Comics, Movies, Music, Sports, TV

Pelé – Parte 2

Oito motivos que transformaram o jogador em gênio dos gramados e ícone da cultura pop no Brasil e no mundo

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução

Três Copas do Mundo

Foram quatro torneios supremos do futebol mundial disputados consecutivamente. Três vencidos: 1958, 1962 e 1970. Nenhum outro jogador conseguiu igualar o feito antes ou depois.

Garoto-prodígio

Depois de se destacar nos campos da cidade de Bauru, Edson Arantes do Nascimento mudou-se para Santos aos 15 anos de idade, para tentar uma vaga no time local, uma das principais equipes do futebol paulista. Depois de um breve início na formação amadora, marcando 13 gols em 13 jogos, passou aos profissionais, marcando logo na estreia. Chegou à seleção brasileira com 16 anos e apenas dez meses de carreira. Aos 17, disputou a primeira Copa do Mundo, na Suécia. Fez seis gols no total, sendo um nas quartas-de-final (1 a 0 em Gales), três na semifinal (5 a 2 na França) e dois na final (também 5 a 2, contra os anfitriões).

Coleção de chapéus

Na final da copa contra os suecos em 1958, Pelé já havia desfilado toda a sua classe com a bola coroando a goleada de 5 a 2 com um golaço com direito a chapéu no zagueiro e conclusão pro gol sem deixar a bola quicar no chão. A ousadia daquele ainda moleque foi além dois anos depois, numa partida na Rua Javari contra o Juventus. Naquela tarde de 2 de agosto de 1960, a torcida do time grená passou a vaiar o Rei a cada vez que ele tocava na bola por conta de uma dividia que tirara um adversário da partida. Pelé já havia marcado dois dos três gols do Santos. No final do segundo tempo, recebeu na área um cruzamento de Durval. Sem deixar a bola tocar no chão, aplicou uma meia-lua no zagueiro, chapelou o segundo, o terceiro e o goleiro e ainda tocou, de cabeça, para o gol vazio. Um gol de placa, para muitos o mais bonito da carreira. Entretanto, para o azar da História, nunca apareceu até hoje um registro em vídeo de todo o lance (depois reproduzido digitalmente com base em depoimentos e textos da época). Detalhe: com a bola na rede, Pelé saiu correndo em direção aos torcedores e, em uma espécie de desabafo, pula e dá um soco no ar. Nascia, então, a comemoração que tornaria sua marca registrada nos gramados mundiais.

Orgulho preto

Ao tornar-se o grande nome da reta final da Copa de 1958, ainda menor de idade, Pelé deu o primeiro passo para consolidar uma carreira que o transformou não só no maior atleta do século 20 mas também naquele nome conhecido nos quatro cantos do mundo (incluindo lugares inóspitos e sem qualquer tradição no futebol). Tornou-se Rei do Futebol logo no início dos anos 1960, quando, dando sua contribuição fazendo arte nos gramados, ajudou o país a enfrentar uma fase áurea no território sociocultural, com projeção mundial da marca Brasil na música, no cinema, na arquitetura. Sem falar no fato de que Pelé veio de uma família preta e pobre para fazer fama, fortuna e sucesso com o seu trabalho e paixão e conquistou sua majestade por esforço e talento, esfregando na cara da elite branca o racismo estrutural que imperava, até então, de modo soberano e silencioso em nosso país com a divisão entre social e “de serviço” em elevadores e portas de entrada mais os quartinhos e banheiros “de empregada” na parte dos fundos das residências.

Hegemonia no continente e no mundo

Com a camisa do Santos, Pelé foi campeão em 1962 e 1963 da Libertadores e do Mundial de Clubes. Foi a primeira vez que uma equipe brasileira alcançou tais conquistas. Reflexo da hegemonia brasileira nas copas de 1958 e 1962. Outras agremiações fariam o mesmo décadas posteriores, mas o alvinegro da Vila Belmiro foi o pioneiro que deixou o caminho aberto na história do futebol sulamericano. Em 1962, vale lembrar que o adversário europeu era o poderoso Benfica, que havia ganho os dois anos anteriores e contava com o craque português Eusébio na escalação. O Santos não tomou conhecimento de nada disso e venceu os jogos de ida e volta (3 a 2 no Maracanã e 5 a 2 em Lisboa). Pelé fez cinco dos oito gols.

