Music

Charlie Watts

Conhecido por suas batidas precisas e a paixão paralela pelo jazz, integrante original dos Rolling Stones morreu hoje aos 80 anos

Textos por Marden Machado (Cinemarden) e Fábio Soares

Foto: Reprodução

Começo a escrever ao som de “Emotional Rescue”, minha canção favorita dos Rolling Stones, para falar sobre Charlie Watts, meu rolling stone favorito e baterista da banda de rock mais antiga do mundo ainda em atividade. A abertura dessa música, a oitava do álbum de mesmo nome, com o baixo de Bill Wyman e a batida precisa de Watts, sempre produziram em mim um efeito hipnótico.

Sei que a maioria das pessoas tem no vocalista ou no guitarrista a figura favorita de um grupo musical. Nada errado nisso. Talvez eu esteja errado. Afinal, meu beatle favorito é George Harrison. No Who é John Entwistle. No Yes, o Chris Squire. No Led Zeppelin, o John Paul Jones. A exceção que não foge à regra talvez seja Robert Fripp, guitarrista do King Crimson.

Charlie começou sua carreira tocando na Blues Incorporated, que sempre tocava no Ealing Club de Londres, que era frequentado por Mick Jagger, Keith Richards e Brian Jones. O trio que viria a formar os Stones convidou o baterista para integrar a banda e o resto é história.

De 1963, sua entrada oficial no grupo, até o dia de sua morte foram 58 anos de excepcionais serviços prestados ao rock’n roll. Paralelo a esse trabalho, que ele considerava o melhor do mundo, tinha uma outra banda, Charlie Watts Quintet, de jazz. O álbum Long Ago and Far Away, lançado em 1996, traz ele na capa, de terno e sobretudo, do jeito que gostaria de tocar nos Stones.

Watts foi diagnosticado com um câncer na garganta em 2004. Chegou a fazer um tratamento rádio e quimioterápico e, segundo anunciado na época, ficou curado. Recentemente, prestes a iniciar os ensaios para uma megaturnê mundial pós pandemia dos Rolling Stones, sua família anunciou que o baterista não participaria por razões médicas. O anúncio de sua morte – provavelmente ligado a esta questão de saúde – ocorreu nesta terça-feira, 24 de agosto, aos 80 anos de idade.

Vá em paz, Charlie Watts. E obrigado pelas inesquecíveis batidas, sempre rítmicas e precisas, de sua bateria. John Entwistle, George Harrison e Johnny Cash te aguardam para fazer parte de uma nova banda. (MM)

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Rolling Stones ao vivo é sempre a mesma coisa? Sim, claro! Mas visitar a Mona Lisa no Louvre, o Guernica no Reina Sofia e o Cristo Redentor também são e ninguém questiona. Minha primeira aventura stoneana foi também o début de muitos brasileiros. A banda mais icônica da história, na praia mais icônica do planeta e de graça? Tô dentro! E lá rumei de São Paulo para o Rio em 18 de fevereiro de 2006 para aquele que seria o maior público da história desta instituição do rock. Um milhão de pessoas esperadas, um milhão de pessoas comparecidas, praia abarrotada, tudo para uma noite incrível, exceto por um detalhe.

Após o show de abertura dos Titãs, uma série de arrastões aconteceu na areia com vários espectadores lesados (eu, incluso). Mas não havia tempo para lamentações. Os Stones subiriam ao palco pontualmente às 21h30 e teríamos que assistir. Assistir? Bem, isso é um modo de dizer porque uma famigerada área VIP lotada de famosos que sequer sabiam dizer o título de três canções da banda separaram a realeza dos plebeus. Restava aos reles mortais contemplar a apresentação através de diversos telões instalados ao longo da orla. Fiquei tão longe do palco que devo ter visto o show lá no bairro de Madureira. Mas, tudo bem, eram os Stones, enfim!

Poderia discorrer agora sobre a performance de Jagger, Richards e Wood mas é sobre Charlie Watts que devemos falar tendo em vista que o lendário baterista faleceu na último dia 24 de agosto em Londres, aos 80 anos de idade. Vestindo calça clara e camiseta verde-limão, a lenda viva iniciou os trabalhos conduzindo a cozinha em “Jumpin’ Jack Flash”, “It’s Only Rock’n’Roll (But I Like It)” e “You Got Me Rocking”. Nas parcas vezes em que as câmeras o focalizaram, sua frieza era de assustar. Nem parecia que exercia seu ofício diante de dois milhões de olhos. Sua postura deveria ser a mesma num esfumaçado clube em Londres.

