Books, Movies

A Noite das Bruxas

Terceira aventura do detetive Hercule Poirot chega às telas juntando a verve literária de Agatha Christie à onda atual dos filmes de terror

Texto por Abonico Smith

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Agatha Christie é um dos nomes mais festejados da literatura de ficção e entretenimento de todo o século 20. Sua escrita agradável aliada a intrincados enredos repletos de mortes, mistério e suspense criaram uma legião de adoradores, sobretudo do principal personagem criado pela britânica. Protagonista de dezenas de histórias publicadas por décadas, o detetive Hercule Poirot tornou-se um rei do whodunnit com seu faro implacável para descobrir pistas nos menores e mais escondidos sinais deixados nas cenas dos crimes e amarrar motivos e pessoas envolvidas com perspicácia e inteligência extrema, assombrando não só as pessoas ao redor como também todos os leitores. Nada mais natural, portanto, que meios populares como o cinema e TV absorvessem as tramas para oferecê-las às novas gerações por meio do audiovisual.

Depois de algum sucesso nas telonas durante os anos 1970, o personagem voltou recentemente a ganhar foco em Hollywood, desta vez vivido pelo ator e diretor Kenneth Branagh. Em dobradinha com o roteirista Michael Green, ele recolocou Poirot nas salas de projeção (ou melhor, nos trilhos), em 2017, adaptando o clássico Assassinato no Expresso Oriente. Com elenco estelar e direção de arte (o que inclui cenários e figurinos) de encher os olhos para quem gosta de toda a pompa e beleza do visual vintage. O sucesso de bilheteria logo proporcionou uma segunda produção (outro título bastante popular) também com os mesmos ingredientes. Contudo, a pandemia e polêmicas pessoais em torno de Armie Hammer, um dos atores principais de Morte no Nilo, fizeram o longa ser engavetado e ter sua estreia adiada para o começo de 2022.

Por isso o curto intervalo de tempo para uma terceira obra, que chega aos cinemas de todo o mundo nesta semana. A Noite das Bruxas (A Haunting In Venice, EUA/Reino Unido/Itália, 2023 – Fox/Disney), entretanto, quebra um pouco o esquema dos anteriores para correr maiores riscos. Boa jogada de Green e Branagh, que acertam em cheio, já que a adaptação do crime ocorrido no cruzeiro de luxo que percorre as águas do rio egípcio deu uma bela balançada e quase provocou o naufrágio da continuidade do detetive belga no cinema. Para começar, a diferença já vem na escolha da obra literária dentro da galeria de títulos escritos por Christie. Não só Hallowe’en Party é um romance um tanto quanto desconhecido do grande público como ele também é uma das criações derradeiras dela. O livro saiu em 1969, mais de trinta anos depois de Assassinato no Experesso Oriente e Morte no Nilo. Agatha já estava nos anos finais de sua longeva vida e isso acaba por se refletir na premissa da trama. Outro detalhe é que esta história de Poirot mergulha fundo no terror, mais precisamente em questões ligadas ao sobrenatural – o que vira um grande chamariz de audiência, já que este é o gênero que vem bombando há várias temporadas nas bilheterias mundiais, sempre com grande oferta de títulos pipocando aqui e ali, inclusive produções de países fora do eixo anglo-americano.

Terceiro apontamento: o filme joga o protagonista em nos aposentos lúgubres de um castelo supostamente assombrado na Veneza do pós-guerra, de onde nem ele nem ninguém pode sair por conta da água dos canais e da chuva torrencial que cai a noite inteira. Entre fantasmas, comunicação com os mortos e tentativas bem e mal sucedidas de assassinatos, o protagonista precisa lutar contra seus próprios demônios e manter-se mentalmente são para poder solucionar o que está à sua frente. Ou seja, ele bate o pé no ceticismo mais irretocável para provar que o mundo de lá realmente não existe e o além-vida não passa de uma sequência de farsas e fraudes. Mesmo que tudo pareça, de fato, real.

Hercule, entretanto, não está sozinho nesta empreitada. Aliás, ele nem desejava estar lá no castelo. Ao ter escolhido a charmosa e secular cidade no nordeste italiano para morar enquanto curte a aposentadoria de sua vida como investigador, acaba sendo procurado por uma velha amiga, a autora de livros de suspense e mistério Ariadne Oliver. Interpretado por Tina Fey, este explícito alter-ego de Agatha Christie transformado em um de seus personagens mais famosos, convence Poirot a ajuda-la em mais um caso que pretende utilizar em seus livros: desvendar se uma famosa médium é capaz de conversar mesmo com quem já bateu as botas. Os dois vão a uma sessão promovida pela mãe de uma jovem que teria sido assassinada anos antes, na noite de 31 de outubro. Enquanto isso, a mesma mulher promove no castelo uma festa local e tradicional para as crianças da cidade naquela data.

