Movies, Music

Saudosa Maloca

Inspirado na criação das canções (e em parte da vida) do sambista Adoniran Barbosa, longa acerta ao fugir de uma cinebiografia convencional

Texto por Abonico Smith

Foto: Elo Studios/Divulgação

João Rubinato é uma figura ímpar da música brasileira. Filho de imigrantes italianos, falava muita palavra de modo errado perante a norma culta da língua portuguesa. Também não tinha muita instrução formal. Largou a escola cedo, pois não gostava de estudar e ainda precisava trabalhar desde criança para ajudar a complementar a renda de casa. Mesmo assim, com muita perspicácia, criatividade e talento, criou uma série de canções que se tornaram, com o tempo, pérolas icônicas de qualquer roda de samba que se preze, seja na mesa do botequim ou no palco de um pomposo teatro. Entrou para a história da cultura nacional sob o pseudônimo de Adoniran Barbosa. Não exatamente como o cantor que sempre sonhou ser desde jovem. Mas como compositor de fortes melodias aliadas a letras irresistíveis, com muito humor e verve literária do cotidiano ligado às pessoas à sua volta, quase toda vivida na cidade de São Paulo.

O diretor e roteirista Pedro Soffer Serrano é um dos maiores admiradores da obra de Adoniran. Depois de assinar um curta baseado nas principais músicas  (Dá Licença de Contar, de 2015 – clique aqui para assistir à obra) e um documentário sobre o artista (Adoniran: Meu Nome é João Rubinato, de 2018 – clique aqui para ler a resenha do Mondo Bacana), ele agora chega aos cinemas de todo o país com o terceiro produto desta trilogia, um longa-metragem. Saudosa Maloca (Brasil, 2023 – Elo Studios) não é bem uma biografia do ídolo. Em pouco mais de noventa minutos de história, aliás, bem pouco ou quase nada se mostra em cena da vida pessoal de João. Seu dois casamentos, sua família, sua filha, inclusive sua trajetória artística. Esse negócio de “onde nasceu, como viveu, do que se alimentou, do que morreu” pode caber para o Globo Repórter, mas  não aqui. Serrano opta pelo mesmo esquema do curta e costura um Rubinato já na terceira idade contando histórias para um jovem garçom fã de suas canções.

Quase tudo se passa em flashbacks protagonizado pelo trio formado por João, Joca e Mato Grosso. Com calibrada dose de humor no roteiro, detalhes sobre experiências vividas por estes três amigos que se uniram em uma maloca improvisada em um casebre na região central paulistana lá pelos anos 1950, quando a sensação de transformações definitivas vinha com o estabelecimento da indústria cultural forte e o surgimento de arranha-céus no lugar de simples casas. Todos os três já estão bem crescidos, por volta dos 40 anos de idade e com um grande ponto em comum: o amor pela boemia e pela malandragem de uma época ainda de alto grau de inocência cotidiana, sem o menor tino para o trabalho de modo convencional.

É foi justamente este universo ao redor de Adoniran Barbosa o grande trunfo para o surgimento de canções inesquecíveis como “Conselho de Mulher”, “Iracema”, “No Morro da Casa Verde”, “Um Samba no Bixiga” e “Vila Esperança” ou “Samba Italiano” – isso somente listando algumas criações coadjuvantes dos greatest hits (“Samba do Arnesto”, “Trem das Onze”, “Tiro Ao Álvaro” e “Saudosa Maloca”). Por meio de versos e títulos de suas músicas, bairros (mais centrais ou nem tanto assim) como Brás, Bixiga, Jaçanã e Vila Esprança ganharam popularidade extramunicipal na segunda metade do século 20. Este longa destrincha um pouco de como e porquê as famosas obras acabaram circulando, primeiro pela tradição oral e depois sendo eternizadas por gravações lançadas no mercado fonográfico nacional.

Teria tudo o que é mostrado na tela acontecido realmente? Aliás, em um determinado momento o tal jovem garçom lança no ar uma boa pergunta: teriam mesmo existido os tais de Mato Grosso e Joca que estão nas contações e cantações de Rubinato? A resposta acaba vindo nas entrelinhas e de maneira categórica: pouco importa se sim ou se não. O que vale, afinal, é a exímia destreza de Adoniran Barbosa como um observador e cronista social do dia a dia de uma classe trabalhadora e de baixa renda em uma metrópole ainda se desenhando para o agigantamento desenfreado que ainda pode ser presenciado pelo artista no final de sua vida (ele faleceu em novembro de 1982, aos 72 anos).

