Music

Lulu Santos – ao vivo

Show realizado no dia do aniversário de 70 anos do artista mostra erros e acertos e dá início à nova turnê Barítono

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Reprodução

Lulu Santos nunca foi um cantor na acepção da palavra. Tem afinação, noção e inteligência vocais mas ele sempre foi mais notável por conta de sua impressionante capacidade de compor canções de sucesso do que por cantá-las. Tudo bem, vários artistas são assim. A gente entende, compreende e aceita. Porém, à medida que o tempo passa, determinadas questões tendem a ganhar mais importância e, no caso de Lulu, passam a atrapalhar. A estreia de seu novo showBarítono, via especial no Multishow e Globoplay, exibida no dia 4 de maio, quando ele completou 70 anos de idade, mostrou que Lulu, infelizmente, tem uma capacidade vocal bastante reduzida hoje em dia. Mesmo mudando o tom de algumas canções, mesmo usando backing vocals, a impressão que se tinha era que ele explodiria as veias do pescoço.

Tudo bem, novamente. A gente sabe, a gente entende. Como disseram nas redes sociais, “Lulu tem 70 anos, isso deve ser levado em conta”. Ora, então o que fazemos com outros artistas que, mesmo depois desta idade: seguem nos palcos com capacidade pra lá de razoável?  Nem precisa ir muito longe: o que dizer de Maria Bethânia ou do próprio Caetano Veloso, que, como Lulu, também nunca teve grande capacidade vocal? Ou Guilherme Arantes, o finado Erasmo Carlos… Enfim, o fato é que o próprio Lulu percebeu e admitiu o fato, como revelou à apresentadora Fátima Bernardes em entrevista prévia: “Algumas canções dos meus primeiros dez anos de carreira ficaram muito complicadas para cantar”.

Lulu se saiu bem em momentos como “Aviso Aos Navegantes” e “Um Pro Outro”, cujos arranjos comportaram melhor seu registro atual, gravíssimo. Aliás, as escolhas no set list comprovaram outro dado crucial sobre sua carreira: sua capacidade de escrever sucessos se esgotou no início dos anos 2000. Nos 20 anos seguintes, sua fonte parece ter secado. Tudo bem que o álbum mais recente, Pra Sempre (2019), tem sonoridade respeitável e, pelo menos, duas belas canções: “Orgulho e Preconceito” (que entrou no set list) e a faixa-título, mas nunca poderiam ser comparadas a sucessos de outros tempos. Sendo assim, a mais recente que surge no roteiro deste show é “Já É”, de 2003, que, para compensar o fato, é uma das mais inspiradas criações da carreira do homem e foi hit enorme.

De resto, as canções com Gabriel O Pensador (“Astronauta” e “Cachimbo da Paz”, cantadas pela dupla nessa noite) e “Janela Indiscreta” (num bom resgate de repertório), todas do Acústico MTV, lançado em 2000, são as mais recentes se não for levada em conta também a inédita “Presente”. O forte se concentrou nos anos dourados da década de 1980, quando Lulu, de fato, foi absoluto. Porém, mesmo com canções do calibre de “Casa”, “Condição”, “Satisfação”, “Tempos Modernos”, “Um Certo Alguém”, “A Cura” e várias outras no bolso do colete, a questão do registro vocal puxou a coisa para baixo. Pelo menos para ouvidos mais exigentes. A banda que o acompanha é competente e enxuta, com destaque para o baixista Jorge Ailton – que também ajuda nos backing vocals – e o baterista Sergio Melo, que segura a onda com firmeza e joga para o time, mas não consegue driblar a limitação vocal. Em tempo: se há algo realmente notável na banda, é o próprio Lulu, que segue como um dos grandes guitarristas da história do pop rock nacional em todos os tempos.

No Teatro Multiplan (RJ) com a plateia com vários globais – que iam de integrantes da Central Globo de Jornalismo a pessoas como o chef Felipe Bronze, o cantor Leo Jaime, o genial comentarista carnavalesco Milton Cunha e uma procissão de rostos novos que me pareceram absolutamente desconhecidos –, o clima do show era de uma grande festa da firma, com um convidado especial, que também é da firma (lembrem-se, desde 2012, Lulu Santos é jurado do The Voice – ironia define).

