Music

Oficina de Música de Curitiba – ao vivo

Homenagem a Paulo Leminski e shows com Fernanda Takai, Maria Alcina, Criolo, Zélia Duncan, Edgard Scandurra, Relespública e Jovem Dionísio

Criolo

Textos por Abonico Smith, Diego Scremin e Janaina Monteiro

Fotos de Cido Marques/FCC (João Egashira + Fernanda Takai, Zélia Duncan + Estrela Leminski + Téo Ruiz, Edgard Scandurra + Relespública, Banda Sinfônica) , José Fernando Ogura/SMS (Jovem Dionísio) e Abonico Smith (Criolo)

Onze dias de incontáveis combinações de 12 notas na capital paranaense. Foram, ao todo, 120 cursos e 180 eventos (mais de uma centena com ingressos gratuitos) promovidos nesta última edição, a 41ª, da Oficina de Música de Curitiba. Entre os dias 25 de janeiro e 4 de fevereiro, números oficiais atestam que mais de 50 mil pessoas (sendo 2 mil só de alunos vindos de todos os lados do Brasil e também do exterior) fizeram parte da Oficina.

O Mondo Bacana esteve presente em sete dos concertos realizados no Teatro Guaíra e conta um pouquinho de como foi cada uma destas noites especiais.

Orquestra à Base de Cordas + Fernanda Takai e Sons Nikkei

Dentre os múltiplos projetos tocados ao mesmo tempo pela cantora e compositora do Pato Fu está o Sons Nikkei, grupo formado por músicos de Curitiba com o objetivo de pesquisar, tocar e espalhar a música de origem japonesa, seja ela do passado ou presente. Além dela e de João Egashira (cabeça da formação e diretor de toda a Oficina), estão outros músicos da capital paranaense. Flauta, shamisen e taikô são instrumentos que, ao se somarem às cordas ocidentais da Orquestra à Base de Cordas do Conservatório de MPB de Curitiba, compuseram um belo mix entre sonoridades orientais e um pequeno resumo da carreira da cantora. No repertório de canções gravadas por Fernanda, destaque para a estreia solo onde homenageava Nara Leão (“Ta-Hi”; “Trevo de Quatro Folhas”) e o disco mais recente (“Love Song”, parceria bilíngua do marido John Ulhoa com a ex-vocalista do Pizzicato Five Mari Nomiya; “Não Esqueça”, um afetuoso recado de pai para filha deixado por Nico Nicolaiewsky, músico gaúcho do duo Tangos & Tangédias) e um inusitado gran finale com a primeira reprodução já feita fora do Pato Fu de “Made In Japan”, prova de que isso não somente é possível como também a troca de timbragens eletrônicas por algo bem mais acústico. Na volta para o bis, a grande homenagem à pedra fundamental da música brasileira contemporânea, o marco zero fonográfico da bossa chamado “Chega de Saudade”. (AS)

Set list: “Oblivion”, “Ta-hi”, “O Ritmo da Chuva”, “Trevo de Quatro Folhas”, “Não Esqueça”, “A Paz”, “Arashi No Osoroshisa”, “Estúdio Nº 1/Melodia Sentimental/O Trenzinho do Caipira”, “The Path of the Wind/Summer”, “Tsugaru Yosare Bushi”, “Miagete Goran Yoru no Hoshi wo”, “Love Song”, “Menino Bonito”, “Odeon” e “Made In Japan”. Bis: “Chega de Saudade”.

João Egashira + Fernanda Takai

Orquestra à Base de Sopros + Zélia Duncan + Estrela Leminski + Téo Ruiz

Dentre as várias atividades exercidas por Paulo Leminski as mais celebradas são de poeta e escritor. Só que ele também deu valorosa colaboração para a música paranaense e curitibana. Instrumentista autodidata e letrista parceiro de muita gente boa, da cidade e de outros estados, que tocava pela capital paranaense nos anos 1970 e 1980, ele teve canções gravadas por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Moraes Moreira, Ney Matogrosso, A Cor do Som, Guilherme Arantes, Itamar Assumpção, Zelia Duncan, Arnaldo Antunes e tantos outros nomes de peso da MPB. Por isso seu nome foi o grande homenageado desta 41ª edição da Oficina de Música. Um dos concertos realizados em memória de Paulo e suas obras recebeu no palco do Guairão no sábado 27 de janeiro a Orquestra à Base de Sopro do Conservatório de MPB local mais uma trinca especial de intérpretes: Estrela Leminski, seu parceiro de vida e melodias Téo Ruiz e mais Zélia Duncan. Revezando combinações ao microfone, a trinca mandou transformada em melodias toda a elegância verborrágica do pai de Estrela, como na trinca “Dor Elegante”, “Verdura” e “Sinais de Haikais”, programada ainda para a metade inicial. Esta, por sua vez, revelou-se uma boa mestre de cerimônias, com pequenas intervenções sem deixar o humor de lado (“Ainda penso em fazer uma tatuagem, talvez na testa, com ‘Verdura não foi feita pelo Caetano Veloso’ escrito”, mandou, referindo-se ao intérprete que eternizou a canção). Zélia, segundo Estrela “a pessoa que mais gravou músicas do Paulo”, ainda aproveitou a gentileza de uma brecha na homenagem para cantar duas outras não leminskianas de seu repertório (“Arnaldo Antunes não teria escrito os versos se ‘Alma’ se Leminski não houvesse existido”, disparou, sabiamente). E a noite que começou com dois momentos instrumentais da Orquestra à Base  de Sopros do Conservatório de MPB de Curitiba (duas obras assinadas pelo também paranaense Waltel Blanco, sendo uma chamada… “Estrela”) acabou com outras duas pérolas do homenageado: “Promessas Demais” (canção de abertura de uma novela da Globo na voz de Ney) e “Baile do Meu Coração” (sucesso de Moraes em seu auge pós-Novos Baianos). (AS)

