Movies

A Pequena Sereia

Live action de clássica animação da Disney traz 52 minutos adicionais, novas canções e Halle Bailey impressionando como Ariel

Texto por Carolina Genez

Foto: Disney/Divulgação

Ariel é a filha caçula do Rei Tritão, governante dos sete mares. Por ser a mais nova, a pequena sereia vive sob regras extremamente restritas que em principal a proíbem de ir até a superfície e interagir com os humanos. Curiosa, magoada pelo pai e determinada a conhecer o mundo acima da água, ela é seduzida pelas promessas da bruxa Úrsula, que oferece pernas em troca da voz da garota.

A primeira adaptação do conto de Hans Christian Andersen produzida pela Disney em 1989 teve um grande peso dentro da empresa, sendo responsável por salvar o departamento de animações do Mickey Mouse, que estava passando por um período difícil depois de fracassos comerciais entre os anos 1970 e 1980. Com uma princesa muito carismática e músicas animadas, o longa abriu portas para outras produções como A Bela e a Fera e O Rei Leão e chegou inclusive a ser indicado a três estatuetas do Oscar, levando duas para casa. Por causa da relevância e da qualidade do seu antecessor, as expectativas em cima do live action anunciado para chegar aos cinemas em 2023 estavam altas.

Eis que estreia nesta semana a nova versão de A Pequena Sereia (EUA, 2023 – Disney), agora com atores. O roteiro de ambos os filmes são bem similares, contando inclusive com alguns mesmos diálogos. Porém, com 52 minutos adicionais, o live action consegue acrescentar momentos e músicas, alem de desenvolver melhor cada um dos personagens de uma maneira que melhora e complementa a história mas ainda mantém a essência que o desenho trouxe para a narrativa. Essas mudanças foram aprovadas não só pelos fãs da animação como também pela atriz Jodi Benson, que deu a voz à princesa Ariel no longa de 1989.

O filme de 2023 abre com uma citação do próprio Hans Christian Andersen (“Uma sereia não tem lágrimas, assim ela sofre muito mais”), que fica com o espectador do começo até o final, principalmente nas cenas mais dramáticas. As novas músicas também se destacam ao longo da história, sendo acrescentadas de maneira orgânica e trazendo muito para dentro da narrativa. A trilha sonora original foi escrita por Alan Menken. Já para o live action, o compositor recebeu a ajuda do talentosíssimo Lin Manuel-Miranda.

Outra das mudanças positivas foi o melhor desenvolvimento da personalidade de Eric. Aquele de 1989, comparado com os príncipes encantados das outras princesas da Disney, tinha bastante personalidade mas não o suficiente para os dias de hoje. Agora Eric não só ganha uma música para chamar de sua, como também somos apresentados aos seus sonhos e vontades, similares às de Ariel (louco para explorar o mundo embora sua mãe queira que ele fique na proteção de seu palácio). Esse acréscimo, apesar de simples, permite com que os espectadores também se conectem com o personagem e faz com que o amor entre os dois personagens seja mágico porém mais natural.

 O romance dentro do filme também foi bem desenvolvido com esses minutos adicionais. Na animação isso já fora bem executado – apesar da intensidade de amor à primeira vista, por ter cedido sua voz, Eric não reconhece Ariel e assim acaba se apaixonando “novamente” pela garota de maneira gradual ao longo da história. No live action o foco na relação é grande, com diversas cenas em que os personagens percebem o quanto têm em comum e aproveitam a companhia um do outro – o que torna a narrativa ainda mais envolvente, também pela química dos atores.

Por falar em romance, durante o longa em diversos momentos é colocada de maneira clara a independência de Ariel, algo muito questionado ao longo dos anos. A princesa sempre quis conhecer a superfície e Eric e sua paixão foi apenas mais um motivo a mais. Dentro do filme, além de “Part Of Your World”, que já expressa as vontades da garota, a nova canção “For The First Time” mostra com perfeição a personalidade da sereia curiosa, determinada, querendo conhecer o novo mundo mas ainda assim assustada com as novidades. E tudo isso na voz potente de Halle Bailey.