Lulu é artista competente e dono de uma carreira com muito mais acertos do que erros. Torço para que sua turnê Barítono o leve para palcos mais diversos e interessantes.

Set list: “Toda Forma de Amor”, “Um Certo Alguém”, “O Último Româmtico”,  “Janela Indiscreta”, “Adivinha o Quê?”, “Tudo Azul”, “Assaltaram a Gramática”, “Cachimbo da Paz”, “Astronauta”, “De Repente”, “Tempos Modernos”, “Tudo Com Você”, “Esse Brilho em Teu Olhar”, “A Cura”, “Apenas Mais Uma de Amor”, “Um Pro Outro”, “Presente”, “Orgulho e Preconceito”, “Satisfação”,  “Condição”, “Aviso Aos Navegantes”, “Já É”,  “Assim Caminha a Humanidade”, “Lua de Mel”, “Sereia”, “De Repente Califórnia” e “Como Uma Onda”. Bis: “Tudo Bem”, “Certas Coisas”, “Tão Bem”, “Lei da Selva” e “Casa”.

Series, TV

The White Lotus

Segunda temporada da série que explora a aventura no mundo do turismo luxuoso e sua fauna desconcertante encanta os olhos

Texto por Taís Zago

Foto: HBO Max/DIvulgação

Eu preciso confessar para vocês que a primeira temporada de The White Lotus, vencedora de onze Emmys em 2022, à primeira vista, não me empolgou muito. O elenco é inegavelmente espetacular, em especial as atuações de Murray Bartlett como Armond (o gerente da filial havaiana da franquia de hotéis de luxo) e Jennifer Coolidge, como a insensível, autocentrada e deprimida milionária Tanya. O enredo sob o sol escaldante do Havaí, apesar de multifacetado, causou-me incômodo, talvez pela simplicidade dos seus temas. Possivelmente, também, eu não tenha levado em consideração que durante sua concepção e realização estávamos vivendo tempos pandêmicos – o auge da produção data de meados de 2021, e, dadas as condições e as restrições internacionais e sanitárias, foi feito um esforço para criar um conteúdo de qualidade da forma mais segura e rápida possível. O ator, autor, produtor e diretor Mike White, mais conhecido por ter escrito especialmente para Jack Black o blockbuster Escola de Rock (2003), conseguiu criar uma trama em um ambiente relativamente hermético – a cadeia White Lotus é uma espécie de Club Med do nouveau riche norte-americano – e unir de forma interessante drama e humor macabro com bastante equilíbrio.

Na segunda temporada de The White Lotus (EUA, 2022 – HBO Max), com maior liberdade tanto criativa quanto espacial, Mike nos leva para a sede siciliana da cadeia da flor exótica. Temos diante de nós uma nova equipe de funcionários locais trabalhando no hotel e novos hóspedes a serem paparicados sem restrições. O formato da série nos lembra uma versão Upstairs, Downstairs (1971) contemporânea – sucesso britânico da década de 1970 cujo formato televisivo influenciou várias produções, entre elas a festejada série Downtown Abbey (iniciada em 2010), onde os dramas da crew do hotel têm o mesmo peso na narrativa dos dramas dos privilegiados visitantes.

Como personagens recorrentes da primeira temporada temos apenas a confusa Tanya (Jennifer Coolidge) e seu “novo” marido Greg (Jon Gries). Tanya chega ao encantador resort com uma nova assistente a tiracolo, Portia (Haley Lu Richardson). Junto a ela no barco estão dois casais de jovens amigos milionários – Cam (Theo James) e a esposa Daphne (Meghann Fahy), Harper (Aubrey Plaza) e o marido Ethan (Will Sharpe), completando a trupe dos bem-sucedidos temos os Di Grasso – o pai Domenic (Michael Imperioli), o avô Bert (F. Murray Abraham) e o filho/neto Albie (Adam DiMarco). Na frente do comando dos funcionários do hotel fica a gerente italiana Valentina (Sabrina Impacciatore), que nessa temporada assume o papel que Bartlett interpretou na primeira temporada. Completam o elenco ainda as duas garotas de programa locais Luccia (Simona Tabasco) e Mia (Beatrice Grannò). 