Michael e Kenneth mexem bastante na história criada por Agatha, a ponto de nem utilizar o nome original do livro (na verdade, o título em português resgata o mesmo utilizado por aqui desde o seu primeiro lançamento). Joyce Reynolds, a tal sensitiva mediúnica, não é uma adolescente de 13 anos de idade e que garante ter presenciado um homicídio. No filme, aliás, ela já tem idade bem avançada e provoca polêmica na opinião pública, sendo inclusive presa por acusações de falsidade ideológica. Michelle Yeoh faz o papel e garante alguns pequenos alívios cômicos da história, sobretudo nos diálogos trocados com o “insensível” e racional detetive.

Diferentemente de Morte no Nilo, aqui o foco é na trama mesmo, não no passado de Hercule Poirot e em dilemas pessoais trazidos por ele lá do passado. Com isso, não só Michael e Kenneth enxugam bastante o tempo de projeção como permitem uma narrativa mais fluida e direta, sem tanta lenga-lenga e demora para engrenar e envolver o espectador no misterioso caso. Tudo bem que em determinadas ocasiões os jump scares apresentados não diferem muito do trivial dos filmes de terror. Entretanto, essa ferramenta não compromete o resultado final nem o envolvimento do espectador. Aliás, a trilha sonora composta pela celista islandesa Hildur Guðnadóttir ajuda a dissociar as imagens do lugar-comum.

O elenco também se mostra mais afiado do que aquele escolhido para o segundo longa. Além de Fey e Yeoh, temos aqui Kelly Reilly (a tal mãe da jovem), Camille Cottin (a empregada da mulher), Jamie Dorman (um médico que sofre com o estresse pós-traumático provocado pelos horrores da Segunda Guerra Mundial), Jude Hill (o filho dele, entrando na puberdade e um adolescente nada convencional), Emma Laird e Ali Khan (os irmãos que querem fazer de Reynolds uma mera escada para poderem fugir aos Estados Unidos e morar lá de vez).

Para um filme que propõe a quem assiste embarcar em uma sessão de quase duas horas de entretenimento de qualidade, com direito a astúcia e inteligência, A Noite das Bruxas deve garantir a sobrevivência de Hercule Poirot nas telas por mais um bom tempo. E não só isso, aliás. James Pritchard, bisneto da escritora britânica, administrador de seu legado e produtor executivo dos longas dirigidos e estrelados por Branagh, dá indícios de que um novo elemento do agathaverso está prestes a ser descortinado. Pode estar vindo por aí a primeira história da  versão feminina de Poirot, a senhora solteirona que brinca de detetive amadora conhecida como Miss Marple.

Movies

Nosso Amigo Extraordinário

Misteriosa criatura que literalmente cai do céu transforma o dia a dia de um idoso rabugento em tocante drama de premissa sci-fi

Texto: Abonico Smith

Foto: Synapse/Divulgação

Na língua inglesa, o termo stranger designa tanto “estranha/o”ou “estrangeira/o”. Pode ser algo ou alguém que chega de outro lugar ou mesmo da própria região mas que não seja codificável de alguma forma para a gente. E é justamente esta ambiguidade de significados que faz esta palavra ser a grande norteadora de um filme como Nosso Amigo Extraordinário (Jules, EUA, 2023 – Synapse), que estreou nesta quinta-feira nos cinemas brasileiros.

Primeiro conhecemos Milton Robinson (Ben Kingsley), que representa o estranho. Aos 78 anos, ele vive sozinho em uma pequena cidade do oeste do estado da Pensilvânia. Viúvo, ele não fala com o filho por causa de divergências parentais do passado. A filha Denise, veterinária, é o seu único elo familiar, embora as conversas sejam poucas, praticamente por telefone e à base de algumas turras. A idade avançada ainda dá indícios de que desenvolve sinais de Alzheimer, como uma constante apresentação de repetições e esquecimentos. Sua vida consiste basicamente em ficar em casa assistindo a alguns programas de televisão e se reunir periodicamente com outros moradores da região em uma assembleia pública para sugestão de ideias que possam vir a causar algum tipo de benfeitoria para o município. Contudo, ninguém parece levá-lo muito a sério, sobretudo quando abre a boca para dizer alguma coisa.

O cotidiano de Milton começa a ganhar um novo sentido quando em uma noite, de uma hora para a outra, desaba um OVNI no quintal de sua casa e uma criatura alienígena se vê presa e perdida na Terra, sem poder fazer muito para voltar logo para casa. De aparência humanoide, cor cinzenta e temperamento pacífico e amigável, ela não emite qualquer som. Apenas se comunica com Robinson por meio de olhares expressivos e poucas movimentações corporais. Também não existe nela indicação de gênero sexual. Por isso, o batismo de Jules – dado por uma amiga de Milton que acaba descobrindo a/o “hóspede secreto” – lhe cai bem. Afinal, este nome de origem francesa é neutro, serve tanto para o masculino quanto o feminino.

