Thriller de Steven Soderbergh traz Zöe Kravitz como uma isolada techie que cuida de uma assistente virtual até sua vida virar do avesso
Texto por Taís Zago
Foto: HBO Max/Divulgação
Em tempos de Siri e Alexa, a IoT (Internet of Things) tá cada vez mais presente na vida cotidiana das pessoas e já anda ocupando espaço no audiovisual também. Kimi é a versão fictícia da Alexa, mas não, aqui não se trata de mais uma distopia dos computadores querendo dominar o mundo. Kimi não é Hal. E também não tem outro papel na trama de Kimi (EUA, 2022 – HBO Max) a não ser atender aos pedidos e responder às perguntas de Angela (Zöe Kravitz).
Angela, por sua vez, trabalha como techie desfazendo bugs de Kimi. Passa seu dia escutando trechos de áudios gravados pelos usuários que não tiveram seus pedidos atendidos pela secretária virtual. Ela se ocupa de adicionar ao código todas as novas questões que são levantadas, ampliando assim a base de dados de dispositivo.
Boring. Sim. Uma das atividades mais metódicas e maçantes do TI junto a testing é o bug fixing. Mas Angela gosta e precisa da organização, da solidão e da previsibilidade do seu trabalho. Ela sofre de agorafobia, episódios de pânico e extrema ansiedade desde que foi atacada na rua. Nunca sai de casa. Nem mesmo com um dente infeccionado. E a pandemia do coronavírus só colaborou para agravar ainda mais o seu quadro.
Tudo parece certinho: ela trabalha, come ou se exercita em casa, tem até um caso com um vizinho do prédio da frente que volta e meia aparece para visitá-la. De forma geral, ela vê o mundo pela janela e também é observada. É Steven Soderbergh fazendo homenagem a Hitchcock em seu pequeno porém bem feito thriller. Zöe interpreta Angela como uma pessoa nervosa, rígida e frágil, consumida pelos seus medos, mas que também não faz nada para escondê-los. Ela assume suas limitações, carrega esse fardo publicamente. Dos poucos contatos de sua vida, a mãe, parece ser a muleta emocional. E a mãe tá meio de saco cheio. Assim como o quase namorado.
E é nesse clima que as coisas viram do avesso na vida da protagonista. O isolamento tão confortável, de uma hora para outra vira correria, com direito a perseguições e escapadas fantásticas. Angela é literalmente empurrada de sua zona de conforto. E ela não é personagem alguma da Marvel e nem uma Elisabeth Jennings (The Americans), é só uma geek cheia de manias. Porém, tem ao seu lado um superpoder que apenas os ansiosos têm: ela funciona sob pressão, pois já sofreu todos os cenários possíveis antecipadamente dentro de sua cabeça.
A trilha sonora também é um bom pano de fundo como em momentos de tensão – no maior de todos a “virada de mesa” ocorre ao som de “Sabotage”, dos Beastie Boys – e tudo termina com “Connection”, da banda de britpop Elastica. Nada mais sunny side of life do que isso. Não tem mais filme sem banda noventista, meus amigos. Pelo menos por mais alguns anos. E acho que tá bom assim.
Autor curitibano proporciona uma rara e peculiar experiência de ler uma HQ em livro no qual faz bela declaração de amor pela sua CWB
Texto e entrevista por Abonico Smith
Fotos: Divulgação (capas e páginas) e acervo pessoal (José Aguiar)
Fazer declaração de amor a uma determinada cidade é algo comum em versos da música pop desde os primórdios do século 20. No cinema também é uma temática frequente nas últimas décadas, sobretudo na obra de realizadores mais autorais. Nos quadrinhos, a cidade pode também aparecer bastante aqui e ali, mas também entra mais como um cenário do que propriamente como um personagem de destaque nas histórias.