Saudosa Maloca conta ainda com um elenco afiado. Repetindo os seus papeis no curta-metragem (que ainda tem algumas breves cenas reprisadas no longa), Paulo Miklos (João), Gero Camilo (Mato Grosso) e Gustavo Machado (Joca) estão deliciosamente impagáveis. Uma trinca capaz de arrancar gargalhadas e competir com os Trapalhões no momento áureo do grupo capitaneado por Renato Aragão logo após a estreia do programa na Rede Globo. Sidney Sampaio (o tal jovem garçom de nome Cícero) e Leilah Moreno (a garçonete Iracema, sempre cortejada pelos dois parças de maloca de Adoniran) reforçam a parte mais dramática do roteiro, ao passo que Paulo Tiefenthaler (o rico Pereira, homem da grana, da influência e do contraponto ao trio de zé ninguéns que andam quase sempre duros e sem comida em casa) e Zemanuel Piñero (o chapa Arnesto, aquele que convidou para um samba que não existiu em sua casa) se mostram brilhante como escada. Diversas vezes eles levantam a bola para Gero, Gustavo e Paulo subirem nas alturas e cortarem com tudo a bola rumo ao chão e marcarem diversos pontos.

Quem já é iniciado no fantástico mundo dos versos escritos por Adoniran Barbosa vai se deliciar com este longa-metragem repleto de inesquecíveis frases acidamente filosóficas pronunciadas pelo protagonista. Quem ainda não conhece ou pouco sabe de João Rubinato tem a grande chance de se apaixonar e virar fã de vez dele.

Music

MC5

Oito motivos da extrema importância para a história do rock do recém-falecido guitarrista Wayne Kramer e sua banda de Detroit

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução

No último dia 2 de fevereiro a notícia correu rápido pelo underground do rock. Foi noticiada a partida de uma de suas figuras históricas. O guitarrista e vocalista Wayne Kramer morreu aos 75 anos, em consequência de um câncer pancreático. Sua biografia é uma das mais incríveis da história do gênero. Contém elementos comuns a astros – como a fama conturbada, o ocaso, a ressureição artística, muitas polêmicas e um tempo na cadeia envolvendo consumo e venda de drogas. Entretanto, traz uma particularidade que o diferencia dos demais: ter pertencido e de certa forma ter sido o membro mais importante, musical e performaticamente, de uma das mais proeminentes formações que viriam não somente a influenciar nomes dos mais importantes e populares de gerações subsequentes.

O Mondo Bacana, então, faz sua homenagem a Kramer e ao MC5 dizendo em oito motivos a suma importância desta poderosa sigla para a história do rock.

Nada de paz e amor

O MC5 foi formado em 1963, em plena adolescência de seus integrantes. Só que esses moleques não estavam interessados na contracultura iria tomar conta do rock americano nos anos seguintes. Então, enquanto os hippies protestavam contra a guerra com pedidos de paz e amor e muita alteração do estado de consciência, esse quinteto de Detroit colocava o dedo direto na ferida da política nacional se unindo à militância de esquerda, aos Panteras Negras e ao partido Democrata. Na sonoridade, uma mistura poderosa de ritmos, que incluía também o garage, o soul e o jazz, mas sempre com duas guitarras muito altas, afiadas e para lá de distorcidas.

Barulho local

O som explosivo do MC5 tinha muito a ver com a sua origem geográfica. O grupo se formou em Detroit, o principal centro automotivo dos EUA por quase todo o século 20. Não a toa o apelido de Motor City acabaria sendo incorporado  no nome do quinteto). O ronco dos carros produzidos nas fábricas situadas nos arredores da metrópole ajudou a movimentar econômica e culturalmente a cidade. Durante o pós-guerra foi estabelecido um grande circuito musical, que incluía também a gravodra Motown, que não tardou a se transformar em uma fábrica de hits radiofônicos exportados para o mundo todo. Com a explosão do rock nos anos 1960, Stooges e MC5 ficaram conhecidos na região e logo passaram a transitar pelo efervescente underground nova-iorquino do final da década, ajudando a criar uma cena que, alguns anos depois, iria desembocar no punk. Bandas do circuito alternativo criado no país a partir dos anos 1980 (como Sonic Youth, Mudhoney, Rage Against The Machine e Nirvana) também devem muito ao MC5.

Discurso de esquerda

A trajetória do MC5 certamente não teria sido a mesma que a banda não topasse com o professor universitário John Sinclair, que fora de suas atividades acadêmicas mantinha uma comunidade formada por artistas alternativos da região, chamada Trans-Love Energies e que seria o embrião do que viria a ser tornar o partido político White Panther (um paralelo aos Panteras Negras, mas sem conotações raciais e que pregava o comportamento libertário extremo, incluindo a tríade sexo, drogas e rock’n’roll elevada a potências bem maiores). Sinclair, agitador sociopolítico nato, tornou-se empresário e guru espiritual do grupo

Tomando porrada

As performances, claro, eram de altíssima combustão provocativa. Uma apresentação que ficou famosa ocorreu em 1968, em Chicago, durante o período em que ocorria a convenção nacional do Partido Democrata. O grupo queria fazer o seu protesto ao ar livre contra a Guerra do Vietnã e não se abalou com a descabida violência policial local que reprimiu muitas manifestações pacifistas pelas ruas. Mesmo com toda a porrada comendo solta, foi a única atração a ter culhão de subir ao palco e mandou publicamente seu recado. Afinal, os músicos já estavam cascudos depois de enfrentarem alguns entreveros com os homens de farda de Detroit em vários shows locais anteriores. Depois de algumas músicas, tudo terminou com a fuga desenfreada de Sinclair e banda da cidade para não amargarem um período atrás das grades.

