Movies

Os Banshees de Inisherin

Rivalidade entre ex-amigos como analogia da guerra que dividiu as Irlandas solidifica a verve de humor ácido de cineasta britânico

Texto por Abonico Smith

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Antes de entrar na resenha propriamente dita é bom passar algumas informações que podem ajudar no entendimento deste filme que ganhou nove indicações para o Oscar deste ano. Inisherin é uma ilha fictícia, criada para ser o ambiente dessa trama. Banshees são entidades mitológicas que pertencem à categoria das fadas. São do gênero feminino e, segundo a tradição celta, elas costumam aparecer para determinadas pessoas como um aviso de que elas bem em breve receberão uma notícia envolvendo a morte de alguém. A Guerra Civil Irlandesa durou de junho de 1922 a maio de 1923 e foi um conflito entre dois grupos nacionalistas que discordavam quanto ao fato da Irlanda pertencer ao Império Britânico e que marcou a criação do Estado Livre Irlandês como uma entidade autônoma do Reino Unido. Em suma, isto acabou dividindo politicamente a ilha em dois países: a Irlanda do Norte, formada por seis dos 32 condados, que segue, de alguma forma, vinculada à Grã-Bretanha; e a Irlanda (ou Eire), constituída pelas outras 26 regiões rebeldes, A parte “do sul”, bem maior geograficamente, é formada por uma população majoritariamente católica, enquanto a divisão “do norte” se divide até hoje entre o catolicismo e o protestantismo herdado dos vínculos reais. Por fim, o cineasta Martin McDonagh é inglês e descende de irlandeses.

Tudo isto posto e sabido, vira uma delícia assistir a Os Banshees de Inisherin (The Bashees Of Inisherin, Reino Unido/EUA/Irlanda, 2022 – Fox/Disney), mesmo com o crasso erro do título adotado pela distribuidora brasileira (alguém poderia avisar por lá que o artigo definido, na língua portuguesa, obedece ao gênero?). A trama se passa na quase erma e muito verde ilha durante o começo do ano de 1923. Os poucos habitantes de lá não possuem muita perspectiva do que fazer em suas vidas: enquanto ouvem tiros de canhões pipocando na guerra que se desenha bem longe, cuidam de suas casas e animais de estimação enquanto jogam conversa fora e bebem. Ir ao bar para se divertir é programação garantida dia sim, dia também.

O desequilíbrio de toda essa tranquilidade acontece quando Colm Doherty (Brendan Gleeson) decide interromper de modo brusco a longa amizade que tem com Pádraic Súlleabháin (Colin Farrell). Assim, de nada, de uma hora para outro, sem qualquer motivo plausível. Quer dizer, sem qualquer motivo na visão de Pádraic, que fica inconformado com o fato e se abala profundamente com a “tragédia”. A questão é que Pádraic é tido com um grande pária pelo resto da ilha. Ninguém em Inisherin o suporta. Sequer o cumprimentam. Os maiores diálogos de sua vida parecem se resumir a três pessoas: a irmã Siobhán (Kerry Condon), o vizinho Colm e o jovem Dominic Kearney (Barry Keoghan), sempre de comportamento errático e imprevisível e outro que não pensa duas vezes em entornar um copo dentro do organismo por não conseguir aceito em casa pelo pai.

McDonagh é um grande diretor e roteirista que trabalha a passos lentos. A cada meia década, em média, entrega uma obra ao espectador. Já possui quatro longas no currículo. Os dois primeiros, Na Mira do Chefe (2008) e Sete Psicopatas e um Shih Tzu (2012) são primores de comédia de humor ácido, com a verve corrosiva tipicamente inglesa. Martin constrói diálogos que fazem quem está na poltrona do cinema (ou no sofá de casa) gargalhar sem sentir culpa de nada em absoluto. Em plena tragédia, inclusive. Não sobra para ninguém. Este seu estilo foi definitivamente abraçado por Hollywood em Três Anúncios para um Crime (2017). Depois de se destacar em diversos festivais pelo mundo e levar cinco dos oito Bafta ao qual concorreu, o filme ganhou dois de sete Oscar, três de quatro SAG Awards e quatro de seis Globos de Ouro.