Set list: “Anjos e Vampiros”, “Estrela”, “Dor Elegante”, “Verdura”, “Sinais de Haikais”, “Milágrimas”, “A Você, Amigo”, “Se Houver Céu”, “Luzes”, “Vou Gritar Seu Nome”, “Alma”, “Promessas Demais” e “Baile no Meu Coração. Bis: “Dor Elegante”.

Estrela Leminski + Zélia Duncan + Téo Ruiz

Relespública + Edgard Scandurra

O trio curitibano nunca escondeu que sua influência máxima no rock nacional sempre foi o Ira! Então, a oportunidade de voltar ao palco do Guairão durante a programação de concertos da Oficina de Música também foi a grande chance de rever o grande mestre em cima do palco. Scandurra aceitou e se uniu aos discípulos como o grande convidado daquela noite de 29 de janeiro, uma segunda-feira. No repertório, a grande surpresa: um grande desfile de lados B da carreira do guitarrista (seja com sua clássica banda ou em sua carreira solo discográfica) que, de uma maneira ou de outra, marcam um momento especial de sua vida naqueles anos da metade final da década de 1980. Claro que houve também espaço para um punhado de hits radiofônicos compostos por Edgard e registrados pela voz de Nasi. Na parte autoral que cabia a Moon, Ricardo Bastos e Fabio Elias, um começo matador com os grandes sucessos da Reles emendados logo de cara e sem dar tempo para a plateia respirar (“Dê Uma Chance Pro Amor”, “Nunca Mais”, “Garoa e Solidão”) e algumas canções de performance dividida com o paulistano que tenham a sua mão (“A Fumaça é Melhor que o Ar”, por exemplo, foi lançada em disco apenas pela Reles) ou predileção (“Sol em Estocolmo”, de Fábio, volta e meia é citada por ele como uma faixa que gostaria de gravar) ou participação em disco da Reles (“James Brown”). O set ainda reservou espaço para duas canções sixties do Who, reverência máxima de todos os quatro velhos mods. No fim de tudo, uma apresentação uma tanto quanto contida em jogo de cena, mas esbanjando sentimento em forma de técnica disposta em cada um dos instrumentos. Tanto que o encerramento se deu ao som da instrumental “Rumble”, lançada em 1958 por um dos primeiros heróis da guitarra no rock (Link Wray, considerado o pai dos power chords e do uso de distorção nas seis cordas). Uma curiosidade: nesta noite quem também brilhou foi a tradutora de libras no canto esquerdo do palco. Kerolyn Costa, que também trabalhou como coordenadora de uma equipe de 12 profissionais que esteve presente em mais de 40 apresentações, também era fã assumida da reles e do Ira!. Protagonizou um show à parte ao não economizar na atuação de caras, bocas e gestos para interpretar visualmente os versos cantados ao microfone. (AS)

Set list: “Dê Uma Chance Pro Amor”, “Nunca Mais”, “Garoa e Solidão”, “Minha Menina/Oraçao de um Suicida”, “Minha Mente Ainda é a Mesma”, “Sol em Estocolmo”, “James Brown”, “Capaz de Tudo”, ‘Saída”, “Casa de Papel”, “A Fumaça é Melhor que o Ar”, “O Girassol”, “Manhãs de Domingo”, ”So Sad About Us”. “Our Love Was”. “Abraços e Brigas”, “Ninguém Entende um Mod”, “Envelheço na Cidade”, “Eu Quero Sempre Mais”, “Núcleo Base”. Bis: “Dias de Luta” e “Rumble”.

Edgard Scandurra + Relespública

Banda Lyra + Maria Alcina

Ela saiu da Zona da Mata de Minas Gerais há pouco mais de meio século para subverter a ordem da música brasileira. Desafiando limites de gênero e a elasticidade de ritmos musicais, sua carreira sofreu com a implacável censura do regime militar lá no início e nesses últimos anos, entretanto, vem renascendo com uma série de CDs e DVDs ao vivo e de estúdio lançados por selos independentes. Às vésperas de completar 75 anos de idade e ganhar um longa-metragem biográfico no cinema, ela chegou à Oficina de Música como convidada da Banda Lyra e acabou chacoalhando as estruturas do Guairão e fazendo, na noite de terça, 30 de janeiro, um dos concertos mais intensos desta edição. Flutuando com leveza entre samba, choro, tango, rock, MPB e até polca, revisitou faixas gravadas nos dois primeiros álbuns, a fase oitentista de letras de duplo sentido, relembrou o discurso sociopolítico afiado de Caetano Veloso e, claro, terminou levantando alucinadamente a plateia com uma dobradinha de louvação rubro-negra de um então chamado apenas Jorge Ben. (AS)

Set list: “Piazzolla no Choro”, “Bonfiglio à Casa Torna”, : Um Chorinho em Cochabamba”, “A Voz da Noite”, “Eu Sou Alcina”, “Tome Polca”, “Como Se Não Tivesse Acontecido Nada”, “Kid Cavaquinho”, Fora da Ordem”, “Tropicália”, “Romeu e Julieta”, “Alô Alô”, “Chica Chica Boom Chic”, “Bacurinha”, “Prenda o Tadeu”, “Kataflam”, “Camisa 10 da Gávea” e “Fio Maravilha”.

