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Pato Fu

Grupo comemora 30 anos com álbum de músicas inéditas, EP ao vivo, turnê nacional e ainda levando o projeto Música de Brinquedo à TV

Texto e entrevista por Abonico Smith

Foto: Divulgação

Sobreviver fazendo rock neste país é uma tarefa difícil para artistas profissionais da música. O gênero, após um período de glórias entre os anos 1980 e 1990, parece ter caído em desgraça mercadológica após a internet 2.0 ter mudado todo o consumo de comunicação e arte depois da virada do século. A briga por um lugar ao sol no gosto da população brasileira contra outras vertentes-medalhões vem sendo bastante desigual há um bom tempo e são bem poucos os nomes que, hoje, conseguem se manter apenas viajando pelo território nacional e lançando uma ou outra coisa nova. Pertence ao passado aquela engrenagem que envolvia gravadoras, meios de comunicação (emissoras e programas de rádio e TV voltados a este nicho, sobretudo) e uma molecada disposta a envolver seus recursos (indo desde o material ao abstrato, como o tempo). Há quem possa argumentar que novas plataformas digitais possibilitam novas coisas, como contato direto com fãs e a mola-mestra do DIY por mais tosco que seja, mas também o panorama é desolador: multiplicou a demanda e aumentou a concorrência pelos ouvidos e gostos de cada pessoa. Sem falar que, por aqui, o rock envelheceu e caducou, transformou-se em coisa voltada a gente mais velha e conservadora, de origem branca e com mais dindim no bolso. Basta dar uma olhada geral na plateia que circula entre grandes festivais e shows de arenas e estádios de futebol.

Sobreviver tanto tempo em uma mesma banda também é tarefa difícil. Esta sempre foi, na verdade. Quando se convive com frequência com mais de duas cabeças pensantes, fica complicado conciliar vontades, desejos, maneiras de se pensar, fazer e agir. É raro passar anos e anos segurando uma mesma formação, sobretudo quando são envolvidas mentes criativas e egoicas. Dá para contar nos dedos os grupos, tanto no Brasil quanto no exterior, que permanecem por mais de uma década com a mesma formação, seja a original ou aquela considerada clássica por crítica e público. Discordâncias frequentes quase sempre dão origem a rupturas inevitáveis mais cedo ou mas tarde.

Formado em Belo Horizonte em 1992 por Fernanda Takai (voz, guitarra e violão), John Ulhôa (guitarra, violão, voz e programações) e Ricardo Koctus (baixo e voz), o Pato Fu permanece vivo, atuante e esperneando. Mesmo que seus integrantes principais se dividam em outras atividades paralelas (Fernanda tem uma bem sucedida carreira solo, John é produtor e Ricardo possui uma pizzaria), o trio nunca parou de se apresentar ao vivo e disponibilizar novidades em áudio e vídeo para novos e velhos fãs. Nesta temporada de 2023, inclusive, vem proporcionando lançamentos que celebram o extenso currículo. Tudo pelo próprio selo da banda, o Rotomusic.

O primeiro deles foi surgindo aos poucos na internet desde o ano. O álbum 30 é o primeiro disco autoral de inéditas em nove anos. Nove também é o número de faixas. A curiosidade é que elas foram pipocando aos poucos nas plataformas, em três lotes de três músicas cada. Foi como se a banda fizesse três singles e agora os compilasse em um único disco, em uma metodologia semelhante a feita por artistas e selos lá no ínicio do rock’n’roll, nos anos 1950, quando os compactos eram a melhor forma de lançar novidades e testar a popularidade de uma canção. Além de uma caprichada versão em português para o clássico da musica popular italiana “Io Che Amo Solo Te”, os fus ainda oferecem um punhado de faixas com temáticas comuns a todos no Brasil nos últimos, como os reflexos da pandemia e o isolamento social, mais a política de horrores praticada pelo (des)governo que infestou os prédios públicos de Brasília entre 2019 e 2022. 

Além de Fernanda, John e Ricardo, o grupo tem novamente Xande Tamietti segurando as baquetas. Ele era integrante oficial quando os mineiros lançaram seus discos mais conhecidos, deu uma pequena saidinha e acaba de voltar. O tecladista Richard Neves, que já tocou com muita gente do primeiro escalão da nossa música (de Milton Nascimento a Ney Matogrosso), completa a atual formação de quinteto que agora roda o país com a turnê 30 Anos, que possui um repertório especial, misturando hits com vários lados B bastante queridos pelos fãs mais hardcore da banda – isto é faixas que não ganharam videoclipe na MTV Brasil nem tocaram nas rádios mas que são cantadas de cabo a rabo por muita gente. A escala deste final de semana ocorre em Curitiba – o quinteto se apresenta no tradicional Teatro Guaíra (para onde já levara quatro anos atrás o projeto Música de Brinquedo) hoje, dia 30 de setembro (mais informações sobre ingressos e horário você tem clicando aqui). O sábado seguinte, 7 de outubro, marcará o retorno à terra natal Belo Horizonte, com um show no Palácio das Artes (mais sobre este evento, aqui).

Seis músicas que estão no repertório desta turnê foram gravadas ao vivo e compõem o segundo disco deste ano, o EP gravado em parceria com o estúdio belorizontino Sonastério. O nome do disco, não por acaso, é Sonastério Ilumina Pato Fu. Aqui a ideia foi captar como a banda soa em shows, com arranjos menos eletrônicos e mais orgânicos, um pouco diferentes em relação às timbragens e sonoridades das gravações originais das composições mais antigas.

