Movies

Wes Anderson

Netflix libera de uma só vez quatro curtas-metragens do icônico diretor e roteirista, todos inspirados em contos de Roald Dahl

A Incrível História de Henry Sugar

Texto por Tais Zago

Fotos: Netflix/Divulgação

Anderson ataca outra vez e agora em todos os fronts. Quatro curtas foram liberados ao mesmo tempo no canal de streaming Netflix, há alguns dias. O projeto, que supostamente chegara a 1 bilhão de dólares, é uma jogada ambiciosa da parceria entre a plataforma e o cineasta. Compõem a tetralogia de produção anglo-americana Veneno(Poison, 17 minutos), O Cisne (The Swan, 17 minutos), O Caçador de Ratos (The Ratcatcher, 17 minutos) e A Incrível História de Henry Sugar (The Wonderful Story of Henry Sugar, 39 minutos)

Nestes quatro curta-metragens inspirados na obra de Roald Dahl (que já inspirou Wes em outros projetos como O Fantástico Sr. Raposo, de 2009, e escreveu o livro que deu origem ao cultuado filme A Fantástica Fábrica de Chocolate), Anderson adapta e dirige com mão leve um roteiro teatral. Como vimos em Asteroid City, seu ultimo longa, lançado em agosto nos cinemas brasileiros (leia aqui a resenha do Mondo Bacana), Wes mergulhou fundo na dramaturgia e na representação teatral do seu próprio roteiro. Quebra constantemente a quarta parede e vai além dos limites até então conhecidos da metalinguagem. Temos uma história dentro de uma história e , às vezes, com outra história por trás. Uma matrioska technicolor, uma trama elaborada com palavras e cenários meticulosamente trabalhados, que trazem nos narradores, praticamente, uma leitura do roteiro acompanhando a ação.

O Caçador de Ratos

Wes é mundialmente famoso pelo seu estilo único de fazer cinema usando cenários minuciosos com um detalhismo que satisfaz até aos olhares mais exigentes. A riqueza dos detalhes, a simetria da fotografia, a perfeição da maquiagem e do figurino. Nunca vemos um único fio de cabelo (pelo menos não intencionalmente) fora do lugar. 

Agora Anderson traz para as telas e encena com atores histórias que funcionariam tanto no palco quanto em forma de stop-motion. Nenhum artifício de representação estética é deixado de lado – animação, CGIs, cenários elaborados feitos manualmente, filtros vintage e tons pastel. A beleza esmaecida da idiossincrasia de seus personagens se repete, mas nunca cansa o olhar. O comportamento extra-humano, robótico, típico de nerds, é o centro e o tom das interpretações no hiperdescritivo texto elaborado pelo diretor-roteirista. O comportamento pitoresco e fora do lugar-comum de seus personagens é perfeitamente alinhado a esses textos e aos figurinos. O homem comum em situações aparentemente mundanas abre a porta para o fantástico e o lúdico.

Nos quatro contos vemos personagens aparentemente comuns se envolvendo em situações pouco convencionais com desfechos fantásticos. A digital de Anderson está em cada olhar, na postura corporal dos atores, mas descrições e nas expressões faciais. Ao fim de cada um dos curtas, o cineasta presta uma homenagem a Roald Dahl em um pequeno parágrafo contando brevemente o contexto da criação de cada um dos contos do autor.

Veneno

O elenco não poderia ser mais estelar. Tem Ralph Fiennes (que entre outros papéis interpreta o próprio Dahl em todos os curtas), Benedict Cumberbatch, Rupert Friend, Dev Patel, Ben Kingsley e Richard Ayoade. Os atores se revezam em diferentes papéis nos quatro curtas. Todos executados primorosa e intensamente, em especial Cumberbatch e Kinsgley em Veneno e Henry Sugar.

Em seu estilo único e inconfundível, Wes Anderson cumpre de novo a tarefa de nos apresentar contos (não tão) modernos, sobre personalidades triviais que realizam feitos fantásticos. Existe a possibilidade de uma análise profunda, assim como a leveza de um humor quase inocente, o que faz dos filmes dele um deleite para todas as idades – um feito raro nos dias atuais. A tetralogia de curtas é essencial para os fãs e também uma agradável descoberta para os novatos que recém adentraram o mundo maravilhoso de Anderson.