Maria Alcina

Jovem Dionísio

O quinteto que há dois anos tomou de assalto a internet com o megahit “Acorda Pedrinho” teve na Oficina de Música uma grande oportunidade de mostrar que não é apenas uma one-hit band. Jogando literalmente em casa, já que os músicos são de Curitiba, o grupo ainda teve a oportunidade de estrear no Guairão na noite de quarta 3 de janeiro e demonstrar toda a sua energia quando faz um show. O começo se deu com uma projeção de carga emocional, que mostrava a trajetória até aqui por meio de programas de TV e matérias jornalísticas. Depois, o telão usou e abusou de efeitos e filtros mais a própria iluminação do palco. As performances eram muito dançantes, instigando a ginga e o requebrado. Mas no canto esquerdo do mesmo palco estava montada uma salinha, com mesinha e sofá, para dar aquela quebrada e instaurar uma aura mais intimista com arranjos acústicos para “Aguei” (colab com a dupla Anavitória, que, para a decepção de muitos dos presentes, não estava na capital paranaense para fazer aquele feat tão esperado) e “Pontos de Exclamação” (canção responsável pela popularização do grupo, ainda em 2020, iniciada por um momento solo e de improviso do tecladista Ber Hey). Claro que o encerramento se deu com “Acorda, Pedrinho”, uma homenagem ao recém-falecido muso inspirador da letra. O Guairão, todo de pé, não hesitou: jogou-se na dança e cantou em uníssono. (DS)

Set list: “Amigos Até Certa Instância”, “Belnini”, “É Osso”, “Tu Tem Jeito de Quem Gosta”, “Invisível/Não Dá Mais”,  “Copacabana”, “Cê Me Viu Ontem/Pastel”, “Aguei”, “Não Posso Dizer Que Te Amo”, “Algum Ritmo”, “Romance Frito”, “Por Dentro e Por Fora”, “Risco”, “Pontos de Exclamação” e “Acorda, Pedrinho”.

Jovem Dionísio

Classe de Banda Sinfônica

Uma noite de pura nostalgia (para adultos) e magia (para crianças). Foi assim a apresentação da noite de 2 de fevereiro. Sob a regência do maestro e professor Marcelo Jardim, quase 100 jovens talentos participantes dos cursos de Regência e de Prática de Banda se apresentaram para um Guairão lotado. No repertório, clássicos das animações vintage do cinema (sobretudo da Disney, incluindo Branca de Neve), até produções mais recentes do mesmo estúdio (A Bela e a Fera, O Rei Leão, O Corcunda de Notre Dame, Aladdin, Fantasia 2000 e Frozen). Também fizeram parte do programa algumas das chamadas Silly Symphonies (que compuseram uma série de 75 curtas-metragens em animação produzidos por Walt Disney entre 1929 e 1939), obras da Pixar e temas clássicos da TV (Simpsons, Flintstones). Claro que não poderia faltar também “A Pantera Cor-de-Rosa (composição esta que é atribuída a Herny Mancini, mas que teve um bom dedo do paranaense Waltel Branco, na época assistente do americano), popularizada nos anos 1960 pelas aberturas da franquia de filmes protagonizados pelo Inspetor Clouseau. Antes de iniciar o concerto, o maestro Marcelo Jardim destacou a relevância das animações. “Os desenhos tiveram uma grande importância para a qualidade sonora do cinema”, afirmou. Depois, onze alunos conduziram a orquestra, revezando-se na regência com Jardim, que também participou do concerto. A média de idade dos músicos impressionava, com jovens talentos de apenas 20 e poucos anos demonstrando a qualidade e o potencial da formação musical proporcionada pela Oficina de Música de Curitiba. E na penúltima música, “Os Pinheiros de Roma”, a plateia foi surpreendida com músicos posicionados nos balcões, fazendo com o som da orquestra ecoar literalmente por todo o teatro. (JM)

Set List: “Cartoons Overture”, “Disney Fantasy”, “Os Flintstones”, “A Pantera Cor-de-Rosa”, “Os Simpsons”,”A Bela e a Fera”, “Aladdin”, “Os Sinos de Notre Dame”, “O Rei Leão”, “O Pássaro de Fogo”, “Desenhos da Pixar”, “Os Pinheiros de Roma” e “Frozen”.