Mike White não nos economiza no quesito encontros e desencontros. O roteiro possui várias reviravoltas e requisita a nossa atenção aos detalhes, às vezes, escondidos nas próprias imagens paradisíacas e objetos luxuosos. Repetindo o formato da primeira temporada, iniciamos essa jornada com mais corpos sendo encontrados. Do primeiro capítulo, então, voltamos no tempo até a chegada dos turistas ao hotel onde percorremos todo o caminho de volta à cena inicial. Um formato que vagamente lembra a antiga série Ilha da Fantasia, onde os visitantes usam suas férias para trabalhar seus problemas pessoais, dificuldades de comunicação, mistérios e conflitos familiares que a rotina do dia a dia teimava em enterrar.

As atuações são um deleite à parte. Todos os atores italianos merecem aplausos de pé, principalmente Sabrina, Simona e Mia. A leveza e a pungência do humor desse país dão à segunda temporada exatamente o tempero exótico que faltou à antecessora. Gargalhamos do absurdo, assim como gargalhamos do desespero. Ao mesmo tempo nos comovemos e somos encantados por um charme tão natural e genuíno que pensamos que em Taormina, o pitoresco vilarejo siciliano, tudo é permitido.

Visualmente, The White Lotus é uma série de tirar o fôlego. A fotografia, a música, a ambientação, tudo nos leva a viajar pelo mundo do luxo dos resorts e dos cenários de nossos sonhos. É o olhar do turista e, portanto, também há um amontoado de clichês bem selecionados, como um catálogo de uma agência de viagens. A Sicília nos é mostrada pelos olhos encantados dos norte-americanos – com vulcão, praias de água turquesa, palazzos decadentes cobertos de ouro e pinturas renascentistas, vinhedos e ilhas rochosas cheias de mistério. White também não poupou recursos para nos alimentar os olhos. Por outro lado, também não economiza recursos ao esfregar na nossa cara a amargura, a feiúra e a traição latentes no âmago de seus personagens. De novo, não existem aqui mocinhos e bandidos: existem pessoas que ora nos encantam ora nos causam repulsa com suas atitudes. E nós, de uma distância segura, rimos muito de tudo isso.

Em uma entrevista recente, o criador explicou que o tema da primeira temporada no Havaí foi o amor, o da segunda na Sicília foi o sexo e que o da terceira será a espiritualidade. Com isso, já nos deixa na expectativa de qual paraíso desse mundo será o novo destino e na certeza da confirmação da produção da próxima aventura no mundo do turismo luxuoso e sua fauna desconcertante.

Movies

Garoto dos Céus

Representante sueco ao Oscar deste ano traz forte disputa de poder dentro de uma das mais prestigiosas universidades do Egito

Texto por Carolina Genez

Foto: Pandora Filmes/Dilvugação

Adam (Tawfeek Barhom), filho de pescador, recebe uma bolsa de estudos para uma das mais prestigiosas universidades da cidade do Cairo, Al-Azhar, o epicentro do poder do islamismo sunita. Porém, ainda com pouco tempo dentro da instituição de ensino, o Grande Imã – a maior autoridade religiosa no Egito – acaba falecendo. Assim começa a disputa de quem irá ocupar o cargo, à qual Adam acaba sendo levado.

Segundo o diretor e roteirista Tarik Saleh, que nasceu na Suécia e tem raízes paternas egípcias, a ideia para Garoto dos Céus (Walad Min Al Janna, Suécia/França/Finlândia/Dinamarca, 2022 – Pandora Filmes) nasceu quando ele releu o livro O Nome da Rosa, de Umberto Eco, e começou a pensar sobre como seria essa história em um contexto mulçumano. Apesar de ter pensado no filme sobre a obra de Eco, as histórias são bem diferentes.

