Music

Hoodoo Gurus – ao vivo

Apesar do repertório irregular, australianos se garantem no Rio de Janeiro com músicas novas, boas lembranças e performance bem ajustada

Dave Faulkner (Hoodoo Gurus)

Texto por Marcos Bragatto (Rock em Geral)

Fotos de Daniel Croce (Rock em Geral)

A noite é a do tipo “fadada a recordações”, diria o velho homem da imprensa, e o momento especial não poderia ser outro, mesmo porque é único. Sim, só aconteceria mesmo no Brasil (só no Rio?), onde a dobradinha de canções, que passaria batida em todo o mundo aqui tem um significado realmente especial e precisa ser tocada. Tem que por no contrato que tem que ser assim. Por isso, quando os primeiros acordes da primeira música aparecem, o público vem abaixo, piração total. E quando a segunda vem quase emendada, aí a loucura é generalizada. É assim que o excelente público que encheu o Metropolitan (ops, Qualistage), reage no auge do show do Hoodoo Gurus, na sexta 14 de março, no Rio de Janeiro.

Explica-se que tanto “Out That Door” – a primeira – quanto “What’s My Scene” – a segunda – cederam trechos para vinhetas para a programação da Rádio Fluminense FM, que marcou fortemente a derradeira passagem da emissora de Niterói pelo dial na primeira metade da década de 1990. Ou seja, motivo de emoção e saudades de um tempo marcante de verdade. Era a época em que a rádio cobria competições de surfe e as músicas que os surfistas brasileiros ouviam quando iam competir na Austrália rodavam forte na programação, ganhando a pecha de surf music, sem ter nada a ver com o subgênero criado por Dick Dale, Beach Boys e afins. A coisa cresceu tanto que todas essas bandas (parte da new wave/pós-punk/rock australiano oitentista) fizeram turnês concorridas nos anos subsequentes por aqui. A do Hoodoo Gurus, em 1997, por exemplo, lotou duas noites seguidas deste mesmo Metropolitan.

Dito isso – saudosismo uma ova! – o fato é que nesse meio tempão a banda acabou, voltou com discos pouco ouvidos e agora está na turnê do novo álbum, o bom Chariot Of The Gods, que saiu no ano passado. Dele são apresentadas quatro faixas: as boas “World Of Pain”, que abre a noite, e “Equinox”, “uma canção sobre boa sorte”, cantada pelo guitarrista Brad Shepherd; e as nem tão legais assim “Chariot Of The Gods”, a faixa-título, e “Answered Prayers”, que emula Echo & The Bunnymen e não esconde as origens 1980s da banda. Uma pena terem ficado de fora, desse disco novo, três das melhores músicas: “Get Out Of Dodge”, “My Imaginary Friend” e “Carry On”, dotada de um refrãozaço daqueles (procure saber!).

Montar set list, veremos, não chega a ser uma virtude desses aussies. Mas compor música boa, sim, e, vamos e venhamos, em mais de 40 anos de estrada, há um bocado delas pro público cantar do início ao fim. Caso de, por exemplo, “If Only…”, da época em que a banda circulou por aqui, com Dave Faulkner (vocal e guitarra) colocando a massa pra cantar; “Come Any Time”, na abertura do bis; e da deliciosamente pop colante “I Want You Back”. Além de Faulkner e Shepherd, estão na formação o baixista Richard Grossman, completando a trinca remanescente dos shows noventistas por aqui, e o batera Nik Rieth, novo na turma, mas cascudaço. É evidente em todo o show a performance bem ajustada do quarteto e os fabulosos backing vocals de Grossman e Brad Shepherd, inclusive nas músicas do disco novo, que se completam com a voz de Dave Faulkner – este, a propósito, com o falsete em dia.

show só engrena da metade para o final, o que se explica, de certo modo, pela escolha do repertório. Músicas como “Tojo” e “Poison Pen”, por exemplo, poderiam tranquilamente ser limadas, e não é porque “Leilani” é a primeira música composta pela banda que tem que ser tocada em todos os shows. De outro lado, que falta fazem temas como “A Place In The Sun”, “Down On Me” e “In The Middle Of The Land”, só para citar três das grandes ausências. O que não invalida momentos lindos com em “Castles In The Air” e “1000 Miles Away”, no bis, além da piração total da dobradinha “Out That Door” e “What’s My Scene”, citada lá em cima. O que, no fim das contas, faz dessa passagem do Hoodoo Gurus pelo Rio uma noite e tanto. Que voltem sempre que tiverem um novo álbum pra mostrar!

