você” e “Envelheço na Cidade”? Óbvio. Vai ter pequenas pérolas vindas de álbuns nem tão conhecidos, como “Tarde Vazia”, “Eu Quero Sempre Mais” e “O Girassol”? Sim. Vai ter canção da safra mais nova, do disco criado e concebido depois do hiato de alguns anos? Também e ela se chama “O Amor Também Faz Errar”. Agora o mais surpreendente é que o Ira! também tocará três covers escolhidas a dedo de clássicos do rock anglo-americano (bom… se contar os nomes das músicas ou os artistas aí vira spoiler!).

Music

Astrud Gilberto

Cantora que popularizou a bossa nova no mundo todo deixa legado inestimável apesar de ter passado os últimos anos no isolamento

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Reprodução

Acordamos nesta terça-feira 6 de junho com a notícia triste do falecimento de Astrud Gilberto. Ela foi, durante um bom tempo, a cantora mais importante e conhecida do Brasil no exterior, responsável pela voz em “The Girl From Ipanema”, canção que popularizou a bossa nova em nível mundial, gravada em 1963. Filha de pai alemão e mãe brasileira, ele professor, ela instrumentista, Astrud já tinha certa familiaridade com a música, mas a participação no clássico de Tom Jobim e Vinícius de Moraes foi sua primeira gravação profissional, aos 22 anos. E aconteceu por acaso: na cabine de gravação do estúdio da Verve Records, em Manhattan, naquele dia 18 de março de 1963, estavam monstros como o produtor Creed Taylor, o letrista Norman Gimbel (que compôs a versão em inglês de “Garota de Ipanema”), o engenheiro Phil Ramone, além de João Gilberto (então marido de Astrud), o saxofonista Stan Getz e o próprio Tom Jobim. Taylor queria alguém para cantar a versão em inglês e Astrud se ofereceu para a tarefa. O resultado – um dueto entre João e Astrud – foi parar em Getz/Giberto, o álbum que catapultou a bossa nova para os Estados Unidos e, dali, para o mundo.

Este episódio, ainda que pareça o início de uma carreira brilhante, marca, na verdade, um grave caso de abuso. Astrud, inexperiente e jovem, recebeu apenas 120 dólares por sua participação em Getz/Gilberto. João, segundo Chega de Saudade, livro escrito por Ruy Castro, lucrou cerca de 23 mil dólares, enquanto Stan Getz arrebatou perto de um milhão de dólares. Além disso, a participação dela foi omitida dos créditos do álbum, mesmo sua interpretação sendo indicada ao Grammy como melhor gravação em 1964. Nos meses seguintes, ela integrou a banda de Getz em um papel secundário, ganhando mal, ao mesmo tempo em que via seu casamento com João terminar por conta da relação dele com Miúcha.

Felizmente, Astrud meio que renasceu em 1965, deixando a banda de Getz e todo o resto para trás, iniciando, de fato, uma carreira vitoriosa na Verve, tendo gravado, de 1965 a 1971, nada menos que oito discos solo – The Astrud Gilberto Album (que lhe rendeu mais uma indicação ao Grammy de melhor interpretação vocal, feminina), The Shadow Of Your SmileLook To RainbowBeach SambaA Certain Smile, A Certain SadnessWindySeptember 17, 1969 e I Haven’t Got Anything Better To Do – tendo a chance de trabalhar com luminares como Gil Evans e Walter Wanderley (e com Quincy Jones, em “Who Needs Forever”, tema de Deadly Affairthriller dirigido por Sidney Lumet. Além destes, Astrud também gravou dois álbuns para a CTI Records, Astrud Gilberto With Stanley Turrentine e Now, até 1972.