Recordes na artilharia

Pelé disputou 1383 partidas e marcou entre 1281 e 1283 gols (há até hoje divergência em diversas contagens “oficiais”). Uma média que impressiona qualquer pessoa ligada em estatísticas. Como jogou em apenas um time no Brasil, ele marcou pelo Santos em todas as 18 edições do Campeonato Paulista que disputou. Ao todo foram 37 hat-tricks (quando o jogador leva três vezes ou mais a bola à rede na mesma partida). Fez quatro gols em um só jogo por 20 vezes. Cinco gols em outras quatro oportunidades. O recorde absoluto da artilharia em um só confronto ocorreu em 1964, quando chegou à marca por oito vezes na goleada de 11 a 0 imposta ao Botafogo de Ribeirão Preto. Em 1958, entre os 17 e 18 anos de idade, anotou 58 gols no Paulistão da temporada, recorde absoluto jamais superado no país até hoje por qualquer outro jogador em torneios nacionais ou regionais. Pela seleção brasileira, comemerou 77 tentos em 92 disputas (vale lembrar que naquele tempo havia um tempo maior de intervalo entre uma entrada em campo e outra da Amarelinha; Neymar igualou a marca durante esta copa do Catar, mas com 31 atuações a mais).

No social e no cultural

O famoso milésimo gol do craque, anotado no Maracanã, contra o Vasco da Gama, durante o torneio Roberto Gomes Pedrosa (equivalente à época do Brasileirão), na noite de 19 de novembro de 1969, na verdade não foi o milésimo. Foi o milésimo primeiro. Um erro na contagem tirou a honra do último tento da goleada de 4 a 0 contra o Santa Cruz, na Ilha do Retiro, em Recife, seis dias antes. De qualquer forma, aquele pênalti convertido no Rio de Janeiro entrou para a História como o marco oficial. Partida interrompida para a comemoração, invasão de campo de torcedores, reservas e jornalistas. Pelé, carregado nos ombros e segurando firme a bola, dedicou o feito às crianças pobres de todo o país. Há pouco mais de um século, Pelé já tinha noção do que ele representava para tantos meninos e meninas que, de lá para cá, engrossaram cada vez mais os números da infância vivida na pobreza e nas ruas do país. Desde então, dedicou boa parte de seu tempo a ações sociais de combate a estas situações. Em 1997, já na condição de ministro do esporte do governo Fernando Henrique Cardoso gravou uma campanha em vídeo da canção “ABC” (que havia gravado oficialmente um ano antes com o Trem da Alegria) para incentivar a ida das crianças à escola e a queda da taxa de analfabetismo no país. Música era uma paixão secundária do cidadão Edson Arantes do Nascimento. Ele compôs uma centena delas e chegou a lançar discos com Elis Regina e Sérgio Mendes. Também chegou a participar como protagonista de uma novela de TV. O folhetim Os Estranhos, foi levado ao ar pela TV Excelsior, entre março e agosto de 1969, mediando o contato de pacíficos extraterrestres, que queriam ajudar os seres humanos a resolver problemas complicados do dia a dia como os sentimentos de raiva e ciúmes. Como precisava seguir cumprindo suas obrigações como jogador de futebol, seu personagem tinha de ficar longe de qualquer envolvimento amoroso, para que as gravações ocorressem de forma organizada, ocupando os buracos da agenda cheia. Ivani Ribeiro (famosa por A Viagem) foi a autora da trama, escrita para fomentar a expectativa dos brasileiros pela primeira chegada do homem à lua. Gianfrancesco Guarnieri e Gonzaga Blota dirigiram um elenco que tinha, além de Pelé, Regina Duarte, Rosamaria Murtinho, Vida Alves, Claudio Corrêa e Castro, Osmar Prado, Stenio Garcia, Marcia de Windsor, Silvio de Abreu e o próprio Guarnieri. Depois, nos anos 1970 e 1980, ele atuaria em alguns filmes (em um deles, Fuga Para a Vitória, ao lado de Sylvester Stallone) e viraria personagem de HQ, em versão infantil, pelas mãos de Mauricio de Sousa.