O Cisne

Books, Movies

A Noite das Bruxas

Terceira aventura do detetive Hercule Poirot chega às telas juntando a verve literária de Agatha Christie à onda atual dos filmes de terror

Texto por Abonico Smith

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Agatha Christie é um dos nomes mais festejados da literatura de ficção e entretenimento de todo o século 20. Sua escrita agradável aliada a intrincados enredos repletos de mortes, mistério e suspense criaram uma legião de adoradores, sobretudo do principal personagem criado pela britânica. Protagonista de dezenas de histórias publicadas por décadas, o detetive Hercule Poirot tornou-se um rei do whodunnit com seu faro implacável para descobrir pistas nos menores e mais escondidos sinais deixados nas cenas dos crimes e amarrar motivos e pessoas envolvidas com perspicácia e inteligência extrema, assombrando não só as pessoas ao redor como também todos os leitores. Nada mais natural, portanto, que meios populares como o cinema e TV absorvessem as tramas para oferecê-las às novas gerações por meio do audiovisual.

Depois de algum sucesso nas telonas durante os anos 1970, o personagem voltou recentemente a ganhar foco em Hollywood, desta vez vivido pelo ator e diretor Kenneth Branagh. Em dobradinha com o roteirista Michael Green, ele recolocou Poirot nas salas de projeção (ou melhor, nos trilhos), em 2017, adaptando o clássico Assassinato no Expresso Oriente. Com elenco estelar e direção de arte (o que inclui cenários e figurinos) de encher os olhos para quem gosta de toda a pompa e beleza do visual vintage. O sucesso de bilheteria logo proporcionou uma segunda produção (outro título bastante popular) também com os mesmos ingredientes. Contudo, a pandemia e polêmicas pessoais em torno de Armie Hammer, um dos atores principais de Morte no Nilo, fizeram o longa ser engavetado e ter sua estreia adiada para o começo de 2022.

Por isso o curto intervalo de tempo para uma terceira obra, que chega aos cinemas de todo o mundo nesta semana. A Noite das Bruxas (A Haunting In Venice, EUA/Reino Unido/Itália, 2023 – Fox/Disney), entretanto, quebra um pouco o esquema dos anteriores para correr maiores riscos. Boa jogada de Green e Branagh, que acertam em cheio, já que a adaptação do crime ocorrido no cruzeiro de luxo que percorre as águas do rio egípcio deu uma bela balançada e quase provocou o naufrágio da continuidade do detetive belga no cinema. Para começar, a diferença já vem na escolha da obra literária dentro da galeria de títulos escritos por Christie. Não só Hallowe’en Party é um romance um tanto quanto desconhecido do grande público como ele também é uma das criações derradeiras dela. O livro saiu em 1969, mais de trinta anos depois de Assassinato no Experesso Oriente e Morte no Nilo. Agatha já estava nos anos finais de sua longeva vida e isso acaba por se refletir na premissa da trama. Outro detalhe é que esta história de Poirot mergulha fundo no terror, mais precisamente em questões ligadas ao sobrenatural – o que vira um grande chamariz de audiência, já que este é o gênero que vem bombando há várias temporadas nas bilheterias mundiais, sempre com grande oferta de títulos pipocando aqui e ali, inclusive produções de países fora do eixo anglo-americano.

Terceiro apontamento: o filme joga o protagonista em nos aposentos lúgubres de um castelo supostamente assombrado na Veneza do pós-guerra, de onde nem ele nem ninguém pode sair por conta da água dos canais e da chuva torrencial que cai a noite inteira. Entre fantasmas, comunicação com os mortos e tentativas bem e mal sucedidas de assassinatos, o protagonista precisa lutar contra seus próprios demônios e manter-se mentalmente são para poder solucionar o que está à sua frente. Ou seja, ele bate o pé no ceticismo mais irretocável para provar que o mundo de lá realmente não existe e o além-vida não passa de uma sequência de farsas e fraudes. Mesmo que tudo pareça, de fato, real.

Hercule, entretanto, não está sozinho nesta empreitada. Aliás, ele nem desejava estar lá no castelo. Ao ter escolhido a charmosa e secular cidade no nordeste italiano para morar enquanto curte a aposentadoria de sua vida como investigador, acaba sendo procurado por uma velha amiga, a autora de livros de suspense e mistério Ariadne Oliver. Interpretado por Tina Fey, este explícito alter-ego de Agatha Christie transformado em um de seus personagens mais famosos, convence Poirot a ajuda-la em mais um caso que pretende utilizar em seus livros: desvendar se uma famosa médium é capaz de conversar mesmo com quem já bateu as botas. Os dois vão a uma sessão promovida pela mãe de uma jovem que teria sido assassinada anos antes, na noite de 31 de outubro. Enquanto isso, a mesma mulher promove no castelo uma festa local e tradicional para as crianças da cidade naquela data.