A atriz e cantora aqui entrega uma performance digna de longos aplausos, encarnando perfeitamente como Ariel e sendo o verdadeiro destaque dentro do filme. Bailey dá vida a uma protagonista muito corajosa e apaixonante, com muito da essência daquela de 1989, mas construindo a personagem à sua maneira. Desta maneira, impressiona e cativa desde o primeiro momento. E a voz potente da atriz engrandece todas as músicas do filme, desde aquelas que canta solo até as que acompanha em segundo plano. Halle também impressiona pela expressão corporal e performance nas cenas em que Ariel fica sem voz.

Assim como no primeiro filme, os coadjuvantes também não ficam para trás. Aqui a temida Úrsula é vivida pela carismática Melissa McCarthy, que traz uma performance exagerada (num bom sentido) e extremamente debochada. Sua atuação bem teatral fica perfeita para a personagem. Já os amigos de Ariel estão muito afiados, apesar de realistas demais. Linguado (Jacob Tremblay) é extremamente fiel a Ariel e traz divertidos momentos principalmente no começo do filme. Já Sebastião (o talentoso Daveed Diggs) é o braço-direito do rei Tritão e ajuda a princesa a sair de sua enrascada trazendo uma maravilhosa performance da música “Under The Sea”. Por fim, a dublagem de Sabichão acaba incomodando um pouco pela voz da atriz Awkwafina ser extremamente reconhecível. Ainda assim, traz engraçados momentos e recebe uma música só sua, “The Scuttlebutt”, com traços reconhecíveis das obras de Lin Manuel-Miranda.

A Pequena Sereia também ganha muito com os avanços tecnológicos e transporta os espectadores para um mundo mágico, tanto embaixo da água quanto na superfície. Sob o mar tudo é muito colorido e quase viciante de se olhar por causa de diversas criaturas e cenários maravilhosos. O CGI e a maneira natural como Ariel se movimenta também impressionam. Já em terra temos a chance de explorar mais do castelo e da cidade de Eric, ambos também recheados de cores e objetos interessantes. Isso faz entender ainda mais a curiosidade de Ariel.

Apaixonante, satisfatório e divertido, o novo filme consegue emplacar como uma das melhores adaptações feitas pela Disney nessa leva de live actions. Prende os espectadores do começo até o fim, melhorando a narrativa de 1989 e apresentando uma ótima performance de Halle Bailey.

Movies

Pantera Negra: Wakanda Para Sempre

Novo filme fala sobre o luto pelo protagonista mas peca ao se estender em personagens demais e tramas paralelas subdesenvolvidas

Texto por Andrizy Bento

Foto: Marvel/Disney/Divulgação

“Só as pessoas mais feridas podem ser grandes líderes”

Sequência do grande sucesso de público e crítica Pantera Negra, de 2018, este Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (Black Panther: Wakanda Forever, EUA, 2022 – Marvel/Disney) deveria ser um um filme sobre Shuri, uma produção que se dedicasse a mostrar o crescimento da personagem interpretada pela atriz Letitia Wright, que se obriga a amadurecer após inúmeras perdas. Toda a tragédia em seu entorno daria consistência à jornada da heroína e seria enredo suficiente para um longa, tendo como mola-mestra o luto pela morte do irmão, o rei T’challa (Chadwick Boseman). Uma base lúgubre, triste, mas funcional e eficiente para situar a heroína no panteão de super-heróis que é o MCU (Universo Cinematográfico da Marvel). Porém, é Hollywood e Wakanda Para Sempre faz parte de uma safra de produtos que ultrapassou o nicho ao qual era destinada no passado. Não apenas os fãs de quadrinhos de super-heróis consomem esses filmes hoje em dia. Já há um tempo eles abrangem o público em geral.

Portanto, é necessário fanservice para agradar aos marvetes, introduzindo tudo o que for possível da mitologia dos quadrinhos; contextualizar esse fanservice para atingir os espectadores que não conhecem a base original; e, considerando que a Marvel Studios optou por não escalar um substituto para Boseman (falecido em 2020, vítima de um câncer de cólon) seja por carinho ao saudoso ator ou por preferir não despertar a fúria dos ardorosos fãs, em uma demonstração solene de respeito, compor uma obra cuja essência é o luto pelo rei T’Challa e um tributo a Boseman. Toda a história de sucessão protagonizada por Shuri tem esse sabor agridoce de despedida ao intérprete de Pantera Negra, além de ser intercalada por diversas tramas paralelas. O resultado é um longa sem unidade, que aponta para vários lados. É difícil dar coesão a todos os núcleos narrativos. O diretor Ryan Coogler não parece se esforçar muito para alcançar tal objetivo, contentando-se com épicas cenas de ação e profusas sequências de pesar pela perda de T’Challa. É grandioso na embalagem, porém razoável no conteúdo.   