Tricampeonato no México

O mundial disputado em 1970 foi o maior desafio da carreira de Pelé. Muito menos por sua capacidade, mais pelo psicológico. Ele havia se contundido durante as duas últimas semanas e ficado de fora dos jogos decisivos para a nossa seleção. Na preparação para a ida ao México seu rendimento também estava sendo constantemente colocado em xeque. Novas lesões e uma birra pessoal do então técnico, o cronista esportivo João Saldanha, ameaçavam a sua presença no time titular. A ditadura militar fez uma intervenção na Confederação Brasileira de Desportos, trocou o treinador (colocando no lugar o iniciante Zagallo, que poucos anos antes abandonara a trajetória de jogador para se dedicar à nova função) e bancou, junto com os companheiros de Amarelinha, a figura de Pelé nos gramados. Deu certo. Pelé viveu momentos iluminados na copa que deu o tricampeonato ao Brasil. Comandou um time avassalador em campo, que somou seis vitórias em seis jogos, totalizando 19 gols (média superior a três por partida). Pelé marcou quatro vezes, três na fase inicial e uma na final (um sonoro 4 a 1 contra a Itália, que também luta pelo tri e pela posse definitiva da taça Jules Rimet). Alimentou o time com grandes jogadas, passes e assistências para gols decisivos dos atacantes Jairzinho (na dura vitória de 1 a 0 contra a última campeã, a Inglaterra) e Rivelino (na semifinal contra os uruguaios, tira-teima da derrota em casa de 1950) mais o lateral e capitão Carlos Alberto (a tampa do caixão da goleada da final). Após o apito final, torcedores mexicanos, efusivos e entusiasmados com as performances brasileiras, invadiram o campo para carregar Pelé nos ombros e arrancar-lhe partes do uniforme.

Só que a Copa do México passou para a História também pelos incríveis quatro gols sensacionais que Pelé não fez (algum outro nome já conseguiu tal feito?). Na estreia contra a Tchecoslováquia, aos 41 minutos do primeiro tempo, quando o placar mostrava empate em 1 a 1, Pelé viu uma bola sobrar após a roubada do volante Clodoaldo, viu o goleiro adversário adiantado e ainda da parte defensiva do círculo central mandou um chutão em direção ao gol. Ivo Viktor correu em desespero de volta à baliza, olhando pra cima, mas a bola, caprichosamente, saiu pela linha de fundo, perto da trave esquerda. O lance, inédito em uma Copa do Mundo, inspirou outros jogadores anos e anos depois (como Rivaldo, Roger Flores e Fred, que obtiveram sucesso naquilo que Pelé não conseguira por capricho do destino). Quatro dias depois, ainda no começo do jogo, Jairzinho cruzou para a área e o camisa 10 testou firme a bola no canto inferior direito. Gordon Banks mergulhou de forma espetacular e conseguiu espalmar a bola para cima, tirando-a da direção certeira do gol. Muita gente considera até hoje esta como a maior defesa de um goleiro de todos os tempos. No segundo tempo da semifinal contra o Uruguai, Pelé protagonizou dois lances cruciais de puro reflexo com genialidade. Em um tiro de meta de Mazurkiewicz, o craque mandou a bola, de bate-pronto, de volta à meta uruguaia. Pena que o chute saiu fraco, facilitando a vida do goleiro. No final da partida, já com o placar decidido em 3 a 1 por pouco não saiu o quarto. Tostão fez uma enfiada rasteira e vertical no meio do campo, Pelé correu mais que todos os rivais, viu o goleiro saindo para fazer com os pés a interceptação, deixou a bola ir um lado do goleiro e foi pelo outro, completou o “drible da vaca” e quase da ponta da pequena área concluiu ao gol. De um lado, um zagueiro atabalhoado se jogou no gramado para tentar cortar. Do outro lado, a bola saiu também por capricho pela linha de fundo, bem perto da trave. Estes quatro lances, mais de meio século depois, ainda são capazes de encantar qualquer pessoa que admire a arte do futebol.

>> Leia aqui a parte 1 desta homenagem a Pelé

Music

Gilberto Gil

Oito motivos para não perder o novo show do artista, estrela de vários festivais no Brasil em 2022 e que acaba de voltar de turnê pela Europa

Texto por Abonico Smith

Foto: Fernando Young/Divulgação

Ele tem em Abelardo Barbosa, o Chacrinha, celebridade citada em uma das famosas músicas suas, a clássica “Aquele Abraço”. Contudo, quem está com tudo e não está prosa é o próprio Gilberto Gil, que está com a agenda cheia nesta temporada em que acabou completar 80 anos de idade.

Gil acaba de voltar de uma bem-sucedida turnê pela Europa, onde foi acompanhado por alguns de seus descendentes no palco. Também acaba de estrear em streaming o reality show Em Casa com os Gil, onde é o protagonista ao lado de toda a sua família. Participou de grandes festivais brasileiros (MITA, Coala, Rock in Rio), com shows concorridos de público e bastante incensados pela crítica. Também percorre o país apresentando-se aqui e ali, em grandes e importantes cidades, com sua banda de apoio, formada majoriamente por gente que carrega o talento e o sobrenome Gil em seu DNA.

Por estar bastante incensado que todos os ingressos para a sua passagem por Curitiba (Teatro Positivo, dias 27 e 28 de outubro), depois de cinco anos sem cantar na capital paranaense, estão esgotados. Quem sabe alguma mágica acontece e, se você não comprou a sua entrada, algum bilhete “premiado” aparece disponível voando por aí?