Classe de Banda Sinfônica

Orquestras da Oficina de Cordas e Sopros + Criolo

Emocionante é pouco para descrever o show de encerramento dos cursos da Oficina de Música. Teve até estudante que participou das orquestras no palco se debulhando em lágrimas ao final da apresentação. Também pudera. Com Kleber Cavalcante Gomes não poderia ser diferente. De fala baixinha e mansa, bom humor extremo e um carisma dos píncaros, Criolo acertou quando, logo no início, declarou que aquele seria um show para ser vivido intensamente e ter cada segundo aproveitado ao máximo. “A batida do coração desse povo vai ajudar na cadência”, disparou lá pelo meio, antes da execução de um dos clássicos mais bonitos do samba, “As Rosas Não Falam’. Por falar nisso, o rapper, que nos últimos anos vem se dedicando a interpretar esse outro gênero em seus concertos, sentou-se à frente e ao centro de alunos escolhidos e regidos pelos maestros João Egashira (cordas) e Paulo Aragão (sopros) para comandar um repertório de excelência no território do samba. Clara Nunes, Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, Cartola, Pixinguinha, Adoniran Barbosa, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa e Demônios da Garoa estavam entre os autores e intérpretes homenageados no decorrer do set list. A parte das execuções instrumentais, quando Criolo não estava no palco, abriu espaço também para choro e polca, com obras de Jacob do Bandolim (que ressignificou o instrumento de origem europeia que lhe deu parte do nome artístico), Radamés Gnatalli e Ernserto Nazareth. O convidado especial da noite ainda foi agraciado com arranjos especiais para duas de canções autorais e também não conseguiu a emoção por conta disso. No fim da apresentação, um medley com três dos maiores hits do bairro paulistano do Bixiga levantou todo mundo da cadeira e transformou aquele restinho de Oficina em uma grande celebração em uníssono. Mas ainda era pouco: na volta para o bis, um matador gran finale com “Carinhoso” mostrou que certa estava a saxofonista hermana que tentava enxugar as lágrimas a todo instante. Foi não só de arrepiar a interpretação de Criolo. Foi também de fazer chorar. (AS)

Set list: “Pra Naná”, “Canto das Três Raças”, “Menino Mimado”, ”Barracão”, “Palpite Infeliz”, “Vibrações”, “Remexendo”, “Ameno Resedá”, “Agoniza Mas Não Morre”, “Folhas Secas”, “As Rosas Não Falam”, “Dilúvio de Solidão” e “Saudosa Maloca/Tiro ao Álvaro/Trem das Onze”. Bis: “Carinhoso”.

Movies, Music

Meu Nome é Gal

Cinebiografia de Gal Costa acerta com o desabrochar da tímida cantora em furacão dos palcos no período de antes, durante e depois da Tropicália

Texto por Abonico Smith

Fotos: Paris Filmes/Divulgação

A notícia da morte de Gal Maria da Graça Costa Penna Burgos, na manhã de 9 de novembro de 2022, aos 75 anos de idade, não pegou quase todo mundo de surpresa como também causou profunda consternação em quem é fã da música popular brasileira. Afinal, um ataque fulminante do coração (causa mortis que não fora anunciada publicamente pela viúva e sócia, embora confirmada depois pela divulgação de um atestado médico) calava a maior voz feminina que já cantou por aqui. Estava saindo do forno uma cinebiografia sobre ela. Dirigido por Dandara Ferreira e Lo Politti (que também assina o roteiro), o filme acabou tendo sua estreia marcada para este ano. Infelizmente, Gal Costa não teve tempo de assistir à obra, embora tenha dado sinal verde para a escolha da protagonista que iria revivê-la.

>> Clique aqui para ler os oito motivos que fizeram de Gal Costa um nome de suma importância para a história da música popular brasileira

Nesta quinta-feira, enfim, chega aos cinemas de todo país Meu Nome é Gal (Brasil, 2023 – Paris Filmes), o segundo projeto das diretoras envolvendo a cantora. Dandara e Lo já haviam lançado, há alguns anos, a série documental de quatro episódios O Nome Dela é Gal, exibida no streaming da Amazon Prime. Portanto, realizar em uma obra dramatúrgica retratando um determinado período da vida da baiana foi algo extremamente confortável à dupla, que ainda optou por se restringir à época mais interessante para trabalhar dramaturgicamente: o início de carreira dela. Mais precisamente o período que compreende a saída de Salvador para tentar a sorte na carreira no Rio de Janeiro (1966) até o reconhecimento em larga escala de seu talento (1971). A Gal Costa dos 19 aos 24 anos, desabrochando para a vida adulta enquanto tenta se desvencilhar de toda a timidez inerente à sua personalidade. Sophie Charlotte interpreta Gal do momento em que chega ao Rio em um ônibus vindo de Salvador ao show arrebatador Fa-Tal, cuja temporada no Teatro Tereza Raquel, bem sucedida, disputada e bastante comentada no boca a boca e pela imprensa, garantiu-lhe em definitivo a coroa de musa do desbunde depois da fama de musa das dunas do barato, berço da contracultura carioca no começo dos anos 1970, incrustado na praia de Ipanema de um Rio de Janeiro ainda bastante afetado pela severa repressão social, política e cultural da ditadura do regime militar iniciada logo após o AI-5.

Optando por uma narrativa convencional (só há o uso de dois rápidos flashbacks de quando ainda estava na infância treinando o poder vocal), as diretoras driblam a linearidade com uma fidedigna reconstrução da época em cenários e figurinos e uma impressionante caracterização dos atores. Curiosamente, Sophie é a única que não se parece fisicamente com a sua personagem – o que não deixa de ser um ganho para a atriz, já que ela também canta as músicas e sua voz também está longe de se assemelhar com a de Gal, principalmente na hora de soltar os agudos. Isso a deixa mais livre para incorporar outros ganhos na interpretação, como o jeito doce e comedido no cotidiano. Aliás, o fato da personagem estar sempre lutando para colocar seus demônios para fora e livrar-se das amarras (da mãe, da cidade natal, das performances cênicas e vocais do começo da carreira e até mesmo do guia Caetano, depois dele ser preso e ir para o exílio em Londres) acaba se tornando o maior trunfo do longa-metragem. O desabrochar de uma jovem contida em um grande furacão é a mais bela mensagem deixada nas entrelinhas das cenas e diálogos.

