Music

Arnaldo Antunes + Vitor Araújo

Oito motivos para você não perder a chance de ver ao vivo o show em conjunto do cantor e compositor paulista e o pianista pernambucano

Texto por Abonico Smith

Foto: Divulgação

Fevereiro de 2020. Mês de lançamento do décimo segundo álbum de estúdio de Arnaldo Antunes. O Real Resiste, como diz o próprio título (além dos versos que compõem a letra da faixa que o batizou, servia como um contraponto para o autor. Sob um clima de meia-luz, harmonizando teclas e cordas e dispensando a parte rítmica de percussão e bateria, era um pretexto para uma retomada de ar de toda a loucura na qual o país mergulhara no ano anterior, com todos os bichos escrtos que saíram dos esgotos sob o comando do inominável presidente.

Mas eis que veio a pandemia da covid e o Brasil parou. O mundo parou. Isolamento radical e a mais completa falta de possibilidade de seguir em frente no meio artístico e cultural. Arnaldo foi pego em cheio por este tsunami planetário. Estava preparado para estrear a turnê que divulgaria e espalharia por diversas cidades o disco novo. Ainda mais porque a empreitada traria uma novidade: em vez de estar acompanhado por uma banda no palco, haveria apenas um músico ao seu lado. E não qualquer músico. O escolhido havia sido o pernambucano Vitor Araújo, enfant terrible dos pianos, que alguns anos atrás despontara como uma grande revelação da música brasileira ao se propor a experimentar novos caminhos e sonoridades em seu instrumento, indo além da convencional exploração das teclas pretas e brancas com os pedais.

O novo show virou apenas lives (Sesc Pompeia, Inhotim) e gravação para documentários (Arnaldo 60). O entrosamento estava tão grande, porém, que Arnaldo voltou para o mesmo estúdio situado em uma fazenda do interior de São Paulo, levando Vitor para criar mais um disco. De lá saíram nove faixas (algumas inéditas, outras já lançadas antes por Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Itamar Assumpção, Titãs e o próprio Arnaldo em carreira solo) registradas  no período de uma semana. A temática compreende  as instabilidades emocionais tão pertinentes àqueles dias (distanciamento, saudade, comunicação ruidosa, fim de relacionamento) e a participação do jovem pernambucano não se limita à condição de mero coadjuvante musical. Vitor revela-se tão intérprete quanto Arnaldo, desdobrando o seu piano em muitas camadas e climas, dando a impressão de estar se ouvindo mais gente colocada ali no aquário do estúdio durante a gravação.

Aos poucos, depois do lançamento do álbum Lágrimas no Mar em setembro de 2021 (portanto, ainda naquele clima de incertezas vivido pelo lento arrefecimento do lockdown), Arnaldo e Vitor vão levando à estrada o show que a pandemia insistiu em adiar, agora com um repertório de canções ainda maior por conta do trabalho em conjunto. Nesta sexta, 17 de maio, é a vez de Florianópolis (clique aqui para mais informações sobre local, horário e ingressos). No sábado, a dupla se apresenta em Curitiba (clique aqui para mais informações sobre local, horário e ingressos). E o Mondo Bacana preparou abaixo oito motivos para você não perder a chance de assistir ao perfeito entrosamento entre Arnaldo Antunes e Vitor Araújo ao vivo.

Som do silêncio

Uma das ideias de Arnaldo ao apostar no formato de piano e voz ao vivo – ainda mais com as intervenções autorais de Vitor Araujo – foi justamente chamar a atenção para o momento das pausas. O intervalo, o interim, o pequeno espaço entre um som e outro, seja a sua voz ou de algum instrumento. Então, fazer a audiência poder desfrutar dos curtos instantes de silêncio também passa a ser um requinte que poder realçar o valor de uma canção – algo que seria quase impossível se estivesse ali com o vocalista uma banda inteira.

Piano autoral

A presença de um nome como Vitor Araújo significa perceber as canções – do próprio Arnaldo ou as releituras – de uma outra forma. O pernambucano assina o arranjo de todas as músicas para seu instrumento e se multiplica de uma forma pouco vista no terreno da música pop. Também apresenta ao gênero o piano preparado, que consiste na montagem de peças introduzidas entre as cordas, de modo que quando a pressão das teclas as fazem ressoar sejam produzidos efeitos sonoros inusitados e diferentes. Henry Cowell e John Cage são os principais nomes desta técnica.

Spoken word

Além da música, Arnaldo sempre foi bastante ligado ao mundo da poesia, chegando a fazer instalações e brincadeiras visuais com palavras e letras de canções para algumas exposições. Quase despido da instrumentação convencional da música pop, encontra um terreno ideal para injetar a leitura de alguns poemas entre uma música e outra do set list. Mas não espere que haja só a declamação por meio de sua voz. Vitor o acompanha criando efeitos e sonoridades que transforma tudo em um breve happening, tão visceral quanto o momento das harmonias e melodias.

Duas vezes Titãs

Claro que aqui não poderia deixar de ter a presença de faixas assinadas por Arnaldo para o repertório de sua ex-banda. A tensão da harmonia de “O Pulso” combinada à lista quase declamada de doenças e distorções do corpo e da mente é um dos momentos mais vibrantes do show. O arranjo elaborado por Vitor dá um novo gás à canção que sempre foi uma das favoritas dos fãs dos Titãs e foi muito bem recebida no resgate da recente turnê de reunião de seus integrantes da formação clássica. Já “Saia de Mim” tem as dissonâncias harmônicas das teclas de Araújo muito bem casadas com o vocal raivoso e gritado de Arnaldo, que parece expelir, na hora de cantar, as excreções corporais relacionadas em sua letra (suor, peido, vômito, escarro, espirro, pus, porra, sangue, lágrima, catarro). Tudo para chegar ao fim com a exclamação “saia de mim a verdade”.