Apesar de não abandonar a marca registrada da acidez verborrágica, McDonagh faz de Os Banshees de Inisherin seu filme mais denso e dramático. Este é, na verdade, um filme sobre o luto. Ou melhor, o que vem logo após a perda de algo ou alguém para muita gente: a negação, a raiva, a revolta. Pádraic sente isso ao ser descartado sumariamente por Colm e realizar várias frustradas tentativas de se reconectar ao ex-amigo. Fica remoendo dia após dia o pena bunda até o dia em que um trágico acontecimento desperta uma vontade incontrolável de fazer “justiça” com as próprias mãos e dar o troco a quem lhe abandonara. De melhor amigo, vira o pior inimigo.

O contraponto de Colm diante desta ruptura intempestiva e repentina, porém, é o que torna interessante este “duelo”. O diretor e roteirista utiliza o personagem para fazer uma interessante analogia à guerra das Irlandas, mais especificamente o uso da religiosidade diante de suas atitudes. Colm, que sempre toca violino em casa e no bar, passa a ignorar Pádraic porque acha que perde tempo estando com ele, como está em uma idade mais avançada, quer passar a usar o tempo que lhe resta da vida para compor uma obra musical que lhe dê transcendência à vida. Ou seja, que faça com que sua alma seja lembrada posteriormente que seu corpo deixar este plano. Só que sua luta para atingir a glória e a perfeição deve se tornar ainda mais difícil aos poucos. Então, Colm vai desnorteando aos poucos o espectador (claro, Pádraic também) com uma série de atos de extremo radicalismo e coragem, que inclusive vão irritando cada vez mais o novo desafeto.

Outra diferença entre ambos – e que remonta à divisão das Irlandas e à diferença das religiões – é a mais completa ausência da culpa judaico-cristã por parte de Colm. E assim corre a (divertida) rixa entre os dois em uma ilha onde não há absolutamente muito mais nada de concreto para ser feito a não ser a perseguição de um ideal que contrapõe a conservação do mais do mesmo à ambição da superação física e a criação de uma obra “a serviço de Deus”.

Enquanto isso, McDonagh se revela – de novo – um ótimo diretor de atores. As grandes interpretações de Farrell e Gleeson já não chegam a ser uma novidade, já que esta é a segunda vez que a dupla trabalha em conjunto com o autor (a primeira fora em Na Mira do Chefe). No papel de Siobhán, Condon brilha fazendo a voz da lucidez diante da cega obsessão e da mais completa falta de ambição do irmão Colm. Já Keoghan, que vem pavimentando um caminho de filmes cult nos últimos anos (O Sacrifício do Cervo SagradoDunkirkA Lenda do Cavaleiro Verde) mostra as credenciais, como o sempre bêbado Dominic, para estourar de vez em Hollywood como o novo Coringa, o arquirrival de Batman.

Apesar das nove indicações para o Oscar, Os Banshees de Inisherin não levou nada neste domingo, como já era previsto. Contudo, isso pouco importa. O bom é que Martin McDonagh, com esta obra, mostra ascensão criativa em seu quarto filme e solidifica de vez seu nome no panteão dos grandes cineastas autorais do século 21. Certamente teremos mais humor ácido e histórias fora do comum nos seus próximos filmes.

Music

Ronnie Spector

Oito motivos para lembrar sempre a cantora que ficou marcada na história da música pop como o principal nome do trio Ronettes

Texto por Abonico Smith

Foto: Divulgação

A morte de Ronnie Spector, aos 78 anos de idade, foi anunciada pela família no site oficial da cantora no último dia 12 de janeiro. “Nosso amado anjo da Terra deixou este mundo pacificamente hoje após uma breve batalha contra o câncer. Ronnie viveu sua vida com um brilho nos olhos, uma atitude corajosa, um senso de humor perverso e um sorriso no rosto. Ela estava cheia de amor e gratidão”, dizia o texto publicado.