Jules comanda uma revolução na vida do aposentado. Aos poucos, sua rabugice, em muito provocada pelo sentimento de solidão, transforma-se em amizade. Quem também experimenta a mesma sensação são duas amigas de mesma faixa etária (porém de pensamentos, progressista e conservador, completamente em oposição uma da outra).Elas não só descobrem o grande segredo do protagonista como também passam a dividir confidências de vida e nutrir amor pela criatura que literalmente caiu do céu. O ser alienígena passa a atuar como uma espécie de psiquiatra: dá ouvidos para as confissões e lembranças dos terráqueos e, assim, faz com que eles se sintam melhor ao passar a limpo tudo o que sentem com as pessoas e as coisas ao redor deles. Tudo porque agora já possuem uma companhia para conversar e que lhes dê a devida atenção.

Mais conhecido em Hollywood por outra função nos bastidores de Hollywood, a de produtor (no seu currículo estão longas como Pequena Miss Sunshine, Uma Vida Iluminada e o recente Um Lindo Dia na Vizinhança), o diretor Marc Turtletaub esbarra na tangente da ficção científica para conceber um bom drama sobre o comportamento humano. O roteiro dá umas capengadas, ainda mais na fase em que o governo americano, que procura esconder dos cidadãos a existência do disco-voador visto no céu da cidade, manda os policias locais investigarem (e depois invadirem) a casa de Milton. A trilha sonora assinada pelo alemão Volker Bertelmann, vencedor do último oscar da categoria por Nada de Novo no Front, também exagera nas pontuações do stacatto em demasia para demonstrar toda a tensão vivia pelos quatro personagens principais do ato final.

Uma coisa, porém, é inegável: a grande atuação de Jade Quon como Jules. Debaixo de uma caprichada maquiagem de rosto e corpo (que levava horas e horas para acabar e precisou ser feita trinta vezes no total durante as filmagens), a atriz, de traços e ascendência asiática, um metro e meio de altura e que também é mais conhecida em Hollywood por outra função, a de dublê, se mostra soberba nos olhares e nos gestos econômicos, sutis. Somando-se à experiência e ao talento de Kingsley, provoca uma bela química na tela e mostra que nem sempre o uso de CGI é tão necessário assim para um filme de premissa sci-fi.

Nosso Amigo Extraordinário é obra pequena no orçamento e nas pretensões, mas grande no resultado e nas emoções despertadas em quem a assiste. Pena que o título em português soe tão deslocado (e óbvio demais) ao perder a ambiguidade e o mistério do nome original. Certas vezes, para o bem desta obra, torna-se recomendável manter os trunfos de um idioma estrangeiro e achar estranho que o público brasileiro possa vir a entender.

Music

Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá

Oito motivos para não perder a turnê que celebra os emblemáticos álbuns As Quatro Estações e V, da Legião Urbana

Texto por Abonico Smith

Foto: Divulgação

Há oito anos dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá voltaram a se encontrar em um mesmo palco. O motivo era nobre: comemorar os trinta anos de lançamento do primeiro disco, homônimo, da Legião Urbana. Juntaram mais alguns amigos para a banda de apoio e chamaram o ator e cantor André Frateschi para comandar os vocais. Não puderam, por questões judiciais, utilizar o nome da banda. Mas isso não impediu nem o sucesso nem a possibilidade de reconexão com novos e velhos fãs dos tempos de Renato Russo. A ideia inicial era fazer apenas vinte shows pelo país, mas os convites vieram e o total de apresentações teve de aumentar.

E a primeira turnê gerou, anos depois, a segunda, dedicada ao repertório dos dois álbuns seguintes: Dois (1986) e Que País é Este 1978/1987 (1988). Agora, depois da interrupção na área cultural provocada pela pandemia, chega a vez de uma nova empreitada. Neste ano, Dado, Bonfá, Frateschi e os mesmos músicos embarcam no projeto As V Estações, que reúne canções gravadas no quarto e no quinto álbum da discografia do grupo, então devidamente formatado como trio na época. Até omês de dezembro, a agenda de apresentações e viagens está cheia (informações sobre as cidades e dias você encontra clicando aqui). Neste fim de semana, dias 25 e 26 de agosto, a escala é em Curitiba, no Teatro Guaíra (ingressos e horários aqui).

Mondo Bacana dá a você oito motivos para você não perder esta terceira reunião celebratória dos músicos ainda vivos da formação fonográfica da Legião Urbana.