“Fim de Festa”

Na releitura deste blues de pura fossa de Itamar Assumpção, Arnaldo e Vitor injetam um certo ar soturno, com a exploração de timbres graves (a linha contínua do baixo mais o vocal-tenor quase falado do paulista) e uma repetição mântrica propícia para o pernambucano criar alguns barulhos estranhos no arranjo, manipulando diretamente as cordas do piano no interior da cauda. Vale lembrar que o resgate da canção é mais uma referência ao período da pandemia, quando vários casamentos e namoros chegaram ao fim por conta justamente da incompatibilidade de gênios, modos e pensamentos reforçada pela intimidade extrema do isolamento social. Outra curiosidade: a gravação original veio outro disco criado em parceria entre São Paulo (Itamar) e Pernambuco (Naná Vasconcelos), lançado em 2004, um ano após a morte do cantor e compositor. O videoclipe oficial da faixa registrada em Lágrimas no Mar tem Rubi, neta de Itamar, fazendo a performance de dança.

“Manhãs de Love”

Composta por Arnaldo Antunes e Erasmo Carlos gravada pelo Gigante Gentil no álbum que leva justamente seu segundo apelido como título, em 2014. Faz parte do renascimento artístico do Tremendão, com uma sucessão de álbuns nos quais ele abriu seu leque de parceiros, indo bem além do costumeiro amigo de fé e irmão camarada Roberto Carlos. Este movimento fez com que o artista se aproximasse de uma nova geração de fãs, algo que continuou até a sua morte há dois anos. Faz dupla com “Fim de Festa” na cota de momento bluesy de dor-de-cotovelo neste trabalho parceira com Vitor Araújo. O piano, executado de modo mais tradicional, acentua a melancolia da letra.

Como 2 e 2

Composta por Caetano Veloso, gravada originalmente por Roberto Carlos e também bastante conhecida na voz de Gal Costa, a canção foi recriada por Vitor e Arnaldo para o álbum Lágrimas no Mar. Feita durante o período de maior repressão da ditadura militar no Brasil, sua letra expressa, recorrendo à matemática e alterando metaforicamente as suas certezas (e, claro, fazendo referência direta ao estado totalitário imaginado por George Orwell para o clássico livro 1984), a imprevisibilidade das coisas, seja na expressão dos sentimentos de qualquer pessoa ou mesmo na vida perante a uma sociedade que muitas vezes se transfigura no horror ao qual não desejamos para a gente. A manipulação da verdade – aqui, no caso de somar dois e dois e dar cinco como resultado – anda bastante em voga hoje em dia, em um mundo cheio de distorções provocadas por uma enxurrada diária de fake news, grande imprensa bastante tendenciosa e um bando de políticos que agem e dizem tudo de acordo com seus interesses e conveniências.

O Real Resiste

“Autoritarismo não existe/ Sectarismo não existe/ Xenofobia não existe/ Fanatismo não existe/ Bruxa, fantasma, bicho papão/ O real resiste/ É só pesadelo depois passa/ Na fumaça de um rojão/ É só ilusão, não, não/ Deve ser ilusão, não, não/ É só ilusão, não, não/ Só pode ser ilusão/ Miliciano não existe/ Torturador não existe/ Fundamentalista não existe/ Terraplanista não existe/ Monstro, vampiro, assombração/ O real resiste/ É só pesadelo depois passa/ Múmia, zumbi, medo/ Depressão, não, não/ Não, não/ Não, não, não, não/ Não, não, não, não/ Trabalho escravo não existe/ Desmatamento não existe/ Homofobia não existe/Extermínio não existe/ Mula sem cabeça, demônio, dragão/ O real resiste/ É só pesadelo depois passa/ Com um estrondo de um trovão/ É só ilusão, não, não/ Deve ser ilusão, não, não/ É só ilusão, não, não/ Só pode ser ilusão/ Esquadrão da morte não existe/ Ku Klux Klan não existe/ Neonazismo não existe/ O inferno não existe/ Tirania eleita pela multidão/ O real resiste/ É só pesadelo depois passa/ Lobisomem, horror/ Opressão, não, não/ Não, não/ Não, não, não, não/ Não, não, não, não”. Esta é a letra toda da canção criada durante o primeiro ano de desgoverno do inominável. É preciso dizer mais alguma coisa depois disso tudo?

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Ney Matogrosso – Homem com H

Musical presta tributo ao cantor ao recriar desde a turbulenta relação com pai ao sucesso da carreira solo após a saída dos Secos & Molhados

Texto por Abonico Smith

Foto: Lina Sumzono/Festival de Curitiba/Divulgação

Já faz meio século que um furacão chamado Ney Souza Pereira tomou conta da música brasileira para nunca mais abandoná-la. Desde a meteórica ascensão dos Secos & Molhados até a afirmação de sua carreira solo, iniciada logo após a turbulenta saída do trio e consolidada com uma série de hits pelos anos seguintes. Hoje prestes a completar 83 anos de idade, Ney Matogrosso continua bastante na ativa, produzindo discos e shows, sendo um ícone de gerações na representativa de questões relacionadas a gênero e sexualidade. Isso sem falar no seu gogó de ouro, capaz de produzir notas agudas que arrepiam; na performance, sempre capaz de enlouquecer multidões até os dias atuais; e na calibrada capacidade de escolher repertórios provocativos e que cutucam lá no fundo o conservadorismo da sociedade brasileira.

