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Ney Matogrosso – Homem com H

Musical presta tributo ao cantor ao recriar desde a turbulenta relação com pai ao sucesso da carreira solo após a saída dos Secos & Molhados

Texto por Abonico Smith

Foto: Lina Sumzono/Festival de Curitiba/Divulgação

Já faz meio século que um furacão chamado Ney Souza Pereira tomou conta da música brasileira para nunca mais abandoná-la. Desde a meteórica ascensão dos Secos & Molhados até a afirmação de sua carreira solo, iniciada logo após a turbulenta saída do trio e consolidada com uma série de hits pelos anos seguintes. Hoje prestes a completar 83 anos de idade, Ney Matogrosso continua bastante na ativa, produzindo discos e shows, sendo um ícone de gerações na representativa de questões relacionadas a gênero e sexualidade. Isso sem falar no seu gogó de ouro, capaz de produzir notas agudas que arrepiam; na performance, sempre capaz de enlouquecer multidões até os dias atuais; e na calibrada capacidade de escolher repertórios provocativos e que cutucam lá no fundo o conservadorismo da sociedade brasileira.

Por isso que construir um espetáculo musical sobre o artista ainda vivíssimo e esperneando constituiu-se um grande desafio para a turma que montou e colocou nos palcos Ney Matogrosso – Homem com H. A encenação – apresentada no Festival de Curitiba nas duas primeiras noites de abril – mostrou como é possível ser bem sucedida mesmo com as dificuldades mais do que naturais. Ancorada na personificação plena de Renan Mattos como o protagonista (mesmo com a dificuldade de chegar perto do falsete inigualável), o texto cobre desde a turbulenta relação familiar nos tempos de adolescência em Brasília até o sucesso profissional como cantor solo no Rio de Janeiro, depois da meteórica e badalada passagem pelos Secos & Molhados, trio vocal paulista que subverteu a música popular brasileira e desafiou a censura e os militares dos anos de chumbo no regime ditatorial que tomou conta do Brasil após o golpe de 1964.

O esquema do roteiro é simples. Uma sucessão de pequenos esquetes que cobrem paulatinamente o desenvolvimento do artista Ney. Sempre com muito humor, o que favorece ainda mais a aproximação com o público. O primeiro ato começa nas discussões às turras com o intransigente pai militar e se estende às descobertas da juventude em Brasília: drogas, sexualidade, carreira artística. Ao sair da capital federal como ambiente, Ney se joga na vida cultural Rio de Janeiro até ir a São Paulo e se tornar o vocalista do Secos & Molhados, trio que estava nascendo e já vinha sendo bastante cultuado no underground. O recorte histórico da parte inicial se encerra com a realização do fenômeno de vendas e popularidade, por isso mesmo, uma implosão interna motivada por um “golpe financeiro” aplicado nos incautos Ney e Gerson Conrad pelo membro mais atuante nas composições musicais: o português João Ricardo.

A costura musical, até mesmo por questões lógicas, não segue a mesma ordem cronológica da vida antes da entrada em cena do trio – até porque o artista ainda dava seus primeiros passos rumo à fama. Entretanto, farta-se de uma discografia solo, rica em composições com temáticas que ilustram com perfeição cada período retratado. A mobilidade do cenário, formado por diversos palanques cúbicos (de alturas diferentes) e uma dupla de rampas, colabora para a fluidez do roteiro. A cantora e compositora Luli (autora do hit “O Vira”) e o amigo Vicente Pereira (que nos anos 1980 se destacaria como um dos nomes-chave do teatro besteirol nos palcos cariocas) são as personalidades que aparecem com relativo destaque, inclusive sendo “resgatados” no segundo ato.

Passado o breve intervalo, entretanto, a correria toma conta da narrativa, em virtude do tanto de acontecimentos na careira solo de Ney na segunda metade dos anos 1970 e a primeira da década seguinte. Personagens entra e saem de cena, sem muito aprofundamento. Rita Lee é badalada, mas o nome de Roberto de Carvalho, guitarrista da banda solo do cantor montada logo após o Secos & Molhados, sequer é mencionado (Matogrosso foi o “cupido” do casal!). Rosinha de Valença, quem foi ela, afinal? A celebrada musicista desaparece em questão de segundos logo depois de estar no palco. O pianista Arthur Moreira Lima, lá no final, também resvala na tangente das citações, mesmo sendo a peça-motriz da mais significativa mudança artística de Ney durante os 1980s. Mazzola, o produtor artístico de muitos de seus discos, vai e vem, vai e vem, mas também sequer o seu porquê de estar ali é aprofundado. A seleção musical já passa a incluir canções alheias, não gravadas por Ney, mas com toda a relação com a ocasião enfocado. Por falar nisso, a fase do sucesso nacional estrondoso do RPM (primeiro show brasileiro a usar raio laser, com Matogrosso assinando a direção de iluminação) é solenemente ignorada, o que é uma pena.

