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Lollapalooza Brasil 2023 – ao vivo

Billie Eilish, Modest Mouse, Jane’s Addiction, Paralamas, Aurora, Baco Exu do Blues, Tove Lo e Cigarettes After Sex: shows que marcaram o festival

Billie EIlish

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução

Entre os dias 24 e 26 de março foi realizada a décima edição brasileira do festival Lollapalooza, a última em parceria da produtora T4F com a americana LLC, detentora da marca do evento. Depois de cinco recentes cancelamentos de concertos programados para este ano, todo mundo foi surpreendido com a não vinda ao Brasil do headliner da última noite, o canadense Drake, horas antes dos portões do Autódromo de Interlagos serem abertos. A desculpa oficial do artista, esfarrapada, não colou: a de que estariam faltando pessoas de sua equipe no país. Entretanto, ele foi visto na madrugada anterior festando em Miami em conjunto com o rapper 50 Cent. E mais: estas pessoas de sua equipe já estavam em SP instalando no autódromo os telões e o material de seu espetáculo. Mas como é sempre melhor falar de coisas boas, deve também ser registrado um marco desta edição: pela primeira vez o line-up estava dividido quase igualitariamente entre artistas dos dois gêneros.

O Mondo Bacana comenta um pouco dos oito shows que deixarão esta edição do Lolla na história dos grandes festivais de música pop do Brasil.

Billie Eilish

Única headliner originalmente anunciada a se apresentar em Interlagos (além de Drake, o Blink 182 também não veio para cá), ela já era aguardada havia algum tempo por aqui. Afinal, este seria seu primeiro concerto no país, já que o anterior fora cancelado por causa da pandemia. Em cima daquele palco enorme, tendo a companhia apenas de seu inseparável irmão e produtor Phinneas e um baterista, ela – com o verde e amarelo predominando no figurino grande e largo sobre a malha preta que lhe escondia o corpo – entregou o que prometia: uma boa coleção de letras intimistas a respeito de observações, sensações e sentimentos de uma garota vivendo os anos finais de sua adolescência. Intimista também foi sua performance: sem muitos pulos, correrias ou coreografias ensaiadas, era quase apenas ela cantando ao microfone. Quer dizer, cantando às vezes. Billie só cantava o necessário e muitas vezes sua voz ecoava pelo autódromo junto com os instrumentos também pré-gravados. O que deixava o show redondo, sem espaço para improvisos ou erros. Só que teve momentos em que os manos abriam mão do playback e se arriscavam em momentos semiacústicos para mostrarem que não são uma fraude ao vivo: foram cerca de meia dúzia de canções com Phinneas dedilhando o violão ou o piano para a irmãzinha soltar o gogó de alcance não muito grande.

Modest Mouse

Quem foi a genial pessoa responsável pela grade de shows que conseguiu jogar o grupo para uma tarde de sexta-feira? Modest Mouse – um dos ícones do indie rock americano dos anos 2000 – não é para a GenZ, é para gente mais velha. Melhor: para quase todo mundo que não tem a) grana disponível de salário ou frilas para pagar o caro ingresso do festival; b) saco ou corpo para aguentar ficar um dia sequer em uma maratona de shows; c) horário disponível para ir assistir a uma banda tocar às quatro da tarde de sexta-feira. Sob um sol escaldante, o vocalista Isaac Brock estava vermelho feito um camarão, à frente de seu quinteto que foge da musicalidade óbvia e mistura lo-fi, folk e psicodelismo em doses nada comerciais. O resultado foi uma banda competentíssima tocando para quase ninguém, sendo a maior parte disso gente que desconhecia por completo o repertório loteado entre sua boa discografia. Hits como “Float On” e  “Dashboard” ficaram desperdiçados  naquela escala gigantesca ao ar livre. De qualquer maneira, quem viu in loco ou pelo streaming foi abençoado pela tardia estreia do Modest Mouse em solo brasileiro. Antes tarde do que muito mais tarde. Antes de tarde durante a semana do que nunca.