Por isso que construir um espetáculo musical sobre o artista ainda vivíssimo e esperneando constituiu-se um grande desafio para a turma que montou e colocou nos palcos Ney Matogrosso – Homem com H. A encenação – apresentada no Festival de Curitiba nas duas primeiras noites de abril – mostrou como é possível ser bem sucedida mesmo com as dificuldades mais do que naturais. Ancorada na personificação plena de Renan Mattos como o protagonista (mesmo com a dificuldade de chegar perto do falsete inigualável), o texto cobre desde a turbulenta relação familiar nos tempos de adolescência em Brasília até o sucesso profissional como cantor solo no Rio de Janeiro, depois da meteórica e badalada passagem pelos Secos & Molhados, trio vocal paulista que subverteu a música popular brasileira e desafiou a censura e os militares dos anos de chumbo no regime ditatorial que tomou conta do Brasil após o golpe de 1964.

O esquema do roteiro é simples. Uma sucessão de pequenos esquetes que cobrem paulatinamente o desenvolvimento do artista Ney. Sempre com muito humor, o que favorece ainda mais a aproximação com o público. O primeiro ato começa nas discussões às turras com o intransigente pai militar e se estende às descobertas da juventude em Brasília: drogas, sexualidade, carreira artística. Ao sair da capital federal como ambiente, Ney se joga na vida cultural Rio de Janeiro até ir a São Paulo e se tornar o vocalista do Secos & Molhados, trio que estava nascendo e já vinha sendo bastante cultuado no underground. O recorte histórico da parte inicial se encerra com a realização do fenômeno de vendas e popularidade, por isso mesmo, uma implosão interna motivada por um “golpe financeiro” aplicado nos incautos Ney e Gerson Conrad pelo membro mais atuante nas composições musicais: o português João Ricardo.

A costura musical, até mesmo por questões lógicas, não segue a mesma ordem cronológica da vida antes da entrada em cena do trio – até porque o artista ainda dava seus primeiros passos rumo à fama. Entretanto, farta-se de uma discografia solo, rica em composições com temáticas que ilustram com perfeição cada período retratado. A mobilidade do cenário, formado por diversos palanques cúbicos (de alturas diferentes) e uma dupla de rampas, colabora para a fluidez do roteiro. A cantora e compositora Luli (autora do hit “O Vira”) e o amigo Vicente Pereira (que nos anos 1980 se destacaria como um dos nomes-chave do teatro besteirol nos palcos cariocas) são as personalidades que aparecem com relativo destaque, inclusive sendo “resgatados” no segundo ato.

Passado o breve intervalo, entretanto, a correria toma conta da narrativa, em virtude do tanto de acontecimentos na careira solo de Ney na segunda metade dos anos 1970 e a primeira da década seguinte. Personagens entra e saem de cena, sem muito aprofundamento. Rita Lee é badalada, mas o nome de Roberto de Carvalho, guitarrista da banda solo do cantor montada logo após o Secos & Molhados, sequer é mencionado (Matogrosso foi o “cupido” do casal!). Rosinha de Valença, quem foi ela, afinal? A celebrada musicista desaparece em questão de segundos logo depois de estar no palco. O pianista Arthur Moreira Lima, lá no final, também resvala na tangente das citações, mesmo sendo a peça-motriz da mais significativa mudança artística de Ney durante os 1980s. Mazzola, o produtor artístico de muitos de seus discos, vai e vem, vai e vem, mas também sequer o seu porquê de estar ali é aprofundado. A seleção musical já passa a incluir canções alheias, não gravadas por Ney, mas com toda a relação com a ocasião enfocado. Por falar nisso, a fase do sucesso nacional estrondoso do RPM (primeiro show brasileiro a usar raio laser, com Matogrosso assinando a direção de iluminação) é solenemente ignorada, o que é uma pena.

Cazuza, este sim, recebe mais holofotes. Claro, foi um dos namorados que mais marcou a vida de Ney – e também sua obra. Com caracterização tão duvidosa quanto sua interpretação (que dividiu opiniões entre os jornalistas que cobriam o festival), o vocalista aparece em momentos de grande intimidade com o protagonista e ainda à frente do Barão Vermelho. Outro nome de destaque entre as relações pessoais do cantor também aparece com força: o médico Marco de Maria, o único com quem Matogrosso aceitou dividir o cotidiano em uma mesma casa. Tanto Marco quanto Caju faleceram em decorrência de complicações do vírus HIV. Por isso, a chegada de ambos em cena acaba por deixar um clima bem mais pesado e dramático no musical, que abandona quase que de vez o humor escrachado de antes. A enorme sombra da aids sobre toda a juventude daquela geração foi uma cruz muito pesada de se carregar para quem viveu aquela época (e sobreviveu!). Portanto, não havia mesmo como escapar dela no ato derradeiro mesmo mudando radicalmente a atmosfera de festa.

Foi justamente esta transformação comportamental de uma geração, porém, que sela o fim do musical de uma forma maravilhosa, apesar dos pequenos escorregões no decorrer da encenação de quase quatro dezenas de canções e quase três horas de duração. Os vários Neys que o Ney apresentou entre os anos 1970 e 1980 estão lá, até tudo terminar nele próprio, despido da persona sexualmente fantástica que todo mundo conheceu de início e passou a amar e idolatrar. O Ney Matogrosso incorpora o Ney Souza Pereira também no figurino e na performance de palco, fechando um ciclo de sucesso (e também de insistência, perseverança e também orgulho) para aquele jovem que se lançou no mundo querendo ser ator (e não cantor), sobreviver de sua arte e viver um dia a dia de liberdade plena, sem quaisquer amarras (as sentimentais também!), curtindo e sorvendo cada minuto da vida ao máximo. Homem Com H é um grande tributo a este múltiplo artista de meio século de magnificência e brilho intenso. Tanto que no próximo semestre partirá para uma turnê nacional por grandes arenas e estádios de futebol.