Cazuza, este sim, recebe mais holofotes. Claro, foi um dos namorados que mais marcou a vida de Ney – e também sua obra. Com caracterização tão duvidosa quanto sua interpretação (que dividiu opiniões entre os jornalistas que cobriam o festival), o vocalista aparece em momentos de grande intimidade com o protagonista e ainda à frente do Barão Vermelho. Outro nome de destaque entre as relações pessoais do cantor também aparece com força: o médico Marco de Maria, o único com quem Matogrosso aceitou dividir o cotidiano em uma mesma casa. Tanto Marco quanto Caju faleceram em decorrência de complicações do vírus HIV. Por isso, a chegada de ambos em cena acaba por deixar um clima bem mais pesado e dramático no musical, que abandona quase que de vez o humor escrachado de antes. A enorme sombra da aids sobre toda a juventude daquela geração foi uma cruz muito pesada de se carregar para quem viveu aquela época (e sobreviveu!). Portanto, não havia mesmo como escapar dela no ato derradeiro mesmo mudando radicalmente a atmosfera de festa.

Foi justamente esta transformação comportamental de uma geração, porém, que sela o fim do musical de uma forma maravilhosa, apesar dos pequenos escorregões no decorrer da encenação de quase quatro dezenas de canções e quase três horas de duração. Os vários Neys que o Ney apresentou entre os anos 1970 e 1980 estão lá, até tudo terminar nele próprio, despido da persona sexualmente fantástica que todo mundo conheceu de início e passou a amar e idolatrar. O Ney Matogrosso incorpora o Ney Souza Pereira também no figurino e na performance de palco, fechando um ciclo de sucesso (e também de insistência, perseverança e também orgulho) para aquele jovem que se lançou no mundo querendo ser ator (e não cantor), sobreviver de sua arte e viver um dia a dia de liberdade plena, sem quaisquer amarras (as sentimentais também!), curtindo e sorvendo cada minuto da vida ao máximo. Homem Com H é um grande tributo a este múltiplo artista de meio século de magnificência e brilho intenso. Tanto que no próximo semestre partirá para uma turnê nacional por grandes arenas e estádios de futebol.

Set List: Primeiro ato – “Sangue Latino”, “Por Debaixo dos Panos”, “Tic Tac do Meu Coração”, “Assim Assado”, “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, “Vira-Lata de Raça”, “Bandido Corazón”, “Divino, Maravilhoso”, “Trepa no Coqueiro”, “Maria/The More I See You”, “Trepa no Coqueiro”,”Nem Vem que Não Tem”, “Balada do Louco”, “O Vira”, “Rosa de Hiroshima”, “Mulher Barriguda”, “Amor”, “Sangue Latino” e “Sei dos Caminhos”. Segundo ato – “América do Sul”, “Com a Boca no Mundo”, “Dancin’ Days”, “Tigresa”, “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”, “Coubanakan”, “Mulheres de Atenas”, “Bandoleiro”, “Ano Meio Desligado”, “Maior Abandonado”, “A Maçã”, “Homem com H”, “Pro Dia Nascer Feliz”, “Poema”, “Blues da Piedade”, “O Tempo Não Pára”, “Mal Necessário”, “O Mundo é um Moinho”, “O Sol Nascerá” e “Homem com H”.

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Dias Perfeitos

Wim Wenders louva Yasujiro Ozu com um longa rodado em Tóquio, no idioma japonês e mostrando os encantos da rotina

Texto por Abonico Smith

Foto: O2/Mubi/Divulgação

Komorebi é um termo da língua japonesa que significa a cintilância entre luz e sombra provocada quando as folhas das árvores balançam com o vento. Esta é uma experiência única, que ocorre somente uma vez, naquele determinado momento. Podem as mesmas folhas se mexerem de novo, mas o resultado será sempre diferente.