Michael e Kenneth mexem bastante na história criada por Agatha, a ponto de nem utilizar o nome original do livro (na verdade, o título em português resgata o mesmo utilizado por aqui desde o seu primeiro lançamento). Joyce Reynolds, a tal sensitiva mediúnica, não é uma adolescente de 13 anos de idade e que garante ter presenciado um homicídio. No filme, aliás, ela já tem idade bem avançada e provoca polêmica na opinião pública, sendo inclusive presa por acusações de falsidade ideológica. Michelle Yeoh faz o papel e garante alguns pequenos alívios cômicos da história, sobretudo nos diálogos trocados com o “insensível” e racional detetive.

Diferentemente de Morte no Nilo, aqui o foco é na trama mesmo, não no passado de Hercule Poirot e em dilemas pessoais trazidos por ele lá do passado. Com isso, não só Michael e Kenneth enxugam bastante o tempo de projeção como permitem uma narrativa mais fluida e direta, sem tanta lenga-lenga e demora para engrenar e envolver o espectador no misterioso caso. Tudo bem que em determinadas ocasiões os jump scares apresentados não diferem muito do trivial dos filmes de terror. Entretanto, essa ferramenta não compromete o resultado final nem o envolvimento do espectador. Aliás, a trilha sonora composta pela celista islandesa Hildur Guðnadóttir ajuda a dissociar as imagens do lugar-comum.

O elenco também se mostra mais afiado do que aquele escolhido para o segundo longa. Além de Fey e Yeoh, temos aqui Kelly Reilly (a tal mãe da jovem), Camille Cottin (a empregada da mulher), Jamie Dorman (um médico que sofre com o estresse pós-traumático provocado pelos horrores da Segunda Guerra Mundial), Jude Hill (o filho dele, entrando na puberdade e um adolescente nada convencional), Emma Laird e Ali Khan (os irmãos que querem fazer de Reynolds uma mera escada para poderem fugir aos Estados Unidos e morar lá de vez).

Para um filme que propõe a quem assiste embarcar em uma sessão de quase duas horas de entretenimento de qualidade, com direito a astúcia e inteligência, A Noite das Bruxas deve garantir a sobrevivência de Hercule Poirot nas telas por mais um bom tempo. E não só isso, aliás. James Pritchard, bisneto da escritora britânica, administrador de seu legado e produtor executivo dos longas dirigidos e estrelados por Branagh, dá indícios de que um novo elemento do agathaverso está prestes a ser descortinado. Pode estar vindo por aí a primeira história da  versão feminina de Poirot, a senhora solteirona que brinca de detetive amadora conhecida como Miss Marple.

Comics, Movies, Music, Sports, TV

Pelé – Parte 2

Oito motivos que transformaram o jogador em gênio dos gramados e ícone da cultura pop no Brasil e no mundo

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução

Três Copas do Mundo

Foram quatro torneios supremos do futebol mundial disputados consecutivamente. Três vencidos: 1958, 1962 e 1970. Nenhum outro jogador conseguiu igualar o feito antes ou depois.

Garoto-prodígio

Depois de se destacar nos campos da cidade de Bauru, Edson Arantes do Nascimento mudou-se para Santos aos 15 anos de idade, para tentar uma vaga no time local, uma das principais equipes do futebol paulista. Depois de um breve início na formação amadora, marcando 13 gols em 13 jogos, passou aos profissionais, marcando logo na estreia. Chegou à seleção brasileira com 16 anos e apenas dez meses de carreira. Aos 17, disputou a primeira Copa do Mundo, na Suécia. Fez seis gols no total, sendo um nas quartas-de-final (1 a 0 em Gales), três na semifinal (5 a 2 na França) e dois na final (também 5 a 2, contra os anfitriões).

Coleção de chapéus

Na final da copa contra os suecos em 1958, Pelé já havia desfilado toda a sua classe com a bola coroando a goleada de 5 a 2 com um golaço com direito a chapéu no zagueiro e conclusão pro gol sem deixar a bola quicar no chão. A ousadia daquele ainda moleque foi além dois anos depois, numa partida na Rua Javari contra o Juventus. Naquela tarde de 2 de agosto de 1960, a torcida do time grená passou a vaiar o Rei a cada vez que ele tocava na bola por conta de uma dividia que tirara um adversário da partida. Pelé já havia marcado dois dos três gols do Santos. No final do segundo tempo, recebeu na área um cruzamento de Durval. Sem deixar a bola tocar no chão, aplicou uma meia-lua no zagueiro, chapelou o segundo, o terceiro e o goleiro e ainda tocou, de cabeça, para o gol vazio. Um gol de placa, para muitos o mais bonito da carreira. Entretanto, para o azar da História, nunca apareceu até hoje um registro em vídeo de todo o lance (depois reproduzido digitalmente com base em depoimentos e textos da época). Detalhe: com a bola na rede, Pelé saiu correndo em direção aos torcedores e, em uma espécie de desabafo, pula e dá um soco no ar. Nascia, então, a comemoração que tornaria sua marca registrada nos gramados mundiais.