Kick Out The Jams

Foi justamente essa corajosa investida nas ruas de Chicago que chamou a atenção da Elektra para a assinatura do contrato para o primeiro álbum. A gravadora, que vinha de uma bem sucedida experiência de ter tirado o Doors do underground de Los Angeles e levado a banda rumo ao sucesso de vendas e execuções radiofônicas. Em virtude do poderoso apelo do grupo em cima dos palcos, o disco não poderia ter sido feito de outra forma a não ser com uma gravação ao vivo – o que também ajudou bastante a baratear os custos, já que a aposta era vista internamente na companhia como uma mera experiência sem muitas chances de dar certo. Oito faixas foram gravadas e a que deu nome à obra, escolhida para ser a música de trabalho e apresentação do MC5 às rádios, acabou provocando polêmica. Não bastasse o modo desbocado e provocativo da letra (algo que, em português, pode ser livremente traduzido como “botando o pau pra fora” ), o vocalista, sem avisar o restante da banda, berrou um motherfucker (filho da puta”) logo na introdução. Lógico que o disco, lançado em 1969, acabou sendo boicotado e se transformou em um fracasso de vendas, mesmo tendo ido bem na Billboard na semana do lançamento.

Carreira fugaz

Entre 1969 e 1971 o MC5 lançou três álbuns. O primeiro entrou para a História como um trabalho bastante influente para as gerações posteriores. O segundo (já por outra gravadora, a Atlantic), ficou uma coisa só para iniciados. O último passou completamente em brancas nuvens e assim permanece até hoje. Pudera. Cada vez mais os músicos exageravam nas dorgas diariamente, o que prejudicou de modo perceptível a capacidade criativa. Não bastasse, o FBI ainda ficou com o MC5 na mira. Os músicos saíram ilesos de prisões e questões judiciais. Entretanto, Sinclair acabou pegando pena de dez anos, sob a acusação de tráfico. Foi o que bastou para que a trajetória do quinteto fosse interrompida em 1972.

Ressurreição

Depois de enfrentar um longo ocaso após a debandada do grupo, que levou Kramer a amargar quatro anos na prisão (após oferecer drogas a policias disfarçados) e intercalar trabalhos de menor expressão com serviços de carpintaria para poder se sustentar, Kramer voltou com tudo à música na primeira metade dos anos 1990, graças ao estouro do Nirvana e a onda do alternativo invadindo as praias do mainstream aqui, ali e acolá. O selo independente Epitaph, tocado pelo guitarrista do Bad Religion Brett Gurevitz, contratou-o guitarrista e vocalista e lançou, entre 1995 e 1997, três álbuns solo seus. Por aparecer em clipes na MTV e ser incensado por uma legião de discípulos famosos, Wayne teve, enfim, o reconhecimento que lhe faltara lá atrás, nos áureos tempos de MC5.

Show em Goiânia

O vocalista Rob Tyner morreu aos 46 anos, em 1991, após ter um ataque cardíaco. O guitarrista Fred “Sonic” Smith (que se casara com Patti Smith em 1980 e emprestara seu apelido para batizar o Sonic Youth) foi-se com a mesma idade em 1994, também por causas naturais (aceleradas pelos excessos de outrora, claro). Em 2005, os três membros remanescentes (Wayne, o baterista Dennis Thompson e o baixista Michael Davis) reativaram a banda, desta vez com um adendo de suas iniciais à sigla (DKT-MC5). A primeira turnê mundial contou com dois integrantes extras de respeito (Handsome Dick Manitoba, vocalista dos Dictators, e Gilby Clarke, ex-Guns N’Roses, nas bases das seis cordas) e foi curiosamente encerrada com um concerto único no Brasil, dentro da programação do festival independente Goiânia Noise, reduto do rock guitarreiro em uma capital brasileira de produção musical essencialmente sertaneja. O trio manteve-se junto até a morte de Davis em 2012. Ainda deu tempo para Kramer reviver o repertório do MC5 em duas pequenas iniciativas (em 2018 e 2022) antes dele começar a gravar, com Thompson, algumas canções para um disco que ainda permanece inédito.