Mondo Bacana lista abaixo oito motivos para relembrar sempre a cantora, que deixou seu nome gravado na história da música pop ao liderar o grupo vocal Ronettes durante os anos 1960.

Diva dos girl groups

Se existe alguém que pode concorrer em pé de igualdade com Diana Ross (das Supremes) pelo posto de grande diva dos grupos vocais femininos que marcaram a música pop dos anos 1960, esse alguém se chama Veronica Yvette Bennett, apelido Ronnie, sobrenome Spector adquirido oficialmente após casar-se com o produtor e midas das gravações sonoras daquela época Phil Spector. Nascida em Nova York e descendente de irlandeses, africanos e indígenas, Ronnie foi descoberta por Spector quando, formando o trio Ronettes ao lado da irmã mais velha Estelle e da prima Nedra Talley, já era uma artista bastante popular em Manhattan quando Phil assinou com o grupo para a sua gravadora em 1963 e logo gravou “Be My Baby”, aquele que não só seria o grande hit como também a música que mudaria o curso da música radiofônica ao longo daquela década. Com a separação do grupo em 1967 e o subsequente casamento com Phil no ano seguinte, Ronnie continuou depois sua carreira (solo e com uma nova e breve tentativa de resgatar o nome do trio, com novas integrantes) que, se não foi tão impactante quanto antes, ao menos serviu para continuar catequisando novas gerações de fãs.

Be My Baby

Para muitos, apesar de bastante simples tanto nos versos quanto na progressão harmônica, esta é a canção mais perfeita de todos os tempos da música pop. Começa com uma batida simples, básica, minimalista, bumbo-caixa, que foi copiada pelas décadas seguintes por gente como Jesus & Mary Chain, Manic Street Preachers, Bat For Lashes, Billy Joel, Four Seasons, Meatloaf, Camila Cabello e Taylor Swift. Em julho de 1963, Phil Spector utilizou em estúdio músicos profissionais com quem costumava realizar suas sessões em Los Angeles, entre eles poderosos backing vocals como Darlene Love, Sonny Bono e uma então desconhecida Cher. Do trio nova-iorquino Ronettes, recém-contratado pelo produtor para o elenco de sua própria gravadora Philles, apenas Ronnie, com apenas 19 anos de idade, participou, cantando os versos de puro amor juvenil (Estelle Bennett e Nedra Talley sequer pegaram o avião para cruzar o país). O wall of sound construído neste arranjo inclui castanholas e orquestração, até então algo inédito nas faixas registradas por Spector. Quem criou a música – lançada em compacto em agosto do mesmo ano – foi o casal formado por Jeff Barry e Ellie Greenwich, uma das mais famosas duplas do Brill Building (são deles outros grandes hits daquele mesmo ano, como “Da Doo Ron Ron”, “Leader Of The Pack”, “Do Wah Diddy” e “Hanky Panky”). Phil abiscoitou um quinhão desta parceria por ter sido o grande amálgama da grandiosa sonoridade no estúdio (e também o dono da bola e do campinho!).

Baby, I Love You

Em time que está ganhando não se mexe. A máxima do futebol nada moderno se aplicou ao sucesso de “Be My Baby”. Com a música nas paradas, Phil Spector encomendou outra musiquinha ingenuamente romântica ao casal Barry e Greenwich para manter em alta o nome das Ronettes. O arranjo segue a mesma linha, repetindo até mesmo as castanholas. A letra é de melado só (“Baby, I love you only/ I can’t live without you/ I love everything about you”). De novo, presente no estúdio de Phil em Los Angeles para gravar os vocais estava apenas Ronnie – desta vez, Estelle e Nedra estavam na estrada com a substituta temporária Elaine, outra prima de Veronica, para cumprir agenda de shows e apresentações em TV. Entre os músicos contratados estavam os vocalistas de apoio Cher, Sonny Bono e Darlene Love e o então pianista iniciante Leon Russell integrando o time dos instrumentistas da Wrecking Crew. Saía em novembro de 1963 mais um hit certeiro das Ronettes em compacto, com ótimo alcance nas paradas anglo-americanas e que entraria no primeiro e único álbum da carreira do grupo, lançado no ano seguinte. A canção voltaria a ficar conhecida quase duas décadas depois quando os Ramones fizeram uma cover dela no álbum End Of The Century, de 1980.