O que fez Pantera Negra se destacar dentre os longas da franquia MCU nos cinemas, levando-o até mesmo a concorrer ao Oscar de melhor filme, era o equilíbrio do conjunto. Coogler apostou em uma lenda fascinante, com cenas de ação certeiras e uma crítica ao imperialismo americano. Em sua essência, a produção de 2018 era feliz e bem-sucedida ao construir nas telas uma mitologia convincente, envolvendo cerimônias ritualísticas e fortes representações culturais que fundamentam Wakanda sem dispensar as boas e velhas lutas coreografadas, explosões e perseguições que fazem a festa dos fãs de blockbusters e ainda trazia uma base política sólida ao discutir racismo e colonialismo. Wakanda Para Sempre apresenta todos esses elementos, mas de maneira desorganizada e totalmente over.

A homenagem a Chadwick Boseman tem início nos créditos de abertura, continua na bela sequência inicial que representa a cerimônia fúnebre e se estende por toda a história. Após a morte de T’Challa, a rainha Ramonda (Angela Bassett) faz o possível para proteger sua nação de poderosos líderes estrangeiros que buscam se apossar do vibranium (metal fictício encontrado em abundância em Wakanda, que possui a capacidade de absorver todas as vibrações em sua proximidade, bem como a energia cinética direcionada a ela e faz com que a terra natal do Pantera Negra seja rica e poderosa), ao mesmo tempo em que tem de lidar com o luto pela perda do filho e tentar uma conexão com a filha, Shuri, que parece ter se fechado em um casulo após a morte do irmão.

Nesse ínterim, entidades do governo descobrem que Wakanda não é o único lugar a possuir vibranium, identificando-o também no fundo do oceano por meio de um detector construído especificamente para rastrear o elemento. A matéria é proveniente do reino submarino governado por Namor (Tenoch Huerta), um mutante com poderes extraordinários derivados de sua herança genética incomum, com fisiologia anfíbia, força sobre-humana, supervelocidade e pés alados que garantem a ele a capacidade de voar. Ao tomar conhecimento do detector de vibranium, Namor entra em contato com Wakanda a fim de solicitar apoio para que capturem a cientista responsável pela invenção. Riri Williams (Dominique Thorne) é uma jovem universitária que não faz ideia que é o principal alvo dessa caçada. Em meio a tudo isso, Shuri precisa encontrar seu lugar entre as lideranças de Wakanda, digladiando com o próprio rancor e sentimento de vingança que a consome.

O elenco numeroso e as diversas tramas paralelas centradas em diferentes personagens tornam os já eloquentes 161 minutos de Wakanda Para Sempre insuficientes para trabalhar tanto material. Por isso mesmo, várias discussões interessantes acabam exploradas de maneira superficial, alcançando um nível muito raso de debate. É o caso, por exemplo, da tão alardeada (ao menos nos materiais de divulgação!) liderança feminina, que ganha pouca substância. Outros temas trabalhados com pouca profundidade neste exemplar afrofuturista da Marvel são justamente a questão racial e o imperialismo americano. Há muita coisa acontecendo na tela e, ainda assim, o roteiro peca ao não se aprofundar em nenhuma delas: a tentativa de focar em Shuri, as introduções de Namor e Riri Williams e o plot envolvendo o agente Everett Ross (Martin Freeman). Todas essas tramas socadas em um único longa tornam o enredo desequilibrado.

Entendo que Wakanda Para Sempre ocupa uma posição difícil na franquia dos Vingadores. O longa tinha a ingrata função de “substituir” o herói de forma nobre, sem ferir seu legado. Mas toda essa construção aliada à introdução de duas personagens importantes transforma o longa em um bolo de noiva e é justamente o desenvolvimento de Shuri que acaba ofuscado. É até irônico, pois, mesmo sem querer, a personagem já acenava para essa possibilidade desde o ritual de desafio no primeiro longa. A pedra angular deste longa-metragem deveria ser a preparação do terreno para que, aos poucos, Shuri ganhasse protagonismo.