Set List: Primeiro ato – “Sangue Latino”, “Por Debaixo dos Panos”, “Tic Tac do Meu Coração”, “Assim Assado”, “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, “Vira-Lata de Raça”, “Bandido Corazón”, “Divino, Maravilhoso”, “Trepa no Coqueiro”, “Maria/The More I See You”, “Trepa no Coqueiro”,”Nem Vem que Não Tem”, “Balada do Louco”, “O Vira”, “Rosa de Hiroshima”, “Mulher Barriguda”, “Amor”, “Sangue Latino” e “Sei dos Caminhos”. Segundo ato – “América do Sul”, “Com a Boca no Mundo”, “Dancin’ Days”, “Tigresa”, “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”, “Coubanakan”, “Mulheres de Atenas”, “Bandoleiro”, “Ano Meio Desligado”, “Maior Abandonado”, “A Maçã”, “Homem com H”, “Pro Dia Nascer Feliz”, “Poema”, “Blues da Piedade”, “O Tempo Não Pára”, “Mal Necessário”, “O Mundo é um Moinho”, “O Sol Nascerá” e “Homem com H”.

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Men At Work – ao vivo

Colin Hay traz a Curitiba a nova formação da histórica banda para saciar a sede de nostalgia de muitos fãs, inclusive de quem não viveu aquela época

Texto por Daniela Farah e Abonico Smith

Foto de Janaina Monteiro

A chuva copiosa que caiu na capital paranaense na noite desta última terça-feira, dia 20 de fevereiro, não foi impeditivo para a rua Itajubá ficar intransitável. Muita gente andando, ambulantes, carros, havia de tudo um pouco. Era o efeito Men At Work, que mobilizou um público ansioso por um punhado de clássicos. Com o mercado de shows ainda aquecido após a pandemia, o público, afinal, tem feito muito bem a sua parte, sobretudo quando se trata de apresentações de artistas internacionais.

A partir das 21h o palco da Live Curitiba ficou tomado por uma aura de classic rock. Mais precisamente um pop misturado com tons de reggae e pós-punk. Ou seja, aquela beleza do comecinho dos anos 1980. O guitarrista e vocalista Colin Hay, o australiano que naquela época tomou de assalto as paradas dos Estados Unidos – e consequentemente do resto do mundo – é o único remanescente do grupo original. O tecladista, saxofonista e flautista falecido em 2012, Greg Ham, era seu fiel escudeiro. Foi com ele que foi retomada a trajetória do grupo após a primeira parada, em 1985. Com ele que Colin fez algumas idas e vindas e mantinha, de tempos em tempos, a chama do MAW acesa.

A mais recente empreitada ocorreu em 2019, um pouco antes da covid-19 paralisar o planeta por um bom tempo. Agora, pela primeira vez, a nova formação embarcou para uma turnê sul-americana, com três paradas pelo Brasil (Rio, Curitiba, Sampa). Quem acompanha o frontman agora é um time tecnicamente de peso. A começar pela carismática cantora peruana Cecilia Noël, que dividia as comunicações com público e até, de certa forma, incentivava Hay. Scheila Gonzalez, multiinstrumentista californiana e ganhadora de um Grammy, brilhou nos solos de saxofone. Tem ainda três cubanos: o baterista Jimmy Branly, que já tocou com uma longa lista de gente boa, incluindo Michael Bublé; o guitarrista premiado e parte da nova geração do Buena Vista Social Club, San Miguel Perez; e o baixista Yosmel Montejo, que também já tocou com muita gente talentosa, incluindo a nova lenda do jazz Kamasi Washington.

“Can’t Take This Town”, a quarta da lista, era uma das canções mais esperadas da noite, mesmo tendo sido pinçada da carreira solo de Hay, iniciada logo após a dissolução do MAW. Pouco tempo depois, “Everything I Need” foi uma grata surpresa, muito bem recebida pelo público, que filmou, cantou e fez coro. Como ela não esteve no show anterior, realizado no Rio de Janeiro, as expectativas para que ela – a única faixa do terceiro e último álbum de carreira do MAW, de 1985, época em que as relações internas já estavam desmoronando – aqui estivesse, em Curitiba, eram baixas. Na sequência, “Blue For You” trouxe um clima dançante e leve. A próxima não empolgou muito e “I Can See It In Your Eyes” foi a escolhida para pegar bebidas, ir ao banheiro e, claro, atualizar as redes sociais. Já na metade do set list, “Dr. Heckyll & Mr. Jive” dividiu opiniões no local. Mas mesmo quem não a conhecia parou para prestar atenção assim que Colin dedicou a música a Greg Ham.

A comunicação era frequente, só que cada comentário, fosse do Colin ou da Cecília (que estava muito comunicativa, especialmente pela proximidade do português com o espanhol), tinha seu som anulado pela emoção dos fãs. Aliás, falando neles, o público era bem eclético. Pessoas de todas as idades e estilos estavam lá sedentas por nostalgia, a maioria daquilo que não viveu ou nem chegou a presenciar direito. “Muito obrigado!”, disparou o fundador da banda, abafado por gritos e aplausos, logo após “No Sign Of Yesterday”.

Uns minutos de escuridão antecederam um dos picos da noite. O público ficou em silêncio até se explodir em gritos com os primeiros acordes de “Who Can It Be Now?”. A luz acendeu para que a banda pudesse ver todo mundo cantando o refrão. Três outros grandes hits do MAW acabariam ficando lá para o final e numa sequência só. Seria esta, então, a hora da plateia se deliciar com “Overkill”, “It’s A Mistake” e “Down Under”.

Eles agradeceram e saíram do palco. Voltaram e dessa vez cantando parabéns para os sortudos que estavam fazendo aniversário, inclusive o produtor que trouxe o show às três cidades brasileiras. Ainda faltava hit na manga, um deles vindo da carreira solo pós-MAW. “Into My Life” levou todo mundo a dançar, junto com “Be Good Johnny”, que Colin adora tocar por fazê-lo lembrar bastante, novamente, do amigo falecido. Os músicos agradeceram, tiraram aquela tradicional foto e saíram. E para valer. Restou a quem ficou por lá curtir mais nostalgia. Desta vez, a do show recém-visto.