A trama envolve justamente por conseguir trazer uma história recheada de suspense e mistério – o longa inclusive foi um dos destaques da premiação de Cannes de 2022 onde acabou levando a estatueta de melhor roteiro. Além disso, a obra consegue trazer bastante da cultura árabe para o espectador, como as tradições, regras, política, religião e o cotidiano da universidade. A relação entre a política e religião, inclusive, é mostrada de maneira explícita, evidenciando não só sua importância dentro da universidade, mas no país como um todo, impactando todas as vidas, até daqueles que nem tinham tanta conexão assim, como o próprio protagonista. Saleh  ainda consegue ser mais abrangente e tocar em assuntos como o extremismo, a manipulação, a fé e o próprio destino.

Apesar de possuir todos esses detalhes, muito pode acabar se passando despercebido aos brasileiros, não só por falta de contextualização sobre aquela cultura e conhecimento do público, mas também pelo grande número de informações disparadas em duas horas de duração (o que provoca confusão em diversos momentos). A narrativa é interessante, mas pela falta de tempo para a quantidade de informações, boa parte acaba pouco desenvolvida e aproveitada. Mesmo com este percalço, entretanto, o filme consegue se sustentar e entregar uma história com diversas reviravoltas.

Um fator que auxilia muito na conexão do brasileiro com o longa é a sua ambientação, já que o filme se passa em um contexto atual. Além disso, a obra transporta quem está no cinema para dentro da realidade dos personagens, onde paredes têm ouvidos e o perigo é sempre iminente. Por conta da sensação de alerta, Garoto dos Céus também consegue imprimir ótimo ritmo, deixando o espectador na ponta da cadeira e se preparando para o que pode acontecer. 

No decorrer do filme, acompanhamos a visão de Adam, descobrindo tudo juntamente com o personagem. Ele não só é arrastado para dentro do jogo de poder, como também passa por um período de amadurecimento e crescimento. Na primeira metade, o jovem tem pouco desenvolvimento e falta de personalidade. Na segunda, porém, Adam muda e estabelece conexões com o espectador.

Garoto dos Céus é o representante sueco para uma vaga para o Oscar de filme internacional (o longa ficou entre os finalistas para as cinco indicações, que saem no próimo dia 24). Envolta em um mistério muito interessante, a história vale a pena ser assistido pela narrativa envolvente e também por conseguir trazer muito sobre a cultura árabe. Mesmo que de forma atropelada.

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Me Chama Que Eu Vou

Documentário revive a trajetória do furacão “cigano” Sidney Magal, que varreu a música brasileira a partir do final dos anos 1970

Texto por Abonico Smith

Foto: Vitrine Filme/Divulgação

No final dos anos 1970 um furacão varreu a música verdadeiramente popular brasileira. Não houve como passar incólume. Muita gente gostava, adorava, não tirava os olhos da televisão quando ele aparecia nos programas de auditório. O mais importante: sabia cantar a letra todinha, assoviava a melodia. Todo dia, o tempo inteiro. E não eram só mulheres. Muitos homens também. E claro, muitas crianças. Afinal, não tinha como não se apaixonar por aquela figura esguia de fartos cabelos negros encaracolados dançando e rebolando sem paridade em nosso país e cantando letras imageticamente fortes, extrapolativamente sensuais.

Argentino que havia sido artista de rock nos anos 1960, Roberto Livi estava no Brasil na condição de empresário de artistas e produtor fonográfico. Sua missão mais importante era descobrir novos artistas para projetar suas carreiras e fazê-los vender muitos discos e shows. Foi assim com nomes como Alcione e Peninha, por exemplo . Com Sidney Magalhães também. Aliás, Magal, rebatizado sem a metade do sobrenome oficial desde que voltara de uma viagem pela Europa para tentar a carreira artística cantando e dançando nos seus vinte e poucos anos. O shape de Sidney Magal já existia antes mesmo de Livi descobri-lo. Fazia sucesso na noite, soltando o vozeirão no palco de uma churrascaria na Barra da Tijuca, já com o mesmo figurino exótico (couro, correntes grossas, cabelão, peito nu, preto como cor dominante) utilizado quando passou a gravar discos. Aliás, Magal desde sempre foi um artista não apenas para ser ouvido, mas principalmente para ser visto. 