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E ao contrário da relação entre Gal e Sophie, o resto da turma majoritariamente tropicalista, entretanto, está assombrosamente parecido. Rodrigo Lelis não é só Caetano cuspido e escarrado: em muitas das cenas ele baixa o temperamento irrequieto, desbocado e pirracento do anjo da guarda musical da protagonista. Dan Ferreira aparece um pouco menos como Gilberto Gil mas também está igual. George Sauma faz um histriônico Waly Salomão. Dedé Gadelha, esposa de Veloso e melhor amiga de Gal, é outro nome com fiel reconstituição física, por Camila Mardila. Tem ainda Tom Zé, Rogério Duprat (feito pelo sobrinho, o músico e maestro Ruriá Duprat), Rogério Duarte, Maria Bethânia (encarnada pela própria diretora Dandara), Rita Lee e os irmãos Baptista, Torquato Neto, Jards Macalé e até Edu Lobo, que era da turma mais defensora e conservadora da MPB mas convivia com o pessoal no Solar da Fossa ali em meados dos anos 1960. Por sua vez e como já era de se esperar, Luis Lobianco dá um show de humor vivendo o empresário Guilherme Araújo, que criou o nome artístico de Gal, incorporado ao batismo oficial em 2013.

O fato dos atores (Charlotte, Lelis, Ferreira) soltarem a voz durante as canções também evidencia um ótimo trabalho de captação e desenho de som. Os instrumentos são tocados ali mesmo em cena, inclusive na hora dos palcos e estúdios. Por isso, canções como “Baby” e “Divino, Maravilhoso” tornam-se mais brilhantes com o acompanhamento de banda. Para uma cinebiografia que se propõe a retratar um período especial de criação musical tal fator torna-se um belo trunfo para tocar ainda mais fundo do coração tanto dos velhos fãs como dos mais jovens e futuros iniciados que estão ali assistindo a tudo da poltrona do cinema.

Por falar em velhos fãs, é certo que acompanhar na tela uma história já bastante conhecida e da qual já se sabe quase tudo deixa Meu Nome é Gal um pouco menos impactante. Contudo, este detalhe não tira os méritos do filme que, se não deseja ser ousado nem mostrar coisas novas ou ainda misteriosas sobre Gal Costa, é tão respeitoso com o objeto da biografia que eleva este fascínio ao status de elemento principal de uma nova documentação histórica sobre a cantora, desta vez por meio da dramaturgia. Aqui é só a ascensão. Os períodos de queda na carreira passam longe desta biografia. E, falando a verdade, não fazem qualquer falta.

Music

Rita Lee

Rock brasileiro perde sua principal figura feminina na noite de ontem, aos 75 anos de idade

Texto por Abonico R. Smith

Fotos: Reprodução

Morreu em São Paulo, na noite de 8 de maio, a cantora e compositora Rita Lee. Ela tinha 75 anos de idade e tratava de um câncer no pulmão, diagnosticado em 2021. A informação sobre o seu falecimento foi postada nas redes sociais pelo marido e parceiro musical Roberto de Carvalho.

Mais textos e informações sobre a vida, a morte, a trajetória e a suma importância de Rita Lee para a arte e a cultura brasileira serão postados no Mondo Bacana nos próximos dias.

Music

Gilberto Gil – ao vivo

Por que, aos 80 anos, ele é o artista mais necessário da música brasileira nestes tensos, conturbados e delicados tempos vividos no país

Texto por Abonico Smith

Foro: Priscila Oliveira (CWB Live)

“Tudo que tem um começo também tem um fim”. Assim disse Gilberto Gil um pouco depois de iniciado seu segundo concerto em Curitiba, onde esteve tocando nos últimos dias 27 e 28 de outubro. Logo depois, regeu o primeiro de quatro coros com o nome de Lula entoados pela plateia. Não era mais preciso muita coisa para se ter uma certeza naquela noite: o cantor e compositor baiano é o artista certo e na hora certa, o principal nome da música brasileira para representar e personificar, através de palavras, letras, melodias e harmonias o momento extremamente delicado que o país viveu nestes últimos dias de outubro.

Gil completou oito décadas de idade em 26 de julho. Está em plena vitalidade fisica, cantando (mesmo estando com a voz um tanto rouca desse dia na capital paranaense) e dançando com plena desenvoltura, empunhando e tocando sua guitarra no palco do Teatro Positivo. Tanto que nos últimos meses fez uma turnê de quinze datas por cidades europeias e ainda se apresentou em três conceituados festivais nacionais (Coala, MITA, Rock in Rio). Em todos os shows trazendo alguns familiares (filhos, netos) para integrar a sua banda de apoio. Também veio à capital paranaense para iniciar uma série de apresentações por cidades nacionais com a turnê Gil 80 Anos. Sorte nossa, sorte de quem estava na plateia – inclusive trinta convidados que representavam o MST em cada noite. Como visto recentemente no reality show Em Casa com os Gil, disponível para streaming na Amazon Prime, Gil é aquele avô carinhoso, amável, que desperta não só encantamento em quem está por perto com ainda provoca aquela sensação de calma e bem-estar em decorrência de seus conselhos, comentários e tudo aquilo que diz de maneira curta e rápida.