Engana-se quem pensa que os lançamentos irão parar por aqui. Vem ainda, em breve, um outro disco ao vivo, agora gravado em conjunto com a Orquestra Ouro Preto e batizado Rotorquestra de Liquidificafu. Por fim, para o ano que vem o canal por assinatura Nickelodeon estreará um programa que levará o projeto Música de Brinquedo para a TV. Já existem duas temporadas gravadas, com episódios que reunirão a banda, os monstros criados pelo Giramundo e as releituras de clássicos da música pop feitas somente com instrumentos infantis.

Mondo Bacana conversou com Fernanda e John, que falam do pulsante e prolífico momento atual do trintão Pato Fu. E ainda tenta solucionar um grande mistério que envolve o grupo e parece ignorar a sua longa trajetória como um dos principais nomes do rock nacional.

Qual o segredo do sucesso da manutenção por três décadas de um casamento musical? No caso de vocês, ainda há uma curiosidade nisso, já que dois terços do núcleo que começou a banda lá no início dos anos 1990 permanecem como um casal na vida real.

John: É uma fórmula que a gente pode até tentar estabelecer, mas dificilmente aplicar pras outras bandas. Acho que começa com aquele clássico “fizemos a coisa certa na hora certa”. Isso explica o sucesso inicial, mas pra durar 30 anos, acho que o principal ingrediente é o respeito e amizade entre os integrantes. Sempre fizemos escolhas consistentes na carreira, cuidamos bem dos fãs, procuramos parcerias de alto nível em som, vídeo, fotografias, tudo. Mas a gente não duraria tanto se o clima interno da banda fosse de brigas e discussões intermináveis. Sempre fomos amigos, continuamos sendo. E até o meu relacionamento com a Fernanda, é parte disso. Não sei se o Pato Fu teria dado certo sem nosso casamento. Ao mesmo tempo, não sei como seria nosso casamento sem esse projeto em comum, o Pato Fu. É mesmo uma fórmula de uso único.

O novo álbum tem nove faixas que foram lançadas de um modo diferente, em três lotes diferentes de três canções cada. O novo modelo de negócios no mercado fonográfico aponta mesmo a tendência de se abandonar a concepção de um álbum como uma peça inteira e básica. Vocês concordam? Como foi esta experiência com o Pato Fu?

John: Gostamos de álbuns. São parte do nosso modo de fazer as coisas. Podemos até lançar de outro modo, mas quisemos deixar aquele cheiro de “álbum” no ar. O LP em vinil está no forno, já já será lançado. Quando se faz um álbum, um monte de outras ideias se somam, a começar pelo projeto gráfico. Daí aquilo vai pro cenário da turnê e vai se multiplicando. Esse pessoal que não faz álbuns não sabe o que está perdendo…

O novo álbum parece ser a obra do Pato Fu em que é mais explícito o quanto o ambiente redor afetou vocês como músicos e cidadãos. As letras falam sobre pandemia, isolamento, desgoverno brasileiro, política de horrores. Foi intencional querer botar isso para fora?

John: Sim, claro! Esse ambiente obviamente nos afetou e isso transparece nas letras. Já podíamos notar coisas assim nos discos anteriores, mas acho que agora mesmo as questões mais pessoais passaram pela situação extrema que vivemos, são recados aos amigos, como “Fique Onde Eu Possa Te Ver”. Essa vontade de mandar um abraço aos amigos e ao mesmo tempo denunciar os absurdos que presenciamos foi realmente a tônica do álbum.

Uma curiosidade é a versão em português de “Io Che Amo Solo Te”, clássico da musica romântica italiana dos anos 1960, década em que o pop cantado naquele idioma era bastante consumido aqui pelas Américas. Como surgiu a ideia? A canção tem relação com a memória afetiva de vocês do tempo de crianças?

John: Essa é o alívio romântico, versão inesperada, memória afetiva deslavada, essas coisas que sempre aparecem nos discos do Pato Fu. A gente já tinha citado essa música no finalzinho de “Vida Imbecil”, lançada em 1995 no álbum Gol de Quem?. Um dia desses, zapeando o streaming, nos deparamos com a versão da Rita Pavone. A gente vinha procurando uma música pra gravar com a Orquestra Ouro Preto, com quem estamos fazendo vários concertos. “Io Che Amo Solo Te” tocou muito na nossa infância, foi trilha de novela e foi um desses momentos tipo “por essa você não esperava!” que a gente vive perseguindo. Ruriá Duprat fez o arranjo de cordas e o resultado ficou lindo. Temos tocado essa ao vivo nos shows com a orquestra. É uma emoção.

O disco também trouxe de volta a parceria com o Dudu Marote, responsável pela produção de alguns dos discos mais populares da banda. Como surgiu a ideia do reencontro? Alguma mudança no modo de trabalhar entre passado e presente?

John: Nessa celebração dos 30 anos tentamos trazer de volta muitos conceitos e muita gente também. Pessoas que já trabalharam conosco em momentos importantes, achamos que seria legal tê-las por perto de novo. E o Dudu foi um desses. Produtor fundamental em nossa carreira. Ficou animadíssimo com o convite, veio nos visitar, ficamos todos pilhados e empolgados em trabalhar com ele de novo em duas das músicas. Dudu sempre foi um cara muito envolvente, e continua sendo. Ainda é seu estilo o artesanato pop, a busca do beat, do timbre exato, da colocação de voz perfeita. Aprendi muito com ele e essa foi mais uma chance pra eu aprender mais.