André Frateschi

Detratores podem até reclamar que tocar ao vivo as canções da Legião Urbana sem Renato Russo nunca será a mesma coisa. Bom, a mesma coisa não será mesmo, afinal o vocalista e letrista morreu em 1996. Só que também querer limitar a banda à existência de Renato é um pouco demais. Dado e Bonfá não só participavam também de todo o processo criativo das composições como também têm todo o direito de excursionar tocando o material de uma carreira que também a eles pertence. Então, o eterno fã confesso da Legião André Frateschi caiu como uma luva na posição. Ótimo cantor, ele está lá à frente dos músicos não para imitar Renato, mas para cantar e performar do seu jeito, sem deixar nada a dever tanto nos vocais quanto  nas performances.

As Quatro Estações

O quarto álbum da discografia foi concebido em um momento bastante delicado para a banda. Não bastasse toda a confusão ocorrida durante o show interrompido no Mané Garrincha, em Brasília, ainda havia as dificuldades internas: o rompimento com o baixista Renato Rocha, o bloqueio criativo de Renato Russo e a pressão da gravadora para, enfim, ter um material de composições após o estrelato repentino. Quando saiu, porém, As Quatro Estações foi o disco de libertação da Legião, a tal virada de página definitiva do underground. Emplacou diversos hits nas rádios e consolidou de vez a banda como um trio de sonoridade mais diversificada que a aquela banda lá do início ainda nem tão distante assim.

“Há Tempos”

Faixa inicial de As Quatro Estações e a música que também abre a atual turnê. É um petardo direto e sem refrão, na qual Renato aborda tematicamente o lado escuro da aids, que muito abalou a juventude dos anos 1980 e viria, nos anos seguintes, a debilitar a sua saúde também. Com versos sombrios como “Parece cocaína mas é só tristeza” e “Há tempos são os jovens que adoecem”. Escutá-la, mesmo passados mais de trinta anos, tem o efeito de receber um feroz sopapo na cara em pouco mais de três minutos.

“Meninos e Meninas”

Em um disco com letras repletas de metáforas e códigos, talvez esta seja a canção mais objetiva escrita por Renato sobre a sexualidade. Se em títulos anteriores como “Daniel na Cova dos Leões” e “Soldados” faziam referências veladas sobre o fato de ser gay, aqui ele vai direto ao ponto: “acho que gosto de São Paulo, gosto de São João, gosto de São Francisco e São Sebastião/ E eu gosto de meninos e meninas”. Se hoje a música brasileira celebra a diversidade sexual (inclusive com Jão batizando uma música sua também como “Meninos e Meninas”), muito disso se deve a esta faixa, lançada em um período em que a juventude do país ainda estava bem distante para falar sobre sexo.

“Monte  Castelo”

Liturgia travestida de canção pop, com a Epístola de Paulo aos Coríntios se misturando ao soneto 11 de Luis de Camões e título que homenageia os pracinhas brasileiros que lutaram contra os nazistas na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. Com o arranjo levado por pandeiro, violão e teclado, a faixa fica estrategicamente colocada ao final do set list, encerrando o show com leveza sonora e veia literária. Enfim, uma canção sobre o amor em um disco que versa, basicamente, sobre o amor em suas mais diversas formas.

“1965 (Duas Tribos)”

‘É o bem contra o mal/ E você de que lado está?”. De uma certa forma estes versos previram o us and them que dominou o território nacional durante o último desgoverno desses últimos anos. Só que esta canção chamava o Brasil, ironicamente, de “o país do futuro”, remetendo ao slogan da ditadura miltar e remoendo toda a herança de violência e podridão social que os militares queriam varrer para debaixo do tapete para enganar a população com falsos ordem e progresso. Não chegou a tocar na rádio após o lançamento do disco, mas tornou-se uma pérola escondida e uma das poucas faixas que vão bem além da temática do amor.

V

Quinto álbum da carreira, lançado em 1991, reflete o período mais barra-pesada vivido nos bastidores da banda. No final do ano anterior, a internação do vocalista e a descoberta de ser HIV positivo. O desgosto sociopolítico da Era Collor também respingava um gosto amargo no canto da boca. Por isso este não foi um álbum fácil. De compor, de gravar e depois de ser escutado. Faixas de longa duração, andamento lento, melancolia explícita. “O Teatro dos Vampiros”, “Vento no Litoral”, “Sereníssima” e “Metal Contra as Nuvens” são os destaques do repertório e estão no set list desta turnê.

Pentagrama

Este foi o símbolo escolhido para nortear a criação desse novo projeto. Frateschi explica: “os quatro elementos coordenados pelo espírito, uma linha contínua com cinco vetores, contam essa história: I AR (confissão, entrega, espelho), II ÁGUA  (amor, relacionamento, self), III TERRA  (superhits), IV  FOGO  (política, Brasil, luta, mudanças) e V ESPÍRITO  (Só o amor salva). Vivemos um momento de construção de novos caminhos, o amor como conselheiro, a integração do meio com o ambiente, o empenho em adiar o fim do mundo. Uma utópica quinta estação que trará novos e melhores dias”.