Foi assim no Positivo durante cerca de uma hora e meia de apresentação. Volta e meia, fosse no intervalo entre as canções ou mesmo durante elas (através de versos certeiros). Começou com as estrofes e refrão de “Tempo Rei”: “Água mole, pedra dura/ Tanto bate que não restará nem pensamento/ Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei/ Transformai as velhas formas do viver/ […] Mães zelosas, pais corujas/ Vejam como as águas de repente ficam sujas/ Não se iludam, não me iludo/ Tudo agora mesmo pode estar por um segundo”. Na terceira música, unindo sua versão em português e o original em inglês de Bob Marley, decretou em “Não Chores Mais” que “Se Deus quiser/ Tudo, tudo, tudo vai dar pé”.

Mais pro miolo do set iniciou uma série de canções mais lentas. Menos dançantes e um pouco mais reflexivas. “Mais suaves”, como declarou ao microfone. Contudo, a suavidade também desconcerta. Mesmo passados quarenta anos é impossível não se emocionar com “Drão” (“O amor da gente é como um grão/ Uma semente de ilusão/ Tem que morrer pra germinar/ Plantar em algum lugar/ Ressuscitar no chão nossa semeadura”). Para Gil, esta é “uma canção da crença e da fé absoluta no amor eterno”. OK, ela foi composta em um momento de bastante intimidade, o da separação do cantor e da sua então esposa Sandra Gadelha (mãe de Preta, Maria e o falecido Pedro). Contudo, pode servir também em um espectro mais abrangente, com uma leitura mais pro macro voltada ao nosso tão sofrido dia a dia do país, repleto de imoralidades e absurdos que serviram como morte para o nosso amor e a nossa fé.

Antes de iniciar “A Paz”, Gil prossegue com seus ensinamentos: “ela fala sobre a revitalização da vida que se contrapõe a tudo o que tenta destruí-la. “Já para anunciar “Estrela”, recorre a lembranças pessoais e confidencia ao público ter composto os versos inspirado por “uma menina” da cidade que “viu” nascer. No caso, Estrela, a filha mais nova de seu amigo Paulo Leminski. “Éramos jovens e andávamos de noite pelas ruas de Curitiba eu, Paulo e Helinho [Pimentel, fundador da mítica rádio Estação Primeira e hoje administrador do complexo que envolve os palcos e as áreas para entretenimento da Ópera de Arame e da Pedreira… Paulo Leminski!]. Eu vi esta menina nascer e então esta música tem uma semente curitibana”.

Só que Gil impacta ainda por aquilo que não diz, mas também pelo que está implícito em suas músicas. Na primeira parte do concerto, por exemplo, lançou mão de uma sequência de poderosas canções nordestinas. A intenção ali não era apenas saudar a rica cultura musical da região brasileira da qual veio e relembrar um pouco de gêneros que lhe exerceram fascínio e influência desde cedo, como o xote, o baião e o forró. Também era um recado sobre a fortaleza daquele povo um tanto sofrido mas que não só nunca se entrega como também faz valer a sua voz e a sua (força de) vontade. Que elege um presidente que o representa e diz um sonoro não a outro que o despreza. Como dizia Luiz Gonzaga, a ordem agora é “já ir” respeitando os oito baixos!

Ainda tendo como referência seu DNA nordestino, neste show ele voltou a lembrar os tempos de Tropicália e promover assombrosas fusões musicais com gêneros de além-fronteira. No trecho com “Esperando na Janela”, “respeita Januário”, “O Xote das Meninas” e “Eu Só Quero um Xodó” os clássicos surgem emendados por um mesmo padrão de percussão eletrônica. Mestrinho, sanfoneiro e backing de sua banda, abrilhanta os arranjos de reggae de “Não Chores Mais”/“No Woman No Cry” e “Esotérico” com um refinado lamento extraído de seu acordeon. “Realce” e “Palco”, quase meio século depois, ainda arrastam todo mundo para dançar fora de suas cadeiras com a batida disco mesclada à fusão entre rock, jazz e sintetizadores). Por falar em rock, na hora de relembrar com muito peso “Get Back” (devidamente colada à versão em português “De Leve”, assinada e gravada em disco ao vivo de 1977 por Gil e Rita Lee, durante provocativa turnê conjunta para “relançar” ambas as carreiras meses depois de ambos serem detidos por porte de drogas) mostrou o quanto os Beatles foram decisivos na sua carreira.

À parte final do repertório não foram reservados apenas alguns clássicos infalíveis como “Aquele Abraço” (alô, torcida do tricampeão Flamengo!), “Andar com Fé” e “Toda Menina Baiana”. Teve espaço também mais reflexões provocativas de Gil. “Nos Barracos da Cidade” discute sem papas na língua a hipocrisia e a estupidez dos políticos governantes de nosso país (e que em certos casos chegam a “confundir”, na maldade, moradores da favela com ladrões). “Punk da Periferia” é uma ode a tudo aquilo que, embora considerado nojento e fora dos padrões do centrão, confronta o status quo das elites de nossa sociedade. Não à toa, naquela sexta-feira, um monte de gente curitibana, de bem e bem vestida, reagiu com indignação à execução da mesma se levantando das cadeiras e se dirigindo para fora do teatro mesmo antes do fim do espetáculo.

Gil também retomou nesta parte o mode on sabedoria infinita do alto de seus 80 anos de vida. Repetiu várias vezes que devemos “andar com fé porque a fé não costuma falhar”. A poucas horas da eleição mais importante, versos como estes mostraram-se mais do que reconfortantes para quem nunca deixou de crer que o amanhã será um lindo dia da mais louca alegria.