De qualquer maneira, aí vão oito motivos para não perder (pode não ser um destes mas que seja algum próximo) um concerto de Gilbert. Gil bem à sua frente

Tropicália

Ao lado do amigo e conterrâneo Caetano Veloso, Gil bolou todos os conceitos, preceitos e possibilidades sonoras do movimento que abalou as estruturas da música brasileira no biênio 1967-1968, provocou muita polêmica e desde então vem, década após década, vem rendendo frutos e discípulos maravilhosos para nossos ouvidos escutarem e os olhos verem em ação nos palcos da vida. Expandindo toda e qualquer fronteira, sempre observando e absorvendo tudo o que pudesse, adentrando as várias regiões do país ou mesmo pegando coisas boas lá de fora. Se não fosse a ação feita pela Tropicália lá atrás, que sacodiu a poeira da estagnação da bossa nova e projetou um belo futuro, onde vieram a se encaixar nomes como Sérgio Sampaio, Walter Franco, Chico Science & Nação Zumbi, Paralamas do Sucesso, Los Hermanos, Ana Cañas, Francisco El Hombre, Charme Chulo e Johnny Hooker, por exemplo.

Família no palco

Com 80 anos de idade completados em 26 de junho e dono uma carreira musical ímpar, Gil agora desfila nos palcos toda a sua generosidade em ceder espaço para seus descendentes (filha/os, neta/os, nora) como integrantes de sua banda de apoio. Aliás, quase todo mundo que o acompanha carrega no DNA traços da família Gil – o que faz pensar o quanto os tentáculos deste sobrenome poderoso de três letrinhas se alastraram pelo Rio de Janeiro e que, de uma ou outra maneira, cada profissional da música que esteja radicado na Cidade Maravilhosa está de uma ou outra maneira, até no máximo seis graus de separação (quando muito isso, olha lá!) de Gilberto Passos Gil Moreira. O mais recente membro do clube com o branding Gil é a neta Flor, de apenas 13 anos, com quem chegou a dividir recentemente os vocais principais, no Rock In Rio, em uma versão bilíngue de “Garota de Ipanema”. 

Reality show

Por falar em família, se você tem acesso ao streaming da Amazon Prime não deixe de assistir Em Casa com os Gilreality show criado pela Conspiração Filmes para documentar – da criação à realização de uma turnê de quinze datas feita meses atrás por alguns países europeus, passando por várias reuniões com a participação de todos os membros do clã, que, de uma ou outra maneira, aparecem em cena passando pelo sítio do artista em Araras, onde ele se isolou durante a pandemia da covid-19. Tem até a bisneta Sol de Maria. É interessante ver toda a dinâmica familiar regida por Gil e a esposa Flora, que coordena não só a carreira do artista como também organiza e rege tudo o que envolve os encontros familiares.

Repertório clássico

Não faz muito tempo que Gil deu uma declaração tão polêmica quanto provocativa: ela passara a gravar pouco ou quase nada porque, de uma forma ou de outra, todas as músicas já haviam sido compostas e registradas. Claro que isso é uma hipérbole, mas não deixa de ser algo que faz pensar. Afinal, quanto mais oferta há de obras e artistas neste oceano que é a internet com suas plataformas de comunicação e divulgação, menos chance de se ter tanto um lugar verdadeiramente ao sol como ainda alcançar uma popularidade que tenha a mesma eficácia ou impacto de outrora. Portanto, nada mais natural também que o repertório da atual turnê de Gil seja um belo passeio por clássicos de várias fases de sua extensa trajetória. Afinal, se Gil conseguiu enfileirar hit atrás de hit nos tempos em que as rádios ainda tocavam a boa música brasileira do presente ou pelo menos algumas belezas não muito conhecidas pela massa, tudo o que menos se precisa enfiar em um show seria um punhado de faixas recentes que quase ninguém conhece ou já ouviu, só pela obrigação de se divulgar um disco novo e a justificativa de fazer (mais) uma turnê.

Laços com o reggae

Um dos destaques do repertório clássico de Gil é a sua forte conexão com o reggae. No disco Realce, de 1979, ele verteu português o clássico “No Woman No Cry”, de Bob Marley (Gil tinha acabado de assinar com a recém-inaugurada filial Warner, que era dirigida pelo seu ex-diretor na Phillips, o já falecido André Midani; Bob Marley era um dos grandes nomes do selo Island, representado em nosso país pela Warner, que inclusive chegou a trazer o artista jamaicano para cá). Vinte anos atrás ele chegou a gravar um álbum (Kaya N’Gan Daya) dedicado só ao gênero, com um monte de releitura de Marley inclusive. E em uma ou outra música tocada ao vivo sua o arranjo traz traços de reggae.