Music

Lulu Santos – ao vivo

Show realizado no dia do aniversário de 70 anos do artista mostra erros e acertos e dá início à nova turnê Barítono

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Reprodução

Lulu Santos nunca foi um cantor na acepção da palavra. Tem afinação, noção e inteligência vocais mas ele sempre foi mais notável por conta de sua impressionante capacidade de compor canções de sucesso do que por cantá-las. Tudo bem, vários artistas são assim. A gente entende, compreende e aceita. Porém, à medida que o tempo passa, determinadas questões tendem a ganhar mais importância e, no caso de Lulu, passam a atrapalhar. A estreia de seu novo showBarítono, via especial no Multishow e Globoplay, exibida no dia 4 de maio, quando ele completou 70 anos de idade, mostrou que Lulu, infelizmente, tem uma capacidade vocal bastante reduzida hoje em dia. Mesmo mudando o tom de algumas canções, mesmo usando backing vocals, a impressão que se tinha era que ele explodiria as veias do pescoço.

Tudo bem, novamente. A gente sabe, a gente entende. Como disseram nas redes sociais, “Lulu tem 70 anos, isso deve ser levado em conta”. Ora, então o que fazemos com outros artistas que, mesmo depois desta idade: seguem nos palcos com capacidade pra lá de razoável?  Nem precisa ir muito longe: o que dizer de Maria Bethânia ou do próprio Caetano Veloso, que, como Lulu, também nunca teve grande capacidade vocal? Ou Guilherme Arantes, o finado Erasmo Carlos… Enfim, o fato é que o próprio Lulu percebeu e admitiu o fato, como revelou à apresentadora Fátima Bernardes em entrevista prévia: “Algumas canções dos meus primeiros dez anos de carreira ficaram muito complicadas para cantar”.

Lulu se saiu bem em momentos como “Aviso Aos Navegantes” e “Um Pro Outro”, cujos arranjos comportaram melhor seu registro atual, gravíssimo. Aliás, as escolhas no set list comprovaram outro dado crucial sobre sua carreira: sua capacidade de escrever sucessos se esgotou no início dos anos 2000. Nos 20 anos seguintes, sua fonte parece ter secado. Tudo bem que o álbum mais recente, Pra Sempre (2019), tem sonoridade respeitável e, pelo menos, duas belas canções: “Orgulho e Preconceito” (que entrou no set list) e a faixa-título, mas nunca poderiam ser comparadas a sucessos de outros tempos. Sendo assim, a mais recente que surge no roteiro deste show é “Já É”, de 2003, que, para compensar o fato, é uma das mais inspiradas criações da carreira do homem e foi hit enorme.

De resto, as canções com Gabriel O Pensador (“Astronauta” e “Cachimbo da Paz”, cantadas pela dupla nessa noite) e “Janela Indiscreta” (num bom resgate de repertório), todas do Acústico MTV, lançado em 2000, são as mais recentes se não for levada em conta também a inédita “Presente”. O forte se concentrou nos anos dourados da década de 1980, quando Lulu, de fato, foi absoluto. Porém, mesmo com canções do calibre de “Casa”, “Condição”, “Satisfação”, “Tempos Modernos”, “Um Certo Alguém”, “A Cura” e várias outras no bolso do colete, a questão do registro vocal puxou a coisa para baixo. Pelo menos para ouvidos mais exigentes. A banda que o acompanha é competente e enxuta, com destaque para o baixista Jorge Ailton – que também ajuda nos backing vocals – e o baterista Sergio Melo, que segura a onda com firmeza e joga para o time, mas não consegue driblar a limitação vocal. Em tempo: se há algo realmente notável na banda, é o próprio Lulu, que segue como um dos grandes guitarristas da história do pop rock nacional em todos os tempos.

No Teatro Multiplan (RJ) com a plateia com vários globais – que iam de integrantes da Central Globo de Jornalismo a pessoas como o chef Felipe Bronze, o cantor Leo Jaime, o genial comentarista carnavalesco Milton Cunha e uma procissão de rostos novos que me pareceram absolutamente desconhecidos –, o clima do show era de uma grande festa da firma, com um convidado especial, que também é da firma (lembrem-se, desde 2012, Lulu Santos é jurado do The Voice – ironia define).

Lulu é artista competente e dono de uma carreira com muito mais acertos do que erros. Torço para que sua turnê Barítono o leve para palcos mais diversos e interessantes.