Há um momento em que a princesa pergunta a Namor o porquê de estar lhe contando tudo isso. E eu não resisti e respondi mentalmente: porque filmes hollywoodianos têm a mania de serem expositivos demais e contar origens por meio de flashbacks manjados. A insistência da indústria em subestimar a inteligência do público se baseia na crença de que o espectador não vai ser capaz de acompanhar uma história na tela se tudo não for devidamente explicado.

Se já não bastasse o excesso de tramas que incham o longa, a montagem vacila em diversos momentos, especialmente ao mostrar os desdobramentos de lutas tão definitivas, intercalando ambas e tirando o impacto do desfecho das duas. Como tradição dos filmes do estúdio, este não foge à regra de apresentar embates corporais repletos de cortes secos e abruptos. O design de produção continua primoroso e as cenas pirotécnicas que se desenrolam tanto em terra firme como no mar são empolgantes, embora o longa peque pela falta de contrastes, especialmente nas cenas que se passam no reino de Namor, Talokan. A trilha sonora é composta de vários temas interessantes, mas o conjunto da obra é deveras saturado. Há todo um cuidado em retratar a cultura dos wakandanos, explorando seus costumes e a mitologia dos povos que ocupam aquele território. O mesmo não acontece com os talokans. Mas nem vou reclamar nesse quesito, porque, além da certeza de que Namor regressará, isso só tornaria a produção ainda mais longa e modorrenta. Por falar nisso, a guerra entre as duas nações é maniqueísta e bidimensional, abusando de um artifício muito raso para deflagrar o conflito.

O filme que encerra a fase mais criticada do MCU também é um reflexo da mesma, composta de filmes muito apoteóticos em suas intenções, mas inchados ou apáticos em seus resultados. Wakanda Para Sempre é emocional em diversas passagens, especialmente ao rememorar T’Challa. É conceitual, ao abordar o luto cinematograficamente, mostrando como cada figura do elenco lida com a morte do personagem, do ator e do amigo. Mas não é funcional, não possui um fim, um objetivo. Um demérito irreparável quando nos referimos a obras cinematográficas. Eis um tributo a Chadwick Boseman que não faz a devida justiça a seu homenageado. 

Movies

Hamlet

Projeto documental acompanha uma das lideranças das ocupações realizadas por estudantes gaúchos durante o ano de 2016

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Galo de Briga Fimes/Divulgação

Em 2016, centenas de escolas de ensino médio foram ocupadas ao redor do Brasil. Nossa modesta Primavera Árabe, aquela chamada Primavera Secundarista, inseriu-se no contexto arisco da defesa da presidente Dilma Rousseff contra o golpe que sofria por parte do Congresso Nacional, de Michel Temer e demais setores dos três poderes – “Com o Supremo, com tudo”, como imortalizou Romero Jucá.

Nesse contexto, mas também reivindicando mais atenção às políticas públicas de educação, o Brasil foi tomado pelo breve protagonismo da juventude. Se o corajoso movimento não rendeu muitos frutos, afinal a democracia atual se encontra sob ataques muito mais graves que o neoliberalismo do governo Temer, ainda nos propicia uma série de reflexões.

Observando de perto a movimentação das ocupações gaúchas, Hamlet (Brasil, 2022 – Galo de Briga Filmes) é um projeto documental que acompanha Fredericco Restori, uma das lideranças dos ocupantes de uma grande escola de Porto Alegre. A narrativa dispersa é muito mais uma coleção de momentos – plenárias, assembleias, reuniões entre ocupantes, palestras e até a hora do videogame – que uma representação ampla e didática do período da ocupação.

Num primeiro momento, a câmera errática dirigida por Zeca Brito parece incerta do que quer filmar. O registro histórico se inicia numa grande plenária, em que já desponta a presença de Fredericco. Embora este seja nosso protagonista desde a primeira cena do longa-metragem, Brito parece muito mais interessado na coletividade dos ocupantes do colégio, um conjunto de sem nomes que insiste na “horizontalidade democrática”, por assim dizer, e nunca é gravada só. 