Por fim deu ainda para incendiar mais um pouco a plateia terminados os acordes e batidas na derradeira canção do set list. O eterno doce bárbaro desejou a todos de Curitiba, terra da lava jato e com altíssima adesão bolsonarista, uma “explosiva eleição”. E saiu do palco fazendo com as mãos o sinal do L. Nem foi preciso ter bis do artista mais do que necessário para este nosso conturbado ano de 2022. O concerto todo, extenso, com 21 canções e muitos códigos cifrados em discursos cantados, falados e mostrados, deixou toda aquela noite, às vésperas de toda a tensão no ar da semana anterior ao domingo de votação do segundo turno da mais importante eleição presidencial da História do Brasil, nada mais do que histórica. E confortável.

Set list: “Tempo Rei”, “A Novidade”, “Não Chores Mais”/”No Woman No Cry”, “Vamos Fugir”, “Esperando na Janela”, “Respeita Januário”, “O Xote das Meninas”, “Eu Só Quero um Xodó”, “Drão”, “A Paz”, “Estrela”, “Esotérico”, “Palco”, “Aquele Abraço”, “Andar Com Fé”, “De Leve”/”Get Back”, “Nos Barracos da Cidade”, “Realce” “Punk da Periferia”, “Maracatu Atômico” e “Toda Menina Baiana”. 

Music

Gilberto Gil

Oito motivos para não perder o novo show do artista, estrela de vários festivais no Brasil em 2022 e que acaba de voltar de turnê pela Europa

Texto por Abonico Smith

Foto: Fernando Young/Divulgação

Ele tem em Abelardo Barbosa, o Chacrinha, celebridade citada em uma das famosas músicas suas, a clássica “Aquele Abraço”. Contudo, quem está com tudo e não está prosa é o próprio Gilberto Gil, que está com a agenda cheia nesta temporada em que acabou completar 80 anos de idade.

Gil acaba de voltar de uma bem-sucedida turnê pela Europa, onde foi acompanhado por alguns de seus descendentes no palco. Também acaba de estrear em streaming o reality show Em Casa com os Gil, onde é o protagonista ao lado de toda a sua família. Participou de grandes festivais brasileiros (MITA, Coala, Rock in Rio), com shows concorridos de público e bastante incensados pela crítica. Também percorre o país apresentando-se aqui e ali, em grandes e importantes cidades, com sua banda de apoio, formada majoriamente por gente que carrega o talento e o sobrenome Gil em seu DNA.

Por estar bastante incensado que todos os ingressos para a sua passagem por Curitiba (Teatro Positivo, dias 27 e 28 de outubro), depois de cinco anos sem cantar na capital paranaense, estão esgotados. Quem sabe alguma mágica acontece e, se você não comprou a sua entrada, algum bilhete “premiado” aparece disponível voando por aí?

De qualquer maneira, aí vão oito motivos para não perder (pode não ser um destes mas que seja algum próximo) um concerto de Gilbert. Gil bem à sua frente

Tropicália

Ao lado do amigo e conterrâneo Caetano Veloso, Gil bolou todos os conceitos, preceitos e possibilidades sonoras do movimento que abalou as estruturas da música brasileira no biênio 1967-1968, provocou muita polêmica e desde então vem, década após década, vem rendendo frutos e discípulos maravilhosos para nossos ouvidos escutarem e os olhos verem em ação nos palcos da vida. Expandindo toda e qualquer fronteira, sempre observando e absorvendo tudo o que pudesse, adentrando as várias regiões do país ou mesmo pegando coisas boas lá de fora. Se não fosse a ação feita pela Tropicália lá atrás, que sacodiu a poeira da estagnação da bossa nova e projetou um belo futuro, onde vieram a se encaixar nomes como Sérgio Sampaio, Walter Franco, Chico Science & Nação Zumbi, Paralamas do Sucesso, Los Hermanos, Ana Cañas, Francisco El Hombre, Charme Chulo e Johnny Hooker, por exemplo.

Família no palco

Com 80 anos de idade completados em 26 de junho e dono uma carreira musical ímpar, Gil agora desfila nos palcos toda a sua generosidade em ceder espaço para seus descendentes (filha/os, neta/os, nora) como integrantes de sua banda de apoio. Aliás, quase todo mundo que o acompanha carrega no DNA traços da família Gil – o que faz pensar o quanto os tentáculos deste sobrenome poderoso de três letrinhas se alastraram pelo Rio de Janeiro e que, de uma ou outra maneira, cada profissional da música que esteja radicado na Cidade Maravilhosa está de uma ou outra maneira, até no máximo seis graus de separação (quando muito isso, olha lá!) de Gilberto Passos Gil Moreira. O mais recente membro do clube com o branding Gil é a neta Flor, de apenas 13 anos, com quem chegou a dividir recentemente os vocais principais, no Rock In Rio, em uma versão bilíngue de “Garota de Ipanema”. 

Reality show

Por falar em família, se você tem acesso ao streaming da Amazon Prime não deixe de assistir Em Casa com os Gilreality show criado pela Conspiração Filmes para documentar – da criação à realização de uma turnê de quinze datas feita meses atrás por alguns países europeus, passando por várias reuniões com a participação de todos os membros do clã, que, de uma ou outra maneira, aparecem em cena passando pelo sítio do artista em Araras, onde ele se isolou durante a pandemia da covid-19. Tem até a bisneta Sol de Maria. É interessante ver toda a dinâmica familiar regida por Gil e a esposa Flora, que coordena não só a carreira do artista como também organiza e rege tudo o que envolve os encontros familiares.