Esta fascinante expressão idiomática ganha explicação em uma breve cena que toma a tela depois de todos os créditos de Dias Perfeitos (Perfect Days, Kapão/Alemanha, 2023 – O2/Mubi), filme que recolocou o nome do diretor e roteirista Wim Wenders em evidência no panorama internacional depois de quase duas décadas apresentando uma série de produções ficcionais bem marromeno perante a sua cinematografia clássica (Submersão, Tudo Vai Ficar Bem, Os Belos Dias de Aranjuez, Palermo Shooting), documentários (Pina, Sebastião Salgado, papa Francisco) e mais alguns curtas e vídeos musicais. Tanto que o alemão arrebatou indicações para importantes premiações como o Oscar, o Cesar e a Palma de Ouro. E Wenders possui um fascínio tão grande pela imagem que “homenageou” a palavra com um filme delicado e singelo, que retoma a qualidade de seu cinema de alto impacto visual.

Rodado em Tóquio em apenas 17 dias e com uma câmera na mão, Wenders, com a ajuda do roteirista nipônico Takuma Takasaki, juntou quatro pequenos contos sobre o cotidiano de um simpático sexagenário cuja função é limpar os banheiros públicos da cidade e desfruta sua vida de modo bem modesto, completamente desprovido de qualquer ambição. Dia após dia. Simples assim.

Como já cantava Chico Buarque naquela canção sobre o cotidiano, aqui todo dia o senhor Hirayama acorda e faz tudo sempre igual. Ou pelo menos tenta. O que aparece de novidade com certeza não vem de suas atitudes ou buscas, mas sim da interferência alheia por onde ele passa. Não há exatamente aquela tradicional sucessão de começo, meio e fim na narrativa de Dias Perfeitos. Como no komorebi, as folhas estão sempre balançando com o vento, mas o resultado da cintilância nunca sai igual para Hirayama. Uma hora é a aventura amorosa do jovem colega de profissão. Na outra, a chegada de surpresa de uma parente adolescente. Em outro, um breve retorno à infância com a diversão proporcionada por um jogo de sombras na calçada somado a interpretações gestuais, sonoras e corporais.

No meio disso tudo Wenders vai espalhando, por meio de discretos códigos suas paixões. Uma delas é o rock’n’roll e isto está representado pelo uso de velhas e defasadas fitas cassetes originais (aquelas oferecidas em um formato da indústria fonográfica e que quem é bem mais velho já podia comprar pronto diretamente nas lojas de discos). Lou Reed, Patti Smith, Janis Joplin… Vem junto com as cenas ainda uma deliciosa trilha sonora com cânones do gênero. Tem “The House Of Rising Sun” (em duas versões, uma dos Animals e outra em japonês), “(Sittin’ On) The Dock Of Bay” (Otis Redding), “Redondo Beach”(Patti Smith), “(Walkin’ Through The) Sleepy City” (Rolling Stones), “Sunny Afternoon” (Kinks),  e “Feeling Good” (Nina Simone), além de dose dupla de Lou Reed (a faixa que “empresta” o nome para o filme, que também fala da simplicidade do amor cotidiano, e uma dos tempos de Velvet Underground, ”Pale Blue Eyes”).

Outra das paixões são os livros e Wenders faz cita brevemente William Faulkner (“The Wild Palms”), Aya Koda (“Trees”), Patricia Highsmith (“Eleven”). Outra, claro, é a expressão pessoal do olhar por meio da fotografia. Retomando aquilo que já aparecera em alguns de seus inspirados clássicos longas, Wenders agora faz de Hirayama seu alter ego. O protagonista possui em casa caixas e mais caixas de cliques de folhas e árvores produzidos diariamente em rápidas idas a parques e praças públicas de Tóquio. No registro de das cenas, inclusive utilizado na montagem, um sem-teto chega de surpresa e dá aquele abraço em um tronco.

Por fim é impossível não dizer que rodar um filme em Tóquio, com referências e personagens japoneses, é a principal oportunidade para o cineasta germânico tecer mais reverências ao seu ídolo Yasujiro Ozu, quem já dissecara no documentário Tokyo-Ga (1985). Estando na mesma cidade e falando o mesmo idioma do diretor (que exatas seis décadas antes de Wenders fizera em Tóquio seu derradeiro filme) funciona como um encerramento de ciclo para o autor de Dias Perfeitos, que já beira os 80 anos de idade.