Jane’s Addiction

Perry Farrell idealizou o Lollapalooza em 1991 como um festival ambulante, que pudesse rodar algumas grandes cidades norte-americanas com uma escalação de excelentes bandas alternativas como suporte para a turnê de despedida de sua banda. Deu tão certo que o Jane’s Addiction se separou mas o Lolla continou trilhando seu caminho de sucesso durante os meados dos anos 1990. Perry, então, quase sempre vem prestigiar a edição brasileira. Agora trouxe a tiracolo a reformada banda que o revelou para o mundo da música. Integrantes originais… ou quase, já que o guitarrista Dave Navarro (que saiu do JA para tocar no Red Hot Chili Peppers) continua afastado dos palcos para tratar da saúde (covid longa como justificativa oficial, rehab longa como rumor alimentado entre os fãs do grupo). De qualquer forma, seu substituto, o também ex-guitarrista do RHCP Josh Klinghoffer, mostrou ser uma escolha acertada. Enquanto o baterista Stephen Perkins e o baixista Eric Avery (que também costuma ser músico de apoio do Garbage) se entendem perfeitamente em uma cozinha rítmica hipnótica e dançante, Josh jorrava os efeitos de pedais que fazem a sonoridade da banda flutuar entre o hard rock, o psicodelismo e o groove. Para completar, uma trinca de dançarinas comandada pela atual mulher de Farrell faziam pole dances sensuais ao fundo do palco, dando um approach cênico diferente às canções. Em Interlagos, o set list foi reduzido por conta do tempo destinado ao show, socado no meio da programação da tarde do segundo dia. De qualquer forma, ficou bem dividido entre os dois primeiros e incensados discos da banda, concebidos entre 1988 e 1990, antes das brigas internas que levaram à implosão precoce da carreira. De qualquer forma, reunidos já nas casas dos 50 e 60 anos de idade, os músicos mostraram por aqui que estão como vinho: quanto mais velhos, melhor. Maturidade e experiência – e um longo hiato interrompido por outras duas reuniões e discos criados em 2003 e 2011 – fizeram bem. Em um sábado fraco de opções, o Jane’s Addiction chegou quietinho e fez uma puta (e despretensiosa) apresentação. Ainda terminou com uma batucada em homenagem ao amigo Taylor Hawkins, que morria havia exatamente naquela data, no ano anterior… horas antes do show do Foo Fighters na Colômbia e de viajar para tocar no Lollapalooza brasileiro.

Paralamas do Sucesso

Ter 40 anos de carreira fonográfica não é para qualquer um. Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone sabem disso e utilizam um arsenal de clássicos colecionados em sua extensa discografia para disparar um show magnífico. É hit atrás de hit  quase sem intervalo para respirar. Foi assim neste Lollapalloza, na tarde de sol de um domingo para uma maioria de plateia formada por GenZ e millennials. O repertório começou com canções mais representativas da faceta ska (“Vital e Sua Moto”, “Patrulha Noturna”, “Ska”, “Loirinha Bombril”) e passeou por toda a galeria das duas primeiras décadas de carreira, misturando reggaedubafrobeat, rock, citações (Tim Maia, Titãs, Raul Seixas) e muita injeção rítmica contínua para não deixar ninguém totalmente parado – pelo menos um dos pezinhos não teve como resistir. Herbert começou enfrentando problemas técnicos, contornados sabiamente com conversas fora do microfone com um roadie enquanto não parava de cantar as letras para a plateia. Tirando este pequeno detalhe, que não chegou a comprometer a apresentação aliás, os Paralamas mostraram toda a sua realeza na música pop nacional. Não precisa de firulas, telões, coreografias, trocas de roupa, andar para lá e para cá no palco ou ao redor dele. Só precisa de música. E muito boa música. Referências para se criar música de qualidade eles sempre tiveram também. São uma banda pós-punk brasilis roots (a sonoridade two-tone em verde e amarelo, inclusive com versos politizados e críticos transformados para a nossa realidade!) e isso ainda faz toda a diferença. Mesmo diante de uma molecada que não chegou a viver os tempos dos vinis e CDs lançados com essas músicas.

Aurora

É só começar a ouvir a sua extensão vocal de soprano que não tem como não embarcar junto nesta fantasia musical que é seu show. Ela mesma parece uma pequena e adorável duende, sempre a saltitar feliz e travessa pelos vastos campos verdes. Seu look também ajuda: vestes claras e em tonalidades pasteis, pés descalços, pele alva e um cabelinho curto e de um chanel tão branco quanto sua melanina norueguesa. Muita gente que estava ali na plateia sabia de cor e salteado as letras, cantava junto e se emocionava por estar na frente de Aurora Asknes. Pudera. A artista faz da voz um belo poder instrumental, além de ser hábil nas palavras para demonstrar seus mais profundos sentimentos acerca da vida e da natureza. Mas também não precisa ser expert na obra dela para se render ao poder desta guria escandinava, solta, espontânea, natural e sem qualquer maquiagem, capaz de provocar um midsommar tão contagiante aqui no hemisfério sul e em pleno cair da tarde de um domingo quente brasileiro.