Recém-estreado em circuito nacional, Me Chama Que Eu Vou (Brasil, 2022 – Vitrine Filmes) disseca o personagem Sidney Magal através da ótica e dos comentários de seu criador Magalhães. É aquele documentário básico e clássico, cronologicamente linear, que vai da gestação da carreira em seus momentos prévios aos tempos de hoje, passando, claro, pelo apogeu, decadência, redescoberta e renascimento artístico. Bom para quem não conhece direito a sua história, mas também curioso para quem acompanhou tudo isso em tempo real no decorrer das décadas. Prato cheio aliás, é o tratamento dado pela mídia durante os três primeiros álbuns. Além de algumas imagens da época, o crème de la crème são as entrevistas para TV e sobretudo as revistas de fofoca e semanários jornalísticos. Mesmo que aparecendo de maneira fugaz na tela, as páginas diagramadas com textos, fotos e manchetes são uma delicia de serem lidas. Nestas cenas são reveladas todo o fascínio com o qual a imprensa tratava aquela persona rebolativa que pervertia a MPB. A elite o tachava de brega. Os mais preconceituosos não conseguiam compreender que aquela figura já havia sido criada antes mesmo do lançamento do primeiro disco. Muita gente o considerava uma estrela fabricada pela indústria fonográfica, um “cigano de araque, fabricado até o pescoço” (como cantava Rita Lee, de pura pirraça, na segunda versão da letra da não menos debochada canção “Arrombou a Festa”, no qual espinafrava os nomes mais importantes da música nacional da época). Uma das reportagens até dava a receita para se “fabricar” um ídolo.

O que poderia jogar contra o documentário dirigido por Joana Mariani acaba, entretanto, sendo o maior trunfo dele. O filho do cantor, um dos entrevistados, também assina a obra como coprodutor-executivo. Mas também não se pode dizer que Me Chama que Eu Vou seja um filme chapa-branca. Mesmo porque, fora a polêmica sociológica do início de carreira, Sidney Magalhães nunca foi uma figura de fato polêmica. Nunca precisou esconder na de sua vida, nem mesmo protagonizou escândalos pessoais de qualquer tipo. Por isso mesmo nunca foi necessário Mariani sequer pensar em qualquer outra narrativa para o doc. Magal ainda ajuda por ser uma pessoa extremamente organizada, sobretudo no que tange ao arquivo de itens sobre a sua trajetória artística. Ele, sempre que pode, guarda até hoje recortes, cartazes, fotos. Se todo este material enriqueceu muito o material apresentado na edição final (inclusive coisas pré-estouro nacional nas rádios e TVs) dá para ficar imaginando todo o resto que ficou de fora da montagem.

O trabalho de Mariani é bastante elucidativo ao jogar luz para os espectadores compreender algo que talvez muitos deles não saibam: a diferença tamanha entre o que são os dois Sidneys. Enquanto o Magal é espalhafatoso, sensual e ousado, o Magalhães é quieto, família e até certo ponto conservador nos costumes (inclusive os musicais). Aliás, o gosto pelas canções mais tradicionais (bossa nova, sobretudo) veio de casa. Tia tocando piano, mãe apaixonada por canto (a ponto de se lançar na carreira depois da fama do filho, aproveitando inclusive para usar o pseudônimo dele), primo dos mais festejados pelas artes brasileiras. Para quem não sabe: o tal primo era ninguém menos que o poetinha Vinicius de Moraes, letrista de algumas das principais canções em língua portuguesa.