O foco constantemente desregulado, a princípio, parece sintoma de uma operação de câmera ansiosa em capturar a essencialidade do momento, mas logo se denuncia em seu exagero: ao compor as sequências cotidianas da ocupação, assim como suas seções mais dialógicas, Zeca Brito escancara seu próprio processo de formalização, ainda que busque escondê-lo sob um fino véu de naturalismo. Partimos do “parece ser” para o “quer parecer ser”, um movimento que não é ruim em si mesmo, mas interessante por nos lembrar que documentário não é realidade – é cinema.

Num segundo momento, esteticamente mais interessante, Hamlet assume seu discurso mais narrativo que repórter, utilizando ligações telefônicas de Fredericco como meio para a exposição de seu conflito interno, que também é refletido em sequências subjetivas. A bem da verdade, esse estatuto da obra sempre esteve presente, já que o filme se inicia, antes do registro histórico das ocupações, com uma conversa entre Fredericco e um homem mais velho tecendo comparações entre sua condição de liderança e a dúvida central de Hamlet: “ser ou não ser, eis a questão”.

Se o filme não esconde a condição de líder que caracteriza Fredericco, sua ideologia juvenil, a princípio, recusa-se a aceitá-la. Ao longo de Hamlet, sua posição vai de “precisamos manter a horizontalidade para não tornar este um movimento fascista” para “eu queria ser líder, e era líder, mas não tinha coragem de admitir”. A ingenuidade da mobilização secundarista permeia todos os acontecimentos do filme – desde a rusga desmobilizada com entidades de base da categoria, como a UBES e a UNE, até a escuta atenta aos ensinamentos do grande crítico e cineasta brasileiro Jean-Claude Bernadet sobre a conjuntura política. 

Justamente por essa inerente ingenuidade, alguns dos momentos aqui retratados conferem ao filme um curioso frescor: um “vai chorar” que vaza na captação sonora durante um protesto; o canto “Bololo ha ha, quero ver desocupar”, eco da relação entre política e cultura que é muito única a cada geração que a vive; a incessante descoordenação da massa durante momentos de tensão, em que o silêncio é um episódio raro que, quando acontece, é muito efêmero.

Contudo, se esses momentos evocam no espectador não mais que a curiosidade e, quando muito, um sorriso de canto de boca, igualmente não se sente o peso que se propõe em Fredericco. A deslocada comparação com Hamlet, que pretende dar tom ao filme, só se dá com clareza na última cena, numa fraca articulação entre o concreto (a ocupação) e o abstrato (as conjecturas posteriores sobre a relação entre vida e arte) que não oferece material suficiente para se realizar. De fato, às vezes a vida imita a arte, assim como a arte imita a vida. Mas nem sempre.

Music

Rodrigo Amarante – ao vivo

Ambientação intimista da Ópera de Arame se revela propícia às múltiplas facetas apresentadas pelo artista em turnê do novo álbum solo Drama

Texto por Leonardo Andreiko

Fotos: Janaina Monteiro (cor) e Leonardo Andreiko (p&b)

A noite invernal curitibana, sempre fria e chuvosa, condiciona o público de diversos modos. Cachecol e japona são itens obrigatórios a qualquer morador da capital paranaense. Pegar uma chuvinha do carro até o show – e depois do show até o carro – é rotina nos eventos desse período. Mas o frio não foi suficiente e a Ópera de Arame se aqueceu com a performance de Rodrigo Amarante e sua banda na noite de 17 de setembro, um sábado.

Enquanto a plateia preencheu-se aos poucos, era palpável a antecipação no ar. Sua última apresentação da carreira solo na cidade havia sido em 2013, em turnê com o début Cavalo. Dessa vez, Amarante veio estrear Drama (lançado em 2021) no Brasil, país do qual esteve distante desde a turnê comemorativa Los Hermanos 2019. Naquela ocasião, a banda passou por Curitiba e lotou a Pedreira Paulo Leminski, ao lado do palco em que anos depois se apresentaria.

