Music

MC5

Oito motivos da extrema importância para a história do rock do recém-falecido guitarrista Wayne Kramer e sua banda de Detroit

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução

No último dia 2 de fevereiro a notícia correu rápido pelo underground do rock. Foi noticiada a partida de uma de suas figuras históricas. O guitarrista e vocalista Wayne Kramer morreu aos 75 anos, em consequência de um câncer pancreático. Sua biografia é uma das mais incríveis da história do gênero. Contém elementos comuns a astros – como a fama conturbada, o ocaso, a ressureição artística, muitas polêmicas e um tempo na cadeia envolvendo consumo e venda de drogas. Entretanto, traz uma particularidade que o diferencia dos demais: ter pertencido e de certa forma ter sido o membro mais importante, musical e performaticamente, de uma das mais proeminentes formações que viriam não somente a influenciar nomes dos mais importantes e populares de gerações subsequentes.

O Mondo Bacana, então, faz sua homenagem a Kramer e ao MC5 dizendo em oito motivos a suma importância desta poderosa sigla para a história do rock.

Nada de paz e amor

O MC5 foi formado em 1963, em plena adolescência de seus integrantes. Só que esses moleques não estavam interessados na contracultura iria tomar conta do rock americano nos anos seguintes. Então, enquanto os hippies protestavam contra a guerra com pedidos de paz e amor e muita alteração do estado de consciência, esse quinteto de Detroit colocava o dedo direto na ferida da política nacional se unindo à militância de esquerda, aos Panteras Negras e ao partido Democrata. Na sonoridade, uma mistura poderosa de ritmos, que incluía também o garage, o soul e o jazz, mas sempre com duas guitarras muito altas, afiadas e para lá de distorcidas.

Barulho local

O som explosivo do MC5 tinha muito a ver com a sua origem geográfica. O grupo se formou em Detroit, o principal centro automotivo dos EUA por quase todo o século 20. Não a toa o apelido de Motor City acabaria sendo incorporado  no nome do quinteto). O ronco dos carros produzidos nas fábricas situadas nos arredores da metrópole ajudou a movimentar econômica e culturalmente a cidade. Durante o pós-guerra foi estabelecido um grande circuito musical, que incluía também a gravodra Motown, que não tardou a se transformar em uma fábrica de hits radiofônicos exportados para o mundo todo. Com a explosão do rock nos anos 1960, Stooges e MC5 ficaram conhecidos na região e logo passaram a transitar pelo efervescente underground nova-iorquino do final da década, ajudando a criar uma cena que, alguns anos depois, iria desembocar no punk. Bandas do circuito alternativo criado no país a partir dos anos 1980 (como Sonic Youth, Mudhoney, Rage Against The Machine e Nirvana) também devem muito ao MC5.

Discurso de esquerda

A trajetória do MC5 certamente não teria sido a mesma que a banda não topasse com o professor universitário John Sinclair, que fora de suas atividades acadêmicas mantinha uma comunidade formada por artistas alternativos da região, chamada Trans-Love Energies e que seria o embrião do que viria a ser tornar o partido político White Panther (um paralelo aos Panteras Negras, mas sem conotações raciais e que pregava o comportamento libertário extremo, incluindo a tríade sexo, drogas e rock’n’roll elevada a potências bem maiores). Sinclair, agitador sociopolítico nato, tornou-se empresário e guru espiritual do grupo

Tomando porrada

As performances, claro, eram de altíssima combustão provocativa. Uma apresentação que ficou famosa ocorreu em 1968, em Chicago, durante o período em que ocorria a convenção nacional do Partido Democrata. O grupo queria fazer o seu protesto ao ar livre contra a Guerra do Vietnã e não se abalou com a descabida violência policial local que reprimiu muitas manifestações pacifistas pelas ruas. Mesmo com toda a porrada comendo solta, foi a única atração a ter culhão de subir ao palco e mandou publicamente seu recado. Afinal, os músicos já estavam cascudos depois de enfrentarem alguns entreveros com os homens de farda de Detroit em vários shows locais anteriores. Depois de algumas músicas, tudo terminou com a fuga desenfreada de Sinclair e banda da cidade para não amargarem um período atrás das grades.