Baco Exu do Blues

Ele entrou na grade do Lolla como uma rápida solução caseira para suprir o cancelamento quase em cima da hora de Willow, filha do astro Will Smith. E ainda entregou uma das mais emocionantes performances em língua brasileira deste Lollapalooza. Generoso, o baiano de quatro discos lançados nos últimos seis anos fez questão de não brilhar sozinho. No telão, prestou reverência a personalidades negras já falecidas como Marielle Franco, Elza Soares, Muhammad Ali, 2Pac Shakur e Nelson Mandela. E no meio do repertório montado com alguns de seus grandes sucessos ainda cedeu espaço lá na frente para cada uma de suas backings (Aísha, Alma Thomas e Mirella Costa) dividirem as atenções, o microfone e o gogó poderoso. Mirella, por sua vez, protagonizou uma emocionante homenagem à também soteropolitana Gal Costa, ao mandar, a capella, um trecho de “Força Estranha”. Mancando e dando passos lentos, Baco fez o que pode, cenicamente, para superar o estiramento na panturrilha sofrido poucos dias antes. E ainda mandou a letra para espinafrar o grande ausente da noite, Drake, sendo complementado por xingamentos dirigidos pelo público ao astro chiliquento canadense. Mostrou, como Kevin Parker (Tame Impala) na noite anterior, que nem sérias limitações físicas para a locomoção não podem servir como desculpa para não cantar aos fãs.

Tove Lo e Pabllo Vittar

Tove Lo

Outra atração nórdica dominical, a sueca mostrou que um show de música pop pode muito bem ser construído em cima de… música pop. Nada pode tirar o primeiro plano. Pelo contrário. Figurinos podem ser um bom complemento (no caso, uma roupa colante em tons verdes que lhe permitiu fazer o manjado gesto de mostrar os seios à plateia). Coreografias também. Mas um palco deve ser povoado por musicistas tocando seus instrumentos, cantora realmente cantando e dispensando playbacks descarados e a ausência de um time de bailarinos indo para lá e para cá, chamando mais a atenção dos olhos do que os ouvidos. Tove Lo é muito mais discípula de Madonna do que muita gente pode pensar. Ela canta, dança, brinca com a sexualidade diante de uma multidão e mostra ser uma artista de força suficiente para ter um longo futuro pela frente. E olha que ela já tem cinco álbuns feitos de 2014 para cá.

Cigarettes After Sex

Todo ilusionista sabe muito bem que o segredo do sucesso de sua performance está na habilidade de deslocar a atenção do público para um local diferente daquele onde realmente “acontece” o truque. A derradeira das três noites do Lolla, de fato, foi equivalente a um show de ilusionismo. Todo mundo esperando o headliner Drake e depois todo mundo desapontado e xingando o arredio Drake por nem ter viajado ao Brasil. Muita gente comentando o fato de que o DJ e produtor de IDM Skrillex havia sido escalado de improviso para ocupar o horário e o palco anteriormente destinado ao fujão. Muita gente indo embora ao cair da noite, já desesperançoso de que ali em Interlagos acontecesse mais alguma coisa estupenda no autódromo. Espertos, porém, foram aqueles que não arredaram o pé e ficaram no local (ou sintonizados no streaming) até as nove da noite, de olhos bem atentos a um dos palcos secundários. Ali, já aos 45 minutos do segundo tempo do festival, os acréscimos permitiram uma magnífica performance de um singelo trio norte-americano que, por meio da internet, tornou-se objeto de culto nos últimos anos por um pessoal mais antenado. O Cigarettes After Sex veio para impactar com todo o seu minimalismo. Cênico, com seus integrantes tocando quase sempre parados no palco, dispostos geometricamente lado a lado. Sonoro, com somente um vocal (de seu líder e criador Greg Gonzalez) e a mínima movimentação possível de baixo, guitarra e bateria. Havia uma textura de teclados pré-gravados disparada como pano de fundo para a maioria das canções. Mas isso só reforçou a atmosfera etérea e hipnótica do concerto. Fotógrafos não foram permitidos no pit à frente do palco. Quem ficou em casa assistiu a uma transmissão noir, que impôs a ausência de captação de qualquer cor pelas câmeras que não fossem o preto e o branco. Com ares de cabaré decadente, algo tipicamente David Lynch, o CAS fechou as cortinas da décima edição premiando poucos felizardos com algo meio difícil de acontecer em um grande festival. Truque de mestre.