É justamente esse o grande diferencial de CWB, o mais recente título de José Aguiar pelo seu selo Quadrinhofilia. Lançado no final do ano passado, o livro é fruto de um projeto aprovado pela lei municipal de incentivo à cultura de Curitiba. Em suas páginas correm não só uma mas duas histórias que revelam todo o amor e o envolvimento do ilustrador e roteirista com a capital paranaense. Sob as três letrinhas do título – que compõem a sigla aérea utilizada para Curitiba – estão percepções individuais, experiências pessoais e fantasia, como ele mesmo faz questão de ressaltar no prefácio. Só que o protagonismo está exercido justamente pela cidade.
No total são duas histórias que correm em paralelo, uma lida de trás para a frente e a outra de frente para trás. Ambas com sua respectiva capa, ambas envolvendo uma maleta misteriosa. Naquela que corre em sentido tradicional ocidental, acompanhamos a aventura de um homem que sai de casa para enfrentar intempéries de todos os jeitos e tipos, sempre tendo como base a paleta de cores que vai do vermelho para o amarelo (o que passa a impressão de ser algo mais quente). No sentido inverso, como um mangá, uma mulher faz quase a mesma coisa, só que indo do vermelho ao azul (algo mais frio). Seriam um casal? O que há guardado dentro dessa mala? Estas histórias acabam por cruzar as narrativas no decorrer das páginas? E sem estabelecer aquela divisão tradicional dos quadrinhos em uma página, Aguiar troca o tradicional traço preto pelas nuances das tintas da aquarela para ressaltar um espaço povoado por lugares, ícones, símbolos, história, arte e arquitetura curitibana. Sempre de modo inusitado, inovador e, o principal, tão empolgante que põe o leitor no lugar de quem está de posse da mala. Todos estes ingredientes acabam fazendo deste caldeirão chamado CWB uma experiência única para quem é fã e admirador da arte sequencial.
O detalhe mais curioso, porém, é o fato de José Aguiar, apesar de toda a sua relação com sua cidade natal, dentro e fora da área dos quadrinhos, sofreu um golpe do destino e do acaso e não pode concluir nela esta sua obra. Pouco tempo depois de viajar para Leipzig com a família, para passar um tempo de aprimoramento como artista e educador, veio a pandemia da covid-19, o que impossibilitou qualquer chance de retorno para casa e o fez ter de terminar as artes todas em aquarela na cidade situada ao leste da Alemanha. Sequer conseguiu também estar presente no dia do lançamento de CWB em Curitiba (mais precisamente da Itiban Comic Shop, para onde foram destinados os exemplares à venda – aquiestão mais informações sobre como adquirir o livro). Até o último mês de fevereiro, aliás, ele permaneceu em território germânico diante de tantas incertezas e lockdowns promovidos de março de 2020 para cá.
Aguiar conversou com o Mondo Bacana sobre o novo trabalho, a sua Curitiba, a pandemia da covid-19 e o seu exílio involuntário ocorrido até o começo deste ano.
As duas capas/contracapas de CWB
Como surgiu a ideia de contar duas histórias diferentes e possibilitam duas leituras paralelas, nos sentidos de uma HQ tradicional e dos mangás?
Foi durante o processo de roteiro. Eu estava pensando sobre formas de narrar capazes de valorizar graficamente o espaço da cidade. Durante minha pesquisa consultei livros de imagens infantis, quadrinhos mudos, coisas que saíssem do lugar-comum em termos de narrativa. Quando percebi que o objeto livro era a cidade nas mãos do leitor, decidi situar cada protagonista num lugar diferente desse “mapa”. Assim seria possível que cada sentido de leitura marcasse um possível ponto de partida, o que permite que o livro possa ser lido tanto no sentido ocidental como oriental. Uma experiência que me desafiou muito.
Qual o significado do predomínio das cores em ambas as histórias? Uma é mais “quente”, com amarelos, laranjas e vermelhos. Outra é mais “fria”, com azuis, roxos e rosas.
As cores que ditam a paleta do livro vêm das folhas das árvores ipês que desabrocham no outono: rosa e amarelo. Por isso essas folhas estão sempre presentes. Como o projeto é algo que rompe com convenções, foi natural associar o rosa ao protagonista masculino e o amarelo a protagonista feminina. Fugir de estereótipos de gênero assim como a representação dos curitibanos brancos sem o clichê do descendente europeu sempre foram preocupações minhas. Também não queria fazer um livro de cartões-postais. Queria uma história que fosse viva de muitas formas.