A Christmas Gift For You

Fazer álbuns com canções natalinas é, até hoje, uma grande tradição no mercado fonográfico norte-americano. Em 1963, ainda surfando na onda do sucesso extremo das Ronettes, Phil Spector reuniu rapidamente em estúdio o trio e mais alguns nomes do elenco de sua gravadora (Darlene Love, Crystals, Bob Soxx & The Blue Jeans) para fazer o mesmo. Distribuiu para cada artistas três musiquinhas de Natal e o resultado é até hoje o mais belo – e diferenciado, em questões estéticas e sonoras – trabalho do gênero já realizado. Na capa de A Christmas Gift For You, os cantores, vestindo predominantemente as cores verde e vermelha nas roupas, saem de caixas de presente. Nos ouvidos, o wall of sound refinado do produtor embeleza as tradicionais e já conhecidas melodias de fim de ano. Aqui, as Ronettes cantam “Frosty The Snowman”, “Sleigh Ride” e a sapeca “I Saw Mommy Kissing Santa Claus”. Na faixa final, todos os artistas se juntam a Spector para entoar o hino gospel “Silent Night”.

Presenting The Fabulous Ronettes Featuring Veronica

O único álbum da carreira das Ronettes veio em 1964 e já ressaltando nominalmente sua principal e mais famosa integrante – de quebra, namorada do dono da gravadora, na época ainda casado com outra. Considerado pela lista de 2004 da revista americana Rolling Stone como um dos 500 maiores álbuns de todos os tempos (ficou na posição de número 422), o disco veio a reboque do estouro de “Be My Baby” e “Baby, I Love You” e não tardou a emplacar três outras faixas nas paradas: “Walking In The Rain”, “Do I Love You?” e “(The Best Part Of) Breaking Up”. Por mais parecer uma compilação de singles, com direito a releituras do doo-wop ”I’m So Young” (que logo também ganharia regravação dos Beach Boys) e do r&b “What’d I Say”(hit de ray Charles), o álbum não teve sucessor. Depois daqui, Spector só voltou a lançar música nova de Ronnie, Estelle e Nedra em compactos de sete polegadas.

Feminismo

Nos últimos anos, Ronnie foi uma grande defensora do movimento #metoo, que balançou as estruturas dos bastidores do entretenimento nos Estados Unidos e serviu como um grito de basta dado pelas mulheres para os desmandos e abusos dos homens no poder deste setor econômico. Mas também foi um dos símbolos que quebraram o monopólio dos homens nas formações dos grupos vocais, um dos pilares da música pop negra norte-americana desde a segunda metade dos anos 1950. Depois do estouro das Ronettes nas paradas, ficou bem mais fácil para o grande público conhecer nomes como Supremes, Martha & The Vandellas, Shirelles e Shangri Las.

Abuso atrás de abuso

Publicado em 1990, Be My Baby: How I Survived Mascara, Miniskirts, and Madness já está sendo adaptado para o cinema, com estreia prevista para os próximos anos e Zendaya fazendo o papel de Ronnie. Neste livro de memórias com subtítulo cheio de empoderamento, ela conta sem meias palavras todo o clima de terror vivido durante o auge de sua carreira com as Ronnettes e ao lado do namorado/marido/produtor Phil Spector. De personalidade possessiva, controladora e violenta, Phil tocou o terror físico e psicológico pra cima da jovem estrela, chegando a realizar várias tentativas de sabotar a sua carreira como performer e proibi-la de cantar e se apresentar ao vivo. Em 1974, após ser oficializado o divórcio, ele chegou a ameaçá-la de morte, dizendo que iria contratar um homem para matá-la. Exatamente um ano atrás Phil morreu na prisão, aos 81 anos de idade. Desde 2009 ele cumpria pena pelo assassinato da atriz Lana Clarkson, alvejada por ele na madrugada de 3 de fevereiro de 2003.