Movies

Os Banshees de Inisherin

Rivalidade entre ex-amigos como analogia da guerra que dividiu as Irlandas solidifica a verve de humor ácido de cineasta britânico

Texto por Abonico Smith

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Antes de entrar na resenha propriamente dita é bom passar algumas informações que podem ajudar no entendimento deste filme que ganhou nove indicações para o Oscar deste ano. Inisherin é uma ilha fictícia, criada para ser o ambiente dessa trama. Banshees são entidades mitológicas que pertencem à categoria das fadas. São do gênero feminino e, segundo a tradição celta, elas costumam aparecer para determinadas pessoas como um aviso de que elas bem em breve receberão uma notícia envolvendo a morte de alguém. A Guerra Civil Irlandesa durou de junho de 1922 a maio de 1923 e foi um conflito entre dois grupos nacionalistas que discordavam quanto ao fato da Irlanda pertencer ao Império Britânico e que marcou a criação do Estado Livre Irlandês como uma entidade autônoma do Reino Unido. Em suma, isto acabou dividindo politicamente a ilha em dois países: a Irlanda do Norte, formada por seis dos 32 condados, que segue, de alguma forma, vinculada à Grã-Bretanha; e a Irlanda (ou Eire), constituída pelas outras 26 regiões rebeldes, A parte “do sul”, bem maior geograficamente, é formada por uma população majoritariamente católica, enquanto a divisão “do norte” se divide até hoje entre o catolicismo e o protestantismo herdado dos vínculos reais. Por fim, o cineasta Martin McDonagh é inglês e descende de irlandeses.

Tudo isto posto e sabido, vira uma delícia assistir a Os Banshees de Inisherin (The Bashees Of Inisherin, Reino Unido/EUA/Irlanda, 2022 – Fox/Disney), mesmo com o crasso erro do título adotado pela distribuidora brasileira (alguém poderia avisar por lá que o artigo definido, na língua portuguesa, obedece ao gênero?). A trama se passa na quase erma e muito verde ilha durante o começo do ano de 1923. Os poucos habitantes de lá não possuem muita perspectiva do que fazer em suas vidas: enquanto ouvem tiros de canhões pipocando na guerra que se desenha bem longe, cuidam de suas casas e animais de estimação enquanto jogam conversa fora e bebem. Ir ao bar para se divertir é programação garantida dia sim, dia também.

O desequilíbrio de toda essa tranquilidade acontece quando Colm Doherty (Brendan Gleeson) decide interromper de modo brusco a longa amizade que tem com Pádraic Súlleabháin (Colin Farrell). Assim, de nada, de uma hora para outro, sem qualquer motivo plausível. Quer dizer, sem qualquer motivo na visão de Pádraic, que fica inconformado com o fato e se abala profundamente com a “tragédia”. A questão é que Pádraic é tido com um grande pária pelo resto da ilha. Ninguém em Inisherin o suporta. Sequer o cumprimentam. Os maiores diálogos de sua vida parecem se resumir a três pessoas: a irmã Siobhán (Kerry Condon), o vizinho Colm e o jovem Dominic Kearney (Barry Keoghan), sempre de comportamento errático e imprevisível e outro que não pensa duas vezes em entornar um copo dentro do organismo por não conseguir aceito em casa pelo pai.

McDonagh é um grande diretor e roteirista que trabalha a passos lentos. A cada meia década, em média, entrega uma obra ao espectador. Já possui quatro longas no currículo. Os dois primeiros, Na Mira do Chefe (2008) e Sete Psicopatas e um Shih Tzu (2012) são primores de comédia de humor ácido, com a verve corrosiva tipicamente inglesa. Martin constrói diálogos que fazem quem está na poltrona do cinema (ou no sofá de casa) gargalhar sem sentir culpa de nada em absoluto. Em plena tragédia, inclusive. Não sobra para ninguém. Este seu estilo foi definitivamente abraçado por Hollywood em Três Anúncios para um Crime (2017). Depois de se destacar em diversos festivais pelo mundo e levar cinco dos oito Bafta ao qual concorreu, o filme ganhou dois de sete Oscar, três de quatro SAG Awards e quatro de seis Globos de Ouro.

Apesar de não abandonar a marca registrada da acidez verborrágica, McDonagh faz de Os Banshees de Inisherin seu filme mais denso e dramático. Este é, na verdade, um filme sobre o luto. Ou melhor, o que vem logo após a perda de algo ou alguém para muita gente: a negação, a raiva, a revolta. Pádraic sente isso ao ser descartado sumariamente por Colm e realizar várias frustradas tentativas de se reconectar ao ex-amigo. Fica remoendo dia após dia o pena bunda até o dia em que um trágico acontecimento desperta uma vontade incontrolável de fazer “justiça” com as próprias mãos e dar o troco a quem lhe abandonara. De melhor amigo, vira o pior inimigo.