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I Wanna Be Tour

Oito motivos para não perder o festival itinerante que abraça a nostalgia do pop punk e do emo do começo dos anos 2000

Simple Plan

Texto por Frederico di Lullo

Fotos: Divulgação

Estamos em 2024, mas tranquilamente poderia ser 2001, 2003 ou 2007. Sim o evento chamado I Wanna Be Tour está próximo e, com ele, uma trupe de emoções para quem curtia as cenas do emo e do pop punk do começo do século. Numa impactante produção, o festival será realizado em março em cinco capitais (São Paulo, dia 2; Curitiba, 3; Recife, 6; Rio de Janeiro, 9; e Belo Horizonte, 10) e promete ser um marco para quem gosta da cena musical daquela época.

Por isso, o Mondo Bacana apresenta oito motivos para ninguém ficar de fora deste turnê nostálgica – mais informações sobre locais, horários, preços e outras particularidades de cada um destes cinco eventos você pode encontrar clicando aqui.

Se liga!

Turnê nos moldes internacionais

Presente em cinco cidades brasileiras, I Wanna Be Tour chega em março nos moldes dos festivais itinerantes americanos, focados na geração criada pela MTV e voltada à cena musical do começo dos anos 2000. Por isso, se espera um espetáculo visualmente impactante, com luzes, cenários, efeitos especiais e dois palcos que tornarão cada concerto único na vida de quem for, até lá. As atrações serão as bandas Simple Plan, A Day To Remember, All-American Rejects, All Time Low, Used, Asking Alexandria, NX Zero, Pitty, Boys Like Girls, Mayday Parade, Plain White T’s e Fresno. Quem será louco de perder esta escalação?

Nostalgia emo

I Wanna Be Tour é, sem sombra de dúvidas, a oportunidade perfeita para voltar no tempo e reviver os dias em que o emo dominava as mentes dos jovens e programações das rádios rock de norte a sul, de leste a oeste deste país. Com isso, a geração que cresceu nos anos 2000, justamente quando o emo bombava, está agora lá pelos 20 e tantos anos (ou 30 e poucos). Em outras palavras, é a geração que não pensa duas vezes antes de pagar por aquilo que deseja tanto consumir.

Simple Plan

Este grupo é uma importante parte integrante da cultura pop mundial desde sua formação, em 1999, na cidade canadense de Montreal. Vendeu mais de 10 milhões de álbuns em todo o mundo, arrebatou vários prêmios e se apresentou durante as olimpíadas de inverno em 2010. Ainda são detentores de hinos inesquecíveis como “Welcome To My Life”, “Perfect” e “I’m Just a Kid”. Juntas, essas três músicas somam mais de 720 milhões de audições mensais – isso apenas no Spotify.

Used

Extremamente popular no começo do século neste sul do sul do mundo, a banda que surgiu em Utah em 2000 atualmente conta em sua formação com Bert Mccracken (vocais), Quinn Allman (guitarra), Jepha Howard (baixo) e Dan Whitesides (bateria). Quem hoje está entre os 25 e 35 anos com certeza se emocionou escutando músicas como “The Bird And The Worm”, “The Taste Of Ink” e “Buried Myself Alive” nos players de mp3 de 128 ou 256 mb.

Fresno

Na ativa desde 1999, a banda gaúcha brilhou na época de ouro do emo. Não bastasse, continua na estrada, fazendo o que mais gosta: viver em cima de um palco. Com dez álbuns de estúdio e outros trabalhos ao vivo, o Fresno promete fazer shows históricos justamente no ano em que comemora um quarto de século de atividade. Simplesmente imperdível, não?

NX Zero

Com sua mistura única de rock alternativo e letras cativantes, cada apresentação da banda é uma experiência única. Vindo de recente turnê pelo Brasil após um longo tempo de hiato, o NX Zero continua tocando para sua árdua legião de fãs. Por isso, promete mais um concerto que irá marcar a memória de todos.

Pitty

Diva do Rock Nacional desde o início dos anos 2000, Pitty irá trazer o álbum Admirável Chip Novo – o primeiro da carreira, tocado na íntegra – diretamente para os fãs. O respertorio, depois, contará com outros sucessos como “Na Sua Estante” e “Me Adora”.

Restam poucos ingressos à venda

Não perca tempo, pois a tendência é que eles se esgotem ainda em janeiro. Seja ligeiro, garanta a sua entrada, independentemente da cidade, e venha reviver os anos 2000 como nunca antes presenciado no Brasil. Ainda mais com esse monte de bandas estrangeiras juntas no mesmo dia. Quem vamos?