Os primeiros trabalhos, registrados até 1966, investem nos desdobramentos e interpretações de Astrud como uma cantora de bossa nova, pegando todos os standards possíveis do estilo e colocando-os a serviço de sua voz agridoce. A partir de A Certain Smile…, de 1967, os produtores começaram a enxergá-la como uma cantora versátil o bastante para se apropriar do cancioneiro pop mais universal da época. Não por acaso é deste álbum a bela versão dela para “Call Me”, cavalo de batalha interpretado por Chris Montez no ano anterior e gravado por todo mundo que importava naquele tempo. Neste disco ela trabalhou com o sensacional organista Walter Wanderley mas foi com Windy, de 1968, que esta transição ficou mais forte. Já na faixa-título Astrud surge triunfal, levando sua formosura também para “Never My Love” (ambas foram sucesso com o grupo Association) e até para uma releitura belíssima de “In My Life”, dos Beatles. Mesmo assim, ela não deixou seu repertório original de lado, trazendo “Chup Chup I Got Away”, “Crickets Sing For Anamaria” (ambas de Marcos Valle) e “Dreamy” (Luiz Bonfá) para compor o álbum.

Essa tendência se intensificaria nos trabalhos seguintes, com destaque para o impressionante September 17, 1969, um disco psicodélico e plural, no qual Astrud interpreta canções gravadas por Beatles (“Here, There And Everywhere”), Doors (“Light My Fire”), Harry Nilsson (com uma adorável “Don’t Leave Me”), Chicago (“Beginnings”), além de momentos realmente belos, como a versão anglo-francesa para “Love Is Stronger Far Than We” e o pequeno épico soft-psicodélico “Summer Sweet Parts 1 & 2”, espantoso para uma voz que, cinco anos antes, representava a garota de Ipanema no inconsciente das pessoas. Os álbuns gravados para a CTI são o ápice deste movimento. Mesmo que Creed Taylor, dono da gravadora, tenha sido um dos responsáveis pela exploração que Astrud sofreu no início da carreira, ele sabia muito bem que apostar no talento dela era garantia de sucesso. Em Astrud Gilberto With Stanley Turrentine, de 1971, ela passeia com graça e desenvoltura por um repertório que vai de Eumir Deodato a Bacharach/Davis, passando por Jorge Ben (com uma versão jazzística e sensacional de “Zazueira”), Edu Lobo e Milton Nascimento. Em “Now”, do ano seguinte, ela reinventa novos sucessos de Jorge Ben (“Take It Easy My Brother Charles”) e Milton Nascimento (“Bridges”, a versão em inglês de “Travessia”), sem falar em algumas composições autorais, como a ótima “Zigy Zigy Za”, uma reinvenção de “Escravos de Jó”, com viagens instrumentais deliciosamente pop e “Daybreak”, impressionante. Ainda são dignas de menção as versões para “General da Banda” (de Blecaute) e “Baião” (de Luiz Gonzaga). 

Depois deste álbum, Astrud iniciou um processo de reclusão. Ela ainda gravaria um disco em 1977, That Girl From Ipanema, tentando atualizar algumas composições dos tempos da bossa nova sem muito sucesso, mas realizando um sonho antigo: gravar com ninguém menos que Chet Baker, o que aconteceu na faixa “Far Away”. Ao longo dos anos seguintes, ela se apresentou com seu repertório mais clássico em poucos festivais de jazz na Europa e nos Estados Unidos, gravou com a James Last Orchestra em 1986 e parecia fadada ao esquecimento, quando participou da campanha contra a aids promovida pela Red + Hot Organization, sendo convidada para gravar “Desafinado” por um fã recente, George Michael. No ano seguinte, Astrud realizou mais um disco solo, Temperance, em 1997 e anunciou sua aposentadoria permanente dos palcos e aparições públicas em 2002, após lançar um último e fraco álbum, Magya.

Os últimos tempos, no entanto, foram extremamente difíceis para Astrud Gilberto, que completou 83 anos em março deste ano. Suas experiências no mundo da música a afetaram profundamente e prejudicaram sua confiança nas pessoas, tendo feito vários álbuns sem contratos formais, apenas acreditando na palavra dos contratantes e produtores. Recebeu menos do que deveria, teve muito menos créditos como compositora do que merecia. Ela viveu seus últimos dias isolada, em seu apartamento com vista para o rio, na cidade americana da Filadélfia, com a companhia de um gato e as visitas e ligações dos filhos. Acabar isolada e desconhecida é um destino doloroso para uma artista tão exuberante, que seu filho João Marcelo a descreve com razão como “a cara e a voz da bossa nova para a maioria do planeta”. Ela merece ser homenageada como uma cantora que trouxe alegria ao mundo com uma música que, em suas próprias palavras, deu a todos “romance e sonho”.