Set list: “Touching The Untouchables”, “No Restrictions”, “Come Tumblin’ Down”, “Can’t Take This Town”, “Down By The Sea”, “Everything I Need”, “Blue For You”, “I Can See It in Your Eyes”, “Dr. Heckyll & Mr. Jive”, “No Sign Of Yesterday”, “Who Can It Be Now?”,  “Underground”, “Catch A Star”, “Upstairs In My House”, “Overkill”, “It’s A Mistake” e “Down Under”. Bis: “Into My Life” e “Be Good Johnny”.

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Roger Waters – ao vivo

Última turnê do baixista equilibra o repertório de seu comando cerebral do Pink Floyd, sua eterna veia politizada e momentos mais sentimentais

Texto por Abonico Smith e Frederico di Lullo

Foto: Reprodução

Depois de uma breve contagem contagem regressiva, o telão mandou o aviso final (e em alto e bom português!): “Senhoras e senhores, por favor, ocupem seus lugares. O espetáculo está prestes a começar. Antes de começar, duas mensagens públicas. Primeiro, em consideração aos demais espectadores, desliguem seus celulares. Em segundo lugar, se você é daqueles que diz ‘eu amo o Pink Floyd, mas não suporto a política do Roger’, vaza pro bar!”.

Assim começa o show de This Is Not a Drill, a nova turnê de Roger Waters. No biênio 2022-2023 ele vem rodando o mundo com este espetáculo, adiado por conta da pandemia da covid-19. O recado, apesar do idioma traduzido, não foi uma exclusividade do Brasil, por onde passou as últimas semanas. Só que a observação, curta e direta, cai como uma luva para o nosso país. Afinal, em outubro de 2018, no giro antecessor por algumas capitais, o inglês foi protagonista de um dos maiores momentos de vergonha alheia já presenciados no showbiz em solo nacional. Não por culpa dele, claro. Mas por conta da horda de milhares de eleitores do hoje inelegível. Fãs de rock e do Pink Floyd, muitos deles pagaram um ingresso de preço salgado para ficar em um grande embate verbal e ideológico com o seu ídolo. Muitos xingamentos, vaias, gritos contínuos de “mito” e – o mais vergonhoso – diversos “cala a boca e canta!”. Como se fosse possível separar a pessoa do artista, o discurso da performance. Ainda mais no caso de Waters. O paradoxal, no entanto, foi ver a turba de apoiadores do inominável cantar verso por verso de canções como “Money”, “Us And Them”, “Welcome To The Machine”, “Dogs”, “Pigs (Three Different Ones)”, “Comfortably Numb” e as partes 2 e 3 de “Another Brick On The Wall”. Ainda mais durante o show realizado em Curitiba, terra da Lava-Jato, na véspera da eleição do segundo turno presidencial (clique aqui para ler a resenha deste concerto).

Cinco anos se passaram e Roger Waters retornou ao Brasil para trazer This Is Not a Drill a seis cidades (Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo e… de novo Curitiba, na última noite de 4 de novembro). Muito, meia década antes, foi especulado se o artista voltaria ou não ao nosso país, tamanha fora a falta de educação, elegância e cortesia de boa parte de seus fãs. Só que agora, entretanto, os tempos são outros. A extrema-direita já se encontra devidamente fora do Palácio do Planalto e em queda na popularidade. Muitos de seus ícones estão começando a encarar, judicialmente, as consequências de seus desmandos. O golpe articulado fracassou. Lula cumpre seu terceiro mandato executivo em Brasília. E Roger Waters também está um pouco mais velho – acaba de entrar para o grupo dos octogenários e anunciar que não deverá mais excursionar pelo mundo.

Roger continua incisivamente político e disso nunca vai abrir mão. Mas reserva espaço maior na tour para diálogos mais sentimentais com a plateia. Mais revivalista em sua relação sua vida, não fica só acusando comandantes de estado de criminosos de guerra (Reagan, Putin, Bolsonaro): entre falas ao microfone e telão com imagens e frases, homenageia o ídolo Bob Dylan, o amigo Syd Barrett, a mulher e o irmão. E também equilibra mais o repertório entre os discos mais significativos (para ele, lógico) de sua trajetória no Pink Floyd. Isto é, a fase em que o processo criativo do grupo era comandado cerebralmente por ele no decorrer dos anos 1970, compreendida pelos álbuns The Dark Side Of The Moon (1973), Wish You Were Here (1975), Animals (1977) e The Wall (1979). Bem pouca coisa do repertório vem pinçada de sua carreira solo pós-banda. Para os fãs, isso nem importa tanto. O bom mesmo é vibrar com os infláveis voadores de ovelha e porco durante “Sheep” e “In The Flesh”. Emocionar-se com as lembranças históricas do companheirismo de Syd na trinca “Have a Cigar”, “WIsh You Were Here” e “Shine On You Crazy Diamond”. Viajar na reprodução o integral do lado B de The Dark Side…, inclusive com lasers tridimensionais revivendo ali, no palco, o famoso prisma da capa do disco – há quem diga que assistir chapado a este momento ainda melhora bastante o impacto. Ser atropelado pelos martelos fascistas de “Run Like Hell” ou o toque sombrio de uma “Comfortably Numb” de novo arranjo mais lento e soturno para servir como abertura da noite.

