Books, Movies

Veríssimo

Documentário promove um olhar carinhoso sore a vida cotidiana de trinta dias por volta do aniversário de 80 anos do sempre afiado autor gaúcho

Texto por Tais Zago

Foto: Boulevard/Vitrine/Divulgação 

Para quem ainda não o conhece (se isso ainda for possível!), Luís Fernando Veríssimo é um escritor, humorista, cartunista, tradutor, roteirista de televisão, autor de teatro e romancista brasileiro. Já foi publicitário, revisor de jornal e ainda músico, tendo tocado saxofone. Um homem de múltiplos talentos e que explorou todos eles magistralmente.

Em 2016, ele estava prestes a comemorar seus 80 anos. Foi nessa época que Angelo Defanti o acompanhou por 15 dias antes e 15 dias após seu aniversário, no dia 26 de setembro. Este empenho resultou no filme Veríssimo (Brasil, 2024 – Boulevard/Vitrine), que chega agora aos cinemas do país já como um programa obrigatório para os fãs do autor.

No documentário editado de forma simples e com muitos takes amplos e estáticos, somos conduzidos pela rotina diária do tímido e introvertido escritor em sua casa. Participamos de sua dinâmica doméstica com filhos e netos e a mulher Lúcia, que, ao contrário do autor, faz o contraponto com sua personalidade extrovertida. A narrativa segue a linha de um countdown, marcando os dias até a data das festividades.

O filme começa num ritmo bastante moroso. Até Veríssimo começar a falar diretamente com o documentarista já se passaram mais de 20 dos 87 minutos do tempo total da obra. E talvez esse lento florescer seja o segredo e o atrativo dessa produção. Veríssimo se revela em doses homeopáticas com suas pílulas de sabedoria, o inconfundível senso de humor e as observações certeiras. Uma lucidez invejável da mente, mesmo quando o corpo já dá sinais de cansaço.

Ao ser indagado sobre qual seria a pergunta que nunca lhe foi feita, Veríssimo pondera brevemente e, sem hesitar, responde: “não me ocorre nenhuma”. E eu sou inclinada a acreditar que o introvertido porém afiado observador já refletiu, mesmo, sobre quase todas as perguntas que existem. Quem está familiarizado com o grande escopo de sua obra – que, para citar apenas as mais famosas, vai do detetive trapalhão Ed Mort (1979) e o hilário e ácido humor de O Analista De Bagé (1981) até a popular Comédias Da Vida Privada (1994) – sabe que poucos autores brasileiros foram (ou são) cronistas tão eficientes e atuantes quanto Veríssimo. O incansável artista para o qual a profissão também é sua atividade predileta e que queria (mas ao mesmo tempo também não queria) se aposentar ao chegar ao octogésimo ano de vida.

Foram mais de 100 horas de filmagens feitas pela paciente equipe de Defanti e um trabalho bastante árduo na sala de edição, que tomou vários anos. Como resultado, temos uma obra feita com carinho, mas que nem sempre empolga. Por vezes a qualidade do áudio e algumas cenas externas deixam a desejar. De qualquer forma, é inegável importância desse registro histórico de um dos maiores escritores que o Rio Grande do Sul já pariu por esses prados. 

Luís Fernando, nossa prata da casa, já está hoje com 87 anos e passa um bom tempo em sua casa se recuperando de um AVC. Mesmo assim o escritor não deixa de acompanhar os jogos de futebol do seu time, o Internacional. Junto com a escrita e a esposa Lúcia, essas são suas mais perenes paixões.

Movies

Clube Zero

Como um falso guru pode se esconder na pele de uma angelical e atenciosa professora de reeducação alimentar em um colégio para a elite

Texto por Abonico Smith

Foto: Pandora Filmes/Divulgação

Suspense dramático, comédia de desconforto, chame do que você quiser. Não importa a denominação: o negócio da cineasta austríaca Jessica Hausner é segurar você na ponta da poltrona e te desconcertar ao extremo. A cada cinco anos, em média, ela faz isso com um novo lançamento. Desta vez, com Clube Zero (Club Zero, 2023,  Áustria/Reino Unido/Alemanha/França/Dinamarca/Turquia/EUA/Catar/Bósnia e Herzegovina – Pandora Filmes), não é diferente.