O fato de ter utilizado a aquarela como técnica de desenho e colorização também influiu na questão das cores citada acima? Por que decidiu usar a aquarela?
Nos últimos anos tenho andado cansado da cor digital. É uma ferramenta incrível, porém perde na espontaneidade. A aquarela tem muito ruído e texturas que fogem ao controle e acrescentam espontaneidade no resultado final. Como CWB se trata de um trabalho mais subjetivo, acredito que não ficaria bom se fosse finalizado em outra técnica. A cada livro eu busco soluções adequadas ao conceito. Não gosto de ficar numa zona de conforto. Seja no tema, seja na forma com que executo minhas obras.
Em muitos momentos, quando postas lado a lado nas respectivas páginas de leituras, as duas histórias se cruzam em desenhos e referências. Foi fácil arquitetar isso? Houve alguma dificuldade?
Foi difícil no todo, prazeroso em cada parte. Eu precisei ilustrar já em formato livro para visualizar as viradas de página, espelhamentos, paralelos e invasões que a história proporcionava. Depois passei tudo a limpo e colori. Em resumo, fiz o livro duas vezes.
Aproveitando a pergunta anterior como foi o processo de desenho de ambas as histórias? Elas foram sendo feitas simultaneamente ou você construiu uma para depois realizar a outra?
As narrativas surgiram juntas. Minha ideia sempre foi que elas se somassem numa trama maior. O desenho veio de muita pesquisa de campo e bibliográfica. Durante mais de um ano fotografei locais que faziam parte da minha vivência na cidade. Depois fui ler a respeito deles e procurar outros ângulos para ilustrar. Quando chegou a hora de desenhar, eu já tinha um percurso mais ou menos bem traçado de quais lugares precisavam ser representados. Mas muito da trama se fechou nesse processo final.
Além da não linearidade na narrativa espacial do livro, muitas de suas páginas possuem uma não linearidade na forma de disposição dos quadrinhos, com muitas das ações de um deles interferindo no desenho de outro. Há inclusive o sumiço do espaço em branco tradicional que os separa e serve como apoio ao leitor para fazer pequenas elipses temporais no seu cérebro durante a leitura…
Sim, busquei quebrar com o máximo de convenções de leitura na busca de construções de páginas inusitadas. É um trabalho experimental. Uma oportunidade única de fazer algo que somente como autor independente seria possível. Até porque não consigo me ver convencendo um editor a investir num livro assim sem ver a obra pronta. Agora ela está aí para provocar e mostrar como são ilimitados os potenciais dos quadrinhos como linguagem e arte.
Na história do protagonista masculino há diversas referências sobre as histórias em quadrinhos de Curitiba de várias décadas. Qual foi o critério de escolha dos personagens e qual sua relação pessoal com eles?
Minha relação pessoal com a maioria deles é a de um descendente distante quando descobre um parente famoso até então desconhecido. Todos aqueles personagens antigos são, de certa forma, antepassados dos meus. Eu sou fruto de um momento histórico particular, quando o único espaço para veicular quadrinhos na cidade eram as tiras de jornal. Eles são parte de outras histórias que tornaram a minha e a de muitos outros artistas também possível. São todos personagens que representam não só suas épocas, mas a “alma” local, seja por meio de estereótipos, questionamentos ao status quo ou pelo espírito de entretenimento puro e simples presente em revistas, livros e jornais dos mais variados formatos. Esses personagens refletem um aspecto negligenciado de nossa memória cultural que é a importância da história gráfica e da imprensa local, que vem desde o século 19. Num dos textos que complementam CWB eu pincelo um pouco a respeito do contexto de cada personagem. Essas participações especiais são em grande parte fruto da pesquisa que realizei para o livro Narrativas Gráficas Curitiba – 210 Anos de Charges, Cartuns e Quadrinhos. O livro já foi impresso pela Biblioteca Pública do Paraná, mas que até o momento desta entrevista, ainda não teve lançamento por causa das limitações impostas pela pandemia da covid-19.