Movies

O Último Dia de Yitzhak Rabin

Filme sobre o assassinato do premiê e prêmio nobel da paz Yitzhak Rabin é lançado no Brasil por causa do conflito atual que envolve Israel e Palestina

Texto por Abonico Smith

Foto: Synapse/Divulgação

Para muitos, um injustificável e desmedido massacre genocida contra civis (maioria de mulheres e crianças) provocado por escusos interesses econômicos e políticos. Para outros, apenas exercício do direito de uma nação de se defender perante o risco de mais alguma ação carregada de terrorismo. Não importa de que lado da perspectiva do muro você esteja, uma coisa é certa: está sendo bombardeado pelos nomes de Israel e Palestina há quase um mês na pauta dos noticiários aqui, ali e acolá. No Brasil não poderia ser diferente, seja o veículo jornalístico pertencente à mídia tradicional ou bravas iniciativas independentes carregadas de um viés sociopolítico que foge de interesses comerciais que mandam e desmandam no território do mainstream. O fato é que quando o premiê israelense Benjamin Netanyahu declarou guerra ao Hamas surgiu uma grande oportunidade para se corrigir uma injustiça cinematográfica por aqui. Então, com oito anos de atraso, enfim, é lançado o filme O Último Dia de Yitzhak Rabin (Rabin: The Last Day, Israel/França, 2015 – Synapse), dirigido por Amos Gitaï e com roteiro assinado em conjunto com Marie-José Sanselme, também sua parceira em outras obras mais recentes do mais famoso cineasta daquele país.

O interesse de Gitaï é vasculhar pistas que podem vir a esclarecer alguns pontos nebulosos por trás do assassinato do então primeiro-ministro, ocorrido em 4 de novembro de 1995 (há exatos 28 anos) de uma praça pública de Tel Aviv, após uma grande manifestação pela paz. No ano anterior, Rabin fora agraciado com o Prêmio Nobel da Paz ao lado do presidente de Israel Shimon Peres e do líder da Organização pela Liberdade da Palestina Yasser Arafat. Os governos israelense e palestino selaram em setembro de 1993 uma série de acordos mediados pelo norte-americano Bill Clinton visando à abertura das negociações sobre os territórios ocupados, a retirada de tropas de Israel do sul do Líbano, o status da cidade “dividida” de Jerusalém e, o mais importante, o fim dos conflitos bélicos entre todos os lados rivais daquela região. As atitudes e decisões de Yitzhak (vale lembrar que ele e Shimon pertenciam ao partido ligado a questões trabalhistas) começaram a incomodar muitos judeus radicais sionistas de seu país, especialmente o pessoal da extrema-direita congregado no partido chamado Likud, na época comandado por… Benjamin Netanyahu, que estava por trás uma maciça campanha de manipulação da opinião pública contra Rabin, envolvendo a incitação de ódio e violência contra ele.

Gitaï, que sempre procurou imprimir em seus longas-metragens uma pequena representação da sociedade israelense, mistura linguagens para desvendar os segredos e mistérios por trás dos três tiros à queima-roupa disparados por um jovem estudante universitário naquele dia na Praça da Paz. Coloca atores vivendo personagens reais, encenando diálogos e situações que possam levar os espectadores (sobretudo gente como nós, brasileiros comuns, que há décadas praticamente só ouvimos falar os nomes dos partidos e dos políticos nos noticiários de jornais, revistas, rádios e televisões) a ligarem os pontos. Entretanto também não abre mão de misturar altas doses documentais, utilizando imagens externas de acontecimentos garimpadas em arquivos e acervos, inclusive o seu próprio – já que Amos andava acompanhando alguns atos públicos de Rabin e inclusive estava filmando no momento do assassinato do premiê.

O ritmo lento, a duração extensa (2h36) e a narrativa nada linear do roteiro podem cansar um pouco quem não está muito acostumado a padrões cinematográficos não hollywoodianos ou também não tem lá muito interesse em questões históricas que podem fazer compreender um tanto melhor muito do que anda acontecendo nos dias atuais em Faixa de Gaza, Cisjordânia, Israel e seus arredores não palestinos. Por outro lado, quem se interessar por ver o trabalho “investigativo” do cineasta tem uma excelente oportunidade de perceber que tanto do lado de lá do planeta como do lado de cá muito do modus operandi da right wing não é tão diferente assim. Só que Israel sempre foi um Estado de orientação muito mais bélica do que o Brasil.

Music

Ira!

Oito motivos para não perder o show que recria na íntegra as oito faixas de Psicoacústica, o disco mais conceitual e cultuado do quarteto

Texto por Abonico Smith (com colaboração de Filipe Silva)

Foto: Ana Karina Zaratin/Divulgação

Deus escreve certo por linhas tortas, já dizia aquele velho provérbio. A frase parece se encaixar bem quando o assunto é Psicoacústica, o terceiro álbum da carreira do Ira!. Lançado em maio de 1988, o trabalho foi precedido por uma grande expectativa. O quarteto paulistano vinha de dois primeiros discos muito badalados por crítica e público, tendo o segundo, de dois anos antes, ultrapassado a marca das 250 mil cópias vendidas. Pegou o tempo das vacas gordas do Plano Cruzado e impulsionou a carreira, ainda curta, de uma banda que apresentava aos jovens brasileiros a sonoridade dos mods britânicos da década de 1960. De quebra, jogou o grupo, já bastante conhecido do circuito underground, ao estrelato nacional, chegando a garantir uma escalação para a primeira edição do megafestival internacional Hollywood Rock, surgido na cola do Rock In Rio.