Não é coincidência que o protagonista tenha sido batizado com o mesmo sobrenome da família de An Autumn Afternoon (1962). Não é coincidência que o título original da obra de Ozu faça referência à mesma estação do ano em que o komorebi é algo bastante comum. Não é coincidência que boa parte do diálogo final entre Hirayama e um desconhecido descreva o fato que, em dezembro de 1963, encurtara a vida de Ozu quase treze meses depois do lançamento de A Rotina Tem Seu Encanto (nome dado ao filme em português). Também não é nada coincidência que Dias Perfeitos, já disponível em streaming no Brasil, seja uma louvação a todos os encantos de uma rotina diária.

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Pedágio

Segundo longa da diretora e roteirista Carolina Markowicz junta a influência do Cinema Novo a outra atuação magistral de Maeve Jinkings

Texto por Abonico Smith

Foto: Paris Filmes/Divulgação

A palavra pedágio vem do latim medieval “pedaticum”, que significa “o direito de pisar em um determinado lugar”. Para exercer esse direito, desde lá atrás precisava ser paga uma quantia e valia para pessoas, animais e mercadorias. Hoje se utiliza mais em relação ao transporte terrestre, sendo a taxa cobrada pelo poder público ou uma empresa concessionária outorgada, para que os investimentos feitos na construção ou na conservação da via possam ser ressarcidos.

Suellen (Maeve Jinkins) acorda todo dia muito cedo e sai de casa antes mesmo do dia clarear. Ela trabalha em uma cabine de pedágio em uma rodovia que passa por Cubatão, cidade da região metropolitana da baixada santista. Todo santo dia sua função é cobrar cada carro que para ali pela cancela, quase sempre trocando dinheiro grosso e muitas vezes ouvindo cantadas sem graça de homens ao volante. Recebe uma mixaria de salário, mora mal e divide a casa com seu filho de quase 18 anos de idade. Quem também passa muito tempo por lá, só para comer e dormir, é o namorado Arauto (Thomas Aquino). O marasmo de sua vida combinado com um bofe aproveitador a tiracolo não a incomodam. Suellen não aceita mesmo é a sexualidade do adolescente, exposta pelo próprio através de vídeos de dublagem gravados toscamente no próprio quarto postados na internet. Enquanto vai levando a vida tolerando Tiquinho (Kauan Alvarenga), Suellen cai no papo de sua amiga de trabalho, a evangélica neopentecostal Telma (Aline Marta Maia), para pagar um curso de cura gay que será ministrado em seu templo por um “pastor que vem da Europa”. Só que o valor é alto e não cabe dentro do orçamento mensal. A não ser que, como é bem comum no Brasil, haja um jeitinho…

É exatamente neste ponto que Pedágio (Brasil, 2023 – Paris Filmes), o segundo longa assinado pela cineasta paulista Carolina Markowicz revela a sua temática principal. Ao contrário do que vem sendo falado por aí e divulgado até na sinopse oficial do filme, esta não é uma obra que finca seus pés na questão de como é ser LGBTQIA+ no Brasil e sentir na pele as dores que vêm do preconceito e discriminação sofridos no dia a dia. Sim, o assunto é importante e norteia a trama paralela do filho da protagonista, inclusive na convivência entre os dois. Só que esta é, acima de tudo, uma obra sobre escolhas. De objetivos de vida, de crenças e de percurso para o futuro. Tiquinho já fez a sua escolha. É firme e determinado dela, sabe bem o que quer e, do alto de sua quase maioridade penal, luta incansavelmente por ela – o que faz de Kauan, outrora incensado nos trabalhos anteriores em curtas, uma grande promessa da dramaturgia nacional. Arauto também tem a dele: ser um bon vivant no meio da malandragem, sem precisar se esforçar em trabalhos convencionais, perder um churrasco com amigos no meio da semana de tarde ou mesmo enrolar a companheira para conseguir benefícios na casa de Suellen. Telma também possui: dubla ser uma pacata e boa esposa de anos e anos para o marido e segue indo aos cultos.