Como você se sentiu revistando vários de personagens seus mais de tiras e produções mais antigas, inclusive voltando a desenhar o Gralha?
Trazer o Boi, meu primeiro personagem publicado, para contracenar com a Malu, minha mais antiga ainda em atividade (o último livro dela saiu ano passado!) foi muito divertido. O Gralha é um projeto importante na minha formação pessoal. Mas ele é uma criação coletiva e que meus colegas mantêm viva. Não desenho uma HQ dele desde 2001. Então foi gratificante colocá-lo e também o Capitão Gralha na Gibiteca. Cena onde pude homenagear outros personagens locais criados dos anos 1980 até o presente.
O uso de certos personagens fantásticos, que você explica em um dos textos como sendo uma grande influência do animador Ray Harryhausen, caíram como uma luva para deixar a sua Curitiba deste livro com uma cara um tanto mais esquisita e estranha?
É uma história afetiva. Então convoquei meus afetos mais primais. Minhas fantasias mais queridas. Entre elas está o trabalho de Harryhausen, Jack Kirby, Moebius, Luis Gê, Juarez Machado… Quanto mais penso no assunto mais nomes que não citei no livro me ocorrem. É um trabalho sobre o qual ainda tenho muito o que pensar.
Páginas internas de CWB
As diversas referências gráficas de Curitiba foram desenhadas de cabeça através de memórias e lembranças ou você usou fotografias para procurar recriar tudo com o máximo de realismo possível?
Realismo é uma palavra forte. Eu diria verossimilhança, a ponto de conseguirmos reconhecer os monumentos e locais. Infelizmente não tenho memória fotográfica. Tudo que lembro e imagino é simplificado, cartunizado. Acho que é problema de pouco espaço no HD.
Em uma época como esta, quando desde o ano passado a capital paranaense sofre com a falta de chuvas e meses com rodízio de água nas residências, não teria sido mesmo uma ótima ideia ter provocado um tsunami pelas ruas do centro e do centro cívico?
Foi uma coincidência, como outras que podem trazer leituras diferentes para a obra. A escultura Maria Lata D´águaé a figura de alguém que provém a água para quem é carente desse item básico. Esculpida pro Erbo Stenzel, seu nome original é Água pro Morro. Para mim, ao deflagrar a enxurrada (ou tsunami) ela liberta os oprimidos e lava da cidade de quem a oprime. Quem leu o livro e conhece a cidade sabe contra quem a onda gigante se choca.
Em um dos dois textos que você assina no livro você fala de certas peculiaridades de comportamento e atitudes em relação a outras grandes cidades brasileiras…
Minha visão de Curitiba não é ufanista. Eu amo minha cidade mesmo sabendo de todos os seus defeitos. Reconheço nela um potencial de ser verdadeiramente mais justa, limpa e cosmopolita. Os elementos que uso na minha CWBnão deixam de ser críticas a nossa memória construída na omissão, por exemplo, do reconhecimento do papel da população negra e feminina. Creio que a metáfora adequada para CWB é a de que Curitiba deveria acreditar menos em sonhos formatados e ser ela mesma o sonho que sua população precisa.
Você também optou por não fazer histórias fechadas, com aquele final mais explícito concluindo as narrativas. Isso seria uma brecha para um possível segundo livro da “série”? Alguma vez você pensou em fazer mais livros enquanto estava produzindo este, seja com a sequência destas duas histórias ou até mesmo outras diferentes?
Essa história é um looping infinito. Não precisa continuar. É possível? Claro. Entretnto, não vejo necessidade. Se for para ramificar. que seja migrando para outra mídia, como animação, onde ela precisaria ser reimaginada. Seria um desafio mais interessante para todos. Curitiba pode ter infinitas histórias. Minha série da Malu e o livro Coisas de Adornar Paredes são ambientadas nela e completamente diferentes entre si. Outros autores locais também estão usando seu cenário, o que é muito bom. O mais importante é não ter vergonha de explorar nosso sotaque em novas ficções. Feitas sem ufanismo, sem deslumbre, mas com senso crítico e boas histórias.