A ambientação mais intimista da Ópera, com sua arquitetura em metal e vidro, é muito mais apropriada às múltiplas facetas que Rodrigo Amarante apresenta desde o fim dos Hermanos. Assim como em seu novo álbum, o músico começou a performance dessa noite com lançamentos: a instrumental “Drama” (que dá nome ao disco) deu o tom para a entrada dos músicos em palco e logo se sucedeu a vivaz “Maré”, primeiro single do álbum.

No palco com banda completa, Rodrigo apresentou ao público curitibano a veia solar que fez de Drama um trabalho tão distinto de Cavalo, que representava um cosmopolita sem casa, diluído entre vivências. Agora, morador de Los Angeles há anos, o artista volta-se a sua infância e ao eterno conflito da subjetividade com a sensibilidade, o emocional que o homem é ensinado a reprimir conforme cresce. Dessa forma, continuando com “Tango” e “Tanto”, os músicos apresentam essa “nova atmosfera” do disco, que explora seus temas com mais extroversão e grandiosidade que seu antecessor.

Justamente por isso, Drama precisa de mais que um violão branco e a voz de seu autor para preencher os palcos. Acompanhando Amarante, performaram Rodrigo Barba (bateria) e Alberto “Bubu” Continentino (baixo), companheiros de Los Hermanos; Pedro Sá (guitarra), que integrou a Banda Cê, de Caetano Veloso; o músico e pesquisador Daniel Castanheira (percussão); e a multi-instrumentista Nana Carneiro da Cunha (piano e cello). O grupo de peso auxiliou Rodrigo na difícil tarefa de uma plêiade de sentimentos por entre uma vasta discografia, que conta com três bandas (Los Hermanos, Orquestra Imperial, Little Joy) e dois discos solo. E o resultado foi magistral. A energia de “Maná” e “Pode Ser” (Orquestra Imperial) fez vibrar a plateia. Também houve liberdade para experimentalismos na consagrada “Mon Nom” e “Tao”, que foi repaginada sem o naipe de sopros, que deu espaço aos solos da banda.

Ainda, uma pausa da banda abriu espaço para que Amarante, sozinho, iluminado por um único holofote num palco escuro, nos presenteasse com algumas de suas músicas mais tocantes. “Irene”, “Evaporar” (Little Joy) e “The Ribbon” ecoaram em toda a estrutura da Ópera, que só não lacrimejou porque não podia.

A noite integrou perfeitamente clássicos, como “O Vento” (Los Hermanos), sucessos como “Tuyo” (da série Narcos) e elementos de Drama, como “I Can’t Wait”, para tornar a apresentação muito mais que a exposição ao vivo de um novo disco. Para finalizar a primeira parte do show, antes do bis, Rodrigo ostentou sua potência poética com uma das mais belas composições do álbum, “The End”, que alça a antiga demo “That Old Dream Of Ours” para novos horizontes com a integração da banda.

Na medida que avançava no set list, o artista brincava com passado e presente, rememorava e repaginava. Dava novos passos e sentia a confiança em olhar para trás, que só faz figurar nos colossos da música brasileira. É cedo, decerto, para sacralizar uma carreira solo ainda insipiente, ainda que já calejada por décadas de ação. Mas se o futuro reserva a Rodrigo Amarante o mesmo esmero e sobriedade com a música que já é evidente, só nos resta reservar a ele um espaço entre nossos melhores.

E assim, mais uma vez, o cometa que é o artista passou por Curitiba, riscou o tempo e se foi.

Set list: “Maré”, “Tango”, “Tanto”, “Nada em Vão”, “Mon Nom”, “I Can’t Wait”, “Eu Com Você”, “O Cometa”, “Tara”, “Tuyo”, “Irene”, “Evaporar”, “The Ribbon”, “Tardei”, “Um Milhão”, “Tao”, “Maná” e “The End”. Bis: “O Vento” e “Pode Ser”.