O contraponto de Colm diante desta ruptura intempestiva e repentina, porém, é o que torna interessante este “duelo”. O diretor e roteirista utiliza o personagem para fazer uma interessante analogia à guerra das Irlandas, mais especificamente o uso da religiosidade diante de suas atitudes. Colm, que sempre toca violino em casa e no bar, passa a ignorar Pádraic porque acha que perde tempo estando com ele, como está em uma idade mais avançada, quer passar a usar o tempo que lhe resta da vida para compor uma obra musical que lhe dê transcendência à vida. Ou seja, que faça com que sua alma seja lembrada posteriormente que seu corpo deixar este plano. Só que sua luta para atingir a glória e a perfeição deve se tornar ainda mais difícil aos poucos. Então, Colm vai desnorteando aos poucos o espectador (claro, Pádraic também) com uma série de atos de extremo radicalismo e coragem, que inclusive vão irritando cada vez mais o novo desafeto.

Outra diferença entre ambos – e que remonta à divisão das Irlandas e à diferença das religiões – é a mais completa ausência da culpa judaico-cristã por parte de Colm. E assim corre a (divertida) rixa entre os dois em uma ilha onde não há absolutamente muito mais nada de concreto para ser feito a não ser a perseguição de um ideal que contrapõe a conservação do mais do mesmo à ambição da superação física e a criação de uma obra “a serviço de Deus”.

Enquanto isso, McDonagh se revela – de novo – um ótimo diretor de atores. As grandes interpretações de Farrell e Gleeson já não chegam a ser uma novidade, já que esta é a segunda vez que a dupla trabalha em conjunto com o autor (a primeira fora em Na Mira do Chefe). No papel de Siobhán, Condon brilha fazendo a voz da lucidez diante da cega obsessão e da mais completa falta de ambição do irmão Colm. Já Keoghan, que vem pavimentando um caminho de filmes cult nos últimos anos (O Sacrifício do Cervo SagradoDunkirkA Lenda do Cavaleiro Verde) mostra as credenciais, como o sempre bêbado Dominic, para estourar de vez em Hollywood como o novo Coringa, o arquirrival de Batman.

Apesar das nove indicações para o Oscar, Os Banshees de Inisherin não levou nada neste domingo, como já era previsto. Contudo, isso pouco importa. O bom é que Martin McDonagh, com esta obra, mostra ascensão criativa em seu quarto filme e solidifica de vez seu nome no panteão dos grandes cineastas autorais do século 21. Certamente teremos mais humor ácido e histórias fora do comum nos seus próximos filmes.

Movies

Triângulo da Tristeza

Cineasta sueco volta a criticar acidamente a hipocrisia da sociedade, agora  com trama eat the rich que envolve o mundo da moda e um cruzeiro

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Diamond Films/Divulgação

O cinema do sueco Ruben Östlund é feito para desafiar o espectador. Sua intenção é clara: instigar e provocar reações nada açucaradas com suas sátiras ácidas, recheadas de criatividade. E esse jeitinho sueco de criticar a hipocrisia da sociedade vem lhe rendendo cada vez prestígio entre a classe, sobretudo perante seus colegas europeus. Com Triângulo da Tristeza (Triangle Of Sadness, EUA/Suécia/Reino Unido/Alemanha/França/Turquia/Dinamarca/Grécia/Suíça/México, 2022 – Diamond Films), Ruben repetiu o feito de The Square, de 2017 e levou mais uma vez a Palma de Ouro no Festival de Cannes, tornando-se o nono cineasta a ter duas palmas de ouro na história.

Sim, a exploração dos pobres pelos ricos, da situação oprimido versus opressor, pode ter se tornado um tema batido, só que o modo como Ruben escancara essa disparidade entre os superricos e a classe trabalhadora é, de fato, instigante e capaz de chocar aqueles mais acanhados. Afinal, o sueco coloca no mesmo barco (ou melhor, no mesmo cruzeiro) personagens estereotipados e um tanto caricatos, mas é eficiente ao subverter os papeis e modelos de comportamento, como ao travar o embate entre o magnata russo capitalista Dimitry (Zlatko Buric), dono de uma empresa de fertilizante, e o comandante do navio, bêbado e comunista, interpretado por Woody Harrelson. Os dois protagonizam um dos momentos mais hilários e geniais do cinema recente.