 O filme gira em torno da chegada de uma nova professora a um colégio para adolescentes da elite. Ms Novak (Mia Wasikowska) faz sucesso pela internet vendendo chás que promovem uma nutrição mais saudável. Indicada pelo pai de uma aluna à direção, ela passa a ministrar uma disciplina volta a um pequeno grupo inicial de alunos adeptos que leva o nome de seu projeto, Comer Consciente, com o objetido de reeducação alimentar. Com as primeiras aulas, ela tenta fazer com que determinadas práticas e costumes de alimentação sejam adotados ou descartados, para que, inclusive, isso possa vir a trazer benefícios no rendimentos das notas escolares e no desempenho de atividades extras físicas, que vão do balé à ginástica. Respiração, controle da mente, quantidade e qualidade, tudo pode e deve influir para uma maior sensação de bem estar diário.

Com sua voz suave e angelical, a sempre atenciosa Ms Novak faz questão de acompanhar de perto os alunos com quem trabalha em reuniões periódicas no colégio. Sua vida particular, aliás, é um mistério. Ninguém sabe absolutamente nada sobre ela: relacionamentos, vida social, família, atitudes fora do âmbito profissional. Mesmo assim, ela passa a ganhar cada vez a confiança de um grupinho de estudantes, que, por sua vez, passam a seguir à risca suas propostas alimentares, mais radicais até mesmo do que o próprio veganismo. Inclusive em suas casas, para surpresa e contrariedade dos pais.

Aos poucos, entretanto, Hausner vai desenvolvendo uma ambientação que passa da harmonia para o caos. A professorinha querida de alguns alunos começa a despertar desconfiança nos pais, mas a diretora não dá ouvidos e deposita tod aa confiança na recém-contratada até que a pressão aumenta, aumenta… e tudo acaba estourando após um acontecimento extracurricular.

A questão sobre o comportamento alimentar e transtornos que podem vir a decorrer disso é só um mote para Hausner discutir uma questão bem mais profunda do que aquela que vem da superfície dos pratos. Com a figura central da professora esquisita que chega para abalar algo que, de uma certa forma, já está sólido e seguro esbarra com um problema que sempre existiu na humanidade mas parece ter se intensificado mundialmente após a internet 2.0 e suas redes sociais e plataformas de áudio e vídeo: os falsos profetas. A condição de tratamento de guru dada à professora pelos seus alunos queridos – que passam a segui-la incondicionalmente, não dando ouvidos a nada nem ninguém mais. Os jovens garotos e garotas passam a descartar tudo aquilo que faziam e conhecem, ignoram apelos familiares e se envolvem na crença sempre maior em algo que passaram a conhecer dias atrás, sem muita base teórica ou científica, só porque isso lhes fora apresentado por alguém que transmite sabedoria, confiança e credibilidade, sem a possibilidade de qualquer questionamento.

É nisso que a diretora e roteirista se escora para desestabilizar a audiência. Enquanto você começa a traçar paralelos mentais com pessoas, casos e referências que conhece (sobretudo aqui no Brasil; impossível não conhecer um famoso caso que nos últimos dez anos abalou de modo profundo e irreversível a vida de todo o país), Hausner promove artimanhas visuais para tornar seu filme ainda mais provocador – como o momento em que uma das meninas adeptas das pregações de Ms Novak come o vômito que acabou de provocar intencionalmente no próprio prato, cena que chegou a provocar risos (talvez de nervosismo) em cinemas da Europa. Mia Wasikowska continua escolhendo bem papeis que mostrem personagens bizarras, atípicas, fora dos padrões e, neste caso especialmente, bem amorais. Em Clube Zero é dá o tom necessário a uma protagonista que rouba a cena, tanto em relação aos espectadores como com quem se relaciona na trama. Revela-se o nome ideal para uma bela parceria com Jessica Hausner nos quesitos provocação, incômodo e desconforto. O que torna Clube Zero um filmaço. Para quem tem estômago” para aguentar, claro!

Music

Violent Femmes – ao vivo

Cultuada banda alternativa americana celebra os 40 anos de seu álbum de estreia tocando-o na íntegra em Los Angeles

Texto por Paulo Biscaia

Foto: Reprodução

Quando se pensa em álbum lendário na história da música pop, daqueles que apresentam vários hits perfeitos, surgem de pronto clássicos como White AlbumThe Dark Side Of The MoonSome GirlsThrillerOK Computer, Purple Rain e mais outros suspeitos de sempre. Só que mesmo alguns destes trabalhos, que são referência para várias gerações, têm uma ou outra canção que desliza e foge do padrão de qualidade do todo. Sempre muito subjetivo, é claro, mas tem.

Existe um album de 1983 que detém o raro feito de ter um conjunto PERFEITO de faixas e nem todo mundo trata dele com a devida reverência. Trata-se do primeiro disco do Violent Femmes, que carrega o mesmo nome da banda. No aniversário de 40 anos de lançamento, a banda fez um show de comemoração no The Novo em Los Angeles e este que vos escreve teve a imensa felicidade de estar presente naquela noite de 16 de novembro. 