Set list: “Toda Forma de Amor”, “Um Certo Alguém”, “O Último Româmtico”,  “Janela Indiscreta”, “Adivinha o Quê?”, “Tudo Azul”, “Assaltaram a Gramática”, “Cachimbo da Paz”, “Astronauta”, “De Repente”, “Tempos Modernos”, “Tudo Com Você”, “Esse Brilho em Teu Olhar”, “A Cura”, “Apenas Mais Uma de Amor”, “Um Pro Outro”, “Presente”, “Orgulho e Preconceito”, “Satisfação”,  “Condição”, “Aviso Aos Navegantes”, “Já É”,  “Assim Caminha a Humanidade”, “Lua de Mel”, “Sereia”, “De Repente Califórnia” e “Como Uma Onda”. Bis: “Tudo Bem”, “Certas Coisas”, “Tão Bem”, “Lei da Selva” e “Casa”.

festival, Music

Lollapalooza Brasil 2023 – ao vivo

Billie Eilish, Modest Mouse, Jane’s Addiction, Paralamas, Aurora, Baco Exu do Blues, Tove Lo e Cigarettes After Sex: shows que marcaram o festival

Billie EIlish

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução

Entre os dias 24 e 26 de março foi realizada a décima edição brasileira do festival Lollapalooza, a última em parceria da produtora T4F com a americana LLC, detentora da marca do evento. Depois de cinco recentes cancelamentos de concertos programados para este ano, todo mundo foi surpreendido com a não vinda ao Brasil do headliner da última noite, o canadense Drake, horas antes dos portões do Autódromo de Interlagos serem abertos. A desculpa oficial do artista, esfarrapada, não colou: a de que estariam faltando pessoas de sua equipe no país. Entretanto, ele foi visto na madrugada anterior festando em Miami em conjunto com o rapper 50 Cent. E mais: estas pessoas de sua equipe já estavam em SP instalando no autódromo os telões e o material de seu espetáculo. Mas como é sempre melhor falar de coisas boas, deve também ser registrado um marco desta edição: pela primeira vez o line-up estava dividido quase igualitariamente entre artistas dos dois gêneros.

O Mondo Bacana comenta um pouco dos oito shows que deixarão esta edição do Lolla na história dos grandes festivais de música pop do Brasil.

Billie Eilish

Única headliner originalmente anunciada a se apresentar em Interlagos (além de Drake, o Blink 182 também não veio para cá), ela já era aguardada havia algum tempo por aqui. Afinal, este seria seu primeiro concerto no país, já que o anterior fora cancelado por causa da pandemia. Em cima daquele palco enorme, tendo a companhia apenas de seu inseparável irmão e produtor Phinneas e um baterista, ela – com o verde e amarelo predominando no figurino grande e largo sobre a malha preta que lhe escondia o corpo – entregou o que prometia: uma boa coleção de letras intimistas a respeito de observações, sensações e sentimentos de uma garota vivendo os anos finais de sua adolescência. Intimista também foi sua performance: sem muitos pulos, correrias ou coreografias ensaiadas, era quase apenas ela cantando ao microfone. Quer dizer, cantando às vezes. Billie só cantava o necessário e muitas vezes sua voz ecoava pelo autódromo junto com os instrumentos também pré-gravados. O que deixava o show redondo, sem espaço para improvisos ou erros. Só que teve momentos em que os manos abriam mão do playback e se arriscavam em momentos semiacústicos para mostrarem que não são uma fraude ao vivo: foram cerca de meia dúzia de canções com Phinneas dedilhando o violão ou o piano para a irmãzinha soltar o gogó de alcance não muito grande.

Modest Mouse

Quem foi a genial pessoa responsável pela grade de shows que conseguiu jogar o grupo para uma tarde de sexta-feira? Modest Mouse – um dos ícones do indie rock americano dos anos 2000 – não é para a GenZ, é para gente mais velha. Melhor: para quase todo mundo que não tem a) grana disponível de salário ou frilas para pagar o caro ingresso do festival; b) saco ou corpo para aguentar ficar um dia sequer em uma maratona de shows; c) horário disponível para ir assistir a uma banda tocar às quatro da tarde de sexta-feira. Sob um sol escaldante, o vocalista Isaac Brock estava vermelho feito um camarão, à frente de seu quinteto que foge da musicalidade óbvia e mistura lo-fi, folk e psicodelismo em doses nada comerciais. O resultado foi uma banda competentíssima tocando para quase ninguém, sendo a maior parte disso gente que desconhecia por completo o repertório loteado entre sua boa discografia. Hits como “Float On” e  “Dashboard” ficaram desperdiçados  naquela escala gigantesca ao ar livre. De qualquer maneira, quem viu in loco ou pelo streaming foi abençoado pela tardia estreia do Modest Mouse em solo brasileiro. Antes tarde do que muito mais tarde. Antes de tarde durante a semana do que nunca.