Outra faixa traz uma parceria com Climério Ferreira, poeta, cantor e compositor piauiense e também professor aposentado da Universidade de Brasília…

Fernanda: Climério é meu parceiro já em outras duas canções que eu tinha gravado em meus discos solo. Resolvi trazê-lo também pro Pato Fu, pois achava que a canção cabia na proposta de representatividade dos nossos lados líricos diversos. Vez por outra me pego lendo seus versos e pensando: “esse aqui daria um belo começo de música!”. Geralmente saio juntando várias linhas dele, encontrando um sentido entre as frases. Quando termino melodia e harmonia, mando pra ele reconhecer a paternidade.

A capa de 30 é baseada em traços de mangá. Esta é mais uma forte ligação do Pato Fu com a cultura pop japonesa. Como surgiram os bichos/personagens de cada faixa, que ilustram a capa e os vídeos de animações do YouTube?

Fernanda: Eu conheci o trabalho do Bruno Honda quando escolhi um quadro dele como recompensa num financiamento coletivo de livro. Junto veio uma outra ilustração dele com um recadinho dizendo que ele amava a música do Pato Fu. Isso deve fazer uns 4 anos… Quando fomos escolher entre vários artistas, apresentei os seus traços aos outros músicos, que acabaram votando por ele também. Ele gosta de desenhar bichos em funções humanas. Então perguntou quais os animais que poderiam ser usados para cada música. Demos nossas sugestões e ele foi exatamente em cima delas.

O álbum 30 não é a única novidade do Pato Fu. A banda também acaba de soltar um EP com seis faixas, gravado ao vivo, com algumas faixas clássicas inclusive tendo seus arranjos modificados. Este disco serviu como um laboratório para a nova turnê? Por quê modificar alguns dos hits mais conhecidos desta trajetória de trinta anos?

Fernanda: Eu acho que as gravações do Sonastério são bem fieis aos arranjos originais. A gente mudou muito quando fez o Ao Vivo no Museu de Arte da Pampulha. Essa leva agora só traz a pegada mais forte de banda mesmo. “Spoc”, por exemplo, só não tinha o Xande antes. Não modificamos a essência dos arranjos nos álbuns.

A turnê atual também recupera alguns “lados B” da banda. É importante para um artista não se fixar só no mainstream de seu repertório, ainda mais quando se trata de uma carreira longeva?

Fernanda: Pato Fu é justamente uma banda que tem essa dualidade de vários hits de FM, vídeos, novela, mas que possui uma base de fãs que gosta do lado mais ácido e experimental. A gente lida com isso de forma bem natural desde o início, pois gostamos disso também. Não conseguiríamos ser previsivelmente de um jeito só.

Falem um pouco dos próximos trabalhos da banda: o disco ao vivo com a Orquestra Ouro Preto (que já aparece em uma faixa do EP ao vivo), o Música de Brinquedo chegando à TV por meio do Nickelodeon…

Fernanda: Esse disco deve ser lançado no começo do ano que vem, John ainda vai mixar as faixas. Ele esteve dedicado ao sound design da série da Nick Jr, que ocupou bastante o tempo dele, assim como toda a preparação pra turnê, som e vídeos, trabalhando com a equipe do Batman Zavareze, que assina a direção de arte das projeções. Música de Brinquedo, a série, vai ao ar em episódios inéditos todo sábado, meio-dia e meia, com reprise durante a semana. Já temos duas temporadas gravadas. Tomara que siga em frente, pois é algo muito divertido, onde os monstros do Giramundo tem mais espaço pra brilhar!

Por que diabos o Pato Fu não é chamado para tocar nos principais festivais de música dos últimos anos no Brasil, como Rock In Rio, The Town, Lollapalooza e Primavera Sound?

Fernanda: Devem estar esperando a gente completar 40 anos de carreira! Mas há festivais só de música nacional também como o João Rock, por exemplo, que nunca nos chamou em 20 anos. The Town fiz como convidada do Terno Rei, já há uma esperança… Fizemos quase todos os grandes festivais do passado e temos feito ainda os festivais do circuito mais indie. Acho que somos sobreviventes a tantas ondas que a ideia é permanecer vivo, com saúde e tocando bem para quando for a hora de novo.

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Pitty – ao vivo

Em show de aniversário do álbum de estreia, cantora se emociona com lembranças, se vê madura e poderosa e “ressignifica” o passado

Texto por Marcos Bragatto (Rock em Geral)

Foto de Amanda Respício (Rock em Geral)

Um riff de guitarra bem distorcido quebra o silêncio no palco. Um átimo de segundo depois, o mesmo riff e a mesma distorção que, com as luzes agora acesas, vê-se que vem de uma guitarra atravessada no tronco de uma garota. Não uma qualquer, mas A garota, dona da festa toda e de mais um pouco. Garotas com guitarras costumam seduzir aos borbotões e é assim que dois varões, um de cada lado, juntam-se a ela no meio do palco, ao passo que outro, atrás, espanca os tambores sem dó e assim se faz a mágica do riff no rock’n’roll, condutor principal da tal música. É assim que Pitty, a tal garota com guitarra, comanda o singelo começo de “O Lobo”, a tal música, na noite de 29 de abril, um sábado, em uma Fundição Progresso com gente jorrando pelo ladrão, no Rio de Janeiro.