Fase pop

Depois de assinar com a  Warner, Gil também passou a desenvolver uma fase tão pop quanto polêmica. Sem deixar de lado a música brasileira, empunhou a guitarra e soube misturar o popular com o pop. Muitos críticos passaram a torcer o nariz para o Gil dos anos 1980, mas não há dúvida de que dali saiu muita coisa boa que ainda levou o artista a ganhar um público mais abrangente que o das rádios FM voltadas à elite cultural. São desta época pérolas dançantes (como “Palco”, “Toda Menina Baiana”, “Realce”, “A Gente Precisa Ver o Luar”, “Andar Com Fé”, “Vamos Fugir”, “Extra”, “Punk da Periferia”, “Extra II”, “Pessoa Nefasta”, “Nos Barracos da Cidade” e “Não Chores Mais”) e baladas de arrepiar (como “Drão”, “Tempo Rei”, “Super-Homem, a Canção” e “Se Eu Quiser Falar Com Deus”.) Ainda tem obras compostas por ele e gravadoras originalmente por outros artistas na época ( “A Paz”, “Um Trem Pras Estrelas”, “A Novidade”). Muitas destas citadas aí são presença constante no repertório dos concertos mais recentes.

Ex-ministro da cultura

Entre 2003 e 2008, nos dois mandatos presidenciais de Lula, Gil esteve à frente do Ministério da Cultura, rebaixado à condição de secretaria durante o (des)governo de Jair Bolsonaro. Esta não fora a primeira incursão do cantor e compositor na política. Em 1988, então filiado ao PMDB, elegeu-se vereador em sua cidade natal, Salvador. Em Brasília, porém, driblou desconfiança de colegas do meio artístico como os atores Marco Nanini e Paulo Autran, para realizar um bom trabalho na Esplanada dos Ministérios. Afastado dos palcos pero no mucho (como ministro, em seu primeiro ano de atuação, botou as Nações Unidas para dançar durante o Show da Paz na Assembleia Geral da ONU), implementou uma série de políticas públicas voltadas à difusão cultural, em um tempo onde o governo federal ainda se preocupava, de fato, com o desenvolvimento e o avanço da arte. Em tempos onde a cultura brasileira anda tão combalida e arrasada, nada melhor do que uma nova mudança de governo e um novo ministro como fora Gilberto Gil para reerguer toda essa riqueza de volta.

Imortal da ABL

Em novembro de 2021, Gil foi eleito para uma vaga na Academia Brasileira de Letras, por meio de 21 votos, para ocupar a cadeira de número 20. Sua inclusão no quadro de imortais da ABL se deu uma semana depois da de Fernanda Montenegro. Uma mostra não apenas de que a instituição (que em julho último celebrou 125 anos de existência) mostra estar se abrindo para textos não formais da literatura tupiniquim como também mais uma faceta pública de Gilberto Gil que vai além dos palcos, instrumentos e microfones. E ele merece, também. Primeiro porque nas últimas décadas revelou-se um dos mais hábeis autores musicais de nosso país. E também porque já demonstrava uma certa queda para o fardão já na capa de seu álbum de estreia, de 1968, quando posou, com olhar matreiro, para as lentes do fotógrafo David Drew Zingg como um dos personagens daquele projeto gráfico. Portanto, mais de meio século antes e ainda no auge da Tropicália, Gil – cuja posse na instituição ocorreu em 8 de abril de 2022 – já revelava sua paixão para as letras e antecipava aquilo que ocorreria às vésperas de chegar à oitava década na idade.

Music, Series, TV

Pistol

Minissérie dirigida por Danny Boyle aborda o universo ao redor dos jovens músicos que fizeram história no punk rock sob o nome de Sex Pistols

Texto por Taís Zago

Foto: Hulu/FX/Star+/Divulgação 

Quem entre nós, da geração X, não leu Please Kill Me (de Legs McNeil e Gillian McCain, 1996) ou assistiu a Sid & Nancy (1986), filme britânico com Gary Oldman e Chloe Webb? Durante a década de 1990, ambas as obras faziam parte do pacote da educação fundamental sobre o punk rock para nossos olhos e ouvidos adolescentes tão sedentos por rebeldia. Nos tempos do punk de poucos acordes e muita atitude, os Sex Pistols e os Ramones faziam parte do currículo obrigatório de qualquer músico iniciante, groupie ou fã da anarquia como “ideologia”. Nenhum outro movimento cultural representou melhor o teenage angst e a necessidade de romper com a cultura capitalista de nossos pais através do puro caos. Uma furtiva declaração de amor ao live fast and die young nos anos em que nos sentíamos imortais. 