Na abertura, a banda cover VAAR Surf Band comandou um bailão daqueles. O grupo parece especializado em tocar as músicas das bandas oitentistas australianas – a tal da surf music australiana, vá lá. E aí é um Gang Gajang aqui, um Midnight Oil acolá e outro Spy Vs Spy, tudo hit que todo mundo conhece e curte o tempo todo. O bom é que o quarteto se garante no palco e se esforça para tocar tudo igualzinho às versões originais, a ponto de o vocalista se dividir entre violão, harmônica e até um trompete. O ruim é a execução no final de um inacreditável medley que incluiu Red Hot Chili Peppers e REM juntos! Mas que animou a turma, isso animou.

Set list: “World Of Pain”, “Another World”, “The Right Time”, “The Other Side Of Paradise”, “I Was The One”, “Leilani”, “Answered Prayers”, “Night Must Fall”, “Tojo”, “If Only…”, “Chariot Of The Gods”, “I Want You Back”, “Poison Pen”, “Equinox”, “Castles In The Air”, “Out That Door”, “What’s My Scene”, “Bittersweet” e “I Was a Kamikaze Pilot”. Bis: “Come Anytime”, “1000 Miles Away” e “Like Wow – Wipeout”

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Lollapalooza Brasil 2023 – ao vivo

Billie Eilish, Modest Mouse, Jane’s Addiction, Paralamas, Aurora, Baco Exu do Blues, Tove Lo e Cigarettes After Sex: shows que marcaram o festival

Billie EIlish

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução

Entre os dias 24 e 26 de março foi realizada a décima edição brasileira do festival Lollapalooza, a última em parceria da produtora T4F com a americana LLC, detentora da marca do evento. Depois de cinco recentes cancelamentos de concertos programados para este ano, todo mundo foi surpreendido com a não vinda ao Brasil do headliner da última noite, o canadense Drake, horas antes dos portões do Autódromo de Interlagos serem abertos. A desculpa oficial do artista, esfarrapada, não colou: a de que estariam faltando pessoas de sua equipe no país. Entretanto, ele foi visto na madrugada anterior festando em Miami em conjunto com o rapper 50 Cent. E mais: estas pessoas de sua equipe já estavam em SP instalando no autódromo os telões e o material de seu espetáculo. Mas como é sempre melhor falar de coisas boas, deve também ser registrado um marco desta edição: pela primeira vez o line-up estava dividido quase igualitariamente entre artistas dos dois gêneros.

O Mondo Bacana comenta um pouco dos oito shows que deixarão esta edição do Lolla na história dos grandes festivais de música pop do Brasil.

Billie Eilish

Única headliner originalmente anunciada a se apresentar em Interlagos (além de Drake, o Blink 182 também não veio para cá), ela já era aguardada havia algum tempo por aqui. Afinal, este seria seu primeiro concerto no país, já que o anterior fora cancelado por causa da pandemia. Em cima daquele palco enorme, tendo a companhia apenas de seu inseparável irmão e produtor Phinneas e um baterista, ela – com o verde e amarelo predominando no figurino grande e largo sobre a malha preta que lhe escondia o corpo – entregou o que prometia: uma boa coleção de letras intimistas a respeito de observações, sensações e sentimentos de uma garota vivendo os anos finais de sua adolescência. Intimista também foi sua performance: sem muitos pulos, correrias ou coreografias ensaiadas, era quase apenas ela cantando ao microfone. Quer dizer, cantando às vezes. Billie só cantava o necessário e muitas vezes sua voz ecoava pelo autódromo junto com os instrumentos também pré-gravados. O que deixava o show redondo, sem espaço para improvisos ou erros. Só que teve momentos em que os manos abriam mão do playback e se arriscavam em momentos semiacústicos para mostrarem que não são uma fraude ao vivo: foram cerca de meia dúzia de canções com Phinneas dedilhando o violão ou o piano para a irmãzinha soltar o gogó de alcance não muito grande.

Modest Mouse

Quem foi a genial pessoa responsável pela grade de shows que conseguiu jogar o grupo para uma tarde de sexta-feira? Modest Mouse – um dos ícones do indie rock americano dos anos 2000 – não é para a GenZ, é para gente mais velha. Melhor: para quase todo mundo que não tem a) grana disponível de salário ou frilas para pagar o caro ingresso do festival; b) saco ou corpo para aguentar ficar um dia sequer em uma maratona de shows; c) horário disponível para ir assistir a uma banda tocar às quatro da tarde de sexta-feira. Sob um sol escaldante, o vocalista Isaac Brock estava vermelho feito um camarão, à frente de seu quinteto que foge da musicalidade óbvia e mistura lo-fi, folk e psicodelismo em doses nada comerciais. O resultado foi uma banda competentíssima tocando para quase ninguém, sendo a maior parte disso gente que desconhecia por completo o repertório loteado entre sua boa discografia. Hits como “Float On” e  “Dashboard” ficaram desperdiçados  naquela escala gigantesca ao ar livre. De qualquer maneira, quem viu in loco ou pelo streaming foi abençoado pela tardia estreia do Modest Mouse em solo brasileiro. Antes tarde do que muito mais tarde. Antes de tarde durante a semana do que nunca.