Em comparação a The Square, em Triângulo da Tristeza Ruben fez questão de usar PH beirando a zero. Sua qualidade “cítrica e crítica” já fica evidente nas peças de divulgação do filme. Na conta do Instagram, por exemplo, não escapam vômitos dourados de caviar. “Free botox for everyone” (botox grátis para todos, em português), estampa um cartaz. 

O botox, nesse caso, é para ser injetado sobretudo no chamado triângulo da tristeza, que leva esse nome por conta das marcas de expressão quando contraímos a testa, seja para chorar ou para estampar a insatisfação. Preste atenção, vá na frente do espelho e perceba a medida do seu triângulo. 

Essa explicação do que vem a ser o tal triângulo da tristeza surge logo no início do filme (que, aliás, conta com três atos bem marcados). No início, somos apresentados a uma série de modelos que participam de um teste para estampar uma campanha publicitária de uma loja de roupas. Um deles é Carl (Harris Dickson). Para vender para os ricos, a orientação é fazer cara blasé e acionar a região do triângulo. Para o público consumidor de artigos populares, o modelo deve abusar dos sorrisos radiantes. 

Carl namora a também modelo e influenciadora digital Yaya, interpretada pela atriz Charlbi Dean (que morreu, aos 32 anos, vítima de sepse, em agosto do ano passado, não tendo a felicidade em ver o filme indicado em três das categorias principais do Oscar: filme, direção e melhor roteiro original). 

Questões monetárias e de equidade social e de gênero já surgem como o fio condutor da narrativa no diálogo entre Carl e Yaya a respeito de quem deve pagar o jantar do casal. E o rapaz se sente ofendido porque sua namorada é quem ganha mais e, portanto, ela acha que deveria pagar. No segundo ato, os dois aparecem como convidados de um cruzeiro ao lado de ricaços, entre eles um casal de representantes da indústria bélica. Viciada em likes, Yaya não desgruda de seu celular. Carl lê Dostoievski na beira da piscina. 

Quando o naufrágio dá início ao terceiro ato, Ruben inverte o triângulo (ou melhor, a pirâmide social). O mais forte ali não é quem tem dinheiro, mas quem consegue ser mais forte e se impor. Neste momento, a personagem da filipina Dolly de Leon, de nome Abigail, vai mostrar quem manda na ilha – o que, certamente, deixaria Jean-Jacques Rousseau de boca aberta.

Aliás, foi o filósofo francês quem disse “quando o povo não tiver mais nada o que comer, ele comerá os ricos”. E assim o cinema vai abrindo cada vez mais espaço a uma espécie de subgnênero: o “eat the rich”, que surpreendeu o mundo com Parasita levando o Oscar alguns anos atrás. Ou seja, quando o barco afunda, a conta bancária não faz a mínima diferença.

Series, TV

The Last Of Us

Série adaptada de cultuado videogame empolga ao falar de relações humanas em tempos de solidão e desesperança pós-apocalíptica

Texto por Taís Zago

Foto: HBO Max/Divulgação

A primeira versão de The Last Of Us, uma série de jogos de videogame desenvolvidos para o console PlayStation da Sony, surgiu em 2013 e foi agraciada com uma chuva de prêmios e um extenso fã-clube, chegando a ganhar a eleição de um dos melhores jogos já desenvolvidos. O sucesso abriu o caminho para uma franquia que acompanhou todas as novas versões da plataforma PS desde então e que agora também está sendo lançada para Windows e Xbox. Além dos jogos, foram originados também um comic book em 2013 e um live show em 2014. Agora veio a adaptação para o streaming. Fica claro que a pressão e as expectativas em torno do resultado da série roteirizada por Neil Druckmann, que é o próprio criador do jogo original, e por Craig Mazin, que assina o roteiro para Chernobyl (2019), não eram poucas.   

O arco da história pós-apocalíptica de The Last Of Us (EUA, 2023 – HBO Max) é aparentemente simples. Praticamente da noite para o dia grande parte da humanidade é dizimada via pandemia por um fungo da família do gênero Cordyceps – que realmente existe, mas no mundo real se limita a ser um endoparasita de artrópodes e que não chega a contaminar mamíferos, muito menos pessoas (até agora!). Os contaminados ou pessoas mordidas por contaminados perdem rapidamente a autonomia e passam a fazer parte de uma rede que serve a ele, que tem a única pretensão de se espalhar e sobreviver. Com isso os afetados se tornam uma espécie muito agressiva de zumbis canibalistas com mutações que lembram cogumelos pouco apetitosos e colônias do dito fungo. 