É o show que marca o aniversário de 20 anos – olhe só, vejam vocês – do álbum de estreia da cantora, Admirável Chip Novo, e o plano é tocar todas as músicas dele e otras cositas mas. É uma turnê revivalista, sim, mas Pitty, dada a rebeldias e não é de hoje, trata logo de desfazer o conceito e dizer que a apresentação é “uma ressignificação, o Chip Novo hoje”. Olhando para o palco, com o cenário criado para essa turnê, dá pra entender. Passarelas laterais com uma outra atrás da bateria, um telão low profile com cortinas sobrepostas ao fundo que recebem efeitos de luz simples, mas bastante eficientes. No começo, a imagem da “garrinchinha de botas e pernas tortas” no telão dá lugar ao mulherão em que ela se converteu que surge já de guitarra em punho, atrás da banda, no alto, detonando em “Teto de Vidro”.

É a abertura do álbum com a tríade matadora que tem ainda “Admirável Chip Novo” e a entrada de bateria, agora conduzida por Jean Dolabella (do Ego Kill Talent e com o Sepultura no currículo), e “Máscara”, coisa de arrasar quarteirão. E é isso que acontece com o povaréu que não se incomoda nem um pouco em participar, em frenético pula-pula e cantando tudo a plenos pulmões. As músicas são intervaladas por trechos de conversas da pequena Pitty (em ligação a cobrar de Salvador para o Rio) para tratar do envio do material que se tornaria esse disco e ainda se impondo ante a interesses da gravadora, que não curtiu, à época, a vontade da cantora de que “Máscara” fosse o primeiro single do disco. O resto é história e é muita história que se passa na cabeça de quase todo mundo ali – há jovens e muitos jovens há 20 anos ou mais, quando Chip Novo saiu.

Assim Pitty se esforça para segurar o choro e suplantar e emoção em várias passagens. Honra seja feita, embora tenha saído dos cafundós de Salvador, foi no Rio, por força da sede da gravadora, que ela deu os primeiros passos na carreira, tocando em tudo o que é canto underground da cidade, muitas vezes para alguns gatos pingados e em condições bem acanhadas, para dizer o mínimo. Diferentemente do trio que a acompanha – além de Jean, tem o ótimo guitarrista Matin Mendonça e o baixista Paulo Kishimoto – ela viveu tudo isso, o que carrega o espetáculo com mais emoção ainda. Pena que, nesse show, não tenha entrado nenhuma citação aos guerreiros da época: o guitarrista Peu, falecido em 2013; o baixista Joe, desafeto depois de questões levadas à justiça trabalhista; e o batera Duda.

show de íntegra do disco segue o desafio de tocar músicas que podem não ser tão conhecidas assim e que não eram executadas com frequência ao vivo nem na época em que foram lançadas. E também de tocar ou não todas elas na ordem em que foram gravadas – porque uma coisa é bolar uma sequência de disco, outra é de como apresentá-las no palco. É claro que Pitty foi na decisão corajosa de manter a ordem do CD, respaldada pelo fato de nada menos que cinco singles terem sido lançados na época, todos com boas execuções radiofônicas, em um tempo em que isso fazia a diferença. E, no fundo, no fundo, ela sabe que fã da Pitty – fã de rock – é quase sempre do tipo que conhece tudo. É o que acontece com a cantoria comendo solta em praticamente todas as músicas, em umas mais, noutras menos. E ainda tinha aqueles esperando justamente as menos tocadas ao longo da carreira.

Como por exemplo “Do Mesmo Lado”, rock enguitarrado dos bons, no qual Pitty canta “escondida” atrás de uma cortina branca e recebe focos de luzes coloridas, de modo que sua silhueta aparece distorcida e borrada, de acordo com os movimentos, em excelente efeito visual. Dá pra lembrar que “Só de Passagem” é uma pedrada nu metal das boas, e aí brilha Dolabella detonando na bateria; e a já citada “O Lobo” vira um rockão daqueles de obediência ao riff. Dentre os hits, vale destacar a lentinha “Equalize”, não pela música em si, mas por evidenciar uma Pitty bem resolvida com a sensualidade que parecia lhe incomodar. Se antes tinha dificuldade até para cantar uma letra mais de relacionamento/romântica, hoje desfila o corpo de modo soberano pelo palco e não só nessa música. E ainda recomenda ao público que “solte a pélvis”. É a tal da – repita-se – menininha convertida em mulherão.

O show é todo fechadinho em 1h40 e bolado para ser mesmo especial. É repartido em três blocos. Se o primeiro tem as 11 músicas do álbum Admirável Chip Novo, o segundo traz um complemento da época, com “Seu Mestre Mandou”, espécie de sobra, que se converte em nervoso hardcore dos tempos do Inkoma, e três covers, com destaque absoluto para “Love Buzz”, da banda holandesa Shocking Blue, eternizada na voz de Kurt Cobain, do Nirvana. No bis, é a hora da representatividade dos outros álbuns da cantora. Aí realçam “Memórias”, esticada com uma jam session em que cada músico é apresentado e sola em seu instrumento e tem Pitty refestelada no solo, e o arremate com “Me Adora”, a canção mais pop/colante dela e talvez a de maior sucesso, para terminar a altíssimo astral.

Em suma: o show é verdadeiro espetáculo planejado para uma ocasião especial e que tem vida própria. O que lhe dá, e antemão, o status de imperdível.

Set list: “Teto de Vidro”, “Admirável Chip Novo”, “Máscara”, “Equalize”, “O Lobo”, “Emboscada”, “Do Mesmo Lado”, “Temporal”, “Só de Passagem”, “I Wanna Be”, “Semana Que Vem”, “Seu Mestre Mandou”, “Sailin’ On”, “Love Buzz” e “Femme Fatale”. Bis: “Setevidas”, “Memórias”, “Na Sua Estante” e “Me Adora”.