Também não foram poucos os documentários que prestaram homenagem à época e seus personagens como o excelente The Filth And The Fury (2000) ou End Of The Century (2003) – ficando aqui apenas nas duas bandas centrais do movimento, Ramones e Sex Pistols, e a eterna batalha entre EUA e Reino Unido pelo titulo de criadores do movimento que em pouco tempo virou a febre mundial mesmo sem a promoção da imprensa mainstream ou das grandes empresas da indústria fonográfica. O punk se criou sozinho, nas ruas, nas atitudes, na insatisfação, na perda de perspectiva de uma geração anti-hippie e contestadora. As flores nos cabelos foram deixadas de lado na metade dos anos 1970. No seu lugar entraram o látex, o pogo, a distorção e os alfinetes. Onde antes os hippies promoviam o amor livre, os punks passaram a defender a autonomia sobre o próprio corpo, mesmo que pela autodestruição. O direito de derrubar muros com socos em vez de mensagens de paz e amor.

Pistol (EUA/Reino Unido, 2022 – Hulu/FX/Star+) é uma minissérie de seis capítulos dirigida por Danny Boyle (Trainspotting, Cova Rosa) baseada na autobiografia Lonely Boy: Tales From a Sex Pistol (2016) de Steve Jones (Jonesy), guitarrista e membro fundador dos Sex Pistols. Cada um dos episódios possui um título peculiar inspirado no livro de Jones – como, por exemplo, o primeiro, Track 1: The Cloak of Invisibility,onde Jones conta um pouco de sua origem e sua criação no subúrbio londrino de Hammersmith. O “manto da invisibilidade” era o que supostamente protegia o tímido e traumatizado Jonesy em suas peripécias e delitos, assim como lhe dava a autoconfiança necessária para subir num palco onde os músicos eram alvejados por latas e garrafas de cerveja ou cuspes, entre outras demonstrações escatológicas da rebeldia juvenil, que, claro, eram estimuladas e incitadas pelos próprios músicos. 

Boyle, famoso pelo seu estilo que estimula uma suposta glamourização de drogas e de violência, sempre um excelente pano de fundo musical, encontra-se em seu elemento. Não acho que outro diretor pudesse ter feito um trabalho melhor para passar toda a energia, raiva, tristeza e ingenuidade de uma geração que queria mudar o mundo rompendo com os modelos empoeirados e inflexíveis dos britânicos, como a adoração pela monarquia e rituais sociais superficiais enquanto o povo sofria com a falta de emprego em meio a uma severa crise econômica. Craig Pearce (um dos prediletos de Baz Luhrmann) assumiu o roteiro e investiu bastante em um suposto romance entre Jones e Chrissie Hynde (vocalista dos Pretenders). Segundo conta Chrissie em seu livro Reckless, de 2015, ambos sempre tiveram uma boa amizade, que, eventualmente, era salpicada com doses de sexo. Jones também deixa isso bem claro em Lonely Boy. A atuação espetacular de Sydney Chandler como Chrissie e Toby Wallace como Steve salva o roteiro do tom novelesco que um romantismo exagerado poderia criar. Para muitos (eu, inclusive), Sydney roubou o holofote de todos os outros personagens e nos deixou com vontade de ver Reckless também transformado em série.

Visualmente, Pistol não deixa nada a desejar: a fotografia e as passagens com imagens vintage reforçam o clima de efervescência cultural da época. Há um grande desfile de celebridades e figuras peculiares que foram ícones do punk orbitando em torno dos clubes noturnos londrinos e da butique Sex, como a modelo Jordan (Maisie Williams), a estilista Vivienne Westwood (Talulah Riley) e o estilista e empresário wannabe da banda Malcolm McLaren (Thomas Brodie-Sangster), que até hoje alega ter “inventado” os Sex Pistols, o que deixou um gosto amargo de boy band na boca dos fãs e passou para a banda a pecha de posers. Para contrariar Malcolm, Steve mostra o engajamento dos músicos na criação e nas composições, a vontade de inovar e o prazer de estar no palco, o talento natural de Johnny Rotten (Anson Boon) para traduzir em palavras (e urros) os sentimentos viscerais e urgentes de toda uma geração. Falando nele, o hoje conhecido como John Lydon se declarou determinantemente contra a produção da serie, inclusive entrando na justiça para tentar impedir que a música original dos Sex Pistols fosse utilizada. Para nosso alivio, os outros três sobreviventes e o espólio de Sid Vicious se posicionaram a favor, o que nos presenteou com um incrível passeio pelo processo criativo e pela energia crua de superhits da banda (“Pretty Vacant”, “Anarchy In The UK”, “Submission”, “God Save The Queen”, “Problems, “Bodies”, entre outros).