Ainda há na atual turnê um brinde exclusivo aos fãs: a inédita e recentemente composta canção “The Bar”, inspirada na luta do advogado de direitos humanos Steve Donziger contra a contaminação tóxica feita por quase trinta anos pela gigante petrolífera Chevron (antiga Texaco) na Amazônia equatoriana e seus consequentes esforços para escapar da responsabilidade pelo escandaloso crime ambiental. É justamente esta a grande novidade incluída no roteiro de This Is Not a Drill, em relação aos espetáculos anteriores (Us + ThemThe Wall): uma música até então não lançada em disco. Carinhosamente revivida ao final do espetáculo em performance acústica e intimista com Waters cercado pelos seus instrumentistas de apoio, aliás, a reprise de “The Bar, colada com “Outside The Wall” é a representação do adeus do ídolo perante seus fãs. De alguém que cultiva a solidez do passado sem deixar de olhar para a frente e contestar as coisas que sempre o deixam insatisfeito. De um cara que nunca quis ser apenas mais um tijolo encaixado na parede.

Set list: Parte 1 – “Comfortably Numb”, “The Happiest Days of Our Lives”,  “Another Brick In The Wall Part 2”, “Another Brick In The Wall Part 3”, “The Powers That Be”, “The Bravery Of Being Out Of Range”, “The Bar”, “Have a Cigar”, “Wish You Were Here”, “Shine On You Crazy Diamond (Parts VI-IX)”, 
e “Sheep”.
 Parte 2 – “In the Flesh”, “Run Like Hell”, “Déjà Vu”, “Déjà Vu (Reprise)”, “Is This The Life We Really Want?”, “Money”, “Us And Them”, “Any Colour You Like”, “Brain Damage”, “Eclipse”, “Two Suns In The Sunset, “The Bar (Reprise)” e “Outside The Wall”.

>> PS: Dias após o encerramento da turnê pelo Brasil, Roger Waters teve suas estadias em Buenos Aires e Montevidéo negadas por alguns hotéis destes países. O motivo: as recentes declarações feitas pelo artista contra a violência extrema utilizada por Israel para responder ao atentado coordenado pelo Hamas no último dia 7 de outubro, contra civis e militares do país. Waters, então, optou por continuar hospedado em São Paulo e se deslocar às duas cidades nos dias de cada apresentação.

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Pato Fu

Grupo comemora 30 anos com álbum de músicas inéditas, EP ao vivo, turnê nacional e ainda levando o projeto Música de Brinquedo à TV

Texto e entrevista por Abonico Smith

Foto: Divulgação

Sobreviver fazendo rock neste país é uma tarefa difícil para artistas profissionais da música. O gênero, após um período de glórias entre os anos 1980 e 1990, parece ter caído em desgraça mercadológica após a internet 2.0 ter mudado todo o consumo de comunicação e arte depois da virada do século. A briga por um lugar ao sol no gosto da população brasileira contra outras vertentes-medalhões vem sendo bastante desigual há um bom tempo e são bem poucos os nomes que, hoje, conseguem se manter apenas viajando pelo território nacional e lançando uma ou outra coisa nova. Pertence ao passado aquela engrenagem que envolvia gravadoras, meios de comunicação (emissoras e programas de rádio e TV voltados a este nicho, sobretudo) e uma molecada disposta a envolver seus recursos (indo desde o material ao abstrato, como o tempo). Há quem possa argumentar que novas plataformas digitais possibilitam novas coisas, como contato direto com fãs e a mola-mestra do DIY por mais tosco que seja, mas também o panorama é desolador: multiplicou a demanda e aumentou a concorrência pelos ouvidos e gostos de cada pessoa. Sem falar que, por aqui, o rock envelheceu e caducou, transformou-se em coisa voltada a gente mais velha e conservadora, de origem branca e com mais dindim no bolso. Basta dar uma olhada geral na plateia que circula entre grandes festivais e shows de arenas e estádios de futebol.

Sobreviver tanto tempo em uma mesma banda também é tarefa difícil. Esta sempre foi, na verdade. Quando se convive com frequência com mais de duas cabeças pensantes, fica complicado conciliar vontades, desejos, maneiras de se pensar, fazer e agir. É raro passar anos e anos segurando uma mesma formação, sobretudo quando são envolvidas mentes criativas e egoicas. Dá para contar nos dedos os grupos, tanto no Brasil quanto no exterior, que permanecem por mais de uma década com a mesma formação, seja a original ou aquela considerada clássica por crítica e público. Discordâncias frequentes quase sempre dão origem a rupturas inevitáveis mais cedo ou mas tarde.

Formado em Belo Horizonte em 1992 por Fernanda Takai (voz, guitarra e violão), John Ulhôa (guitarra, violão, voz e programações) e Ricardo Koctus (baixo e voz), o Pato Fu permanece vivo, atuante e esperneando. Mesmo que seus integrantes principais se dividam em outras atividades paralelas (Fernanda tem uma bem sucedida carreira solo, John é produtor e Ricardo possui uma pizzaria), o trio nunca parou de se apresentar ao vivo e disponibilizar novidades em áudio e vídeo para novos e velhos fãs. Nesta temporada de 2023, inclusive, vem proporcionando lançamentos que celebram o extenso currículo. Tudo pelo próprio selo da banda, o Rotomusic.

O primeiro deles foi surgindo aos poucos na internet desde o ano. O álbum 30 é o primeiro disco autoral de inéditas em nove anos. Nove também é o número de faixas. A curiosidade é que elas foram pipocando aos poucos nas plataformas, em três lotes de três músicas cada. Foi como se a banda fizesse três singles e agora os compilasse em um único disco, em uma metodologia semelhante a feita por artistas e selos lá no ínicio do rock’n’roll, nos anos 1950, quando os compactos eram a melhor forma de lançar novidades e testar a popularidade de uma canção. Além de uma caprichada versão em português para o clássico da musica popular italiana “Io Che Amo Solo Te”, os fus ainda oferecem um punhado de faixas com temáticas comuns a todos no Brasil nos últimos, como os reflexos da pandemia e o isolamento social, mais a política de horrores praticada pelo (des)governo que infestou os prédios públicos de Brasília entre 2019 e 2022. 