Jane’s Addiction

Perry Farrell idealizou o Lollapalooza em 1991 como um festival ambulante, que pudesse rodar algumas grandes cidades norte-americanas com uma escalação de excelentes bandas alternativas como suporte para a turnê de despedida de sua banda. Deu tão certo que o Jane’s Addiction se separou mas o Lolla continou trilhando seu caminho de sucesso durante os meados dos anos 1990. Perry, então, quase sempre vem prestigiar a edição brasileira. Agora trouxe a tiracolo a reformada banda que o revelou para o mundo da música. Integrantes originais… ou quase, já que o guitarrista Dave Navarro (que saiu do JA para tocar no Red Hot Chili Peppers) continua afastado dos palcos para tratar da saúde (covid longa como justificativa oficial, rehab longa como rumor alimentado entre os fãs do grupo). De qualquer forma, seu substituto, o também ex-guitarrista do RHCP Josh Klinghoffer, mostrou ser uma escolha acertada. Enquanto o baterista Stephen Perkins e o baixista Eric Avery (que também costuma ser músico de apoio do Garbage) se entendem perfeitamente em uma cozinha rítmica hipnótica e dançante, Josh jorrava os efeitos de pedais que fazem a sonoridade da banda flutuar entre o hard rock, o psicodelismo e o groove. Para completar, uma trinca de dançarinas comandada pela atual mulher de Farrell faziam pole dances sensuais ao fundo do palco, dando um approach cênico diferente às canções. Em Interlagos, o set list foi reduzido por conta do tempo destinado ao show, socado no meio da programação da tarde do segundo dia. De qualquer forma, ficou bem dividido entre os dois primeiros e incensados discos da banda, concebidos entre 1988 e 1990, antes das brigas internas que levaram à implosão precoce da carreira. De qualquer forma, reunidos já nas casas dos 50 e 60 anos de idade, os músicos mostraram por aqui que estão como vinho: quanto mais velhos, melhor. Maturidade e experiência – e um longo hiato interrompido por outras duas reuniões e discos criados em 2003 e 2011 – fizeram bem. Em um sábado fraco de opções, o Jane’s Addiction chegou quietinho e fez uma puta (e despretensiosa) apresentação. Ainda terminou com uma batucada em homenagem ao amigo Taylor Hawkins, que morria havia exatamente naquela data, no ano anterior… horas antes do show do Foo Fighters na Colômbia e de viajar para tocar no Lollapalooza brasileiro.

Paralamas do Sucesso

Ter 40 anos de carreira fonográfica não é para qualquer um. Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone sabem disso e utilizam um arsenal de clássicos colecionados em sua extensa discografia para disparar um show magnífico. É hit atrás de hit  quase sem intervalo para respirar. Foi assim neste Lollapalloza, na tarde de sol de um domingo para uma maioria de plateia formada por GenZ e millennials. O repertório começou com canções mais representativas da faceta ska (“Vital e Sua Moto”, “Patrulha Noturna”, “Ska”, “Loirinha Bombril”) e passeou por toda a galeria das duas primeiras décadas de carreira, misturando reggaedubafrobeat, rock, citações (Tim Maia, Titãs, Raul Seixas) e muita injeção rítmica contínua para não deixar ninguém totalmente parado – pelo menos um dos pezinhos não teve como resistir. Herbert começou enfrentando problemas técnicos, contornados sabiamente com conversas fora do microfone com um roadie enquanto não parava de cantar as letras para a plateia. Tirando este pequeno detalhe, que não chegou a comprometer a apresentação aliás, os Paralamas mostraram toda a sua realeza na música pop nacional. Não precisa de firulas, telões, coreografias, trocas de roupa, andar para lá e para cá no palco ou ao redor dele. Só precisa de música. E muito boa música. Referências para se criar música de qualidade eles sempre tiveram também. São uma banda pós-punk brasilis roots (a sonoridade two-tone em verde e amarelo, inclusive com versos politizados e críticos transformados para a nossa realidade!) e isso ainda faz toda a diferença. Mesmo diante de uma molecada que não chegou a viver os tempos dos vinis e CDs lançados com essas músicas.