Aceleração? Iniciou-se na então recém-lançada “Oh, No, Not You Again” com Watts mais preciso que um relógio. Sua discrição era assombrosa e ditava o ritmo de jogo. Mais parecia um piloto de automóveis sabendo exatamente o momento de acelerar e praticar o contrário.

Em “The Place Is Empty”, sob os vocais de Keith Richards, sua minimalista “cama” foi fundamental para o momento “isqueiros acesos”, fato que repetiu-se em “Happy”, ainda sob a voz do guitarrista. Mas foi em “Rough Justice” que a monstruosidade entrou em campo. Suas batidas marciais adquiriram ares de rolo compressor, que se seguiria em “Get Off Of My Cloud”, antes da catarse catapultada pela trinca “Start Me Up”, “Brown Sugar” e “(I Can’t Get No) Satisfaction”.

No fim, sabe-se lá como Me. Watts conseguiu vestir uma JAQUETA debaixo de calor senegalês do verão carioca para cumprimentar o público. Esses ingleses! Cada louco com sua mania…

Corta pra 2016. A quarta-feira de 24 de fevereiro amanheceu e permaneceu carrancuda pela maior parte do tempo. A turnê Olé, que percorreria estádios de futebol pelo mundo todo, desembarcava no Morumbi como uma itinerante atração turística. E chuva torrencial que caiu na zona sul paulistana permaneceu a encharcar o estádio até os indefectíveis acordes de “Jumpin’ Jack Flash”. O arrasa-quarteirão stoneano de abertura de shows jamais perdera seu punch ao longo dos anos servindo como contraponto à elegância de Charlie Watts. Como baterista de jazz, sabiamente conduzia seu carro alegórico de forma discreta, deixando a efusividade do palco a cargo de rebolado dos quadris de Mick Jagger e do desleixado modo da dupla Keith Richards e Ron Wood.

É inexato tentar chegar a um consenso sobre o que se passaria na cabeça de um discreto baterista como Watts em meio ao pandemônio do dia a dia de uma banda de rock. Talvez porque toda casa de baixo meretrício necessita de um porteiro sóbrio. Talvez porque toda “gaiola das loucas” necessita de seu porto seguro.

Ao final daquela apresentação encharcada, voltei para casa feliz. Havia visto os Stones pela segunda vez. Só não sabia que não haveria outra vez de contemplar Charlie Watts em ação. Ficam minha admiração e sua eterna timidez, protegida sob o alicerce de suas baquetas.

Sua elegância foi suprema para mim, num intervalo de uma década (2006-2016). Foram dez anos resumidos em um, aliás. Gracias, Mr. Watts! (FS)

Music

Smashing Pumpkins

Há 25 anos, o surto de grandiloquência de Mellon Collie And The Infinite Sadness projetava a banda ao estrelato e cobrava um preço alto demais

Texto por Fábio Soares

Foto: Reprodução

Quando Robert Smith concebeu Disintegration ao mundo, em 1989, sabia que não poderia errar. Às vésperas de completar 30 anos de idade, o líder do Cure tinha a plena consciência de que o oitavo álbum da banda não tinha o direito de assumir o papel de peça descartável em sua discografia. Teria de alcançar o patamar de obra de arte, custe o que custasse. E se não o fez, chegou bem próximo a isso. Disintegration é, até hoje, objeto de culto e devoção de dez entre uma dezena de fãs dos ingleses. Sua atmosfera de sonho sublimemente musicou as dúvidas, tristezas e crises emocionais na entrada da terceira década de vida de qualquer indivíduo. A trilha sonora para meus problemas. Mesmo que eu já tenha passado dos 40.

Corta para 1995. William Patrick Corgan, líder dos Smashing Pumpkins, tinha 28 anos de idade quando estava em estúdio para gravar sua obra-prima antes de chegar à terceira dezena da idade. Apesar do relativo sucesso entre o público indieSiamese Dream, o álbum de 1993, foi ofuscado pelo movimento grunge e comeu a poeira que a turma de Seattle havia deixado na estrada. Dois anos mais tarde (e com a morte de Kurt Cobain, um ano antes) pertencia aos Pumpkins a bola da vez. O posto de maior banda do planeta estava vago. O momento era aquele e Corgan sabia muito bem disso.

Para o maior álbum de sua vida, Billy Corgan apostou alto: seria um CD duplo, sem fáceis aplausos ou momentos felizes. Seria um projeto triste com atmosfera de sonho. Melancólico como todas as viradas dos 29 para os 30 são.