Por outro lado, a curta duração (apenas seis episódios) deixou muita coisa em aberto num assunto tão rico apesar de não apresentar qualquer fato novo sobre a banda que nos fosse desconhecido. Como uma tentativa de evitar mais daquilo que já sabemos de cor e também como uma fórmula de fugir das platitudes, Danny e Craig, através do olhar de Steve, optaram por dar mais espaço para os personagens em torno da loja Sex e dos Pistols, inclusive cedendo praticamente todo um episódio para abordar a história de Pauline, que inspirou a letra de “Bodies”.

Pistol polariza opiniões, traz pouco material para quem não conhece a banda ou não leu Lonely Boy, não apela demais para o óbvio, não redime mas também não demoniza as drogas. Não é o trabalho mais recomendado para principiantes, mas é um deleite para os fãs. Boyle tem o dom precioso de nos puxar para dentro de uma história como se estivéssemos sentindo a energia da primeira fileira na beira do palco. É impossível assistir sem sentir aquele adolescente adormecido, escondido atrás de cabelos grisalhos e boletos para pagar, acordando dentro de nós.

Music

Liniker – ao vivo

Cantora vai às lágrimas com o público curitibano cantando junto as letras do novo disco sobre amor próprio e sua história

Texto por Pilar Browne (com colaboração de Abonico Smith)

Foto: Pilar Bowne

Um espetáculo sobre entrega. Se tivesse que definir o show da Liniker na último dia 8 de junho, uma quarta-feira, no Teatro Guaíra, com uma palavra, seria essa. 

Após adiar a data curitibana prevista para maio por conta de ter sido diagnosticada com covid, ela lotou o teatro um mês depois. A espera foi mais que recompensada. Em uma apresentação intimista no quesito aconchego para com o público e ao mesmo tempo monumental em termos de presença de palco, Liniker emocionou todo mundo com músicas do seu novo álbum Índigo Borboleta Azul.

Criado em 2020 e lançado apenas em setembro do ano passado, o disco surgiu com o intuito de contar sua história e abordar o amor próprio da cantora. Tema que a levou às lágrimas emocionada, ao presenciar o Guairão inteiro cantando todas as suas letras. Letras de um álbum que expõe buracos causados pela pandemia e que ao mesmo tempo conforta, consola e preenche a artista por inteiro.

Como agradecimento ao amor e carinho entregue pelo público, ela trouxe também músicas antigas, em momentos de nostalgia. Eram canções de seu primeiro EP com a banda de apoio Os Caramelows, como “Sem Nome Mas Com Endereço”, “Calmô” e “Bem Bom”. Também apresentou “Zero”, seu primeiro trabalho, com uma nova versão – trazida como um ressignificado da antiga, mostrando como as letras e cifras podem ser interpretadas como algo vivo, que se movimenta e se transforma ao longo do tempo. Ao longo do concerto, entregou com primor os diferentes alcances e potência vocal. Apresentou “Azul da Cor do Mar”, hit de Tim Maia, fazendo o público inteiro de arrepiar com a semelhança no grave inicialmente e depois a fluidez do gogó, tornando esta uma releitura, mais uma vez, exponencial.

Por falar em fluidez, Liniker é uma voz que compõe um time da nova safra que ainda transcende toda e qualquer questão de gêneros musicais (vai com uma naturalidade incrível do samba ao funk, por exemplo), não só no discurso como também em questões de estética e sexualidade. O que vem dando um frescor ao pop de tintas verde e amarela. Algo novo e necessário nestes árduos e sombrios tempos de resistência social, política e cultural, mas que ficará para a História como um período de expurgo de uma perene alegria vindoura. Tal qual Índigo Borboleta Azul se pronuncia para os vindouros trabalhos da cantora.

Set list: “Clau”, “Antes de Tudo”, “Lili”, “Lua de Fé”, “Presente”, “Lalange”, “Psiu”, “Sem Nome Mas Com Endereço”, “Calmô”, “Bem Bom”, “Zero”, “Azul da Cor do Mar”, “Não Adianta”, “Baby 95”, “Vitoriosa”. Bis: “Brechoque” e “Diz Quanto Custa”. 