Fãs famosos

O que tem em comum Johnny Ramone, Jesus & Mary Chain, Amy Winehouse, Yeah Yeah Yeahs e Raveonettes? Todos estes nomes formam parte de uma grande turma de músicos que cresceu ouvindo e idolatrando o trabalho de Ronnie – tanto que, de uma maneira ou de outra, acabaram incorporando em suas sonoridades a influência doce e melódica de Ronnie e das Ronettes.

Movies, Music

Amor, Sublime Amor

Com direção certeira de Steven Spielberg, clássico musical da Broadway ganha nova versão para o cinema repaginada aos dias de hoje

Texto por Abonico Smith e Camila Lima

Fotos: Fox/Disney/Divulgação

Com a transmissão simultânea do som junto à imagem, trazida às salas de projeção em 1927, Hollywood escancarou as portas para que o musical reinasse absoluto como o gênero preferido da audiência nas décadas seguintes. Títulos como O Mágico de Oz (1939), Sinfonia de Paris (1951), Cantando na Chuva (1952), Nasce Uma Estrela (1954), Minha Bela Dama (1964) e A Noviça Rebelde (1965) viriam a se tornar clássicos do cinema norte-americano. Entretanto, a partir dos anos 1970, com a mudança de paradigmas da indústria e a chegada de uma turma de produtores, diretores e roteiristas que passaram a apostar no diferente, no conceitual, no alternativo, as histórias apoiadas por coreografias e canções passaram a ser, pouco a pouco, escanteadas pelos grandes estúdios em seus cronogramas de lançamentos anuais. Mesmo com os teatros sempre lotados na Broadway, a expectativa da experiência cinematográfica tornou-se algo cada vez mais longe das tramas musicadas, apesar de algumas recentes tentativas de soerguimento delas através de boas bilheterias e prêmios obtidos por La La Land: Cantando Estações (2016), Mamma Mia! O Filme (2008), Chicago (2002) e Moulin Rouge: Amor em Vermelho (2001).

Eis que chegamos ao ponto central onde está outro exemplo da Era de Ouro dos musicais na sétima arte. Adaptado de uma montagem de sucesso que estreara pouco tempo antes na Broadway, West Side Story (batizado singelamente aqui no Brasil como Amor, Sublime Amor) estendeu às grandes telas em 1961 a história de jovens nova-iorquinos que, quatrocentos anos depois (justamente no fervor dos anos 1950, a década que “inventou” a adolescência), reviviam as paixões proibidas, rivalidades familiares e o arquétipo do amor puro e juvenil, elementos eternizados por William Shakespeare lá na Inglaterra do final do século 16 em sua tragédia teatral Romeu e Julieta. Dirigido em parceria entre Jerome Robbins (que também assinava a empreitada dos palcos) e Robert Wise (que logo depois viria a se consagrar com A Noviça Rebelde), o longa-metragem caiu no gosto popular e da Academia. Levou dez Oscar na cerimônia do ano seguinte e emplacou a trilha sonora como um marco daquele início de percurso daquele segmento da música pop que viríamos a chamar de rock’n’roll – tanto que o nome de Elvis Presley chegou a ser cogitado para a escalação do protagonista. Então um teenager, Steven Spielberg ganhou de presente naquela época o disco com as músicas compostas pelo maestro Leonard Bernstein em parceria com o letrista Stephen Sondheim, o que fez se tornar cada vez apaixonado pela obra com o passar dos anos. 