Kick Out The Jams

Foi justamente essa corajosa investida nas ruas de Chicago que chamou a atenção da Elektra para a assinatura do contrato para o primeiro álbum. A gravadora, que vinha de uma bem sucedida experiência de ter tirado o Doors do underground de Los Angeles e levado a banda rumo ao sucesso de vendas e execuções radiofônicas. Em virtude do poderoso apelo do grupo em cima dos palcos, o disco não poderia ter sido feito de outra forma a não ser com uma gravação ao vivo – o que também ajudou bastante a baratear os custos, já que a aposta era vista internamente na companhia como uma mera experiência sem muitas chances de dar certo. Oito faixas foram gravadas e a que deu nome à obra, escolhida para ser a música de trabalho e apresentação do MC5 às rádios, acabou provocando polêmica. Não bastasse o modo desbocado e provocativo da letra (algo que, em português, pode ser livremente traduzido como “botando o pau pra fora” ), o vocalista, sem avisar o restante da banda, berrou um motherfucker (filho da puta”) logo na introdução. Lógico que o disco, lançado em 1969, acabou sendo boicotado e se transformou em um fracasso de vendas, mesmo tendo ido bem na Billboard na semana do lançamento.

Carreira fugaz

Entre 1969 e 1971 o MC5 lançou três álbuns. O primeiro entrou para a História como um trabalho bastante influente para as gerações posteriores. O segundo (já por outra gravadora, a Atlantic), ficou uma coisa só para iniciados. O último passou completamente em brancas nuvens e assim permanece até hoje. Pudera. Cada vez mais os músicos exageravam nas dorgas diariamente, o que prejudicou de modo perceptível a capacidade criativa. Não bastasse, o FBI ainda ficou com o MC5 na mira. Os músicos saíram ilesos de prisões e questões judiciais. Entretanto, Sinclair acabou pegando pena de dez anos, sob a acusação de tráfico. Foi o que bastou para que a trajetória do quinteto fosse interrompida em 1972.

Ressurreição

Depois de enfrentar um longo ocaso após a debandada do grupo, que levou Kramer a amargar quatro anos na prisão (após oferecer drogas a policias disfarçados) e intercalar trabalhos de menor expressão com serviços de carpintaria para poder se sustentar, Kramer voltou com tudo à música na primeira metade dos anos 1990, graças ao estouro do Nirvana e a onda do alternativo invadindo as praias do mainstream aqui, ali e acolá. O selo independente Epitaph, tocado pelo guitarrista do Bad Religion Brett Gurevitz, contratou-o guitarrista e vocalista e lançou, entre 1995 e 1997, três álbuns solo seus. Por aparecer em clipes na MTV e ser incensado por uma legião de discípulos famosos, Wayne teve, enfim, o reconhecimento que lhe faltara lá atrás, nos áureos tempos de MC5.

Show em Goiânia

O vocalista Rob Tyner morreu aos 46 anos, em 1991, após ter um ataque cardíaco. O guitarrista Fred “Sonic” Smith (que se casara com Patti Smith em 1980 e emprestara seu apelido para batizar o Sonic Youth) foi-se com a mesma idade em 1994, também por causas naturais (aceleradas pelos excessos de outrora, claro). Em 2005, os três membros remanescentes (Wayne, o baterista Dennis Thompson e o baixista Michael Davis) reativaram a banda, desta vez com um adendo de suas iniciais à sigla (DKT-MC5). A primeira turnê mundial contou com dois integrantes extras de respeito (Handsome Dick Manitoba, vocalista dos Dictators, e Gilby Clarke, ex-Guns N’Roses, nas bases das seis cordas) e foi curiosamente encerrada com um concerto único no Brasil, dentro da programação do festival independente Goiânia Noise, reduto do rock guitarreiro em uma capital brasileira de produção musical essencialmente sertaneja. O trio manteve-se junto até a morte de Davis em 2012. Ainda deu tempo para Kramer reviver o repertório do MC5 em duas pequenas iniciativas (em 2018 e 2022) antes dele começar a gravar, com Thompson, algumas canções para um disco que ainda permanece inédito.