Só que Vinícius nunca compôs uma letra para Sidney gravar, mesmo porque o garoto mais novo nunca ficou insistindo nisso. Nem precisaria mesmo. Com versos afiados (e quentes, muito quentes!) como os da polca “Sandra Rosa Madalena, a Cigana” e a meio rumba meio disco “Meu Sangue Ferve Por Você” , não há como não cantar junto com Magal e suas reboladas. Outras versões em nosso idioma também são poderosas. O rock “Tenho” veio importada do repertório do famoso cantor argentino Sandro Anderle (1968), também com estilo visual cigano e principal referência de Livi ao trabalhar com Magal. De outro portenho, o cantor de boleros Cacho Castaña, o produtor trouxe outra disco music, “Se Te Agarro Com Outro Te Mato”, seu primeiro compacto, lançado em 1977, com direito até a guitarra turbinada por um discreto porém não menos poderoso e psicodélico pedal fuzz.

O que o documentário não fala (infelizmente, porque seria uma informação mais completa e não desmereceria de maneira nenhuma a carreira do carioca) é que o grosso dos hits dos anos dourados de Magal são compostos por versões. “Meu Sangue Ferve Por Você”, no caso, é versão de uma versão. A original é francesa e teve duas letras e gravações em 1973: uma em inglês, pelo artista Sunshine, sob o nome de “Melody Lady”; a outra, em francês, por Sheila (que anos depois viria a apostar na disco music como Sheila B Devotion), chamada “Mélancolie”. O argentino Sabú pegou a mesma base sonora e levou a canção para o espanhol, agora como “Oh Cuanto Te Amo”. Deste sucesso veio a ideia para a letra “quente” de Magal. Também de Buenos Aires veio mais um rock, “Amante Latino”, gravada com o andamento um pouco mais desacelerado por Rabito em 1974.

A segunda parte do trabalho de Joana foca na ruptura da parceira entre Magal e Livi e a espiral descendente na qual seu trabalho caiu logo no começo dos anos 1980. Curiosamente, tudo surgiu do esgotamento da fórmula da imagem forjada de cigano. A letra “Sandra Rosa Madalena”, idealizada por Livi, pode ter forjado a imagem de Magal, que tinha apenas um fiapo de ascendência cigana lá pelo lado de uma tataravó, e catapultado o artista ao estrelato, mas também fora a maldição da qual ele tentou se livrar. Por diferenças pessoais e profissionais rompeu os laços com seu produtor e lançou-se na música romântica, incentivado pela gravadora, com outro look, de gomalina e cabelos presos com rabo de cavalo. Lançou vários discos mas nenhuma música nova fez sucesso. Na época em que Magal mais tentou sair do personagem e passar a ser ele mesmo – inclusive se casando e tendo filhos, contra a vontade de seu até então mentor de bastidores, que considerava ser o suicídio de um ídolo abrir o jogo da vida pessoal para seus fãs. Aí que entra uma fase interessante do filme, com Magalhães refletindo sobre os efeitos colaterais da mudança e os atos para a sua reinvenção, mudando-se para a Bahia e atuando como ator de novelas e cantor de teatro musical, inclusive sendo convidado e dirigido por Bibi Ferreira. Até a reviravolta provocada pela chegada da febre da lambada, o sucesso de “Me Chama Que Eu Vou” com tema de abertura da novela da Globo (em um período em que isso ainda representava um bilhete premiado de loteria para um artista da música) e a consequente redescoberta do cantor pelas geração MTV Brasil. Todo este período de ostracismo e redenção, sob a análise do próprio Sidney (mais uma boa dose de sentimentalismo familiar) funciona contra a tentadora queda para uma possível glorificação do astro de um documentário.

Me Chama Que Eu Vou, o doc, não só informa aquele que não conhece direito a trajetória do ídolo. Gráfica e ritmicamente dinâmico, sobretudo na fase inicial da fama, diverte todo mundo. Como uma apresentação do “falso” cigano, seja em um show completo ou apenas em um número em antigos programas de auditório na TV. Aliás mais do que produto da mera mente comercial de Livi ou resultado do puro instinto daquele jovem que cresceu banhado em arte e só queria fazer da vida o ato de cantar e dançar, Sidney Magal é fruto daqueles tempos de recente formação de redes nacionais de televisão, proporcionadas pela possibilidade cada vez mais barata de transmissões via satélite (leia-se anos 1970 em diante). Sorte de quem faz audiovisual e de quem gosta de ver documentários.