Talentosa diretora e roteirista que é, Carolina coloca em cima da protagonista o foco principal desta questão das opções realizadas em atitudes que podem vir a mudar um futuro próximo. Nem é muito o fato de Suellen se jogar de cabeça nas novas decisões, mas o fato delas serem motivadas por outras pessoas. As escolhas não advêm de sua personalidade. Ela é sumariamente convencida pelo namorado ou por sua amiga para fazer coisas que, segundo eles, irão satisfazer as suas vontades/necessidades e melhorar logo a vida, sem pensar muito nas consequências que podem ser provocadas. Nessas horas, seu filho, que é quem mais lhe dá suporte dias após dia, é o que menos importa e este é o pedágio que lhe cabe pagar. Tudo isso, claro, embalado por mais uma magistral atuação de Maeve, que vem traçando tanto no cinema quanto no streaming uma carreira de intérprete que já a credencia para entrar no rol das maiores atrizes brasileiras deste século 21.

Rodado em dois meses na cidade de Cubatão – famosa por suas fábricas que despejam sem parar uma poluição que acaba contrastando com a beleza da natureza local – este novo filme de Markowicz reforça a sua tendência pela crueza das imagens. Locações reais, looks cotidianos, histórias com muita verossimilhança em diálogos, ações e construções de personagens.  Tem os dois pés ali no terreno do neorrealismo italiano como grande influência na sétima arte desde os tempos do Cinema Novo. Toca, comove, emociona, justamente por saber transformar em um breve momento de entretenimento questões socioculturais, principalmente relacionadas à classe trabalhadora, com altas doses de humanidade. Quase impossível não sair do cinema sem pensar em muito daquilo que a cineasta conta na história.

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Pato Fu – ao vivo

Celebração de 30 anos de carreira mostra a arte do grupo de se multiplicar em diversas e absurdas identidades de si mesmo

Texto e fotos por Abonico Smith

Existe um desenho de Hanna-Barbera, lançado em 1966, chamado Impossíveis. Nele, três músicos de uma banda de rock que faz muito sucesso, de vez em quando, transformam-se em super-heróis para salvar as pessoas de terríveis ameaças vilanescas. Todos possuem um alter ego: Homem-Mola, Homem-Fluido e Multi-Homem. Este último tem como superpoder a capacidade de se multiplicar em várias cópias de si mesmo para confundir o inimigo, que pode até destruir uma ou outra criatura nunca consegue pegar a original. Dos três também é ele quem mais se assemelhava a um instrumentista de banda dos anos 1960, por ser o mais desligado e desgrenhadamente cabeludo dos três.

No mundo do rock mas fora do universo cartunesco, há dois bons exemplos de quem também toca instrumentos e prima pelo poder da multiplicação. Um deles é limitado, reduzido a um único videoclipe. Em “The Hardest Button To Button”, o White Stripes se reproduz em vários a cada tempo da batida da música, utilizando ainda a tridimensionalidade de um cenário externo para realçar o psicodelismo do audiovisual. Já o outro nome não faz isso apenas para osnossos olhos, mas sim na questão da estética sonora. E com duração de diversos videoclipes, mais do que uma dezena de álbuns e três décadas ininterruptas de carreira.

Este nome é o Pato Fu, umas das bandas que cravou a cidade de Belo Horizonte no mapa do mainstream do rock nacional durante os anos 1990. E desde então foi construindo uma trajetória sólida, sempre seguindo uma máxima interna: sempre procurar por novos caminhos no disco subsequente. Assim não só se evitou o comodismo, a rotina e a repetição que têm grande risco de surgir durante a estadia na zona de conforto. Assumir riscos, procurar outras sonoridades e se transformar em um Pato Fu diferente a cada trabalho foi justamente o que garantiu a sobrevivência do incialmente trio, por um bom tempo quarteto e hoje quinteto. Longe de significar uma esquizofrenia relacionada a distintas identidades que não dialogam entre si, este constante desafio transformou o grupo em uma bela instituição de repertório, capaz de criar ao longo dos anos diferentes opções de espetáculos (trilhas sonoras, a banda que flutua entre o pop e o alternativo, o Música de Brinquedo) e garantir um séquito fiel de fãs capaz não só de comprar a proposta da variedade como também embarcar junto com os integrantes em viagens no melhor estilo quanto mais absurdo melhor.