Com a moral alta dentro da gravadora, ficaram livres para fazer o que quiseram durante a concepção e gravação do álbum, inclusive tendo orçamento generoso e tendo o privilégio de poder produzir a própria obra. Contudo, o resultado flopou. Pelo menos comercialmente falando. Oito faixas longas no vinil, arranjos extensos e nada radiofônicos. Não havia quase refrão e a viagem sonora levou Nasi (voz), Edgard Scandurra (guitarras), Gaspa (baixo) e André Jung (bateria) a explorarem sonoridades e ritmos que ainda não cabiam direito nos ouvidos da multidão que consumia aquele “novo” nicho fonográfico brasileiro chamado rock. Resultado, o disco não ganhou videoclipe para a divulgação na TV aberta e tocou bem pouco nas emissoras que abriam (muito) espaço em sua programação a outros colegas de gênero. A chegada a “apenas” 50 mil exemplares adquiridos nas lojas foi considerada decepcionante.

Psicoacústica foi uma espécie de rebeldia do Ira! frente ao pertencimento ao mundo da fama e do mainstream. A banda renegou o modus operandi de fazer playback em programas de auditório. O dinheiro torrado pela gravadora meio que queimou o filme dentro da própria casa – outros três álbuns chegaram a ser lançados pela Warner (então WEA), mas nem a atenção da gravadora nem as vendas conseguiram voltar aos velhos tempos – tanto que o lançamento em CD levou anos e anos e anos para acontecer, mesmo com a explosão do consumo do formato nos anos seguintes ao Plano Real, em meados dos 1990s. Só que, por outro lado, do fracasso nasceu o culto: muitos fãs fiéis amaram o disco e fizeram com que ali nascesse uma das fases mais queridas da banda. Não à toa, listas de melhores elaboradas pelas revistas Rolling Stone e Billboard já neste século 21 consideram o conjunto destas oito faixas “estranhas e esquisitas” um dos cem melhores trabalhos da música brasileira de todos os tempos.

Por isso, Psicoacústica é considerado hoje um dos grandes ativos dentro da trajetória do Ira!. Hoje com a formação modificada (Evaristo Pádua na bateria e Johnny Boy Chaves no baixo, ambos com passagens pela banda solo de Nasi), o grupo resolveu celebrar os 35 anos de Psicoacústica levando-o na íntegra aos palcos. O show leva, no decorrer deste ano, aos espectadores de algumas grandes cidades brasileiras a mesma ordem original das faixas. A estreia ocorreu em primeiro de abril em São Paulo. Ontem foi a vez de Porto Alegre. Hoje (7 de outubro), quem recebe o espetáculo é Curitiba (clique aqui para mais informações sobre horário, local e ingressos).

Mondo Bacana destaca abaixo oito motivos para você não perder esta apresentação especialíssima de poucas datas espalhadas pelo calendário de 2023.

Fartos do rock’n’roll

Com moral dentro da gravadora, o Ira! conseguiu fazer com que um barracão no bairro paulistano da Barra Funda com a instalação até de uma estrutura de palco vinda do Radar Tantã (danceteria paulistana que ficava no lugar depois consagrado pela marca AeroAnta). Assim, os quatro tiveram liberdade de tempo e pressão para criar, através de jam sessions, algumas faixas que viriam a ser gravadas em Psicoacústica. A ideia, entretanto, era fugir do esquema de banda mod que predominara nos dois álbuns anteriores. Então surgiram arranjos mais longos e pesados, novas timbragens, canções sem aquele esquema tradicional de estrofe e refrão intercalados e flertes com outros ritmos e gêneros, como o psicodelismo, o hard rock, o reggae, a embolada e o hip hop. Edgard compôs uma canção, com muito humor, chamada “Farto do Rock’n’Roll”, que foi incluída no lado B do vinil, só que (ironia das ironias!) o arranjo é capitaneado por uma guitarra bem pesada e que dobra o riff de baixo criado por Gaspa. Depois um longo tempo trabalhando em estúdio (fazendo prés em Sampa, gravando oficialmente no Rio) possibilitou mais experimentos que rompessem com o padrão do rock básico do power trio com guitarra, baixo e bateria. Edgard explica. “Todos os trabalhos do Ira! sempre foram conceituais. Não digo discutidos anteriormente, pensados, mas às vezes intuitivamente acabaram criando um caminho a se trilhar, de sonoridade, de conceito, de paisagem musical. E assim foi com o Psicoacústica. A gente mudou um pouco os timbres, os efeitos, usando mais tecnologia. Acho que no princípio o Ira!, de criação, era muito inspirado nos nossos ídolos, e os ídolos como os Beatles. Vamos dizer que não seja a maior influência da gente, mas tem um Sgt Pepper’s na sua carreira. Assim como Clash tem o Sandinista, o Who tem o Quadrophenia. E outros artistas têm um disco especialmente conceitual. Acho que o Ira! tem esse objetivo de fazer discos diferentes que deixem marcas mesmo e o Psicoacústica foi feito pra não ser uma continuidade, teve um rompimento ao mesmo tempo que expunha o melhor de todos nós.”

