Inimaginável dobradinha eletrônica proporcionada pelo C6 Fest entra para a memória dos shows internacionais no Rio de Janeiro

Kraftwerk
Texto e fotos por Fabio Soares
Vez por outra, novos festivais de música vêm à tona no Brasil com diferentes nomenclaturas. Nada, porém, apaga o fato de que poucas majors do entretenimento detém o controle de grandes eventos, monopolizando a contratação de nomes consagrados, elevando seus cachês à enésima potência e dificultando ao máximo a vida de produtores independentes de shows.
Sendo assim, quando o C6 Fest foi anunciado imaginou-se que seria mais um tentáculo de uma grande corporação do entretenimento. Entretanto, a divulgação de que membros de sua curadoria também montaram line-ups dos extintos Free Jazz e Tim Festival trouxe um alento para entusiastas. Com datas praticamente simultâneas entre São Paulo e Rio de Janeiro, foi justamente o 18 de maio da capital fluminense que chamou a atenção.
Juntos, dois mastodontes da música eletrônica tocariam na mesma noite em solo carioca: Kraftwerk e Underworld. Porém, nem o apelo da presença de ambos na mesma noite pareceu balançar os corações do público carioca. Encalharam os ingressos, o que forçou a direção do festival a oferecê-los pela metade do preço.
Mesmo com a promoção, o Vivo Rio (casa de shows localizada no Parque do Flamengo) não lotou. Quinze minutos antes do início da apresentação do Kraftwerk, notáveis eram os “clarões” na plateia. E com apenas cinco minutos de atraso, o fundador e único membro original do grupo de Dūsseldorf, Ralf Hūtter, e seus atuais escudeiros Fritz Hilpert, Henning Schmitz e Falk Grieffenhagen iniciaram a viagem audiovisual que é a marca registrada de toda gig do conglomerado alemão.
O medley de “Numbers” e “Computer World” deu início aos trabalhos e. como já era esperado, as projeções nos três telões (um no palco e dois laterais) deixavam bem claro a intenção do grupo em ressaltar que TUDO começou com eles. Que é deles a transição analógico/digital na música pop. Que partiu deles a ignição do primeiro transistor em um sintetizador.
Em “Spacelab”, um afago na Cidade Maravilhosa: imagens do Google Earth mostravam o Rio de Janeiro a partir do espaço para, a seguir, um disco voador sobrevoar o Pão de Açúcar e literalmente pousar na porta do Vivo Rio.
Historicamente, a iluminação em led nas vestimentas dos “homens-robô” sempre foram uma espécie de elemento vivo das apresentações. Destaque para “The Man Machine”, com uma iluminação vermelha que totalmente preencheu o ambiente.
Em “Autobahn”, a eterna autoestrada germânica convidou o público a uma viagem no tempo. Sozinho nos vocais, Ralf Hūtter (do alto de seus 76 anos de idade) permanecia econômico em sua performance, com gestuais curtos a comandar os quase invisíveis sintetizadores do bólido alemão sonoro, cuja imagem e funcionamento exerce um histórico segredo tal qual a fórmula da Coca-Cola.
Misteriosamente posicionado no meio do set list, o hino mundial “The Model” pôs a casa inteira para dançar. A satisfação no semblante de Hūtter era evidente. Mais de quarenta anos depois, a inconfundível “cama” de teclados ainda faz um estrago dos grandes. Estrago este, aliás, que foi seguido por uma versão de quase dez minutos de “Trans-Europe Express”, a saga ferroviária e sonora que não perde sua beleza mesmo também após quase meio século de seu lançamento.
Na sequência, um verdadeiro PANDEMÔNIO foi instalado no recinto com a execução de “The Robots”. A imagem de “homens-robô” com camisas vermelhas e gravatas negras segue sendo um atemporal ícone pop capaz de ditar moda, ditar ritmo, ditar tudo.
Um grande momento que anestesiou a plateia para o tão esperado epílogo com a dobradinha arrasa-quarteirão “Boing Boom Tschak” e “Musique Non Stop”. Este foi um daqueles momentos inesquecíveis com o grave dos sintetizadores refletindo nas paredes do ambiente e voltando no peito dos presentes com um peso inacreditável. No fim, ver Ralf Hūtter ser ovacionado pela plateia foi o momento mais emocionante da noite, fechando com chave de ouro uma noite de celebração à pedra fundamental da música eletrônica no terreno pop.

Underworld
De forma não surpreendente, muita gente foi embora após o término da apresentação do Kraftwerk, deixando (literalmente) a pista livre para o Underworld. Na estrada há 44 anos, o duo galês já começou a apresentação com a arrasa-quarteirão “Juanita 2022”, lançada no ano homônimo. A iluminação ora etérea ora caótica reforçada por muita fumaça cenográfica deu ao Vivo Rio o tom de balada já esperado. E a dupla Rick Smith/Karl Hyde mostrou um entrosamento digno de amigos do tempo do colégio: o primeiro, envolto a um arsenal tecnológico, poderia muito bem deitar eternamente no berço esplêndido de suas programações prévias mas, ao contrário, acelerou, diminuiu, acelerou e diminuiu novamente o ritmo para a performance arrasadora de Hyde. Aos 66 anos, o frontman dançou e pulou muito. Só faltou plantar bananeira no palco.
O set list? MA-TA-DOR! “Two Months Off”, “Push Upstairs”, “Jumbo”. O Vivo Rio ia à loucura a cada explosão sonora que era acionada pelo DJ do duo. A cada faixa, Hyde dançava em lados distintos do stage, convidando os presentes a fazer o mesmo. Em “King of Snake”, soltou: “estar no Brasil é um sonho e no Rio, ainda mais!”.
O recém-lançado single “And The Colour Red” talvez tenha sido o momento menos incensado de uma apresentação impecável. No fim, o clássico secular “Born Slippy”, imortalizado na primeira versão da película Trainspotting deu números finais a um repertório de uma hora e dez minutos hipnotizantes e imortalizados na memória de quem os viu.
Por fim, o saldo foi inesquecível. Por ser patrocinado por um banco, o C6 Fest pouco se abalará pelo prejuízo causado pelos ingressos encalhados em sua edição carioca. Por outro lado, a ficha só caiu depois: em qual outra cidade do mundo seria possível assistir (na mesma noite) uma apresentação com Kraftwerk e Underworld na sequência? Obrigado, Rio! Nos lembraremos deste 18 de maio por muito tempo.
Set list: “Numbers/Compuetr World”, “Spacelab”, “The Man Machine”, “Autobahn”, “Computer Love”, “The Model”, “Tour de France 1983/Prologue/Tour de France Étape 1/Chronos/Tour de France Étape 2”, “Trans-Europe Express/Metal On Metal/Abzug”, “The Robots”, “Planet Of Visions” e “Boing Boom Tschak/Musique Non Stop”.
Set list Underworld: “Juanita 2022”, “Two Months Off”, “Push Upstairs”, “Jumbo”, “Dark & Long (Dark Train)”, “King Of Snake”, “Rez/Cowgirl”, “And The Colour Red” e “Born Slippy .NUXX”