Na noite de 30 de setembro, foi a vez do Teatro Guaíra, em Curitiba, receber o espetáculo que celebra as três décadas de Fernanda Takai (voz, guitarra e violão), John Ulhoa (guitarras e vocais), Ricardo Koctus (baixo e voz) e Xande Tamietti (bateria) e Richard Neves (teclados). A turnê passeia pelo Brasil como um dos atrativos elaborados para este momento especial. Dois discos (um álbum de inéditas e um EP ao vivo no estúdio) já estão devidamente disponibilizados em streaming e ainda vêm mais novidades por aí. Enquanto isso o grupo gira por aí pinçando um pouco de cada disco (uns com mais faixas incluídas no set list, outros com menos) e levando a novos e velhos fãs um pouco do que de melhor fez de 1992 para cá. A sonoridade é a de banda. Muitas canções, portanto, aparecem ligeiramente modificadas, já que os álbuns iniciais ainda tinham uma boa carga de programações e batidas eletrônicas, fornecidas outrora pelos 128 japoneses que acionados por meio das traquitanas comandadas por John.

Durante o passeio de uma hora e meia e 25 canções, ficou mais do que claro que do Pato Fu você pode esperar tudo. Mas tudo mesmo. Parte de um set que abandona alguns hits radiofônicos/emetevísticos em prol de b-sidescultuados. Aparacem também alguns covers (Mutantes, Graforreia Xilarmônica, Legião Urbana) que, com maestria e personalidade, ganham um novo revestimento que se metamorfoseia em identidade de Fu e se encaixa no multiverso sonoro do grupo. Dá para esperar também que os mineiros sejam capaz de tirar da manga uma carta (ou melhor, uma música) pela qual ninguém, absolutamente ninguém da plateia espera que seja tocada.

set list começou com ótimos exemplares daquele Pato Fu lá do início, antes mesmo do primeiro contrato para lançar um disco. “Spoc” estava presente na primeira demo tape do então trio e já escancarava as esquisitices de Fernanda, John e Ricardo: pérola pop em compasso ternário, citando os protagonistas de um dos seriados mais cultde todos os tempos (Star Trek, mais precisamente um episódio em que a ética no trabalho era abordada) e tendo uma só uma estrofe, longa e cantada em francês e português, mais refrão minimalista em que cabe até o cacarejo de galináceos. Desde o início, com arroubos ousadia e perfeição, provava-se que tudo, de fato, cabia no Pato Fu.

Na sequência veio “O Processo de Criação Vai de 10 a 100 Mil”, o primeiro videoclipe, faixa gravada no primeiro álbum. Groove irresistivelmente dançante, refrão pegajoso (que falava em ficar pulando alguns anos antes de Sandy & Junior!) e o início do diálogo entre som e imagem, algo no qual viria a ser uma especialidade da banda ao longo de sua trajetória. Enquanto os instrumentistas tocavam em cima de uma base eletrônica no palco, o telão começava a desfilar, simultaneamente, os clássicos clipes produzidos pelos Fus, lembrando o tempo em que o mercado fonográfico nacional ainda procurava aliar qualidade criativa à estética rock’n’roll no audiovisual televisivo.

“Sobre o Tempo”, a primeira faixa emplacada em playlists radiofônicas, completou a trilogia “raiz” que abriu a noite servindo como um espécie de passagem filosófica para o que viria depois: a alternância entre os lados A e B do Pato Fu, o diálogo entre boas faixas “escondidas” no meio dos discos lançados e ouvidos de cabo a rabo pelo fãs e um punhado de sucessos de um grupo mineiro que soube conviver pacificamente entre o underground e o mainstreamdo rock nacional. Nestas três décadas, como uma espécie de profecia de parte do que estava ali na letra daquele primeiro grande hit, o tempo mostrou que correu macio, zunindo como um novo sedã, bem amigo e ainda longe de um final para derrubar a banda.