festival, Music

Knotfest Brasil 2022 – ao vivo

Festival criado e encabeçado pelo Slipknot ganha sua primeira edição no país com doze atrações e shows de qualidade

Slipknot

Texto por Bruno Eduardo (Rock On Board)

Fotos por Rock On Board (Vinicius Pereira: Slipknot; Rom Jom: Judas Priest, Mt Bungle, Bring Me The Horizon e Sepultura)

No último dia 18 de dezembro foi realizada a primeira edição do Knotfest Brasil, em São Paulo. O festival, idealizado pelo Slipknot, reuniu naquele domingo doze bandas em dois palcos e teve todos os seus ingressos esgotados. Cerca de 45 mil pessoas estiveram no local para acompanhar bons shows, incluindo medalhões e bandas da nova geração. 

Mesmo gerando algumas críticas por parte do público, os palcos localizados em cada extremo do Anhembi até que funcionaram bem na questão de mobilidade entre os shows. Com as atrações alternadas entre o KnotStage e o Carnival Stage, os fãs precisavam se deslocar de um lado ao outro do sambódromo assim que terminava uma apresentação, para poder assistir à seguinte. O deslocamento durante o evento até que aconteceu de forma bem tranquila, com exceção do período da tarde, onde uma enorme quantidade de pessoas aglomerou-se em frente a um telão instalado no meio do Anhembi, para assistir à final da Copa do Mundo, entre França e Argentina.

Outro fator que vale registro é que embora o Knotfest tenha suas ativações para experiências como qualquer outro grande festival, como por exemplo, o Slipknot Museum e estúdios de tatuagem, ele se diferencia por seguir um modelo mais old school, no qual os shows são o maior atrativo – algo que caracteriza bastante o público amante do metal, que vai aos festivais principalmente para assistir às bandas.

Não é sempre que temos um festival, onde podemos dizer que praticamente todos os shows foram realmente bons ou interessantes. O destaque, é claro, ficou para os donos da festa (Slipknot), que fecharam o festival de forma sublime, mostrando o porquê é hoje um dos melhores grupos de rock para se assistir ao vivo. A banda contou com um som de alto nível, além de toda a estrutura cênica, com labaredas, fogos de artifício e telão de qualidade. Levaram os fãs ao delírio por uma hora e meia de um repertório praticamente de grandes sucessos e um Corey Taylor – que já pode ser considerado um dos maiores frontmen da História – inspirado. Essa foi certamente uma das melhores passagens da banda pelo Brasil, perdendo apenas (na opinião deste jornalista) para a antológica apresentação do Rock in Rio em 2011.

Judas Priest

Em um line up bem diversificado, tivemos também um grande show do Judas Priest, que comemora 50 anos de carreira. Surpreendeu pela ótima forma de Rob Halford, que veio com seus agudos preservados, mesmo aos 71 anos de idade. O set list também foi de respeito, já que a banda priorizou o preferido da casa, Screaming For Vengeance, que completou 40 anos em junho. Ao todo, foram cinco canções do álbum de 1982.

Outro show que deu o que falar e reuniu um grande público interessado foi o tributo ao Pantera, que contou apenas com apenas Phil Anselmo da formação original, já que o baixista Rex Brown cancelou sua participação por ter contraído covid-19. Com Zakk Wylde (Ozzy Osbourne/Black Label Society) e Charlie Benante (Anthrax), foram prestadas homenagens aos dois integrantes e irmãos fundadores, os falecidos Vinnie Paul e Dimebag Darrell. Num repertório baseado nos dois álbuns mais bem sucedidos do finado grupo (Vulgar Display Of Power Far Beyond Driven), o tributo agradou a grande maioria dos presentes.