Aurora

É só começar a ouvir a sua extensão vocal de soprano que não tem como não embarcar junto nesta fantasia musical que é seu show. Ela mesma parece uma pequena e adorável duende, sempre a saltitar feliz e travessa pelos vastos campos verdes. Seu look também ajuda: vestes claras e em tonalidades pasteis, pés descalços, pele alva e um cabelinho curto e de um chanel tão branco quanto sua melanina norueguesa. Muita gente que estava ali na plateia sabia de cor e salteado as letras, cantava junto e se emocionava por estar na frente de Aurora Asknes. Pudera. A artista faz da voz um belo poder instrumental, além de ser hábil nas palavras para demonstrar seus mais profundos sentimentos acerca da vida e da natureza. Mas também não precisa ser expert na obra dela para se render ao poder desta guria escandinava, solta, espontânea, natural e sem qualquer maquiagem, capaz de provocar um midsommar tão contagiante aqui no hemisfério sul e em pleno cair da tarde de um domingo quente brasileiro.

Baco Exu do Blues

Ele entrou na grade do Lolla como uma rápida solução caseira para suprir o cancelamento quase em cima da hora de Willow, filha do astro Will Smith. E ainda entregou uma das mais emocionantes performances em língua brasileira deste Lollapalooza. Generoso, o baiano de quatro discos lançados nos últimos seis anos fez questão de não brilhar sozinho. No telão, prestou reverência a personalidades negras já falecidas como Marielle Franco, Elza Soares, Muhammad Ali, 2Pac Shakur e Nelson Mandela. E no meio do repertório montado com alguns de seus grandes sucessos ainda cedeu espaço lá na frente para cada uma de suas backings (Aísha, Alma Thomas e Mirella Costa) dividirem as atenções, o microfone e o gogó poderoso. Mirella, por sua vez, protagonizou uma emocionante homenagem à também soteropolitana Gal Costa, ao mandar, a capella, um trecho de “Força Estranha”. Mancando e dando passos lentos, Baco fez o que pode, cenicamente, para superar o estiramento na panturrilha sofrido poucos dias antes. E ainda mandou a letra para espinafrar o grande ausente da noite, Drake, sendo complementado por xingamentos dirigidos pelo público ao astro chiliquento canadense. Mostrou, como Kevin Parker (Tame Impala) na noite anterior, que nem sérias limitações físicas para a locomoção não podem servir como desculpa para não cantar aos fãs.

Tove Lo e Pabllo Vittar

Tove Lo

Outra atração nórdica dominical, a sueca mostrou que um show de música pop pode muito bem ser construído em cima de… música pop. Nada pode tirar o primeiro plano. Pelo contrário. Figurinos podem ser um bom complemento (no caso, uma roupa colante em tons verdes que lhe permitiu fazer o manjado gesto de mostrar os seios à plateia). Coreografias também. Mas um palco deve ser povoado por musicistas tocando seus instrumentos, cantora realmente cantando e dispensando playbacks descarados e a ausência de um time de bailarinos indo para lá e para cá, chamando mais a atenção dos olhos do que os ouvidos. Tove Lo é muito mais discípula de Madonna do que muita gente pode pensar. Ela canta, dança, brinca com a sexualidade diante de uma multidão e mostra ser uma artista de força suficiente para ter um longo futuro pela frente. E olha que ela já tem cinco álbuns feitos de 2014 para cá.

Cigarettes After Sex

Todo ilusionista sabe muito bem que o segredo do sucesso de sua performance está na habilidade de deslocar a atenção do público para um local diferente daquele onde realmente “acontece” o truque. A derradeira das três noites do Lolla, de fato, foi equivalente a um show de ilusionismo. Todo mundo esperando o headliner Drake e depois todo mundo desapontado e xingando o arredio Drake por nem ter viajado ao Brasil. Muita gente comentando o fato de que o DJ e produtor de IDM Skrillex havia sido escalado de improviso para ocupar o horário e o palco anteriormente destinado ao fujão. Muita gente indo embora ao cair da noite, já desesperançoso de que ali em Interlagos acontecesse mais alguma coisa estupenda no autódromo. Espertos, porém, foram aqueles que não arredaram o pé e ficaram no local (ou sintonizados no streaming) até as nove da noite, de olhos bem atentos a um dos palcos secundários. Ali, já aos 45 minutos do segundo tempo do festival, os acréscimos permitiram uma magnífica performance de um singelo trio norte-americano que, por meio da internet, tornou-se objeto de culto nos últimos anos por um pessoal mais antenado. O Cigarettes After Sex veio para impactar com todo o seu minimalismo. Cênico, com seus integrantes tocando quase sempre parados no palco, dispostos geometricamente lado a lado. Sonoro, com somente um vocal (de seu líder e criador Greg Gonzalez) e a mínima movimentação possível de baixo, guitarra e bateria. Havia uma textura de teclados pré-gravados disparada como pano de fundo para a maioria das canções. Mas isso só reforçou a atmosfera etérea e hipnótica do concerto. Fotógrafos não foram permitidos no pit à frente do palco. Quem ficou em casa assistiu a uma transmissão noir, que impôs a ausência de captação de qualquer cor pelas câmeras que não fossem o preto e o branco. Com ares de cabaré decadente, algo tipicamente David Lynch, o CAS fechou as cortinas da décima edição premiando poucos felizardos com algo meio difícil de acontecer em um grande festival. Truque de mestre.