Na segunda categoria, foram desfiladas canções como “Antes Que Seja Tarde” (início de parcerias bem sucedidas do grupo com o estilista Ronaldo Fraga e o diretor Hugo Prata, com videoclipe fofo misturando ares góticos com a comédia dell’arte), “Depois” (letra fofinha de interpretação aberta – que inclui a possibilidade de abertura de relacionamento ou a chegada de um filho para o casal – casada com um divertido vídeo de terror trash, com direito a neve fake e urso bípede sanguinário), “Ando Meio Desligado” (gravada para a abertura de uma novela das sete da Globo), “Eu” (clássico subterrâneo do rock gaúcho popularizado pelos mineiros por meio de um divertido clipe premiado no VMB), “Canção Pra Você Viver Mais” (presente composto por John como uma espécie de homenagem ao pai de Fernanda), “Anormal” (versos pop de puro romantismo cujas imagens foram pioneiras no uso do equipamento de motion caption aqui no Brasil), “Perdendo Dentes” (reflexões filosóficas em formato de música pop suave), “Made In Japan” (irresistível blend de Muppets Show, versos escritos em japonês, seriados nipônicos com robôs, letra absurdamente sci-fi e vídeo 100% digital) e “Eu Sei” (homenagem groovy aos ídolos da Legião Urbana, que acabaram virando fãs dos Fus).

Com o resto do repertório nem deu para sentir falta de pérolas que ficaram de fora da noite, como “Por Que Te Vas”, “A Necrofilia da Arte”, “Sítio do Picapau Amarelo”, “Qualquer Bobagem”, “Pinga”, “Mamãe Ama é o Meu Revólver” ou “Uh Uh Uh, La La La, Ié Ié”. Clássicos gravados (sejam autorais ou as releituras bem particulares) são o que não faltam para os Fus, afinal. “Água”, “Simplicidade” e “Licitação”, por exemplo. Todos com letras primorosas. A primeira é um belo exemplar de uma época em que novas bandas brasileiras buscavam renovar o rock cantado em português misturando sotaques, ritmos e tonalidades regionais desse extenso país (“Nóis mora aqui no poeirão/ E existe todo dia uma hora da noite/ Em que um trem no meu peito me diz/ A água um dia vai cair/ Lá do céu azulzim/ E com certeza vai estar/ Molhadinha/ E aqui vai virar um lamão/ E nessa hora eu não quero nem saber”). Para completar, o som rolava enquanto o telão mostra as imagens da banda virando desenho animado em 2D, caindo pelos precipícios e correndo por estradas dos cânions feito um papaléguas. A segunda, um pouco mais recente, vai além no olhar para dentro do país: é uma canção sertaneja de raiz que, ao vivo, despida dos vocais mecanicamente robotizados da gravação do disco, ganhou ainda mais charme e beleza (“Vai diminuindo a cidade/ Vai aumentando a simpatia/ Quanto menor a casinha/ Mais sincero o bom dia/ Mais mole a cama em que durmo/ Mais duro o chão que eu piso/ Tem água limpa na pia/ Tem dente a mais no sorriso/ Busquei felicidade/ Encontrei foi Maria/ Ela, pinga e farinha/ E eu sentindo alegria/ Café tá quente no fogo/ Barriga não tá vazia/ Quanto mais simplicidade/ Melhor o nascer do dia”). Já a terceira escancarava lá atrás a veia crítica e politizada de uma banda que, mais recentemente, nunca teve medo de se posicionar publicamente de demonstrar sua insatisfação com o desgoverno que tomou conta do Brasil (“Vamos errar português/ Vamos eleger um bundão/ Vamos votar em quem roubou mas fez/ Pena de morte para os linchadores, ou não?/ Já que a polícia não faz nada/ O menininho da calçada/ De dia dou moedinha/ De noite eu dou porrada”).

Ainda tinha mais delícias reservadas para o set list. “Vida Imbecil”, também de letra sertaneja, já pregava quase a mesma simplicidade dez anos antes de “Simplicidade”, desta vez com um quê de electronica. “Menti Pra Você Mas Foi Sem Querer”, funk a la Jovem Guarda, foi a cota do set list para as músicas feitas por Rubs Troll (ex-colega de John no Sexo Explícito, banda do guitarrista antes do Pato Fu). “Gol de Quem?” (punk rock tradicional de versos nonsense) e “Cego Para as Cores” (agora sobre uma coisa bem séria: como sair do “buraco mental”). Como se vê, várias cópias distintas de uma mesma essência.