Além de seu apreço pela obra original, há outras possíveis motivações que levaram Spielberg a reviver a trama de Tony e Maria neste momento histórico específico. Apesar de um clássico, o West Side Story de seis décadas atrás abordava questões de gênero e em especial raciais de forma muito problemática, incluindo o uso do hoje inaceitável recurso do blackface e a escalação de atores nada latinos para viver a turma latina da trama. O que o cineasta fez foi trazer – de maneira brilhante e com a ajuda do roteirista Tony Kushner – todas essas questões à tona de forma crítica, embora mantenha o tom quase sublime. Exemplos são a realidade das comunidades latinas nas grandes metrópoles dos EUA no fim da década de 1950, o racismo sofrido pelos latinos, debates de interseccionalidade, principalmente suscitados na personagem de Anita (Ariana DeBose): mulher, trabalhadora, porto-riquenha e negra.

Apesar de todo o cunho crítico e das quase três horas de duração, o novo Amor, Sublime Amor (West Side Story, EUA, 2021 – Fox/Disney) é daqueles filmes gostosos de assistir, como Spielberg sabe como fazer. A sensação passada na sala de cinema é a de estar num espetáculo da Broadway, com os atores ali bem na frente, não apenas projetados em uma tela. Os números musicais são extravagantes, maravilhosamente coreografados e dirigidos. Neles, figurino e iluminação são muito bem utilizados pra dar ainda mais vida às cenas. Há também uma contraposição muito interessante entre cores quentes e frias para representar os latinos e os yankees – algo, aliás, já feito na série Them, de Jordan Peele.

Por tudo isso – e pela sempre assumida paixão pela história juvenil de paixão, ódio e morte musicada por Bernstein e Sondheim – que a opção por Steven Spielberg (justo ele, um dos integrantes da turma underground que veio para derrubar o status mágico dos musicais nas telas!) por este novo Amor, Sublime Amor torna-se a escolha mais acertada que poderia ter sido feita. Também conhecido pela sobriedade de seus filmes sérios e pelo magnetismo espetacular que imprime aos seus so called filmes-pipoca (aqueles como gosto supremo de entretenimento leve, despretensioso e divertido, como uma boa Sessão da Tarde sempre deve ser para qualquer que seja a idade dos espectadores), ele foi o cara certo na hora certo para atualizar com precisão a história centrada na paixão do integrante dos branquelos americanos Jets Tony (Ansel Elgort) por María (Rachel Zegler, bastante cotada para indicações às principais premiações de atriz da temporada), irmã do líder da gangue latina rival Sharks. Se a onda agora for refazer musicais clássicos para conquistar a geração Z, pelo menos este West Side Story ganha disparado em poder de atração e qualidade ao também recente remake de Nasce Uma Estrela com elenco encabeçado por Lady Gaga.

Movies

Falling – Ainda Há Tempo

Viggo Mortensen estreia na direção com uma tocante história baseada em sua própria experiência com a demência em família

Texto por Abonico Smith

Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Ver um filme pode ser uma experiência catártica, sobretudo se a história for um grande drama. Muitas vezes, por se identificar bastante com quem o protagoniza, sua história, seu sofrimento e seus percalços, espectadores descarregam tudo em lágrimas ou gatilhos interiores acessados. Só que fazer um filme também pode significar a mesma coisa. Viggo Mortensen que o diga com seu Falling – Ainda Há Tempo (Falling, Reino Unido/Canadá/Estados Unidos, 2020 – Califórmia Filmes), no qual assina direção, roteiro mais boa parte da trilha sonora, além de interpretar um dos dois protagonistas.

Boa parte da história começou a ser escrita logo após o funeral de sua mãe. Ela, assim como também o pai de Viggo, passou alguns anos sofrendo de demência. Algumas das histórias sobre a doença e o convívio entre a/o paciente e os familiares que a/o cuidam, ouvidas pelo ator naquele momento, não saíram mais de sua cabeça até sua estreia como diretor se concretizar para ser exibida nas grandes telas.