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Knotfest Brasil 2022 – ao vivo

Festival criado e encabeçado pelo Slipknot ganha sua primeira edição no país com doze atrações e shows de qualidade

Slipknot

Texto por Bruno Eduardo (Rock On Board)

Fotos por Rock On Board (Vinicius Pereira: Slipknot; Rom Jom: Judas Priest, Mt Bungle, Bring Me The Horizon e Sepultura)

No último dia 18 de dezembro foi realizada a primeira edição do Knotfest Brasil, em São Paulo. O festival, idealizado pelo Slipknot, reuniu naquele domingo doze bandas em dois palcos e teve todos os seus ingressos esgotados. Cerca de 45 mil pessoas estiveram no local para acompanhar bons shows, incluindo medalhões e bandas da nova geração. 

Mesmo gerando algumas críticas por parte do público, os palcos localizados em cada extremo do Anhembi até que funcionaram bem na questão de mobilidade entre os shows. Com as atrações alternadas entre o KnotStage e o Carnival Stage, os fãs precisavam se deslocar de um lado ao outro do sambódromo assim que terminava uma apresentação, para poder assistir à seguinte. O deslocamento durante o evento até que aconteceu de forma bem tranquila, com exceção do período da tarde, onde uma enorme quantidade de pessoas aglomerou-se em frente a um telão instalado no meio do Anhembi, para assistir à final da Copa do Mundo, entre França e Argentina.

Outro fator que vale registro é que embora o Knotfest tenha suas ativações para experiências como qualquer outro grande festival, como por exemplo, o Slipknot Museum e estúdios de tatuagem, ele se diferencia por seguir um modelo mais old school, no qual os shows são o maior atrativo – algo que caracteriza bastante o público amante do metal, que vai aos festivais principalmente para assistir às bandas.

Não é sempre que temos um festival, onde podemos dizer que praticamente todos os shows foram realmente bons ou interessantes. O destaque, é claro, ficou para os donos da festa (Slipknot), que fecharam o festival de forma sublime, mostrando o porquê é hoje um dos melhores grupos de rock para se assistir ao vivo. A banda contou com um som de alto nível, além de toda a estrutura cênica, com labaredas, fogos de artifício e telão de qualidade. Levaram os fãs ao delírio por uma hora e meia de um repertório praticamente de grandes sucessos e um Corey Taylor – que já pode ser considerado um dos maiores frontmen da História – inspirado. Essa foi certamente uma das melhores passagens da banda pelo Brasil, perdendo apenas (na opinião deste jornalista) para a antológica apresentação do Rock in Rio em 2011.

Judas Priest

Em um line up bem diversificado, tivemos também um grande show do Judas Priest, que comemora 50 anos de carreira. Surpreendeu pela ótima forma de Rob Halford, que veio com seus agudos preservados, mesmo aos 71 anos de idade. O set list também foi de respeito, já que a banda priorizou o preferido da casa, Screaming For Vengeance, que completou 40 anos em junho. Ao todo, foram cinco canções do álbum de 1982.

Outro show que deu o que falar e reuniu um grande público interessado foi o tributo ao Pantera, que contou apenas com apenas Phil Anselmo da formação original, já que o baixista Rex Brown cancelou sua participação por ter contraído covid-19. Com Zakk Wylde (Ozzy Osbourne/Black Label Society) e Charlie Benante (Anthrax), foram prestadas homenagens aos dois integrantes e irmãos fundadores, os falecidos Vinnie Paul e Dimebag Darrell. Num repertório baseado nos dois álbuns mais bem sucedidos do finado grupo (Vulgar Display Of Power Far Beyond Driven), o tributo agradou a grande maioria dos presentes.

Mr Bungle

Contando com menos apelo e interessados, outros nomes também saíram do festival com novos fãs. O Mr Bungle, banda liderada por Mike Patton (mais conhecido pelo trabalho com o Faith No More) se apresentou com sua nova formação, que traz dois ícones do thrash metal: o baterista Dave Lombardo (ex-Slayer) e o guitarrista Scott Ian (Anthrax). Num repertório baseado em sua primeira demo, relançada em 2020, o Bungle fez uma ode ao thrash, com canções longas e riffs matadores. Abusando do português, Patton homenageou a campeã Argentina, xingou o já ex-presidente Bolsonaro e convidou no palco Andreas Kisser e Derrick Green do Sepultura para uma versão de “Territory”.