Depois de vinte anos, os poucos sobreviventes se dividiram em facções, cada qual com seus interesses específicos e formas de poder. Em comum, todos têm a hostilidade em relação a “intrusos” ou a intransigência na organização de suas comunidades. Ao momento da temporada – que já está chegando ao derradeiro capítulo – já fomos apresentados a alguns desses grupos. Os que mais se destacam são o FEDRA (Federal Disaster Response Administration, que se considera parte do governo dos EUA, tomou o controle como uma espécie de “milícia” após o desastre e se autointitula a principal autoridade em zonas de quarentena), o Firefly (Vagalumes em português, que é uma milícia antigovernamental surgida em resposta às ações autoritárias da FEDRA e que tenta encontrar uma cura para a infecção através de uma vacina) e os Contrabandistas (um grupo desorganizado que comanda o contrabando de materiais e suprimentos).

Joel (Pedro Pascal) e Tess (Anna Torv) fazem parte desse último grupo até receberem uma missão muito especial de alguns infiltrados dos Vagalumes: levar a menina Ellie (Bella Ramsey) até o grupo que busca a vacina, pois Ellie, aparentemente, é a única humana com clara imunidade ao fungo. Além disso, Joel ainda decide ir atrás do irmão Tommy (Gabriel Luna), que abandonara os Contrabandistas para se juntar aos Vagalumes, mas, sem explicação aparente, também largou esse segundo grupo. Joel, Tess e Ellie, iniciam então uma jornada de perigos entre humanos e não humanos.

Admito: apesar de já ter tido o PS 3 e 4, nunca tinha escutado falar do jogo The Last Of Us, pois meu interesse fica mais em torno de jump and runs coloridos com temas infantis. Então, contive minha empolgação ao iniciar a série mesmo sob a chuva de elogios emocionados do fã-clube. Invariavelmente minha primeira reação foi uma comparação imediata com as boas temporadas de The Walking Dead (2010-2022), a série produzida pela AMC, da qual me tornei uma fã fervorosa a ponto de possuir todos os volumes já lançados dos comics de Robert Kirkman e abandonei lá pela oitava temporada extremamente chateada após o roteiro da série desviar drasticamente do rumo do roteiro dos quadrinhos. 

Em The Last Of Us o nosso Rick Grimes é o Joel de Pedro Pascal. Pedro, que já é o nosso Mandalorian (outra série, iniciada em 2019, da franquia Star Wars da Disney+), aparentemente é a encarnação atual do lonely Soldier que Hollywood tanto adora: um sujeito com um pé no crime, sem amigos, carrancudo e amargo, mas que no fundo tem um coração de ouro e sabe atirar como ninguém. Ou seja, o novo Clint Eastwood ou o novo Charles Bronson do faroeste moderno pós-apocalíptico. Entretanto, de forma alguma menciono isso de forma pejorativa – a atuação de Pascal como Joel é impecável e a relação pai-filha que ele constrói aos poucos com a sapeca Ellie, interpretada com muita competência por Ramsey, já é uma promessa de momentos futuros espetaculares.

Outro ponto que não pode ser ignorado é a qualidade dos conflitos mostrados, bastante distantes da mera carnificina de monstros. Vemos relações reais e perigosas entre humanos. O comportamento de diferentes tipos humanos sob pressão, medo ou raiva. Um estudo sociológico de microcosmos inseridos num macrocosmo de uma catástrofe arrasadora. Temos até capítulos inteiramente dedicados ao backstory de personagens, como o maravilhosamente bem-produzido terceiro episódio, onde Nick Offerman como Bill e Murray Bartlett como Frank protagonizam um dos segmentos mais belos e sensíveis da série até agora. Aqui, excepcionalmente, não há o protagonismo da catástrofe, mas o dos sentimentos e das relações desenvolvidas em tempos de solidão e desesperança. A flor que renasce na terra devastada.

Se a qualidade for mantida, prevejo várias temporadas fervorosamente agradadas pelos velhos e também pelos novos fãs – aqui já me incluo – do complexo universo de The Last Of Us.