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História do Rock: Nirvana – Parte 1

Kurt Cobain, Krist Novoselic e Dave Grohl faziam no Brasil, há exatos 30 anos, um show furioso, confuso, autossabotado e memorável

Texto por Fábio Soares

Fotos do show de SP: iaskara/Mondo Bacana

Um calor etíope recaía na capital paulista naquele sábado, dia 16 de janeiro de 1993 no calendário, que não era parte integrante de um final de semana qualquer. A quarta edição do extinto festival Hollywood Rock (ironicamente e ao lado do também finado Free Jazz o único benefício que o cigarro trouxe às nossas vidas) aportava no estádio do Morumbi com um aspecto elogiável: reunir numa única edição headliners de um recém-surgido estilo musical que varreria o mundo naquele início dos anos 1990.

L7 e Alice In Chains chegavam embalados pelos hinos “Pretend We’re Dead” e “Man In The Box”, respectivamente. Pegando carona no sucesso do grunge, os Red Hot Chilli Peppers promoviam o antológico álbum Blood Sugar Sex Magik com a dobradinha-chiclete “Give It Away” e “Suck My Kiss”. Mas venhamos e convenhamos: todos eles vieram a reboque da maior (sim, era a maior mesmo e aceita isso porque dói menos) banda do mundo naquele recorte temporal.

O Nirvana estava entre nós! Os caras que tocaram o terror no VMA, da MTV americana, no ano anterior. Os caboclos que expulsaram Michael Jackson, Guns N’Roses e Madonna do topo das paradas nos últimos meses de 1991. As cabeças por trás de Nevermind, a bolacha que pôs 3/4 do planeta pra chacoalhar o pescoço no biênio anterior. O Brasil veria uma banda no seu auge criativo e histórico, coisa que raramente aconteceu até então (e raramente voltaria a acontecer até hoje). Isso eria naquele sábado. Portanto, era a brecha que o sistema queria. AVISA O IML, CHEGOU O GRANDE DIA! 

Com maciça divulgação na MTV Brasil, os ingressos praticamente se esgotaram para aquela tarde/noite em São Paulo. As arquibancadas do Morumbi (setor em que fiquei) estavam tão lotadas como num hipotético jogo envolvendo todos os quatro grandes times paulistas num único domingo. Era uma época em que as famigeradas (e irritantes) arenas de Palmeiras e Corinthians não existiam e o Morumbi monopolizava quase todos os clássicos do futebol estadual. No setor de pista do estádio (o conceito de setor “premium” passava longe de ser cogitado!) a lotação não era diferente: pouquíssimos “buracos” eram vistos. Havia uma atmosfera diferente no ar e a ansiedade de todos ali estava a mil.

Mas cadê o Nirvana? 

Por volta de 21h30, João Gordo subiu ao palco para ler um pedido de desculpas do baixista Krist Novoselic por declarações proferidas numa entrevista concedida semanas antes e, claro, distorcidas na edição publicada no principal semanário impresso do país na época. “Quem quer saber?”, pensei, antes de ouvi-lo anunciar: “Com vocês, a maior banda underground de todos os tempos: NIRVANAAAA!”.

Um barulho ensurdecedor tomou conta do “Morumba” quando Kurt Cobain, Krist e o então baterista Dave Grohl surgiram em cena evidenciando o óbvio: a diminuta formação da banda era pequena demais para aquele palco gigantesco. Imagine, antes de mais nada, a sala da mansão de Chiquinho Scarpa contendo apenas uma estante (Novoselic), uma poltrona (Grohl) e uma TV de 14 polegadas (Cobain). Agora não imagine mais nada, pois toda essa impressão foi para as cucuias quando Kurt extraiu de sua Fender Jaguar o matador riff de “School”, minha predileta de Bleach, primeiro álbum dos caras. Um verdadeiro pandemônio se instalou no estádio e a visão das arquibancadas para a pista era assustadora: o “mar” de gente parecia estar de ressaca com todo mundo se espremendo na vã tentativa de se aproximar da grade.

No palco, porém, ocorria algo fora do comum. Novoselic e Grohl estavam visivelmente a 120 por hora, mas Cobain a 60. Um desencontro para o qual ninguém ligou, afinal de contas o que veio a seguir passou por cima da audiência como um rolo compressor. “Drain You”, veio seguida pela inacreditável linha de baixo de Novoselic em “Breed”, a espetacular bateria de Grohl em “In Bloom”. Estas todas, além de “Sliver”, não deixaram pedra sobre pedra. A arrasa-quarteirão “Dive” (desconhecida até aquele momento e que seria lançada logo depois na compilação de singles e raridades Incesticide) preparou o terreno para “Come As You Are”, com o estádio inteiro entoando a letra em uníssono.

Em “Lithium”, uma cena que jamais sairá de minha memória: durante o refrão (aquele em que Cobain esgoela-se num “iêiêêiêêê” interminável), trinta mil pessoas na pista pulavam e giravam suas camisetas acima de suas cabeças, levantando uma nuvem de poeira que mais parecia uma tempestade noturna no Saara. Nas arquibancadas, outras cinquenta mil faziam o mesmo. A estrutura do estádio começou a balançar assustadoramente e as antigas torres de iluminação dançavam mais do que os bonecos de Olinda no carnaval pernambucano. “Esta porra vai cair!”, gritaram alguns (eu, incluso). Que momento! “Daqui pra frente, será um “showzão da porra, pensaram todos. Contudo, foi aí que o caldo começou a entornar.