A banda entrou e de cara Brian Ritchie abriu com os acordes inconfundíveis da primeira faixa do álbum, “Blister In The Sun”. Com Gordon Gano à frente, seguiram-se então, na exata ordem do disco, cada uma das faixas do album de estreia. Uma mais perfeita que a outra: “Kiss Off”, “Please Do Not Go”, “Add It Up”, “Confessions”, “Prove My Love”, “Promise”, “To The Kill”, “Gone Daddy Gone” e “Good Feeling”.

Ritchie no baixo (e mais voz e mais xilofone e mais um monte de outras coisas) e Gano na guitarra (e voz e violino e banjo e mais outras coisas), estavam acompanhados de dois jovens integrantes que certamente nem tinham nascido na época da estreia dos Violent Femmes. Um deles, um sujeito misteriosamente pomposo, todo de preto com um enorme chapéu de caubói, ficava de pé, imóvel, e entrava pontualmente em momentos para tocar uma singular tuba/sax barítono tão gigante que era maior que o próprio músico (e bem maior que o baixinho Gordon Gano). O jovem baterista seguia a tradição do original Victor de Lorenzo. Ao apresentá-lo, Ritchie disse que LA tem os mais bateristas incríveis por metro quadrado, mais do que qualquer outro lugar do planeta, mas que nenhum “tocava churrasqueira como ele toca”. Sim, a velha churrasqueira de metal ainda é o padrão de bateria e percussão do som único dos Femmes. 

Terminadas as faixas do disco de estreia, teria alguma outra música à altura? Claro! “Jesus Walking On The Water”, “Country Death Song”, “I Held Her In My Arms” e outras que culminaram com o grand finale de “American Music”. Uma aventura sonora conduzida por um grupo de instrumentistas ousados, inquietos e com letras provocadoras sobre o frágil american way of life

Depois de quase duas horas de show de arrepiar e tantas faixas memoráveis será que eles tinham gabaritado tudo o que há de perfeito em toda a discografia? Andando ao meu lado no corredor de saída, uma fã de 20 e poucos anos disse que faltou “Waiting For The Bus”. Só pensei: “Sim! Faltou essa. Amo essa música”. Pois é!

Violent Femmes é uma das bandas mais consistentes que já ouvi e lamentavelmente pouco lembrada nas listas de melhores de todos os tempos. A volumosa quantidade de composições incríveis da banda de Milwaukee garante seu lugar no panteão dos gigantes. Pelo menos ela está aqui no meu e no das pessoas que saíram maravilhadas do The Novo.

Set list: “Blister In The Sun”, “Kiss Off”, “Please Do Not Go”, “Add It Up”, “Confessions”, “Prove My Love”, “Promise”, “To The Kill”,  “Gone Daddy Gone”, “Good Felling”, “Jesus Walking On The Water”, “I’m Nothing”, “Memory”, “Country Death Song”, “I Could Be Anything”, “Old Mother Reagan”, “Dance Motherfucker Dance”, “Color Me Once”, “I Held Her In My Arms”, “Black Girls” e “Give Me The Car”. Bis: “I’m Not Gonna Cry” e “American Music”.

Music

Paul McCartney – ao vivo

Nem problemas técnicos mancharam a segunda das três apresentações na capital paulista do beatle durante a passagem da Got Back Tour pelo Brasil

Texto por Fabio Soares

Foto: Marcos Hermes/Divulgação

O tempo passou e, sabemos, as últimas vezes estão cada vez mais próximas. Ver Paul McCartney em sua Got Back Tour em pleno 2023 é ter a certeza de que uma hora ou outra chegarão as despedidas, inevitáveis como leis da vida. Aceitar este fato é o máximo (e o melhor) que podemos fazer.

A data de 9 de dezembro amanheceu fria e chuvosa em São Paulo, contrariando o calor senegalês reinante na cidade nos dias anteriores. Evidenciando, talvez, uma apresentação diferente fosse pela forma, set list quase imprevisível (mesmo?) ou simplesmente pela sensação de coração apertado pelas últimas vezes, aquele sábado estava diferente dos demais. O início da performance de Paul, a segunda das três marcadas para capital paulista, provou exatamente isso.

Com 16 minutos de atraso (algo pouco usual em sua trajetória), o beatle adentrou o palco de um Allianz Parque completamente tomado por corações e mentes entregues ao sonho de ver um integrante dos Fab Four, fosse pela primeira ou última vez. Aliás, a audiência de Paul McCartney seja talvez a única do planeta a ostentar três ou quatro ou cinco gerações em um mesmo mesmo espaço. 