Como foi concluir um livro com histórias sobre a sua memória afeitva de Curitiba justamente estando longe da cidade por causa da pandemia? Qual a porcentagem dele você produziu estando na Alemanha?
Eu cheguei com minha família na cidade de Leipzig, na região da Saxônia, em outubro de 2019. Na bagagem, as referências e primeiros estudos. Aqui concluí o roteiro e desenho. A ideia era ficarmos uma temporada, mas a covid-19 e cancelamentos de voos nos fez adiar um pouco o retorno. Minha esposa veio lecionar na Universidade de Leipzig e eu vim participar de eventos que foram cancelados pela pandemia. Antes de viajar, a ideia do distanciamento de meu lar parecia uma boa ideia para fazer CWB. Mas a pandemia deixou o processo mais doloroso, pois estávamos em isolamento e eu lá, só de corpo presente, com a mente e coração apertado no Brasil.
O que Leipzig tem que Curitiba não tem e vice-versa?
Eu acho ambas as cidades bem próximas, descontando a escala menor da Alemanha. Numa comparação bem superficial, dá para dizer que Berlim está para São Paulo e Leipzig está para Curitiba. Até no clima. Mas Leipzig tem a vantagem de um sistema de transporte muito mais integrado, inclusive com outras cidades. Curitiba tem o defeito de se achar europeia, quando deveria entender que é muito mais mista do que foi ensinada a acreditar. E Curitiba tem pinhão. Pinhão é vida!
Como foi justamente lançar um livro sobre Curitiba sem poder estar presencialmente na cidade e fazer festas e eventos de lançamento?
Frustrante. Mas todos nós passamos por frustrações neste ano de 2020.
De que forma você imagina Curitiba inserida no mundo pós-pandemia?Ela precisa se firmar como polo cultural alternativo e competitivo em relação ao eixo Rio-São Paulo. Durante a pandemia, um dos setores que mais sofreram, mas que mais trouxeram alento às pessoas, foi o setor cultural. Também gostaria de uma cidade que valorizasse mais os transportes alternativos e não poluentes, que fosse de fato um modelo de ideias e que não vivesse de nostalgia de realizações passadas que não dialogam com nossas necessidades presentes ou futuras. Mas isso é mais um desejo do que a imagem que projeto para o futuro próximo. Que, para mim, segue nebuloso enquanto o curitibano não aprender que é parte do Brasil.
Desde a primeira princesa da Disney tanto seu conceito quanto o mundo mudaram bastante. De 1937 (quando o filme Branca de Neve e os Sete Anões foi lançado) pra cá muita coisa também mudou. Ainda bem!
De mulheres que dormiam esperando seu príncipe (como Branca de Neve ou Aurora) a outras que tinham como único objetivo de vida se casar (como Ariel, Jasmine ou Cinderela), foi um longo caminho até que uma princesa mais “ativa” e a diversidade aparecesse em Mulan (1998) e a primeira que realmente trabalhava fora – e a primeira negra – na pele de Tiana (de A Princesa e o Sapo, de 2009). Daí pra frente a evolução foi cada vez mais rápida e melhor, até que chegamos em Merida (Valente, 2012) e Moana (2016), que sequer tinham um príncipe na mira.
Então nada mais natural que alcançarmos um ponto onde a figura masculina sequer aparece em Raya e o Último Dragão (Raya and the Last Dragon, EUA, 2021 – Disney). Raya surge em 2021 como o símbolo do girl power que tomou conta da sociedade e de Hollywood: ela se basta, ela não precisa da ajuda de homens, ela é independente e pretende salvar o mundo sozinha. E não tem nada de errado nisso!
O longa, majoritariamente de personagens asiáticos, conta a história de Raya, a filha do chefe de uma tribo de um lugar que um dia se chamou Kumandra. De acordo com informações, o local ficaria no sudeste asiático – região da Ásia entre a China e a Austrália composta por diversas ilhas e países como Tailândia, Indonésia, Laos, Filipinas, Malásia, Singapura e Vietnã. Raya seria, portanto, a primeira princesa da Disney desta região.