Reza a lenda que, horas antes da apresentação, Kurt enchera a cara no bar do hotel onde eles estavam hospedados, o hoje fechado Maksoud Plaza. Também se entupira de comprimidos. Chegando ao estádio, alguém teria dito a ele que o festival era patrocinado por uma marca de cigarros (dããã!) e isso o teria deixado puto. O que existe de verdade ou não nesta historieta é difícil saber, mas o fato é que a segunda metade do show foi uma auto-sabotagem explícita e proposital. Antes de iniciarem “Smells Like Teen Spirit”, os três chamaram ao palco o baixista dos Chilli Peppers para tocar trompete em substituição ao solo de guitarra da canção. O resultado, porém, foi esquisito demais. O hit ficou praticamente irreconhecível e o constrangimento de Flea era evidente diante da presepada.

Daí em diante, a coisa desandou de vez! A banda iniciou um festival de covers com versões que em quase nada se parecia com as gravações originais. Pior: Cobain (doidão de pedra) encasquetou que o trio deveria trocar instrumentos entre si. É isso mesmo o que você está lendo: a estante virou TV de 14 polegadas (Novoselic na guitarra), a poltrona virou estante (Grohl no baixo), a TV de 14 polegadas virou poltrona (Cobain na bateria). O que se viu e ouviu dali por diante foi difícil de engolir. Foi um espetáculo de horrores! “Run To The Hills” (Iron Maiden), “Rio” (Duran Duran),  Kids In America” (Kim Wilde), “867-5309/Jenny” (Tommy Tutone), “Heartbreaker (Led Zeppelin), “Seasons In The Sun” (adaptação em inglês de uma chanson de Jacques Brel) “Should I Stay Or Should I Go” (Clash) e até “We Will Rock You” (Queen) foram tocadas com essa formação, algumas em rotação mais lenta. O que ocorreu durante a execução das mesmas jamais esquecerei: a pista se esvaziou! Inacreditável foi presenciar milhares de pessoas dirigindo-se aos portões de saída tais quais muçulmanos numa peregrinação a Meca. Nas arquibancadas, não foi diferente: presenciei um fulano, sentado num canto, gritar “Acaba, ‘pelamor’ de Deus!”. A debandada foi geral.

Confesso que quase fui embora também. Não sei por qual motivo fiquei. Fiquei para presenciar a maior banda do mundo pisar no tomate. Fiquei para ver uma trinca “responsa” de canções finais: “Territorial Pissings”, “Heart Shaped-Box” (que jamais havia sido executada ao vivo até aquele momento e viria gravada no fim daquele ano, no álbum In Utero) e a hecatombe nuclear “Scentless Apprentice” (também de In Utero). Fiquei pra ver Kurt Cobain destruir sua guitarra antes do momento Led Zeppelin, descer do palco e distribuir os pedaços da coitada para poucos sortudos e corajosos que ainda permaneciam junto à grade, como se fosse um padre a distribuir hóstias aos seu fiéis. Fiquei, enfim, para ser testemunha ocular de uma tortura sonora que durou quase três horas regada a muito cansaço e letargia exacerbados.

Uma experiência esquisita demais e que mesmo hoje, tanto tempo depois, ainda me faz procurar por respostas. O que fora aquilo? Teria sido aquela horror history um marco na carreira da banda? Teria Cobain agido como um moleque dono da bola e do campinho que, de repente, diz “se eu não jogar, ninguém mais joga”? Estaria o Nirvana a um passo da dissolução bem ali, diante de 80 mil pessoas?

Saí do Morumbi naquela noite com a quase certeza de que a resposta viria depois de algum tempo, numa segunda vinda do grupo ao Brasil. “Farão um show num local fechado e será bem melhor”, pensei. Não deu. Quinze meses depois, Kurt estourava os próprios miolos em Seattle e o resto da história todo mundo já sabe.

Fiquei puto na época mas este sentimento não carrego mais. Trago comigo a certeza de que hoje, tanto tempo depois, presenciei um fato histórico. Uma banda no auge, fazendo um concerto ruim. Aliás, a maior banda do mundo promovendo uma ópera do horror.

Em 16 de Janeiro de 1993, o Nirvana tocava em São Paulo. Há exatos 30 anos eu estava lá! 

E eu me lembro muito bem de tudo.

Set list: “School”, “Drain You”, “Breed”, “Silver”, “In Bloom”, “About a Girl”, “Dive”, “Come As You Are”, “Molly’s Lips”, “Lithium”, “(New Wave) Polly”, “D-7”, “Smells Like Teen Spirit”, “On a Plain”, “Negative Creep”, “Something In The Way”, “Blew”, “Run To The Hills”, “Heartbreaker”, “We Will Rock You”, “Seasons In The Sun”, “Kids In America”, “Should I Stay or Shuld I Go?” “867-5309/Jenny”, “Rio”, “Lounge Act”, “Territorial Pissings”, “Heart-Shaped Box” e “Scentless Apprentice”.

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Michael Bublé

Oito motivos para não perder a passagem da nova turnê do crooner canadense pelo Brasil

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Divulgação

Se existe uma palavra que define tanto a vida quanto a carreira de Michael Bublé é perseverança. Hoje famoso mundialmente, o canadense de Burnaby sofreu no início para provar que não era apenas um rostinho bonito com uma voz afinada.  Tanto é que chegou a ouvir do empresário de uma major: “por que eu investiria em você se já existe Frank Sinatra?”. Oras, simplesmente porque o Frank Sinatra já morreu. Assim respondeu o cantor, que segue uma linhagem praticamente em extinção: a de crooner.