Jane’s Addiction

Perry Farrell idealizou o Lollapalooza em 1991 como um festival ambulante, que pudesse rodar algumas grandes cidades norte-americanas com uma escalação de excelentes bandas alternativas como suporte para a turnê de despedida de sua banda. Deu tão certo que o Jane’s Addiction se separou mas o Lolla continou trilhando seu caminho de sucesso durante os meados dos anos 1990. Perry, então, quase sempre vem prestigiar a edição brasileira. Agora trouxe a tiracolo a reformada banda que o revelou para o mundo da música. Integrantes originais… ou quase, já que o guitarrista Dave Navarro (que saiu do JA para tocar no Red Hot Chili Peppers) continua afastado dos palcos para tratar da saúde (covid longa como justificativa oficial, rehab longa como rumor alimentado entre os fãs do grupo). De qualquer forma, seu substituto, o também ex-guitarrista do RHCP Josh Klinghoffer, mostrou ser uma escolha acertada. Enquanto o baterista Stephen Perkins e o baixista Eric Avery (que também costuma ser músico de apoio do Garbage) se entendem perfeitamente em uma cozinha rítmica hipnótica e dançante, Josh jorrava os efeitos de pedais que fazem a sonoridade da banda flutuar entre o hard rock, o psicodelismo e o groove. Para completar, uma trinca de dançarinas comandada pela atual mulher de Farrell faziam pole dances sensuais ao fundo do palco, dando um approach cênico diferente às canções. Em Interlagos, o set list foi reduzido por conta do tempo destinado ao show, socado no meio da programação da tarde do segundo dia. De qualquer forma, ficou bem dividido entre os dois primeiros e incensados discos da banda, concebidos entre 1988 e 1990, antes das brigas internas que levaram à implosão precoce da carreira. De qualquer forma, reunidos já nas casas dos 50 e 60 anos de idade, os músicos mostraram por aqui que estão como vinho: quanto mais velhos, melhor. Maturidade e experiência – e um longo hiato interrompido por outras duas reuniões e discos criados em 2003 e 2011 – fizeram bem. Em um sábado fraco de opções, o Jane’s Addiction chegou quietinho e fez uma puta (e despretensiosa) apresentação. Ainda terminou com uma batucada em homenagem ao amigo Taylor Hawkins, que morria havia exatamente naquela data, no ano anterior… horas antes do show do Foo Fighters na Colômbia e de viajar para tocar no Lollapalooza brasileiro.

Paralamas do Sucesso

Ter 40 anos de carreira fonográfica não é para qualquer um. Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone sabem disso e utilizam um arsenal de clássicos colecionados em sua extensa discografia para disparar um show magnífico. É hit atrás de hit  quase sem intervalo para respirar. Foi assim neste Lollapalloza, na tarde de sol de um domingo para uma maioria de plateia formada por GenZ e millennials. O repertório começou com canções mais representativas da faceta ska (“Vital e Sua Moto”, “Patrulha Noturna”, “Ska”, “Loirinha Bombril”) e passeou por toda a galeria das duas primeiras décadas de carreira, misturando reggaedubafrobeat, rock, citações (Tim Maia, Titãs, Raul Seixas) e muita injeção rítmica contínua para não deixar ninguém totalmente parado – pelo menos um dos pezinhos não teve como resistir. Herbert começou enfrentando problemas técnicos, contornados sabiamente com conversas fora do microfone com um roadie enquanto não parava de cantar as letras para a plateia. Tirando este pequeno detalhe, que não chegou a comprometer a apresentação aliás, os Paralamas mostraram toda a sua realeza na música pop nacional. Não precisa de firulas, telões, coreografias, trocas de roupa, andar para lá e para cá no palco ou ao redor dele. Só precisa de música. E muito boa música. Referências para se criar música de qualidade eles sempre tiveram também. São uma banda pós-punk brasilis roots (a sonoridade two-tone em verde e amarelo, inclusive com versos politizados e críticos transformados para a nossa realidade!) e isso ainda faz toda a diferença. Mesmo diante de uma molecada que não chegou a viver os tempos dos vinis e CDs lançados com essas músicas.

Aurora

É só começar a ouvir a sua extensão vocal de soprano que não tem como não embarcar junto nesta fantasia musical que é seu show. Ela mesma parece uma pequena e adorável duende, sempre a saltitar feliz e travessa pelos vastos campos verdes. Seu look também ajuda: vestes claras e em tonalidades pasteis, pés descalços, pele alva e um cabelinho curto e de um chanel tão branco quanto sua melanina norueguesa. Muita gente que estava ali na plateia sabia de cor e salteado as letras, cantava junto e se emocionava por estar na frente de Aurora Asknes. Pudera. A artista faz da voz um belo poder instrumental, além de ser hábil nas palavras para demonstrar seus mais profundos sentimentos acerca da vida e da natureza. Mas também não precisa ser expert na obra dela para se render ao poder desta guria escandinava, solta, espontânea, natural e sem qualquer maquiagem, capaz de provocar um midsommar tão contagiante aqui no hemisfério sul e em pleno cair da tarde de um domingo quente brasileiro.