E Viggo consegue transmitir delicadeza mesmo em tempos difíceis entre uma relação mantida às turras entre pai e filho. Na verdade, o pai Willis nunca mudou o jeito bronco de ser. Fazendeiro do norte do estado de Nova York, satisfaz-se em ser desagradável a todos ao redor somente pelo fato de ser desagradável, de contrariar pedidos e expectativas alheias, desde que seus dois filhos (John e Sarah nasceram). Não aceita as transformações sociais trazidas com o tempo, torce o nariz para a homossexualidade do filho (e também para o seu casamento de anos com o pai de sua enteada), tem rejeição pelo fato de Barack Obama ter sido o primeiro presidente preto eleito pelos Estados Unidos para governar a Casa Branca e não pensa duas vezes antes de provocar confusões com verborragias e atitudes. Ao mesmo tempo, Willis não entende que, por causa do avanço da demência, precisa ser (pacientemente) cuidado pelo primogênito John. Não quer mudar-se para a “progressista” Califórnia por ali ser “uma terra de bichas”. Não aceita a morte da dedicada e pacata Gwen (a mãe dos meninos) ao passo que tem alucinações sexuais com a segunda esposa Jill, aparecendo sempre em sua mente como uma voluptuosa ruiva seminua mesmo em meio de uma nevasca ao ar livre. Por tudo isso, o veterano Lance Henriksen (cujo currículo traz filmaços históricos como Um Dia de Cão O Exterminador do Futuro) entrega uma performance intensa e monstruosa como o indomável octogenário.

O vai e vem do passado, aliás, é um trunfo constante da narrativa e vai ajudando o espectador a montar o quebra-cabeça da conturbada relação entre pai e filho. Desde pequeno, John (Mortensen, que a princípio relutava em atuar em seu próprio filme) é criado por Willis a ser um típico exemplar de macho como ele. O menino – que aparece em distintas fases de sua infância e adolescência – já aprende, bem cedo, que as situações devem ser dribladas com pacifismo, condescendência e, sobretudo, muita, muita paciência. O que poderia se tornar uma armadilha para a trama, porém, revela-se um ganho para Viggo. Não somente esses flashbacks se misturam como lembranças abruptas de uma parte quanto de outra, como também pequenos sinais externos às cenas de ontem e hoje vão sendo delicadamente distribuídos ao espectador para que ele faça a sinapse e descubra de quem é aquele lampejo naquela hora do aqui e agora.

Quando chega ao final, o “novato” diretor também revela outros dois pontos altos de seu filme. Primeiro é a engraçada (se é que durante todo o drama intenso poderia, de fato, haver espaço para algo com um ligeiro toque de humor) participação especial de David Cronenberg. O cultuado cineasta – dono de uma obra marcada pelo horror corporal – aqui é um mero médico que vai realizar o temido (pelo machão Willis, claro) exame de próstata. Por fim, quando começam a subir os créditos, Viggo mostra ao mundo a aposta nas multi-istrumentistas irmãs postiças que formam o Skating Polly, uma fofíssima dupla (trio se contar a participação do irmão de uma delas na bateria e na guitarra) formada por elas em 2009, então aos 9 e 14 anos de idade, e que conta com (já) cinco álbuns de carreira e apadrinhamento de grandes ícones do rock alternativo americano, como Exene Cervenka (vocalista da lendária punk X e primeira esposa de Mortense), Flaming Lips, Babes In Toyland, Band Of Horses, Veruca Salt, Deerhof, Mike Watt e Garbage. A canção “A Little Too Late” não só gruda de imediato na cabeça como é uma incrível força lírica e melódica que anda faltando por aí nas programações das rádios, playlists de internet e escalações de grandes festivais.