Além de Fernanda, John e Ricardo, o grupo tem novamente Xande Tamietti segurando as baquetas. Ele era integrante oficial quando os mineiros lançaram seus discos mais conhecidos, deu uma pequena saidinha e acaba de voltar. O tecladista Richard Neves, que já tocou com muita gente do primeiro escalão da nossa música (de Milton Nascimento a Ney Matogrosso), completa a atual formação de quinteto que agora roda o país com a turnê 30 Anos, que possui um repertório especial, misturando hits com vários lados B bastante queridos pelos fãs mais hardcore da banda – isto é faixas que não ganharam videoclipe na MTV Brasil nem tocaram nas rádios mas que são cantadas de cabo a rabo por muita gente. A escala deste final de semana ocorre em Curitiba – o quinteto se apresenta no tradicional Teatro Guaíra (para onde já levara quatro anos atrás o projeto Música de Brinquedo) hoje, dia 30 de setembro (mais informações sobre ingressos e horário você tem clicando aqui). O sábado seguinte, 7 de outubro, marcará o retorno à terra natal Belo Horizonte, com um show no Palácio das Artes (mais sobre este evento, aqui).

Seis músicas que estão no repertório desta turnê foram gravadas ao vivo e compõem o segundo disco deste ano, o EP gravado em parceria com o estúdio belorizontino Sonastério. O nome do disco, não por acaso, é Sonastério Ilumina Pato Fu. Aqui a ideia foi captar como a banda soa em shows, com arranjos menos eletrônicos e mais orgânicos, um pouco diferentes em relação às timbragens e sonoridades das gravações originais das composições mais antigas.

Engana-se quem pensa que os lançamentos irão parar por aqui. Vem ainda, em breve, um outro disco ao vivo, agora gravado em conjunto com a Orquestra Ouro Preto e batizado Rotorquestra de Liquidificafu. Por fim, para o ano que vem o canal por assinatura Nickelodeon estreará um programa que levará o projeto Música de Brinquedo para a TV. Já existem duas temporadas gravadas, com episódios que reunirão a banda, os monstros criados pelo Giramundo e as releituras de clássicos da música pop feitas somente com instrumentos infantis.

Mondo Bacana conversou com Fernanda e John, que falam do pulsante e prolífico momento atual do trintão Pato Fu. E ainda tenta solucionar um grande mistério que envolve o grupo e parece ignorar a sua longa trajetória como um dos principais nomes do rock nacional.

Qual o segredo do sucesso da manutenção por três décadas de um casamento musical? No caso de vocês, ainda há uma curiosidade nisso, já que dois terços do núcleo que começou a banda lá no início dos anos 1990 permanecem como um casal na vida real.

John: É uma fórmula que a gente pode até tentar estabelecer, mas dificilmente aplicar pras outras bandas. Acho que começa com aquele clássico “fizemos a coisa certa na hora certa”. Isso explica o sucesso inicial, mas pra durar 30 anos, acho que o principal ingrediente é o respeito e amizade entre os integrantes. Sempre fizemos escolhas consistentes na carreira, cuidamos bem dos fãs, procuramos parcerias de alto nível em som, vídeo, fotografias, tudo. Mas a gente não duraria tanto se o clima interno da banda fosse de brigas e discussões intermináveis. Sempre fomos amigos, continuamos sendo. E até o meu relacionamento com a Fernanda, é parte disso. Não sei se o Pato Fu teria dado certo sem nosso casamento. Ao mesmo tempo, não sei como seria nosso casamento sem esse projeto em comum, o Pato Fu. É mesmo uma fórmula de uso único.

O novo álbum tem nove faixas que foram lançadas de um modo diferente, em três lotes diferentes de três canções cada. O novo modelo de negócios no mercado fonográfico aponta mesmo a tendência de se abandonar a concepção de um álbum como uma peça inteira e básica. Vocês concordam? Como foi esta experiência com o Pato Fu?

John: Gostamos de álbuns. São parte do nosso modo de fazer as coisas. Podemos até lançar de outro modo, mas quisemos deixar aquele cheiro de “álbum” no ar. O LP em vinil está no forno, já já será lançado. Quando se faz um álbum, um monte de outras ideias se somam, a começar pelo projeto gráfico. Daí aquilo vai pro cenário da turnê e vai se multiplicando. Esse pessoal que não faz álbuns não sabe o que está perdendo…

O novo álbum parece ser a obra do Pato Fu em que é mais explícito o quanto o ambiente redor afetou vocês como músicos e cidadãos. As letras falam sobre pandemia, isolamento, desgoverno brasileiro, política de horrores. Foi intencional querer botar isso para fora?

John: Sim, claro! Esse ambiente obviamente nos afetou e isso transparece nas letras. Já podíamos notar coisas assim nos discos anteriores, mas acho que agora mesmo as questões mais pessoais passaram pela situação extrema que vivemos, são recados aos amigos, como “Fique Onde Eu Possa Te Ver”. Essa vontade de mandar um abraço aos amigos e ao mesmo tempo denunciar os absurdos que presenciamos foi realmente a tônica do álbum.

Uma curiosidade é a versão em português de “Io Che Amo Solo Te”, clássico da musica romântica italiana dos anos 1960, década em que o pop cantado naquele idioma era bastante consumido aqui pelas Américas. Como surgiu a ideia? A canção tem relação com a memória afetiva de vocês do tempo de crianças?