Baco Exu do Blues

Ele entrou na grade do Lolla como uma rápida solução caseira para suprir o cancelamento quase em cima da hora de Willow, filha do astro Will Smith. E ainda entregou uma das mais emocionantes performances em língua brasileira deste Lollapalooza. Generoso, o baiano de quatro discos lançados nos últimos seis anos fez questão de não brilhar sozinho. No telão, prestou reverência a personalidades negras já falecidas como Marielle Franco, Elza Soares, Muhammad Ali, 2Pac Shakur e Nelson Mandela. E no meio do repertório montado com alguns de seus grandes sucessos ainda cedeu espaço lá na frente para cada uma de suas backings (Aísha, Alma Thomas e Mirella Costa) dividirem as atenções, o microfone e o gogó poderoso. Mirella, por sua vez, protagonizou uma emocionante homenagem à também soteropolitana Gal Costa, ao mandar, a capella, um trecho de “Força Estranha”. Mancando e dando passos lentos, Baco fez o que pode, cenicamente, para superar o estiramento na panturrilha sofrido poucos dias antes. E ainda mandou a letra para espinafrar o grande ausente da noite, Drake, sendo complementado por xingamentos dirigidos pelo público ao astro chiliquento canadense. Mostrou, como Kevin Parker (Tame Impala) na noite anterior, que nem sérias limitações físicas para a locomoção não podem servir como desculpa para não cantar aos fãs.

Tove Lo e Pabllo Vittar

Tove Lo

Outra atração nórdica dominical, a sueca mostrou que um show de música pop pode muito bem ser construído em cima de… música pop. Nada pode tirar o primeiro plano. Pelo contrário. Figurinos podem ser um bom complemento (no caso, uma roupa colante em tons verdes que lhe permitiu fazer o manjado gesto de mostrar os seios à plateia). Coreografias também. Mas um palco deve ser povoado por musicistas tocando seus instrumentos, cantora realmente cantando e dispensando playbacks descarados e a ausência de um time de bailarinos indo para lá e para cá, chamando mais a atenção dos olhos do que os ouvidos. Tove Lo é muito mais discípula de Madonna do que muita gente pode pensar. Ela canta, dança, brinca com a sexualidade diante de uma multidão e mostra ser uma artista de força suficiente para ter um longo futuro pela frente. E olha que ela já tem cinco álbuns feitos de 2014 para cá.

Cigarettes After Sex

Todo ilusionista sabe muito bem que o segredo do sucesso de sua performance está na habilidade de deslocar a atenção do público para um local diferente daquele onde realmente “acontece” o truque. A derradeira das três noites do Lolla, de fato, foi equivalente a um show de ilusionismo. Todo mundo esperando o headliner Drake e depois todo mundo desapontado e xingando o arredio Drake por nem ter viajado ao Brasil. Muita gente comentando o fato de que o DJ e produtor de IDM Skrillex havia sido escalado de improviso para ocupar o horário e o palco anteriormente destinado ao fujão. Muita gente indo embora ao cair da noite, já desesperançoso de que ali em Interlagos acontecesse mais alguma coisa estupenda no autódromo. Espertos, porém, foram aqueles que não arredaram o pé e ficaram no local (ou sintonizados no streaming) até as nove da noite, de olhos bem atentos a um dos palcos secundários. Ali, já aos 45 minutos do segundo tempo do festival, os acréscimos permitiram uma magnífica performance de um singelo trio norte-americano que, por meio da internet, tornou-se objeto de culto nos últimos anos por um pessoal mais antenado. O Cigarettes After Sex veio para impactar com todo o seu minimalismo. Cênico, com seus integrantes tocando quase sempre parados no palco, dispostos geometricamente lado a lado. Sonoro, com somente um vocal (de seu líder e criador Greg Gonzalez) e a mínima movimentação possível de baixo, guitarra e bateria. Havia uma textura de teclados pré-gravados disparada como pano de fundo para a maioria das canções. Mas isso só reforçou a atmosfera etérea e hipnótica do concerto. Fotógrafos não foram permitidos no pit à frente do palco. Quem ficou em casa assistiu a uma transmissão noir, que impôs a ausência de captação de qualquer cor pelas câmeras que não fossem o preto e o branco. Com ares de cabaré decadente, algo tipicamente David Lynch, o CAS fechou as cortinas da décima edição premiando poucos felizardos com algo meio difícil de acontecer em um grande festival. Truque de mestre.