Flerte com o hip hop

Lançada no mesmo ano de Psicoacústica, a coletânea Hip Hop Cultura de Rua significou o marco zero do rappaulistano no mercado fonográfico. O álbum reúne os grupos e pessoas que costumavam se encontrar na estação de metrô do Largo de São Bento para dançar break, falar sobre grafite, trocar informações sobre o efervescente gênero que vinha dos guetos negros dos grandes centros americanos e ainda compor as primeiras letras. Nasi e André foram dois dos produtores destas gravações. O diálogo constante com essa turma toda se refletiu no disco do Ira!. Em “Farto do Rock’n’Roll”, o vocalista usa e abusa dos scratches. Já o canto falado em cima do ritmo aparece em “Advogado do Diabo”. E o sampler copia trechos incisivos do filme O Bandido da Luz Vermelha em “Rubro Zorro”.

Prévia do manguebit

Chico Science gostava tanto de “Advogado do Diabo” que às vezes incluía a música no set list de seus shows. Tudo porque, alguns anos antes do manguebit surgir em Recife para ser exportado para o resto do país e o mundo, o Ira! já conectava o regionalismo musical brasileira (no caso, a percussão nos pandeiros da embolada nordestina) com o que as antenas captavam de sonoridade vinda do exterior (no caso, o hip hop nova-iorquino). Sem falar no teor extremamente crítico da letra, que também já antecipava toda a esculhambação que temos visto ultimamente nos meios da politica e da justiça neste país. No disco, a faixa ainda acaba com o sample de discurso de uma conhecida celebridade que transita entre o religioso e a caridade, mandando ver na conjunção entre o fascismo e o neoliberalismo nas ondas de uma emissora AM: “Não adianta, tem que haver rico, tem que haver pobre; tem que haver negro, tem que haver branco; tem que haver patrão, tem que haver empregado; por que o povo quer assim!”.

Verão da lata

Era uma vez um navio de bandeira panamenha chamado Solana Star, que partiu da Tailândia rumo aos Estados Unidos no segundo semestre de 1987. Além de pescados, a tripulação também traficava 22 toneladas de maconha acondicionadas em 15 mil latas. Contudo, a agência americana de combate às drogas descobriu o plano e avisou a polícia federal brasileira porque a embarcação precisaria aportar em nosso país para fazer alguns reparos. Com a delação do chefe do bando, o Solana Star precisou se livrar do material ilícito e a solução foi jogar tudo em águas internacionais antes de chegar por aqui. Resultado: o verão tupiniquim, da Bahia ao Rio Grande do Sul, foi infestado a partir de dezembro por estas latas trazidas pelas ondas até as praias. Quem provou da erva atestou que nunca existiu (e nem deverá existir) qualquer outra coisa parecida ou melhor no ramo. Foi tanto fuzuê que a PF paralisou todas as outras atividades naquele momento e se concentrou somente neste caso. Enquanto isso, muita gente aproveitou a remessa gigante para ganhar dinheiro com vendas posteriores ou então viajar bastante com o consumo. E o Ira!, enquanto gravava o disco, ficou fã. O que acentuou ainda mais o psicodelismo de Psicoacústica. Sobretudo na última faixa do lado B, “Mesmo Distante”. Nela, Edgar sobrepõe camadas e texturas de craviola, violão e guitarras cheias de efeito. Tem até loop do instrumento tocando ao contrário. Para Scandurra, a época do fumo da lata foi importante. “A gente já estava querendo alguma coisa que transpusesse a coisa do experimentalismo técnico, de ficar experimentando ritmos musicais como se fosse um trabalho acadêmico. A gente buscava uma essência que talvez a lata tenha nos ajudado a atingir. Principalmente quando você fica mais de um mês dentro do estúdio gravando. Era um disco de oito músicas, não um disco de muitas faixas. Um disco de oito músicas densas, grandes, longas. Acho que a lata foi importante para a coisa recreativa, da diversão, que a cannabis produz, provoca na pessoa, e na inspiração mesmo, relaxamento.”