Outra banda que estreou no Brasil foi o Vended, que tem dois filhos de integrantes do Slipknot. O vocalista Griffin Taylor, filho de Corey Taylor, e o baterista Simon Crahan, filho de Shawn “Clown” Crahan. O som do grupo pode ser considerado um subproduto do Slipknot, com foco na fase mais embrionária, onde o nu metal ainda é referência – basta ouvir o último single deles, “Overall”. Com o rosto pintado, Griffin comandou o show com muita energia e boa performance. A banda, formada apenas em 2018, ainda não possui um full álbum e apresentou músicas de seus EPs lançados nos últimos anos.

Bring Me The Horizon

Dos nomes que já passaram por aqui, o Bring Me The Horizon vai mostrando um crescimento de sua legião de fãs no Brasil. O grupo carregou um bom público para o palco principal (Knotstage) e fez a galera cantar alguns de seus sucessos. Assim como aconteceu no Rio de Janeiro, o grupo também foi um dos primeiros a utilizar bem os telões, com imagens e efeitos visuais criados especificamente para as canções. Ainda rolou um pedido do público para “Sleepwalking”.

Primeira banda gringa a tocar neste Knotfest, o Trivium se apresentou debaixo de um sol escaldante. O destaque ficou para o carismático Matt Heafy, que além de usar uma blusa do Brasil falou o tempo inteiro com o público. A banda não priorizou nenhum álbum específico. Eles resolveram fazer um apanhado de toda carreira e funcionou bem no festival. A verdade é que o grupo agradou sem precisar fazer muito esforço.

Dos nacionais, o Sepultura fez um show já bastante conhecido por aqui. No entanto, eles aproveitaram as atrações do Knotfest para incluir convidados em sua performance. Scott Ian apareceu no palco em “Cut Throat”. Matt Heafy foi outro que colaborou tocando “Slave New World”. Phil Anselmo emprestou sua voz ao clássico “Arise”. No final, os hits “Ratamahatta” e “Roots Bloody Roots” encerram o set com nível elevado.

Sepultura

Aquecendo o público no início do festival, tivemos três boas apresentações nacionais. Não existiria melhor nome para iniciar o festival de uma forma tão intensa quanto o Black Pantera. A banda já parece veterana em cima do palco, mostrando cada vez mais à vontade em festivais dessa envergadura. Além de carregar um repertório de letras contundentes, o grupo não deixa de se posicionar contra todo tipo de preconceito. Tanto que não foram poucas vezes que o vocalista Charles Gama mandou seu recado (“White Power é o caralho!”), referindo-se ao tema polêmico envolvendo Phil Anselmo, que se apresentara mais tarde.

Já o Project 46 promoveu uma ode às rodas de pogo numa apresentação impecável para um festival de metal. Agitando sem parar, o vocalista Caio MacBeserra usou e abusou – no bom sentido – dos berros e dos agudos, mostrando o porquê de ser um dos melhores cantores do gênero no cenário nacional. O público, já bem numeroso, respondeu ao show do grupo de maneira catártica, com mosh, palmas e energia lá em cima. A banda saiu de palco consagrada pela galera.

Em show dividido em primeiro e segundo tempo, Jimmy & Rats e Oitão agitaram o público que chegava aos poucos no Anhembi. As bandas abriram o palco Carnival Stage e não deixaram a intensidade baixar. Destaque para o bom repertório de Jimmy & Rats que basearam o show em seu ótimo album, Só Há Um Caminho a Seguir, comprovando a efetividade da fórmula musical entre fãs de metal em geral.

Movies

Crimes Of The Future

Uma sociedade anestesiada buscando emoções e sentimentos por meio da exploração da dor é a nova crítica ácida e mórbida de David Cronenberg

Texto por Taís Zago

Foto: O2 Play/Distribuição

O novo filme de David Cronenberg já chegou colhendo comentários bastante mistos. Adorado por alguns críticos e detestado por boa parte do público. E, confesso, isso se torna para mim um grande atrativo na hora de escolher o que assistir. Quando essa oportunidade surgiu pela plataforma Mubi, e eu abracei a causa.

Preciso salientar que não me considero uma grande fã das distopias com tema biológico de Cronenberg. Quando assisti pela primeira vez eXistenZ (1999), fui tomada por um conjunto de irritação e deboche. Naquele tempo ainda estávamos na época de alugar DVD na locadora e depois nos arrependermos amargamente pelos reais gastos. Uma arte já morta atualmente. Mas eXistenZ não foi meu primeiro contato com a obra de David. Como muitos, eu passei a acompanhar o diretor a partir do filme Crash (1996), que gerou uma grande polêmica na época pelo seu tema – a fetichização de limitações físicas e a erotização de acidentes automobilísticos. E foi também em meados dos anos 1990 quando descobri que Cronenberg era responsável por outros shockers que marcaram a minha experiência precoce no gênero do horror, como Scanner (1981) e Naked Lunch (1991). Uma coisa aqui é certa: Cronenberg não pisa em ovos em torno de temas horripilantes, obscuros ou mórbidos. O festejado diretor se destaca exatamente por romper tabus e limites transpondo (sobrepondo?) gêneros. Sua obra nos causa náusea e ao mesmo tempo instiga a reflexão. E essa também é uma função da arte, provocar repulsa.