Como ali no palco do Guaíra estavam pessoas que gostam de celebrar o passado sem deixar de continuar olhando para o futuro, era claro que o grupo não deixaria de tocar obras de sua safra mais nova – as quatro primeiras faixas incluídas no novíssimo álbum 30. Três delas (“Fique Onde eu Possa Te Ver”, “No Silêncio”, “Diga Sim”)  representam uma faceta mais calma, macia do Pato Fu. Foram feitas durante a pandemia, servem como um respiro para tempos pesados aos quais fomos submetidos recentemente. Tratam sobre isolamento, saudade, tentativa de escape da depressão. Coisa séria e bem sentimental. A outra, no entanto, é uma pedrada. Representa o lado temático mais pesado do novo disco: o politizado. “Silenciador” é curta e rápida como um tiro certeiro. Aborda a questão das novas religiões pentecostais, que se incluem no espectro do cristianismo, mas pregam a intolerância, o preconceito e a violência contra o próximo que não se encaixa dentro de certas normas falsamente validadas por Deus – que, no caso da letra de “Silenciador”, fala pelo cano do revólver. Sombria, assustadoramente arrepiante, caiu como uma luva escalada para a volta da banda para o bis. Começa sem qualquer aviso, termina como uma bala.

Por fim não tem como não deixar de falar sobre duas faixas que nunca deixam de estar presentes em qualquer showdos mineiros. Ambas bastante queridas e cultuadas pelos fãs e que só poderiam ter sido criadas e lançadas por eles – não cabe a qualquer outro artista tentar regravá-las, seja respeitando os arranjos originais ou subvertendo-os. Não dá. “Capetão 66.6 FM” e “Rotomusic de Liquidificapum” são 100% Pato Fu e tão apenas Pato Fu. Ponto final.

“Capetão” é a mais sincera homenagem dos Fus à Cogumelo, selo belo-horizontino especializado em bandas de metal e que lançou discos e nomes cultuados como Sarcófago, Overdose e Sepultura e, assim, colocou a cidade no mapa-múndi dos sons pesados. A música imita uma pessoa que vira o dial à procura de música boa e acaba parando em uma emissora tomada pelo capeta, o bichinho de estimação alimentado pela pessoa que protagoniza os versos. Ao vivo, faz a plateia liberar seus demônios e gritar guturalmente junto com Fernanda, que faz o contraponto entre a fofurice e a possessão. Curiosidade: ela e Ricardo cantam as partes que no disco ganharam as vozes de John e André Abujamra – coautor dessa loucura toda que, não por acaso, encerra a parte do set list antes do bis, chegando coladinha a “Made In Japan”.

A Cogumelo, aliás, bancou o primeiro álbum do Pato Fu, que ganhou o nome da faixa que encerra em definitivo as performances desta turnê. “Rotomusic de Liquidifcapum” virou tão significativa e tão sinônimo de que tudo pode (e se encaixa perfeitamente) dentro da proposta sonora da banda que acabou por batizar o selo próprio criados por eles no meio do percurso, o Rotomusic. Colagem de ritmos que muda algumas vezes do hard rock cantofalado a laAerosmith à polca e vice-versa, acelera e desacelera o andamento e depois acaba por derivar para canção natalina, citação do Kiss, tema dos Flintstones e… musiquinha infantil falando em morte, assassinato e psicose.

Depois disso tudo não tem como continuar mais nada. É e sempre representará os Fus chegando a seu ápice de criatividade, maluquice e identidade múltipla. Daí só fazendo como o Multi-Homem dos Impossíveis depois de se multiplicar, lutar e vencer o vilão. Ele tira o uniforme rubro-negro de super-herói impossível e volta à sua identidade de gente normal, o ruivo Multy do dia a dia. Tal qual Fernanda, John, Ricardo, Xande e Richard o fazem quando se dirigem ao camarim para não mais retornar ao palco.

Set list: “Spoc”, “O Processo de Criação Vai de 10 a 100 Mil”, “Sobre o Tempo”, “Água”, “Antes Que Seja Tarde”, “Licitação”, “Depois”, “Menti Pra Você Mas Foi Sem Querer”, “Ando Meio Desligado”, “Diga Sim”, “Vida Imbecil”, “Eu”, “Fique Onde Eu Possa Te Ver”, “Gol de Quem?”, “Canção Pra Você Viver Mais”, “No Silêncio”, “Simplicidade”, “Cego Para as Cores”, “Anormal”, “Perdendo Dentes”, “Made In Japan” e “Capetão 66.6 FM”. Bis: “Silenciador”, “Eu Sei” e “Rotomusic de Liquidificapum”.