Além de Sinatra – que foi a grande inspiração de Bublé – podemos elencar vários intérpretes de canções de diferentes gêneros, do jazz ao pop clássico. Nat King Cole, Bobby Darin, Paul Anka, Bing Crosby, Tony Bennett e Harry Connick Jr são apenas alguns nomes da lista dos melhores crooners de todos os tempos. Gostem ou não, Bublé já figura ao lado desses monstros sagrados e é considerado o guardião dos clássicos americanos. Para provar seu talento, insistiu, insistiu até ser contratado por uma grande gravadora e virar um hitmaker

Desde seu álbum homônimo de estreia, lançado em 2003, ele coleciona prêmios tanto na vida profissional como na pessoal. Uma dessas conquistas foi ver o filho se recuperar de um câncer no fígado, diagnosticado há cerca de cinco anos. Para se dedicar a ele, na época, Bublé deu uma pausa na carreira e se mudou com a família para Vancouver. Hoje, o garoto está com 8 anos e se recuperando bem. Por isso, quem sobe aos palcos hoje é muito mais que um artista ou um sex symbol, mas um pai vencedor, que carrega no DNA a herança dos crooners do mundo do entretenimento e que nunca deixou as adversidades da vida abalarem seu bom-humor.

O Mondo Bacana te dá oito motivos para não perder a apresentação desse astro – cafona para uns, encantador para outros – na turnê An Evening With Michael Bublé, que passa pelo Brasil em quatro datas. As três primeiras serão no Rio de Janeiro (Jeneusse Arena, dia 3) e em São Paulo (5 e 6, Allianz Parque – Arena Palmeiras; a segunda noite está com ingressos esgotados). A última, em Curitiba (8, estádio do Athletico Paranaense). Mais informações sobre os concertos e como comprar as entradas você pode ter clicando aqui).

Artista premiado

Bublé vendeu mais de 60 milhões de álbuns em todo o mundo ao longo de sua carreira. Teve muitos singles no topo das paradas. Realizou sete especiais da NBC. Ganhou quatro Grammy Awards e vários Juno Awards como intérprete e compositor.

Artista certificado

Bublé é um dos grandes nomes da música internacional, tanto que conquistou o certificado de multiplatina e seu álbum mais recente, Love (de 2018), alcançou o primeiro lugar na Billboard Top 200. O astro ostenta ainda a impressionante marca de 12 bilhões de streams globais, sendo 217 milhões deles somente no Brasil. Seu primeiro disco homônimo já foi um sucesso na sua terra natal, tendo alcançado o Top 10. 

Álbuns de sucesso

Nos Estados Unidos, ele conseguiu sucesso comercial com o álbum It ‘s Time (2005), que trouxe o hit “Home”. Seu terceiro trabalho, Call Me Irresponsible (2007) chegou ao topo da Billboard, assim como o posterior Crazy Love (2009). Até 2019, ele havia vendido 60 milhões de álbuns ao redor do mundo.

Disco de Natal

Assim como as inesquecíveis canções natalinas que se tornaram um clássico na voz de Sinatra, Bublé seguiu a linha do ídolo e lançou em 2011 o álbum Christmas, que vendeu nada menos que seis milhões de cópias em apenas dois meses e foi relançado recentemente. Christmas se tornou um marco e transformou seu intérprete em uma referência nas festas de fim de ano. Na época, Bublé afirmou que receava que a obra o transformasse somente no “Cara do Natal”, tamanho o sucesso do trabalho. Mas o tempo provou que o canadense era muito mais que isso. 

Clássicos

Aliás, isso não faltará no set list da atual turnê. Se você é como eu e não consegue conter a ansiedade e ama xeretar o repertório dos últimos shows, sabe que vêm por aí muitos clássicos. Como a onipresente “Feeling Good, Sway” e algumas canções românticas que ficaram famosas na voz de Elvis. Ou seja, será difícil não se emocionar na plateia.

Primeira vez

O cantor já esteve excursionando por terra brasilis, mas esta é a primeiríssima vez que Bublé se apresenta na capital paranaense. E em um estádio da Copa do mundo. O cantor gosta muito de se apresentar por aqui e curte muito o nosso futebol, mesmo sendo casado com uma atriz argentina.  

An Evening With Michael Bublé

Suspensa em 2020 por conta da pandemia, a turnê já era uma das mais bem sucedidas turnês internacionais do ano. Só nos EUA ela foi vista em 82 cidades por mais de meio milhão de pessoas e 27 datas extra tiveram de ser agendadas para atender ao público.

Ginga canadense

Não poderíamos ficar de fora aqui o jeito Bublé de ser, que reúne versatilidade, carisma e bom humor em cima do palco. Aliás, na esteira de sua participação no programa de TV Dancing With The Stars, podemos esperar ainda novos passos de dança, como o artista adiantou nas suas redes sociais. 

Movies, Music

A-ha: True North

Introspecção do novo disco do trio é antecipada nos cinemas com muitas imagens da natureza imponente e gélida do norte norueguês

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Cinemark Brasil/Divulgação

A long, long time ago, os oceanos eram cristalinos e azuis como a voz e os olhos de Morten Harket, o frontman do A-ha, banda originária da Noruega, país nórdico dos vikings, guerreiros que tinham fama de serem brutais e ferozes mas, contraditoriamente, permitiam o divórcio às mulheres. 