John: Essa é o alívio romântico, versão inesperada, memória afetiva deslavada, essas coisas que sempre aparecem nos discos do Pato Fu. A gente já tinha citado essa música no finalzinho de “Vida Imbecil”, lançada em 1995 no álbum Gol de Quem?. Um dia desses, zapeando o streaming, nos deparamos com a versão da Rita Pavone. A gente vinha procurando uma música pra gravar com a Orquestra Ouro Preto, com quem estamos fazendo vários concertos. “Io Che Amo Solo Te” tocou muito na nossa infância, foi trilha de novela e foi um desses momentos tipo “por essa você não esperava!” que a gente vive perseguindo. Ruriá Duprat fez o arranjo de cordas e o resultado ficou lindo. Temos tocado essa ao vivo nos shows com a orquestra. É uma emoção.

O disco também trouxe de volta a parceria com o Dudu Marote, responsável pela produção de alguns dos discos mais populares da banda. Como surgiu a ideia do reencontro? Alguma mudança no modo de trabalhar entre passado e presente?

John: Nessa celebração dos 30 anos tentamos trazer de volta muitos conceitos e muita gente também. Pessoas que já trabalharam conosco em momentos importantes, achamos que seria legal tê-las por perto de novo. E o Dudu foi um desses. Produtor fundamental em nossa carreira. Ficou animadíssimo com o convite, veio nos visitar, ficamos todos pilhados e empolgados em trabalhar com ele de novo em duas das músicas. Dudu sempre foi um cara muito envolvente, e continua sendo. Ainda é seu estilo o artesanato pop, a busca do beat, do timbre exato, da colocação de voz perfeita. Aprendi muito com ele e essa foi mais uma chance pra eu aprender mais.

Outra faixa traz uma parceria com Climério Ferreira, poeta, cantor e compositor piauiense e também professor aposentado da Universidade de Brasília…

Fernanda: Climério é meu parceiro já em outras duas canções que eu tinha gravado em meus discos solo. Resolvi trazê-lo também pro Pato Fu, pois achava que a canção cabia na proposta de representatividade dos nossos lados líricos diversos. Vez por outra me pego lendo seus versos e pensando: “esse aqui daria um belo começo de música!”. Geralmente saio juntando várias linhas dele, encontrando um sentido entre as frases. Quando termino melodia e harmonia, mando pra ele reconhecer a paternidade.

A capa de 30 é baseada em traços de mangá. Esta é mais uma forte ligação do Pato Fu com a cultura pop japonesa. Como surgiram os bichos/personagens de cada faixa, que ilustram a capa e os vídeos de animações do YouTube?

Fernanda: Eu conheci o trabalho do Bruno Honda quando escolhi um quadro dele como recompensa num financiamento coletivo de livro. Junto veio uma outra ilustração dele com um recadinho dizendo que ele amava a música do Pato Fu. Isso deve fazer uns 4 anos… Quando fomos escolher entre vários artistas, apresentei os seus traços aos outros músicos, que acabaram votando por ele também. Ele gosta de desenhar bichos em funções humanas. Então perguntou quais os animais que poderiam ser usados para cada música. Demos nossas sugestões e ele foi exatamente em cima delas.

O álbum 30 não é a única novidade do Pato Fu. A banda também acaba de soltar um EP com seis faixas, gravado ao vivo, com algumas faixas clássicas inclusive tendo seus arranjos modificados. Este disco serviu como um laboratório para a nova turnê? Por quê modificar alguns dos hits mais conhecidos desta trajetória de trinta anos?

Fernanda: Eu acho que as gravações do Sonastério são bem fieis aos arranjos originais. A gente mudou muito quando fez o Ao Vivo no Museu de Arte da Pampulha. Essa leva agora só traz a pegada mais forte de banda mesmo. “Spoc”, por exemplo, só não tinha o Xande antes. Não modificamos a essência dos arranjos nos álbuns.

A turnê atual também recupera alguns “lados B” da banda. É importante para um artista não se fixar só no mainstream de seu repertório, ainda mais quando se trata de uma carreira longeva?

Fernanda: Pato Fu é justamente uma banda que tem essa dualidade de vários hits de FM, vídeos, novela, mas que possui uma base de fãs que gosta do lado mais ácido e experimental. A gente lida com isso de forma bem natural desde o início, pois gostamos disso também. Não conseguiríamos ser previsivelmente de um jeito só.

Falem um pouco dos próximos trabalhos da banda: o disco ao vivo com a Orquestra Ouro Preto (que já aparece em uma faixa do EP ao vivo), o Música de Brinquedo chegando à TV por meio do Nickelodeon…

Fernanda: Esse disco deve ser lançado no começo do ano que vem, John ainda vai mixar as faixas. Ele esteve dedicado ao sound design da série da Nick Jr, que ocupou bastante o tempo dele, assim como toda a preparação pra turnê, som e vídeos, trabalhando com a equipe do Batman Zavareze, que assina a direção de arte das projeções. Música de Brinquedo, a série, vai ao ar em episódios inéditos todo sábado, meio-dia e meia, com reprise durante a semana. Já temos duas temporadas gravadas. Tomara que siga em frente, pois é algo muito divertido, onde os monstros do Giramundo tem mais espaço pra brilhar!

Por que diabos o Pato Fu não é chamado para tocar nos principais festivais de música dos últimos anos no Brasil, como Rock In Rio, The Town, Lollapalooza e Primavera Sound?

Fernanda: Devem estar esperando a gente completar 40 anos de carreira! Mas há festivais só de música nacional também como o João Rock, por exemplo, que nunca nos chamou em 20 anos. The Town fiz como convidada do Terno Rei, já há uma esperança… Fizemos quase todos os grandes festivais do passado e temos feito ainda os festivais do circuito mais indie. Acho que somos sobreviventes a tantas ondas que a ideia é permanecer vivo, com saúde e tocando bem para quando for a hora de novo.