Mr Bungle

Contando com menos apelo e interessados, outros nomes também saíram do festival com novos fãs. O Mr Bungle, banda liderada por Mike Patton (mais conhecido pelo trabalho com o Faith No More) se apresentou com sua nova formação, que traz dois ícones do thrash metal: o baterista Dave Lombardo (ex-Slayer) e o guitarrista Scott Ian (Anthrax). Num repertório baseado em sua primeira demo, relançada em 2020, o Bungle fez uma ode ao thrash, com canções longas e riffs matadores. Abusando do português, Patton homenageou a campeã Argentina, xingou o já ex-presidente Bolsonaro e convidou no palco Andreas Kisser e Derrick Green do Sepultura para uma versão de “Territory”.

Outra banda que estreou no Brasil foi o Vended, que tem dois filhos de integrantes do Slipknot. O vocalista Griffin Taylor, filho de Corey Taylor, e o baterista Simon Crahan, filho de Shawn “Clown” Crahan. O som do grupo pode ser considerado um subproduto do Slipknot, com foco na fase mais embrionária, onde o nu metal ainda é referência – basta ouvir o último single deles, “Overall”. Com o rosto pintado, Griffin comandou o show com muita energia e boa performance. A banda, formada apenas em 2018, ainda não possui um full álbum e apresentou músicas de seus EPs lançados nos últimos anos.

Bring Me The Horizon

Dos nomes que já passaram por aqui, o Bring Me The Horizon vai mostrando um crescimento de sua legião de fãs no Brasil. O grupo carregou um bom público para o palco principal (Knotstage) e fez a galera cantar alguns de seus sucessos. Assim como aconteceu no Rio de Janeiro, o grupo também foi um dos primeiros a utilizar bem os telões, com imagens e efeitos visuais criados especificamente para as canções. Ainda rolou um pedido do público para “Sleepwalking”.

Primeira banda gringa a tocar neste Knotfest, o Trivium se apresentou debaixo de um sol escaldante. O destaque ficou para o carismático Matt Heafy, que além de usar uma blusa do Brasil falou o tempo inteiro com o público. A banda não priorizou nenhum álbum específico. Eles resolveram fazer um apanhado de toda carreira e funcionou bem no festival. A verdade é que o grupo agradou sem precisar fazer muito esforço.

Dos nacionais, o Sepultura fez um show já bastante conhecido por aqui. No entanto, eles aproveitaram as atrações do Knotfest para incluir convidados em sua performance. Scott Ian apareceu no palco em “Cut Throat”. Matt Heafy foi outro que colaborou tocando “Slave New World”. Phil Anselmo emprestou sua voz ao clássico “Arise”. No final, os hits “Ratamahatta” e “Roots Bloody Roots” encerram o set com nível elevado.

Sepultura

Aquecendo o público no início do festival, tivemos três boas apresentações nacionais. Não existiria melhor nome para iniciar o festival de uma forma tão intensa quanto o Black Pantera. A banda já parece veterana em cima do palco, mostrando cada vez mais à vontade em festivais dessa envergadura. Além de carregar um repertório de letras contundentes, o grupo não deixa de se posicionar contra todo tipo de preconceito. Tanto que não foram poucas vezes que o vocalista Charles Gama mandou seu recado (“White Power é o caralho!”), referindo-se ao tema polêmico envolvendo Phil Anselmo, que se apresentara mais tarde.

Já o Project 46 promoveu uma ode às rodas de pogo numa apresentação impecável para um festival de metal. Agitando sem parar, o vocalista Caio MacBeserra usou e abusou – no bom sentido – dos berros e dos agudos, mostrando o porquê de ser um dos melhores cantores do gênero no cenário nacional. O público, já bem numeroso, respondeu ao show do grupo de maneira catártica, com mosh, palmas e energia lá em cima. A banda saiu de palco consagrada pela galera.

Em show dividido em primeiro e segundo tempo, Jimmy & Rats e Oitão agitaram o público que chegava aos poucos no Anhembi. As bandas abriram o palco Carnival Stage e não deixaram a intensidade baixar. Destaque para o bom repertório de Jimmy & Rats que basearam o show em seu ótimo album, Só Há Um Caminho a Seguir, comprovando a efetividade da fórmula musical entre fãs de metal em geral.