Mellon Collie And The Infinite Sadness já nasceu grandioso. Partindo de seu projeto gráfico (na capa, a figura de um semianjo a partir de uma estrela) à concepção de seu luxuoso encarte, o álbum possuía 28 canções condensadas em duas metades conceituais e previamente batizadas. “Dawn To Dusk” (“do amanhecer ao anoitecer”, em português) representava o dia, a luz, a euforia das drogas propriamente dita. Já “Twilight To Starlight” (“do crepúsculo à luz das estrelas”) simbolizava a noite, a escuridão, a depressão após a passagem do efeito psicotrópico.

Sua audição continua não sendo fácil, mesmo após um quarto de século de seu lançamento – o disco chegou às lojas no dia 24 de outubro daquele ano. Mellon Collie… não é conceitual em sua acepção e se há algo neste sentido ao longo de quase 30 faixas é a atmosfera de colagens de imagens que vivenciamos durante um sonho. Se a hipnótica “To Forgive” dá passagem ao quase hardcore de “Fuck You (An Ode To No One)” no primeiro disco, no outro é o inverso que dá as cartas: a desconcertante beleza de “Stumbleine” abre espaço para “X.Y.U.”, um arrasa-quarteirão com sete minutos de duração e ares de heavy metal. Para quem estranhou, tarde demais! Afinal, Mellon Collie… vinha para confundir e não para explicar.

O fator MTV exerceu importante papel para o sucesso da megalomaníaca empreitada. A banda produziu poderosos videoclipes para os três hit singles do álbum: “Bullet With Butterfly Wings”, “1979” e “Tonight, Tonight”. No Video Music Awards de 1996, por causa deste último (cujas imagens prestavam uma grande homenagem ao pai dos efeitos especiais no cinema, o francês Georges Méliès), o quarteto comandado por Corgan passou o rodo na premiação com nada menos que seis troféus, incluindo “Clipe do Ano”. Tudo perfeito, não? Nada poderia dar errado…

Mas deu. A obsessão e perfeccionismo quase doentios de Billy Corgan em lançar “o álbum perfeito da vida, do mundo e do sistema solar” cobrou um preço alto demais à banda. Algumas sessões de gravação de Mellon Collie… atingiram inimagináveis dezoito horas consecutivas. O esgotamento físico e mental era evidente inclusive na turnê de promoção do disco.

Durante a passagem por São Paulo e Rio de Janeiro, na derradeira edição do festival Hollywood Rock, em janeiro de 1996, já era explícito o descompasso entre Corgan e a baixista D’Arcy, o guitarrista James Iha e o baterista Jimmy Chamberlain. E coube ao último ser protagonista do mais triste episódio da carreira da banda. Em julho do mesmo ano, em um quarto de hotel em Nova York e na companhia do baterista, o tecladista Jonathan Melvoin, que viajava contratado como músico de apoio, sofria uma fatal overdose de heroína. Chamberlain ganhou do chefe – que àquela altura já havia comprado dos outros três suas partes dos direitos da banda – a demissão sumária. Então, os Pumpkins foram lançados ao fundo do poço de um ano trágico.

Espera lá… Não era essa a real intenção de Mellon Collie…? As oposições? Tamanho sucesso acompanhado de uma tragédia como esta, não fazia parte do script? Procuro acreditar que tamanha densidade de obras como Mellon Collie… cobram seu preço de qualquer maneira. Para o bem ou para o mal. Não se concebe uma salada emocional como esta, repleta de lirismo e arranjos díspares, sem escapar impunemente. Sua concepção soa como nossas vidas: altos e baixos sem fim, transitando entre o sagrado e o profano. Sua audição merece atenção tão meticulosa que mesmo agora, 25 anos depois, ainda é possível descobrir novos detalhes que passaram até então despercebidos.

Billy Corgan quis nos dar uma obra de arte. Conseguiu. Quis ainda que ela nos marcasse por euforia e dor. Conseguiu também. E o que fica é que Mellon Collie And The Infinite Sadness será nossa válvula de escape a desafogar emoções diversas por muitos anos. Porque assim é a arte, propriamente dita. E porque é ao conjunto de tudo isso que dedicamos a alcunha “vida”. Mesmo que encharcada por melancolia. Mesmo que repleta de infinita tristeza. Mesmo que registrada no CD duplo mais vendido daqueles anos finais do século 20.