Ao realizar todas as etapas de Falling – Ainda Há Tempo, o ator, roteirista, músico e diretor Viggo Mortensen também parece ter exorcizado toda a dor passada durante seus dramas familiares – tanto que dedica o filme a seus dois irmãos mais novos, com quem dividira a turbulência enfrentada duas vezes contra a demência. Por ser um projeto autoral/pessoal em demasia, acaba se tornando uma peça verdadeira de arte e ainda imprime maior veracidade àqueles espectadores que porventura possam vir a se identificar com o sofrimento vivido por John e Sarah desde o nascimento até a meia-idade. Exibido publicamente pela primeira vez no festival de Sundance em 2020, o longa-metragem chega agora aos cinemas brasileiros, com um certo atraso provocado por causa da pandemia da covid-19. Aos mais desavisados, pode até ser algo chocante de se ver e duro de se acompanhar. Entretanto, não deixa de ser uma obra de extrema sensibilidade e que passa bem longe de tender ao tom melodramático.

Movies

Maligno

Retorno do diretor James Wan ao body horror deleita os amantes do gênero mas se perde ao se alongar no relógio

Texto por Ana Clara Braga

Foto: Warner/Divulgação

James Wan é um nome estabelecido no gênero de terror. As franquias Sobrenatural e Invocação do Mal são as grandes responsáveis por construir a imagem do diretor na indústria. Filmes de casas mal assombradas e espíritos logo se tornaram sua marca registrada. Porém, antes de se aventurar no mundo de demônios e fantasmas, Wan jogou suas fichas no body horror. É dele o primeiro filme da franquia Jogos Mortais, o primeiro de diversos sangrentos filmes sangrentos que, ao contrário de seus trabalhos mais recentes, não se apoiam nos sustos. Em Maligno (Malignant, EUA/China, 2021 – Warner), que chega agora às telas, James Wan volta às suas raízes. 

Tudo começa com a misteriosa filmagem de um hospital psiquiátrico pediátrico. Algo está errado com um paciente chamado Gabriel, mas é difícil saber o que exatamente. Corta para Madison Mitchell (Annabelle Wallis), uma enfermeira grávida chegando em casa e encontrando seu marido violento que em um ataque de raiva bate a cabeça de sua esposa contra a parede. Agora com uma ferida que parece nunca sarar, Madison passa a ter visões aterrorizantes de assassinatos. 

Profundamente inspirado pelo horror corporal de David Cronenberg, James Wan se aventura nos horrores que o corpo humano é capaz de produzir. Mais violento que seus últimos filmes, Maligno não economiza no sangue falso. O longa é conduzido com uma boa dose de mistério e uma excelente reviravolta. O ritmo não se mantém por todos os 111 minutos, mas o suficiente para gerar uma atmosfera de tensão. 

A produtora A24 se popularizou nos últimos anos e seus filmes de terror e suspense caíram na graça da audiência. O FarolMidsommarEx Machina, além da qualidade narrativa, também trouxeram para a mesa grande qualidade técnica e atenção a detalhes como fotografia e trilha sonora, o que nem sempre é prioridade do cinema de horror. James Wan também bebe dessa fonte recente e apresenta um filme com um belo visual e cenas com iluminação vermelha que agradam esteticamente.  

Maligno parece ser mais longo do que realmente é e a montagem pode ser a culpada. Para preservar o grande mistério do filme, personagens são inseridos na trama sem explicações – ato que instiga a curiosidade mas alonga o relógio. Era realmente necessário colocar momentos de flerte entre a irmã da personagem principal e o detetive que investiga os assassinatos? 

Quando chega o clímax, a surpresa vale a pena. São minutos de deleite para amantes do body horror. Infelizmente, após seu melhor momento, Maligno se perde. O desfecho é sem sal e repete o pior dos últimos filmes de James Wan. A energia cai rapidamente e o que era de fato uma história interessante torna-se mais um clichê aguado.

Maligno é a volta de Wan para suas raízes. Inconstante e intenso, o filme duvida de seu próprio potencial ao entregar um final que pensa que o público que irá querer ver. Afinal, o que é um final feliz de verdade no cinema? É aquele que deixa o público momentaneamente feliz ou o que nunca mais é esquecido?