Movies

O Grande Movimento

Diretor boliviano aposta no retrato das relações metafísicas que sobrevivem à margem da selva de concreto

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Olhar de Cinema/Divulgação

As sinfonias da cidade retratam o movimento das metrópoles, transformando selvas de concreto e engarrafamentos em um ritmo sensível por meio da expressão do cinema. O Grande Movimento (El Gran Movimiento, Bolívia/Catar/França/Suíça/Reino Unido, 2021 – Olhar de Cinema) é o último lançamento do cineasta boliviano Kiro Russo, que foi o centro da mostra Foco da 11a edição do Olhar de Cinema, e se pretende fazer jus ao estilo de Dziga Vertov e Walter Ruttmann. Nele, La Paz é o vetor de uma jornada entre Elder (Julio César Ticona) e Max (Max Bautista Uchasara).

Elder é um dos protagonistas do primeiro longa de Russo, Viejo Calavera, do qual este é uma espécie de continuação, e caminhou sete dias para chegar à capital boliviana protestar por melhores condições para si e seus colegas, mineiros de carvão. Contudo, ao chegar em La Paz, vai em busca de trabalho e adoece por ter inalado muito carvão. A trama é esparsa e bastante aberta: as personagens vêm e vão sem muita explicação, uma característica que ecoa a postura passiva de Kiro Russo, cuja câmera é invisível, paciente e impassível. Seus longos planos frequentemente se alteram por meio de um potente jogo de zooms que aproximam e afastam os objetos sem movimentar a câmera. Também são comuns as instâncias em que Elder ou Max, um misterioso bruxo em situação de rua que vaga as ruas e arredores de La Paz, são enquadrados em meio a multidões, escombros e árvores, parte constituinte de um ruído socioeconômico.

Desafiando o reducionismo do cinema a furos de roteiro e “finais explicados”, Kiro Russo é bastante óbvio em sua temática, mas absurdamente vago em seu roteiro, desenvolvendo a trama com lentidão, num entremeio de cenas cotidianas e repetições de motif constante. Se a primeira parte, por assim dizer, do longa-metragem remete ao estilo de uma sinfonia da cidade, a segunda é o retrato das relações metafísicas que sobrevivem à margem da selva de concreto. 

A margem, aqui, é um elemento central: o diretor é explícito ao afirmar, na breve apresentação em vídeo exibida antes do início da exibição em Curitiba, que seu interesse é versar sobre o capital. Contudo, o desempregado e o homem em situação de rua que protagonizam o filme são personagens à margem das relações capitalistas – o proletário em ruína física e o lumpen, já excluído da própria relação de trabalho e existência que configuram o trabalhador. A partir do momento em que deixa de posicioná-los no mecanismo capitalista e individualiza-os, operando uma transição do macro da cidade para o micro de Elder e Max, O Grande Movimento parece afastar-se da pretensão de Russo para embarcar numa situação marginal ao capital. Quando a barreira de classes impede o acesso da população mais pobre da ciência e, principalmente, da saúde, quem é capaz de salvá-la em um momento de necessidade?

Ainda no começo do longa-metragem, Elder é encontrado por Mama Pancha (Francisca Arce de Aro) uma senhora que, embora o protagonista não conheça, afirma ser sua madrinha e grande amiga de sua falecida mãe. É ela que o abriga, encontra bicos para que ele trabalhe e o leva ao médico, a fim de investigar a tosse constante. O doutor, após uma breve consulta, afirma não haver nada de errado e é imediatamente respondido com uma preocupação maternal: pode ser um demônio? Com a escassez de respostas, Mama Pancha une Elder e Max, a quem ajuda quando vê, e busca no misticismo ancestral a salvação de seu afilhado.

Sem teto, comida ou lugar na cidade – afinal, dorme numa floresta próxima à cidade –, Max é a representação pictórica da ancestralidade cultural latino-americana. Sua reza e seu benzimento são a linha de frente do único combate possível pela vida de Elder. Mas o desfecho é trágico. Nem mesmo o resgate da tradição pode curar uma doença, por essência, capitalista. O carvão em pó inalado durante o trabalho de Elder é, como Russo expõe em sua sequência final, o moedor de carne que assola a sociedade em La Paz e a sentencia para o mesmo fim.

Contudo, o simbolismo raso dessa fração final e algumas experimentações no andar do filme tornam sua projeção incerta – O Grande Movimento é um filme divisivo. Seu ritmo lento faz com que os defeitos, que são poucos embora flagrantes, sejam amplificados na mente do espectador e as escolhas de estilo que se repetem transformem-se num marasmo criativo. Mas a paciência faz bem: Kiro Russo traz a reflexão ao centro dessa experiência fílmica, gostemos ou não de seu resultado.