Em Crimes Of The Future Crimes Of The Future (Canadá/Grécia/Reino Unido, 2022 – O2 Play), o diretor explora um futuro que, apesar de parecer próximo, não é determinado: é quando a ideia de dor praticamente desapareceu nos conceitos humanos. Pessoas andam nas ruas a esmo, com olhares vários, procurando algum tipo de emoção. A droga da vez é a busca pela dor, o que poucos ainda conseguem sentir. A dissecação da alma humana é a dissecação de corpos sob o manto protetivo da arte. Da performance. Como se tudo isso já não nos pintasse uma tela aterrorizante, os seres humanos passaram a desenvolver espontaneamente órgãos com funções não determinadas em seus corpos. Órgãos que crescem como tumores e precisam ser extirpados para não causarem morte ou mutação em seus hospedeiros. E é nesse cenário que Saul Tenser (interpretado por Viggo Mortensen) e sua parceira Caprice (Léa Seydoux) brilham com suas performances artísticas inspiradas em cirurgias e que consistem em Caprice manipulando remotamente incisões e a extrações de órgãos tatuados de dentro do corpo de Saul. Um ato no qual, supostamente, faz-se uma conexão entre dor e prazer e que deixa Saul extasiado. 

Em um tom ainda mais macabro e chocante, Cronenberg já inicia nos oferecendo o assassinato cruel de um menino pela própria mãe, quando esta percebe que o filho, uma vítima das bizarras mutações recorrentes nos humanos, passa a ingerir e digerir plástico. O pai do menino, Lang Dotrice (Scott Speedman), inconformado com o ocorrido e determinado a tornar sua morte um símbolo da resistência dos humanos “já mutados”, oferece o seu pequeno corpo como objeto para uma das performances de Saul e Caprice. Por fim, com a quase impossível função de assumir a posição de comic relief nesse tema tão aterrorizante e denso, temos o curioso escritório chamado National Organ Registry, onde supostamente os novos órgãos identificados são catalogados. É um cantinho empoeirado, sujo e protocolar que lembra o escritório de um detetive fracassado e é comandado por Yevgeny Nourish (Don McKellar) e uma hilária Kristen Stewart no papel de sua assistente Timlin. Esta também é uma fã incondicional do trabalho de Saul e não esconde sua adoração por seu ídolo.

Com todos esses elementos assustadores, alguns pendem a se levantar e sair da sessão no cinema (como fizeram no lançamento do filme, em Cannes) ou parar o streaming nos primeiros 15 minutos. Porém, os que ficam e fazem o esforço de enxergar o que está por baixo da primeira camada de pele dessa obra vão enxergar uma crítica ácida e (por que não?) cirúrgica da humanidade. Cronenberg realiza uma operação de peito aberto em uma sociedade que após lutar para viver anestesiada passa a procurar emoções no que deliberadamente perdeu. A busca aflita por sensações e experiências que tirem as pessoas da letargia em que se encontram seus corpos nessa nova realidade. Uma realidade onde o velho sexo (old sex, como é chamado) já não mais é a forma de prazer suprema. A busca pela dor, a extirpação de órgãos, os cortes e as mutilações são a nova forma de vivenciar algo novo. Temos também uma crítica à arte e à ambição artística em seus sacrifícios, no caso, bem carnais. Até onde podemos ir para receber a atenção e o reconhecimentos dos nossos pares?

Perfeição estética e apuro técnico visual nunca foram os focos de interesse de Cronenberg. Algumas das geringonças biomórficas apresentadas podem nos tirar a atenção e levar ao riso espontâneo – comigo foi a cadeira para “digestão”. Mas relevando isso, Crimes Of The Future é horror com reflexão. Mesmo quando materializada em forma de sangue, órgãos, tripas ou tumores.

Music

Rodrigo Amarante – ao vivo

Ambientação intimista da Ópera de Arame se revela propícia às múltiplas facetas apresentadas pelo artista em turnê do novo álbum solo Drama

Texto por Leonardo Andreiko

Fotos: Janaina Monteiro (cor) e Leonardo Andreiko (p&b)

A noite invernal curitibana, sempre fria e chuvosa, condiciona o público de diversos modos. Cachecol e japona são itens obrigatórios a qualquer morador da capital paranaense. Pegar uma chuvinha do carro até o show – e depois do show até o carro – é rotina nos eventos desse período. Mas o frio não foi suficiente e a Ópera de Arame se aqueceu com a performance de Rodrigo Amarante e sua banda na noite de 17 de setembro, um sábado.