O terceiro mundo vai explodir!

Nasi dá seu atestado sobre o período de concepção de Psicoacústica: “vivíamos um período muito conturbado do Brasil, prestes a ter sua primeira eleição a presidente [o que aconteceu em 1989], saindo de uma ditadura, crise econômica séria, vindo do final de um governo corrupto e inadequado como foi o Sarney, um vice [presidente] incompetente e cheio de oligarquias ao seu lado. Acho que tudo isso, assim como os dois primeiros discos do Ira! refletem uma fase mais solar, digamos, mais esperançosa do pais, 1985, 1986, esse momento do país refletiu muito nesse ar sombrio do disco, nessa atmosfera carregada dele, em letras por vezes pessimistas ou então questionadoras, como ‘Pegue Essa Arma’. Por isso que o Psicoacústica é muito diferente em atmosfera e em letra dos dois primeiros”. Na citada “Pegue Essa Arma”, que também antevia o Brasil desses últimos anos de (des)governo violento e superarmamentista, o vocalista ainda encaixou um sample com duas frases extraídas do filme O Bandido da Luz Vermelha: “O terceiro mundo vai explodir! E quem tiver de sapato não sobra!”. 

Bandido da Luz Vermelha

João Acácio Pereira da Costa aterrorizou São Paulo praticando crimes pela madrugada durante cinco anos na década de 1960. Estupros, roubos, assaltos e assassinatos foram atribuídos pela polícia a ele, que para suas atividades ilícitas se utilizava de quatro personalidades diferentes. Uma delas era o Bandido da Luz Vermelha. O fato de carregar uma lanterna com lente vermelha chamou a atenção da imprensa que o popularizou com este apelido. O cineasta Rogerio Sganzerla pegou a história de João Acácio como base e fez em 1968 um filme de mesmo nome, com o ator Rogério Villaça como o protagonista. Muita gente acha que este longa-metragem foi a inspiração para a faixa de abertura de Psicoacústica. Afinal, “Rubro Zorro” já começa com o slogan “Trata-se de um faroeste sobre o terceiro mundo”, extraído de lá. Só que o que quase ninguém sabe é que a inspiração de João Acácio veio dos Estados Unidos. Caryl Chessman foi condenado à morte em 1948 pela mesma série de crimes ocorridos nas redondezas de Los Angeles, também sob a pecha de utilizar uma lanterna de luz avermelhada. Depois de ser preso, nos anos 1950, tornou-se popular mundo afora por ter estudado Direito, ter sido o próprio advogado e escrito um romance e três livros autobiográficos que despertavam sentimentos extremos e difusos, de compaixão a raiva. Caryl foi executado na câmara de gás em 1960 e vários versos escritos por Nasi para esta canção fazem referência a ele. Depois da morte de Sganzerla, a viúva do cineasta colocou vários trabalhos inéditos feitos por ele, inclusive um clipe como cenas de seu longa-metragem para esta faixa do Ira!. Na época, Nasi o convencera de dirigir o vídeo de “Pegue Essa Arma”, mas a gravadora deu para trás e nada rolou.

Poema português

Quando serviu o exército, Scandurra conheceu outro soldado, de sobrenome Esteves, que lhe deu um poema escrito num papel. Este poema acabou virando uma música. “Receita Para Se Fazer Um Herói” já estava no repertório do Ira! havia algum tempo mas só foi gravada em Psicoacústica e virou a única faixa a emplacar execuções radiofônicas. Só que algum tempo depois a banda descobriu que, na verdade, o poema – bastante sarcástico, por sinal – era de Reinaldo Ferreira, um dos maiores poetas da História portuguesa, com especialistas comparando-o a Fernando Pessoa.

Complemento do set list

Nasi brinca que o show não duraria nem 40 minutos se a banda tocasse somente as oito faixas de Psicoacústica. Então, acabada a reedição mas uso poucoo mas uso poucoo ao vivo deste cultuado álbum, entra uma segunda parte do concerto, que privilegia várias de suas principais músicas espalhadas pela extensa discografia. Vai ter também grandes hits, como “Núcleo Base”, “Dias de Luta”, “Flores em Você” e “Envelheço na Cidade”? Óbvio. Vai ter pequenas pérolas vindas de álbuns nem tão conhecidos, como “Tarde Vazia”, “Eu Quero Sempre Mais” e “O Girassol”? Sim. Vai ter canção da safra mais nova, do disco criado e concebido depois do hiato de alguns anos? Também e ela se chama “O Amor Também Faz Errar”. Agora o mais surpreendente é que o Ira! também tocará três covers escolhidas a dedo de clássicos do rock anglo-americano (bom… se contar os nomes das músicas ou os artistas aí vira spoiler!).