Movies

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo

Comédia sci-fi com onze indicações ao Oscar é uma experiência absurdamente psicodélica e reflexiva sobre o sentido da vida

Texto por Taís Zago

Foto: Diamond/Divulgação

Infelizmente não consegui assistir a esta maravilha na grande tela do cinema quando estreou em junho de 2022 no Brasil. Depois demorei até encontrar o filme para assistir em algum canal de streaming e quase por acaso, quando já tinha até esquecido, acabei topando com ele num canal de streaming. Nisso, sem ter planejado, fui sugada com força total para dentro nessa experiência incrivelmente psicodélica e frenética.

Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo (Everything, Everywhere, All At Once, EUA, 2022 – Diamond) tem o enredo mais simples e igualmente mais complexo que existe – relações familiares. O cotidiano dos imigrantes chineses Evelyn (Michelle Yeoh) e Waymond (Ke Huy Quan) – um casal dono de uma lavanderia e com encrencas com o imposto de renda – e da filha deles Joy (Stephanie Hsu) – uma garota lidando com sua identidade sexual e objetivos futuros – acaba virando uma bagunça quando Evelyn começa a ser confrontada com diversas realidades paralelas em distintos universos que, materialmente, representam as inúmeras formas como poderia ter sido sua vida caso tomasse diferentes decisões e atitudes em dados momentos. 

Do nada, um Waymond, como que estranhamente carregado por um comando no corpo de seu marido, aparece de uma outra dessas realidades, a aborda e fala, entre outras coisas, que ela está sendo (ou provavelmente será) perseguida por uma entidade chamada Jobu Tupaki. A partir daí e com instruções no mínimo bizarras dadas pelo seu marido “alternativo”, Evelyn começa a viver em uma espécie de sonho lúcido com flashes de todas as suas personalidades e vidas possíveis dentro de um metaverso interminável e constantemente em movimento que muito se assemelha a um videogame. E nele é possível desbloquear poderes especiais ao resolver tarefas estapafúrdias e irracionais como cortar os próprios dedos com papel ou engolir objetos inanimados. 

A obra escrita e dirigida pela dupla Dan Kwan e Daniel Scheinert é uma viagem quase inexplicável e incompreensível de imagens, referências e estilos de representação visual casando elementos bizarros, assustadores, comoventes e hilários em um quebra-cabeça no qual parecem faltar muitas peças. Os Daniels elevam o gênero sci-fi comedy a um novo nível de criatividade. Somos bombardeados com mais imagens do que nosso cérebro consegue assimilar (mais um motivo para rever o filme várias vezes!) em uma carambolage de eventos e vidas paralelas dos personagens que, a princípio, não faz o menor sentido, mas que com o passar do tempo adquire um sentido profundamente filosófico sobre o significado da vida, sobre o que é importante e sobre a nossa insignificância diante do todo em que estamos inseridos como pequenos personagens de um teatro com milhares de possibilidade de finais distintos.

Michelle e Stephanie fazem um trabalho fenomenal ao destrincharem suas diferenças em esferas muito superiores à realidade material. E mesmo assim, no final da jornada, elas são uma mãe e uma filha, no centro de tudo, convergindo a um ponto comum está o amor que elas nutrem uma pela outra. Amor esse que por vezes machuca, gera desconforto, raiva, ressentimento, mas que também é calcado em uma inabalável força que as atrai, uma em direção à outra, como um imenso imã existencial. Para completar o deleite no elenco, ainda temos Jamie Lee Curtis no papel da Deirdre, a vilã/funcionária pública/parceira de Evelyn. Os constantes encontros entre as duas são deliciosos e hilários, Michelle e Jamie mostram toda a sua versatilidade.

A beleza estética e o apuro técnico de Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo são absurdos. Dan e Daniel dominam, de uma forma espetacular, a transposição das suas visões em imagens. Um trabalho minucioso, rebuscado e quase obcecado que chega aos mínimos detalhes. A obra, produzida pelo estúdio A24, famoso pelos seus filmes art house, combina cenas de stop motion e animação digital com entregas viscerais dos atores. No turbilhão das cenas pensei em milhares de coisas, pensei em séries psicodélicas como Legion The Umbrella Academy da mesma forma que senti o romantismo desiludido de um filme de Wong Kar-Wai.

Mas entre todas as reflexões que essa obra que abocanhou onze indicações para o Oscar 2023 me causou teve uma, a mais forte e que talvez não seja tão clara à primeira vista: ela me fez pensar no conceito de que podemos (e vivemos) diversas vidas onde os mesmos personagens estão presentes e atuantes em papéis diferentes, em diferentes universos ou, para os mais iluminados, épocas. Um tom de espiritualidade transcendental, digital ou de alteração da consciência, como uma cereja nesse bolo deliciosamente multicolorido.