Enquanto a plateia preencheu-se aos poucos, era palpável a antecipação no ar. Sua última apresentação da carreira solo na cidade havia sido em 2013, em turnê com o début Cavalo. Dessa vez, Amarante veio estrear Drama (lançado em 2021) no Brasil, país do qual esteve distante desde a turnê comemorativa Los Hermanos 2019. Naquela ocasião, a banda passou por Curitiba e lotou a Pedreira Paulo Leminski, ao lado do palco em que anos depois se apresentaria.

A ambientação mais intimista da Ópera, com sua arquitetura em metal e vidro, é muito mais apropriada às múltiplas facetas que Rodrigo Amarante apresenta desde o fim dos Hermanos. Assim como em seu novo álbum, o músico começou a performance dessa noite com lançamentos: a instrumental “Drama” (que dá nome ao disco) deu o tom para a entrada dos músicos em palco e logo se sucedeu a vivaz “Maré”, primeiro single do álbum.

No palco com banda completa, Rodrigo apresentou ao público curitibano a veia solar que fez de Drama um trabalho tão distinto de Cavalo, que representava um cosmopolita sem casa, diluído entre vivências. Agora, morador de Los Angeles há anos, o artista volta-se a sua infância e ao eterno conflito da subjetividade com a sensibilidade, o emocional que o homem é ensinado a reprimir conforme cresce. Dessa forma, continuando com “Tango” e “Tanto”, os músicos apresentam essa “nova atmosfera” do disco, que explora seus temas com mais extroversão e grandiosidade que seu antecessor.

Justamente por isso, Drama precisa de mais que um violão branco e a voz de seu autor para preencher os palcos. Acompanhando Amarante, performaram Rodrigo Barba (bateria) e Alberto “Bubu” Continentino (baixo), companheiros de Los Hermanos; Pedro Sá (guitarra), que integrou a Banda Cê, de Caetano Veloso; o músico e pesquisador Daniel Castanheira (percussão); e a multi-instrumentista Nana Carneiro da Cunha (piano e cello). O grupo de peso auxiliou Rodrigo na difícil tarefa de uma plêiade de sentimentos por entre uma vasta discografia, que conta com três bandas (Los Hermanos, Orquestra Imperial, Little Joy) e dois discos solo. E o resultado foi magistral. A energia de “Maná” e “Pode Ser” (Orquestra Imperial) fez vibrar a plateia. Também houve liberdade para experimentalismos na consagrada “Mon Nom” e “Tao”, que foi repaginada sem o naipe de sopros, que deu espaço aos solos da banda.

Ainda, uma pausa da banda abriu espaço para que Amarante, sozinho, iluminado por um único holofote num palco escuro, nos presenteasse com algumas de suas músicas mais tocantes. “Irene”, “Evaporar” (Little Joy) e “The Ribbon” ecoaram em toda a estrutura da Ópera, que só não lacrimejou porque não podia.

A noite integrou perfeitamente clássicos, como “O Vento” (Los Hermanos), sucessos como “Tuyo” (da série Narcos) e elementos de Drama, como “I Can’t Wait”, para tornar a apresentação muito mais que a exposição ao vivo de um novo disco. Para finalizar a primeira parte do show, antes do bis, Rodrigo ostentou sua potência poética com uma das mais belas composições do álbum, “The End”, que alça a antiga demo “That Old Dream Of Ours” para novos horizontes com a integração da banda.

Na medida que avançava no set list, o artista brincava com passado e presente, rememorava e repaginava. Dava novos passos e sentia a confiança em olhar para trás, que só faz figurar nos colossos da música brasileira. É cedo, decerto, para sacralizar uma carreira solo ainda insipiente, ainda que já calejada por décadas de ação. Mas se o futuro reserva a Rodrigo Amarante o mesmo esmero e sobriedade com a música que já é evidente, só nos resta reservar a ele um espaço entre nossos melhores.

E assim, mais uma vez, o cometa que é o artista passou por Curitiba, riscou o tempo e se foi.

Set list: “Maré”, “Tango”, “Tanto”, “Nada em Vão”, “Mon Nom”, “I Can’t Wait”, “Eu Com Você”, “O Cometa”, “Tara”, “Tuyo”, “Irene”, “Evaporar”, “The Ribbon”, “Tardei”, “Um Milhão”, “Tao”, “Maná” e “The End”. Bis: “O Vento” e “Pode Ser”.