“A Hard Day’s Night” abriu os trabalhos com a já tradicional catarse que lhe é peculiar. Entretanto, algo desagradável saltou aos olhos e ouvidos: a péssima qualidade de som apresentada nas canções iniciais. Não importa se a desculpa é que os técnicos de som são da equipe do artista. A verdade é que assistir a grandes concertos no Brasil é um teste de paciência (e cardíaco) a ouvidos mais exigentes. Aliás, nem tão exigentes assim, porque exigir um som bem equalizado diante um ingresso que custou quase o mesmo que um salário mínimo é o mínimo que se pode reinvindicar – sobretudo durante a execução de “Maybe I’m Amazed”, lá pelo meio do set, quando os vocais de Paul permaneceram quase inaudíveis. Um verdadeiro crime para uma das mais lindas pérolas de seu repertório.

Após a abertura, a trinca fornada por “Junior’s Farm”, “Letting Go” e “She’s a Woman mostrou um Paul econômico nos gestos (mais que natural!) mas não menos empolgado. Na primeira, o naipe de metais posicionado no pé de uma das arquibancadas laterais foi uma grande sacada da produção, dando uma espécie de “alargamento” do palco em comunhão com a massa. Visualmente bonito, aborrecidamente na audição por conta dos problemas técnicos.

A banda do artista permanece como um pilar a ser respeitado. Admirável sustentáculo que permite ao artista errar, desafinar e voltar ao eixo quase que de forma imperceptível, algo que foi notado nas execuções de “My Valentine” e “Nineteen Hundred and Eighty-Five”. É no talento do trio formado pelos guitarristas Rusty Anderson e Brian Ray e do baterista Abe Laboriel Jr que Macca se apoia. Um trio de zagueiros que deixa o astro do time livre para criar como em “Something”. quando McCartney sacou seu ukulele para os versos iniciais e completou o serviço ao piano. Antes dela, disse em português: “esta vai para meu ‘mano’ George”. Aliás, dizer gírias e expressões locais é uma marca desta turnê brasileira. Foi assim em Brasília e Belo Horizonte também. Certamente será em Curitiba e Rio de Janeiro, as próximas escalas no país.

Relembrar os ex-companheiros não foi algo apenas reservado a “Something”. Em “I’ve Got a Feeling”, a tecnologia permitiu um dueto com um John Lennon projetado nos telões, em imagens retiradas do documentário Get Back, de Peter Jackson. John também foi saudado na inesperada cover de “Give Peace a Chance”. No mais, a pirotecnia ainda se fez presente em “Live And Let Die”, com o público completamente entregue e envolto num momento de brilho de raios laser e fogos de artifício, numa espécie de batismo a novos fãs (a quarta e a quinta geração presentes e já citadas neste texto).

Fosse nos momentos de catarse coletiva (“Helter Skelter”, “Ob-La-Di, Ob-La-Da” e na indefectível “Hey Jude”) ou nos mais introspectivos, as duas horas e quarenta de espetáculo voaram, Deixaram novamente extasiada uma plateia completamente entregue ante um espetáculo que jamais perderá sua beleza e ápice, mesmo com problemas técnicos de som.

No fim, a inexatidão de uma despedida marcou presença. Mesmo aos 81 anos, o responsável por grande parte da cultura pop que conhecemos tem ainda muita lenha a queimar. E que bom seria se esta fogueira fosse eterna. Mas quer saber? De certa maneira, ela é sim.

Set list: “A Hard Day’s Night”, “Junior’s Farm”, “Letting Go”, “She’s a Woman”, “Got To Get You Into My Life”, “Come On To Me”, “Let Me Roll It”, “Getting Better”, “Let’em In”, “My Valentine”, “Nineteen Hundred and Eighty-Five”, “Maybe I’m Amazed”, “I’ve Just Seen a Face”, “In Spite Of All The Danger”, “Love Me Do”, “Dance Tonight”, “Blackbird”, “Here Today”, “Give Peace a Chance”, “New”, “Lady Madonna”, “Jet”, “Being For The Benefit Of Mr. Kite!”, “Something”, “Ob-La-Di, Ob-La-Da”, “Band On The Run”, “Get Back”, “Let It Be”, “Live And Let Die” e “Hey Jude”. Bis: “I’ve Got a Felling”, “I Saw Her Standing There”, “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (Reprise)”, “Helter Skelter”, “Golden Slumbers”, “Carry That Weight” e “The End”.