Music

Black Alien – ao vivo

Rapper comemora aniversário balançando as estruturas do Circo Voador e com a participação surpresa do Planet Hemp

Texto por Clara Ferrari

Foto: Guilherme Rondon

O último dia 7 de Junho foi o aniversário do rapper carioca Gustavo, conhecido nacionalmente pelo seu nome artístico Black Alien. Depois de uma longa e difícil recuperação da depressão pela morte do seu amigo e parceiro SpeedfreakS, Gustavo enfrentou duas overdoses (em 2010 e 2013) e depois este período obscuro teve a ideia de levantar uma campanha de crowdfunding que arrecadou dinheiro suficiente para sua recuperação e a consequente gravação do álbum Babylon By Gus – Vol. II: No Príncipio Era o Verbo. Sóbrio desde 2015 e após passar por diversos desafios na sua vida pessoal e profissional, ele compôs novas canções ao lado do DJ, produtor e beatmaker Papatinho, que entraram no disco Abaixo de Zero: Hello Hell, lançado em abril de 2019. Um novo Black Alien, com novos hits e uma nova forma de fazer rap mas sem perder a sua essência de Mr. Niterói.

Vestindo uma camiseta vermelha do Talking Heads, Black Alien retornou forte e com energia ao palco do Circo Voador para comemorar seu aniversário. O rapper, que teve o início da sua carreira como um dos integrantes do Planet Hemp, seguiu construindo sua imagem e base de fãs independentes. E deu um show de arrepiar, fazendo os cariocas vibrarem com seus hits antigos e faixas do mais recente álbum.

Assim que os portões do Circo se abriram às 22h, já deu para observar o que estaria por vir. Foi notória a quietude e silêncio das pessoas antes do show. Em ritmo lento, naquele jeito pós-pandêmico, as pessoas foram se espalhando pelos espaços daquele local que, há décadas, é palco de inúmeros concertos consagrados. Antes houve algumas apresentações de DJs, que foram intercalando discos de hip hop e lo-fi até a entrada do Black Alien no palco.

Exatamente às meia-noite e quarenta, o set list iniciou com a primeira música do disco Abaixo de Zero: Hello Hell: a faixa chamada “Área 51”, de nome inspirado na antiga base militar norte-americana que é famosa por seus segredos e teorias conspira a respeito disso. Foi impressionante a energia que pairou sobre as pessoas com a entrada de Gustavo. Se então havia silêncio e calmaria entediante, isso foi substituído por vozes ecoando muito alto dentro das lonas, dando a impressão de estremecer as arquibancadas. Inevitável ficar quieto ou calado – até quem não sabia as letras ao menos tentava acompanhar a plateia cantando. Foi de arrepiar. Durante o show também foi notável a presença de um intérprete de libras traduzindo as letras e tudo o que Black Alien conversava com a plateia, mostrando a consideração e humildade de um artista preocupado com a inclusão de pessoas – algo básico, mas um ponto em que muitos grandes nomes deixam a desejar.

Após algumas músicas e os fãs vibrando alto, pode-se notar também uma certa frustração de Black Alien por esquecer a letra de algumas músicas. O que não foi problema algum para a plateia, que manteve a energia alta e cantou as partes que o artista não sabia. No decorrer do show e quando menos se esperava entraram dois caras de boné e roupas largas cantando parabéns para Gustavo. Custei a acreditar, mas eram os próprios Marcelo D2 e BNegão. Após os parabéns, a dupla de MCs do Planet Hemp prosseguiu cantando o clássico “Queimando Tudo” com a (breve) participação de Black Alien, que se mostrou mais uma vez frustrado por não se lembrar dos versos.

Quando D2 e BN saíram do palco, depois de mais dois mísseis do Planet Hemp, Black Alien deu continuidade ao set cantando os seus últimos hits. Na derradeira música, agradeceu mais uma vez aos fãs pelo carinho e de forma breve se despediu e se retirou. Poucas pessoas pediram o seu retorno, mas quem estava com muita adrenalina acabou sentindo falta de uma saída mais calorosa. Quem sabe em um próximo show

Set List: “Área 51”, “Chuck Berry”, “Vai Baby”, “Carta Para Amy”, “Caminhos do Destino”, “Babylon By Gus”, “Sangue de Free”, “Take Ten”, “Queimando Tudo”,  Zerovinteum”, “Contexto”, “Au Revoir”, “Como Eu Te Quero”, “Aniversário de Sobriedade”, “Na Segunda Vinda”, “Pique Peaky Blinders”, “Jamais Serão” e “Que Nem o Meu Cachorro”.