Neste país das maravilhas, as estátuas e barcos naufragados estão por toda parte. A felicidade está estampada no rosto das pessoas. A aurora boreal proporciona um espetáculo surreal. Enfim, a paz reina na Noruega. Nos museus, a História se solidifica. Contudo, não se pode dizer o mesmo das calotas polares do Círculo Ártico que derretem numa velocidade assustadora. Enfim, o meio ambiente vem sendo degradado a passos de troll

Justamente essa preocupação e a conexão tão rica com a mãe natureza serviram de pretexto para que Morten Harket, Pal Waaktaar-Savoy, Magne “Mags” Furuholmen, finalmente se reunissem para lembrar suas raízes e produzir um novo álbum de inéditas, depois de um hiato de sete anos desde o lançamento de Cast In Steel

O filme A-ha: True North (Reino Unido/Noruega, 2022 – Cinemark Brasil) deixa claro, sobretudo no behind the scenes, que essa foi uma ideia de Mags, ligado a causas ambientais assim como Morten. Como ele já tinha um punhado de músicas compostas, decidiu e conseguiu reunir os colegas para a nova missão. Mas, em vez de simplesmente lançar o álbum (previsto para chegar às plataformas digitais em 25 de outubro), o trio norueguês preferiu inovar e exibir ao público em primeira mão as novas composições nas telas do cinema.

E assim nasceu o audiovisual que documenta dois dias de gravação na cidade de Bodø, ao lado da orquestra Arctic Philharmonic. A produção, no entanto, vai além de um mero registro do trabalho do grupo e das cenas de bastidores: funciona também como uma carta de amor à terra natal da banda. 

Dirigido pelo também norueguês Stian Andersen (fotógrafo oficial da última turnê do A-ha), True North foi exibido nos cinemas do mundo todo em 15 de setembro, um dia após o aniversário de 63 anos de Morten. No início, traz um dos singles do novo álbum e que serviu como uma espécie de teaser do filme. “I’m in” é canção de resiliência e empatia, serve de pano de fundo para narrar a história de uma família que perde um ente querido. E que, aliás, faz muito sentido nesse momento pandêmico (“Whatever you think you’re worth/ However much you hurt/ Whatever you have to believe/ I’m in/ Begin”). A mensagem se estende em sentido macro: nos lembra as baixas da covid e nos faz pensar sobre futuras perdas que teremos de contabilizar se medidas mais enérgicas não forem adotadas no sentido de cumprir os objetivos do desenvolvimento sustentável da ONU.

Aliás, o filme se sustenta nas canções, bastante introspectivas. Portanto, não espere nenhum riff a la “Take On Me”. As apresentações da banda são intercaladas pelos depoimentos dos três integrantes, cobertos por takes aéreos que passeiam por paisagens deslumbrantes.

Fiordes, oceanos, orcas emocionam e intimidam pela beleza imponente e gélida. O frio de Bodø é tão avassalador que parece tomar conta da sala de projeção. E para mostrar essa exuberância natural, fria e magnífica, inclusive nas cenas de estúdio, o diretor optou por tons mais sombrios – que, aliás, é das características da banda, seja em muitas das composições ou em se tratando da convivência entre os três. Para quem vive nos trópicos e não é descendente de vikings, o calor humano é algo normal. Morten, Mags e Pal, entretanto, continuam sem trocar abraços, até mesmo quando posam para a foto oficial no estúdio.

As rugas e rusgas também não ficaram de lado neste filme (assim como ficaram explícitas no documentário A-ha: The Movie, produção pré-pandêmica, lançado seis meses atrás – leia mais sobre este filme aqui). No A-ha, Mags sempre faz questão de frisar que ele e Päl são os principais compositores. De qualquer forma, o tecladista declarou que não consegue imaginar outra voz interpretando suas músicas se não a de Morten. Por sua vez, o vocalista replicou em um de seus depoimentos que enaltece as criações dos parceiros mas também compõe, sim, embora prefira lançar suas canções em trabalhos solo. Ou seja, nem o aquecimento global derrete o gelo entre os três. De qualquer forma, Morten (antes de cortar as madeixas e com barba por fazer) foi devidamente brindado com lindos planos contra-plongée ao interpretar as canções do novo álbum.

Em termos de conteúdo, True North é construído em camadas que tentam mesclar não ficção e ficção em seu arco narrativo. Uma ficção, aliás, que se tornou realidade para muitos durante a pandemia: a morte.  Em termos de forma, é um híbrido de concerto, ficção e documentário. A questão ambiental é o fio condutor dos depoimentos, quase sempre sutis e polidos, sem desbancar para o tom político. Quem leu a autobiografia de Morten Harket sabe que sua forte conexão com a natureza vem da infância. No início, ele resume seu pensamento: “poluir a natureza é como poluir o útero”. Por isso, a contradição ainda impera. Líder em energia limpa, modelo a ser seguido na proteção do meio ambiente, e até então um dos maiores patrocinadores do Fundo Amazônia (verba que foi congelada), a Noruega é um dos principais exportadores de petróleo do mundo. Ou seja, para não enterrar o planeta Terra é preciso agir.

Em relação a isso, Mags não esconde sua decepção, mas também não cria expectativas nem obriga ninguém a levantar bandeiras. Segundo o tecladista, infelizmente podemos dizer para as próximas gerações que nós falhamos. A partir de agora, quem quiser contribuir para manter o mundo mais sustentável, que faça o seu melhor. Quem não quiser, ok. Que espere sentado no sofá, assistindo TV, o derretimento da sua própria vida, da vida de seus filhos, de seus netos.