Antes unido, hoje Kumandra se divide em cinco partes inimigas que brigam pelo poder. Por conta da cobiça dos homens, o reino foi destruído, os dragões extintos e uma estranha bruma passou a aterrorizar os moradores de todas as divisões, transformando tudo o que se toca em pedra e cinzas e acabando com a vida. A única possibilidade de salvação é encontrar o último dragão. Ele pode restaurar a vida um dia eliminada e trazer a paz. O que faz deste um filme sobre otimismo e confiança, que deixa como grande mensagem uma questão: não confiamos mais nas pessoas porque o mundo se tornou um lugar ruim ou o mundo se tornou um lugar ruim justamente porque não confiamos mais nas pessoas?
É bem verdade que Raya e o Último Dragão por vezes parece um grande mash up de outras coisas que já vimos, como Kung Fu Panda, Mulan e Mad Max: Estrada da Fúria. Não que isso seja uma coisa ruim (e não é!) e duas produções ecoam bastante. Em seu estilo “equipe em ação” e, principalmente em um acontecimento específico quase no final do filme, ele remete muito a Operação Big Hero. Por falar em dragão voador + guerreiro + sombra que destrói a vida, alias, é impossível não pensar em A História Sem Fim.
Mas nada disso tira a magia do longa. O final emocionante, a mensagem, as cenas de luta impressionantes e um visual de cair o queixo (preste atenção nas texturas e brilhos dos tecidos, pelos e cabelos) fazem de Raya e o Último Dragão mais um clássico da Disney. É só uma pena que o filme não terá a exposição que merece. Quem sabe a partir de 23 de abril, quando o título chegar sem custo adicional ao Disney+, ele ganhe maior visibilidade. Porque, definitivamente, merece.
Religião, fé, bondade, barbárie, corrupção e violência estão intimamente ligadas nas narrativas paralelas que unem diversos personagens
Texto por Ana Clara Braga
Foto: Netflix/Divulgação
Os horrores se perpetuam de geração em geração na cidade de Knockemstiff, Ohio. É assim que o narrador apresenta a cidadezinha-cenário de O Diabo de Cada Dia (The Devil All The Time, EUA, 2020 – Netflix). Dirigido por Antonio Campos, filho do jornalista brasileiro Lucas Mendes, o longa-metragem é montado com narrativas paralelas que se cruzam até o fim. Como o nome já sugere, a trama mostra por meio de religião, assassinatos e outros atos chocantes que o mal é unanimidade do cotidiano.
O ponto de partida do enredo é a volta de Williard (Bill Skarsgard) para casa após a Segunda Guerra Mundial. Traumatizado pelos eventos do combate, o soldado acaba encontrando sua futura esposa (Haley Bennett), uma garçonete, em uma lanchonete. Paralelamente, no mesmo local o fotógrafo Carl (Jason Clarke) conhece outra garçonete, Sandy (Riley Keough). Williard e a mulher têm um filho chamado Arvin (Tom Holland).
Campos constrói uma atmosfera gótica para seu filme na qual as tragédias e os horrores parecem se acumular. A chegada do pastor interpretado por Robertt Pattinson à cidade é uma adição de qualidade à história. Em uma interpretação incrível, apesar do sotaque peculiar, o ator é responsável pelo personagem mais instigante do longa, mesmo que ele seja totalmente desprezível.
A religião está presente no filme desde os seus minutos iniciais. Inclusive, ela é usada como justificativa para atos bárbaros. É muito relevante a dicotomia colocada na figura da instituição religiosa. Em momentos apaziguadora e reconfortante, em outros castigadora e munição para atrocidades. Em tempos de radicalização em que a fé vira arma ideológica e política, ver os perigos do extremismo e da corrupção são necessários.
A construção da narrativa por meio de histórias paralelas precisa ser muito bem organizada. A quantidade de conteúdo prejudicou, aqui, o andar da história. O enredo do policial corrupto (Sebatian Stan) poderia ter sido trabalhado de outra maneira para contribuir melhor para o desenvolvimento das outras tramas. Quando sua história se choca com a de sua irmã Sandy é seu melhor momento no filme.