Repertório clássico

Não faz muito tempo que Gil deu uma declaração tão polêmica quanto provocativa: ela passara a gravar pouco ou quase nada porque, de uma forma ou de outra, todas as músicas já haviam sido compostas e registradas. Claro que isso é uma hipérbole, mas não deixa de ser algo que faz pensar. Afinal, quanto mais oferta há de obras e artistas neste oceano que é a internet com suas plataformas de comunicação e divulgação, menos chance de se ter tanto um lugar verdadeiramente ao sol como ainda alcançar uma popularidade que tenha a mesma eficácia ou impacto de outrora. Portanto, nada mais natural também que o repertório da atual turnê de Gil seja um belo passeio por clássicos de várias fases de sua extensa trajetória. Afinal, se Gil conseguiu enfileirar hit atrás de hit nos tempos em que as rádios ainda tocavam a boa música brasileira do presente ou pelo menos algumas belezas não muito conhecidas pela massa, tudo o que menos se precisa enfiar em um show seria um punhado de faixas recentes que quase ninguém conhece ou já ouviu, só pela obrigação de se divulgar um disco novo e a justificativa de fazer (mais) uma turnê.

Laços com o reggae

Um dos destaques do repertório clássico de Gil é a sua forte conexão com o reggae. No disco Realce, de 1979, ele verteu português o clássico “No Woman No Cry”, de Bob Marley (Gil tinha acabado de assinar com a recém-inaugurada filial Warner, que era dirigida pelo seu ex-diretor na Phillips, o já falecido André Midani; Bob Marley era um dos grandes nomes do selo Island, representado em nosso país pela Warner, que inclusive chegou a trazer o artista jamaicano para cá). Vinte anos atrás ele chegou a gravar um álbum (Kaya N’Gan Daya) dedicado só ao gênero, com um monte de releitura de Marley inclusive. E em uma ou outra música tocada ao vivo sua o arranjo traz traços de reggae.

Fase pop

Depois de assinar com a  Warner, Gil também passou a desenvolver uma fase tão pop quanto polêmica. Sem deixar de lado a música brasileira, empunhou a guitarra e soube misturar o popular com o pop. Muitos críticos passaram a torcer o nariz para o Gil dos anos 1980, mas não há dúvida de que dali saiu muita coisa boa que ainda levou o artista a ganhar um público mais abrangente que o das rádios FM voltadas à elite cultural. São desta época pérolas dançantes (como “Palco”, “Toda Menina Baiana”, “Realce”, “A Gente Precisa Ver o Luar”, “Andar Com Fé”, “Vamos Fugir”, “Extra”, “Punk da Periferia”, “Extra II”, “Pessoa Nefasta”, “Nos Barracos da Cidade” e “Não Chores Mais”) e baladas de arrepiar (como “Drão”, “Tempo Rei”, “Super-Homem, a Canção” e “Se Eu Quiser Falar Com Deus”.) Ainda tem obras compostas por ele e gravadoras originalmente por outros artistas na época ( “A Paz”, “Um Trem Pras Estrelas”, “A Novidade”). Muitas destas citadas aí são presença constante no repertório dos concertos mais recentes.

Ex-ministro da cultura

Entre 2003 e 2008, nos dois mandatos presidenciais de Lula, Gil esteve à frente do Ministério da Cultura, rebaixado à condição de secretaria durante o (des)governo de Jair Bolsonaro. Esta não fora a primeira incursão do cantor e compositor na política. Em 1988, então filiado ao PMDB, elegeu-se vereador em sua cidade natal, Salvador. Em Brasília, porém, driblou desconfiança de colegas do meio artístico como os atores Marco Nanini e Paulo Autran, para realizar um bom trabalho na Esplanada dos Ministérios. Afastado dos palcos pero no mucho (como ministro, em seu primeiro ano de atuação, botou as Nações Unidas para dançar durante o Show da Paz na Assembleia Geral da ONU), implementou uma série de políticas públicas voltadas à difusão cultural, em um tempo onde o governo federal ainda se preocupava, de fato, com o desenvolvimento e o avanço da arte. Em tempos onde a cultura brasileira anda tão combalida e arrasada, nada melhor do que uma nova mudança de governo e um novo ministro como fora Gilberto Gil para reerguer toda essa riqueza de volta.

Imortal da ABL

Em novembro de 2021, Gil foi eleito para uma vaga na Academia Brasileira de Letras, por meio de 21 votos, para ocupar a cadeira de número 20. Sua inclusão no quadro de imortais da ABL se deu uma semana depois da de Fernanda Montenegro. Uma mostra não apenas de que a instituição (que em julho último celebrou 125 anos de existência) mostra estar se abrindo para textos não formais da literatura tupiniquim como também mais uma faceta pública de Gilberto Gil que vai além dos palcos, instrumentos e microfones. E ele merece, também. Primeiro porque nas últimas décadas revelou-se um dos mais hábeis autores musicais de nosso país. E também porque já demonstrava uma certa queda para o fardão já na capa de seu álbum de estreia, de 1968, quando posou, com olhar matreiro, para as lentes do fotógrafo David Drew Zingg como um dos personagens daquele projeto gráfico. Portanto, mais de meio século antes e ainda no auge da Tropicália, Gil – cuja posse na instituição ocorreu em 8 de abril de 2022 – já revelava sua paixão para as letras e antecipava aquilo que ocorreria às vésperas de chegar à oitava década na idade.