Movies

Hamlet

Projeto documental acompanha uma das lideranças das ocupações realizadas por estudantes gaúchos durante o ano de 2016

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Galo de Briga Fimes/Divulgação

Em 2016, centenas de escolas de ensino médio foram ocupadas ao redor do Brasil. Nossa modesta Primavera Árabe, aquela chamada Primavera Secundarista, inseriu-se no contexto arisco da defesa da presidente Dilma Rousseff contra o golpe que sofria por parte do Congresso Nacional, de Michel Temer e demais setores dos três poderes – “Com o Supremo, com tudo”, como imortalizou Romero Jucá.

Nesse contexto, mas também reivindicando mais atenção às políticas públicas de educação, o Brasil foi tomado pelo breve protagonismo da juventude. Se o corajoso movimento não rendeu muitos frutos, afinal a democracia atual se encontra sob ataques muito mais graves que o neoliberalismo do governo Temer, ainda nos propicia uma série de reflexões.

Observando de perto a movimentação das ocupações gaúchas, Hamlet (Brasil, 2022 – Galo de Briga Filmes) é um projeto documental que acompanha Fredericco Restori, uma das lideranças dos ocupantes de uma grande escola de Porto Alegre. A narrativa dispersa é muito mais uma coleção de momentos – plenárias, assembleias, reuniões entre ocupantes, palestras e até a hora do videogame – que uma representação ampla e didática do período da ocupação.

Num primeiro momento, a câmera errática dirigida por Zeca Brito parece incerta do que quer filmar. O registro histórico se inicia numa grande plenária, em que já desponta a presença de Fredericco. Embora este seja nosso protagonista desde a primeira cena do longa-metragem, Brito parece muito mais interessado na coletividade dos ocupantes do colégio, um conjunto de sem nomes que insiste na “horizontalidade democrática”, por assim dizer, e nunca é gravada só. 

O foco constantemente desregulado, a princípio, parece sintoma de uma operação de câmera ansiosa em capturar a essencialidade do momento, mas logo se denuncia em seu exagero: ao compor as sequências cotidianas da ocupação, assim como suas seções mais dialógicas, Zeca Brito escancara seu próprio processo de formalização, ainda que busque escondê-lo sob um fino véu de naturalismo. Partimos do “parece ser” para o “quer parecer ser”, um movimento que não é ruim em si mesmo, mas interessante por nos lembrar que documentário não é realidade – é cinema.

Num segundo momento, esteticamente mais interessante, Hamlet assume seu discurso mais narrativo que repórter, utilizando ligações telefônicas de Fredericco como meio para a exposição de seu conflito interno, que também é refletido em sequências subjetivas. A bem da verdade, esse estatuto da obra sempre esteve presente, já que o filme se inicia, antes do registro histórico das ocupações, com uma conversa entre Fredericco e um homem mais velho tecendo comparações entre sua condição de liderança e a dúvida central de Hamlet: “ser ou não ser, eis a questão”.

Se o filme não esconde a condição de líder que caracteriza Fredericco, sua ideologia juvenil, a princípio, recusa-se a aceitá-la. Ao longo de Hamlet, sua posição vai de “precisamos manter a horizontalidade para não tornar este um movimento fascista” para “eu queria ser líder, e era líder, mas não tinha coragem de admitir”. A ingenuidade da mobilização secundarista permeia todos os acontecimentos do filme – desde a rusga desmobilizada com entidades de base da categoria, como a UBES e a UNE, até a escuta atenta aos ensinamentos do grande crítico e cineasta brasileiro Jean-Claude Bernadet sobre a conjuntura política. 

Justamente por essa inerente ingenuidade, alguns dos momentos aqui retratados conferem ao filme um curioso frescor: um “vai chorar” que vaza na captação sonora durante um protesto; o canto “Bololo ha ha, quero ver desocupar”, eco da relação entre política e cultura que é muito única a cada geração que a vive; a incessante descoordenação da massa durante momentos de tensão, em que o silêncio é um episódio raro que, quando acontece, é muito efêmero.

Contudo, se esses momentos evocam no espectador não mais que a curiosidade e, quando muito, um sorriso de canto de boca, igualmente não se sente o peso que se propõe em Fredericco. A deslocada comparação com Hamlet, que pretende dar tom ao filme, só se dá com clareza na última cena, numa fraca articulação entre o concreto (a ocupação) e o abstrato (as conjecturas posteriores sobre a relação entre vida e arte) que não oferece material suficiente para se realizar. De fato, às vezes a vida imita a arte, assim como a arte imita a vida. Mas nem sempre.