É longa a discussão entre se o ser humano é bom por natureza e a sociedade o corrompe ou se já ele já nasce corrompido. Em O Diabo de Cada Dia é muito mais simples: não importa em que momento acontece o desvirtuamento, o homem fará alguma maldade, nem que seja para a sua salvação.
Charlie Kaufman usa e abusa de simbologias e flerta com o surrealismo para abordar temas tão (tristemente) presentes no cotidiano
Texto por Andrizy Bento
Foto: Netflix/Divulgação
No currículo de Charlie Kaufman constam os roteiros de Quero Ser John Malkovich e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Sinédoque, Nova York e Anomalisa também carregam sua assinatura, não apenas no texto como na direção. Os fãs de cinema indie conhecem seu estilo e os que ainda não assistiram a algum destes títulos provavelmente nem ficarão surpresos quando os créditos finais surgirem na tela após uma sessão de cinema no meio de Estou Pensando em Acabar Com Tudo (I’m Thinking Of Ending Things, EUA, 2020 – Netflix). Já os desavisados e não habituados ao trabalho dele, bem como os fãs do livro no qual o longa se baseia, correm o sério risco de se decepcionar. Ou de ficar extremamente confusos com as escolhas narrativas e estéticas (que, por vezes, soam absurdas) adotadas por Kaufman para contar a sua versão da história.
Disponível na plataforma de streaming Netflix desde o dia 4 de setembro, o filme adapta o romance homônimo do autor canadense Iain Reid. Mas como Kaufman é, sobretudo, um criador na acepção da palavra – que gosta de esbanjar originalidade tanto no que concerne a questões de roteiro quanto de visual – obviamente, ele dispensou a fidelidade ao material de origem. Portanto, não se limita – tampouco se contentaria com isso – em contar a mesma história presente nas páginas do livro. Inclusive, mudou completamente o final.
Lucy (ao menos, a princípio, é assim que ela se chama), interpretada por Jessie Buckley, decide pegar a estrada em uma curta viagem com o namorado para visitar os pais dele na fazenda em que vivem, mesmo em meio a uma tempestade de neve. O casal ainda está bem no início do relacionamento, tendo se conhecido há poucos meses. A garota percebe as inúmeras qualidades presentes em Jake (Jesse Plemons), declarando que se trata de um rapaz inteligente, simpático, sensível. Contudo, não consegue evitar pensar que há algo de errado com ele. “Estou pensando em acabar com tudo”, ela repete sistematicamente. Ela está se sentindo sufocada, mas é como se estivesse em processo de perceber isso. No carro, durante a viagem, Jake atinge um novo patamar de manterrupting ao conseguir até mesmo interromper os pensamentos da namorada. Ela gostaria de um pouco de silêncio e espaço durante a viagem, apenas para mergulhar em uma rápida reflexão e tentar colocar as coisas em ordem na sua cabeça, enquanto observa a melancólica paisagem ao redor, tão agredida pelo rigoroso inverno.
O filme acompanha toda a viagem de ida e volta de carro do casal, com uma parada na casa dos pais de Jake na fazenda, outra em uma sorveteria 24 horas e, por fim, no colégio onde ele estudou. Todos esses espaços, em sua maioria claustrofóbicos, são reveladores e corroboram a construção do personagem de Plemons, nos oferecendo mais e mais de sua personalidade confusa e sombria. Expandem tanto a percepção que a protagonista carrega quanto a que o espectador tem sobre ele.
Jake fica desconfortável ao lado da namorada na presença de seus pais (Toni Collette e David Thewlis). Em cenas histriônicas, que quase descambam para a galhofa, percebemos que os pais dele são bastante inconvenientes em diversas colocações e questionam tudo. Mas é como se Jake os culpasse totalmente por sua miséria. A sequência na fazenda já deixa explícita a assinatura de Kaufman, pois é quando os personagens começam a sumir e ressurgir na tela, ora mais velhos, ora mais jovens, como se a protagonista tivesse um vislumbre de todo o passado, presente e futuro do namorado ao lado dos pais. Quando ela, enfim, deixa a casa dos sogros, Jake atribui sua confusão ao excesso de vinho que ela bebeu durante o jantar.
Além da família, outra das instituições com a qual Jake revela uma relação conflituosa (o que é sinalizado por meio de algumas linhas de diálogo) é a escola. Outro dos espaços com os quais sua vida possui uma conexão intrínseca. É ao estacionarem no colégio, que a protagonista, já totalmente atormentada pelo que viu na fazenda, pelos diálogos sufocantes com Jake no carro e pela estranha conversa com a atendente da sorveteria – que expressou verbalmente a preocupação com sua integridade –, começa a se perguntar (ainda que não com todas as letras) se está em um relacionamento abusivo.
Ela diz que Jake nunca bateu nela e que suas interações sexuais foram boas, na maior parte das vezes. Mas está tomada por dúvidas. Afinal, em tentativas contínuas de rebaixá-la intelectualmente, ele insiste em corrigi-la ou citar livros que ele sabe que ela não leu. Durante a viagem, ela avisa repetidas vezes que precisa voltar para casa logo a fim de trabalhar em um artigo, mas ele propositalmente distorce suas palavras, perguntando se ela quer voltar para a fazenda. Por meio de pequenas mas suficientemente nocivas manipulações mentais, ele tenta convencer a garota de que o problema está somente nela.
A obra investe em alegorias para tratar de assuntos sérios e delicados como se toda a narrativa ocorresse em um plano de delírio. Intercala a verborragia dentro do carro (inclusive com um diálogo brilhante sobre o filme Uma Mulher Sob Influência, de John Cassavetes), com cenas altamente nonsense, que emulam musicais e trazem porcos em animação e jingles persuasivos de uma franquia de sorvetes. Desse modo, jamais traindo seu estilo, Kaufman explora a toxicidade das relações, a solidão, o abandono, a perda de identidade, o sexismo tão enraizado na sociedade – que trata de maneira cruel aquelas que têm sua juventude apagada pelos anos e ousam envelhecer. Compõe tanto uma narrativa aterradora com um toque lúdico, quanto uma fantasia com contornos de suspense, garantindo uma experiência inquietante ao espectador.
Se Kaufman erra a mão em algum ponto, é no fato de, desde o começo, apresentar sua história sob a ótica da personagem de Jessie Buckley – até mesmo contando com a narração desta e deixando inequívoco que se trata de uma visão feminina para os temas que planeja tratar – para, então, transferir o protagonismo da metade em diante a Jake. A namorada passa a ser uma peça ou esquecida de sua memória ou a figura idealizada que fica ao seu lado – à sombra do homem. Sabemos que, infelizmente, não deixa de ser uma realidade com a qual nos deparamos através de décadas e que vem dando passos gradativos (não por falta de empenho, mas de oportunidades e igualdade entre gêneros) em direção a mudanças. Mas, ao final, a história toda parece ter girado em torno de Jake, tendo sua narradora simplesmente como aquela que o coadjuvou.
É particularmente curioso quando alguém diz que os filmes de Kaufman são complexos, comparando-os a labirintos e alegando que o espectador possui a difícil tarefa de montar as peças de seus alucinados quebra-cabeças. Eu, pelo contrário, acho que seus filmes são perfeitamente estruturados e suas metáforas, compreensíveis. Óbvio que há uma coisa ou outra que continua parecendo sem sentido após as sessões de seus longas (mas o quanto disso é realmente simbolismo na tentativa de transmitir uma mensagem e o quanto se trata apenas de conceito, de caprichos e idiossincrasias para corroborar a assinatura do autor?). De qualquer maneira, acredito que a forma é que é insana e absurda; a mensagem, entendível e bastante lúcida.
Como o próprio Kaufman diz lá pelas tantas, por meio de uma das falas da personagem sem nome (ora Lucy, ora Louisa, ora Amy), trata-se de imprimir universalidade ao específico. Nisso, o cineasta continua sendo um especialista.