Orgulho preto

Ao tornar-se o grande nome da reta final da Copa de 1958, ainda menor de idade, Pelé deu o primeiro passo para consolidar uma carreira que o transformou não só no maior atleta do século 20 mas também naquele nome conhecido nos quatro cantos do mundo (incluindo lugares inóspitos e sem qualquer tradição no futebol). Tornou-se Rei do Futebol logo no início dos anos 1960, quando, dando sua contribuição fazendo arte nos gramados, ajudou o país a enfrentar uma fase áurea no território sociocultural, com projeção mundial da marca Brasil na música, no cinema, na arquitetura. Sem falar no fato de que Pelé veio de uma família preta e pobre para fazer fama, fortuna e sucesso com o seu trabalho e paixão e conquistou sua majestade por esforço e talento, esfregando na cara da elite branca o racismo estrutural que imperava, até então, de modo soberano e silencioso em nosso país com a divisão entre social e “de serviço” em elevadores e portas de entrada mais os quartinhos e banheiros “de empregada” na parte dos fundos das residências.

Hegemonia no continente e no mundo

Com a camisa do Santos, Pelé foi campeão em 1962 e 1963 da Libertadores e do Mundial de Clubes. Foi a primeira vez que uma equipe brasileira alcançou tais conquistas. Reflexo da hegemonia brasileira nas copas de 1958 e 1962. Outras agremiações fariam o mesmo décadas posteriores, mas o alvinegro da Vila Belmiro foi o pioneiro que deixou o caminho aberto na história do futebol sulamericano. Em 1962, vale lembrar que o adversário europeu era o poderoso Benfica, que havia ganho os dois anos anteriores e contava com o craque português Eusébio na escalação. O Santos não tomou conhecimento de nada disso e venceu os jogos de ida e volta (3 a 2 no Maracanã e 5 a 2 em Lisboa). Pelé fez cinco dos oito gols.

Recordes na artilharia

Pelé disputou 1383 partidas e marcou entre 1281 e 1283 gols (há até hoje divergência em diversas contagens “oficiais”). Uma média que impressiona qualquer pessoa ligada em estatísticas. Como jogou em apenas um time no Brasil, ele marcou pelo Santos em todas as 18 edições do Campeonato Paulista que disputou. Ao todo foram 37 hat-tricks (quando o jogador leva três vezes ou mais a bola à rede na mesma partida). Fez quatro gols em um só jogo por 20 vezes. Cinco gols em outras quatro oportunidades. O recorde absoluto da artilharia em um só confronto ocorreu em 1964, quando chegou à marca por oito vezes na goleada de 11 a 0 imposta ao Botafogo de Ribeirão Preto. Em 1958, entre os 17 e 18 anos de idade, anotou 58 gols no Paulistão da temporada, recorde absoluto jamais superado no país até hoje por qualquer outro jogador em torneios nacionais ou regionais. Pela seleção brasileira, comemerou 77 tentos em 92 disputas (vale lembrar que naquele tempo havia um tempo maior de intervalo entre uma entrada em campo e outra da Amarelinha; Neymar igualou a marca durante esta copa do Catar, mas com 31 atuações a mais).

No social e no cultural

O famoso milésimo gol do craque, anotado no Maracanã, contra o Vasco da Gama, durante o torneio Roberto Gomes Pedrosa (equivalente à época do Brasileirão), na noite de 19 de novembro de 1969, na verdade não foi o milésimo. Foi o milésimo primeiro. Um erro na contagem tirou a honra do último tento da goleada de 4 a 0 contra o Santa Cruz, na Ilha do Retiro, em Recife, seis dias antes. De qualquer forma, aquele pênalti convertido no Rio de Janeiro entrou para a História como o marco oficial. Partida interrompida para a comemoração, invasão de campo de torcedores, reservas e jornalistas. Pelé, carregado nos ombros e segurando firme a bola, dedicou o feito às crianças pobres de todo o país. Há pouco mais de um século, Pelé já tinha noção do que ele representava para tantos meninos e meninas que, de lá para cá, engrossaram cada vez mais os números da infância vivida na pobreza e nas ruas do país. Desde então, dedicou boa parte de seu tempo a ações sociais de combate a estas situações. Em 1997, já na condição de ministro do esporte do governo Fernando Henrique Cardoso gravou uma campanha em vídeo da canção “ABC” (que havia gravado oficialmente um ano antes com o Trem da Alegria) para incentivar a ida das crianças à escola e a queda da taxa de analfabetismo no país. Música era uma paixão secundária do cidadão Edson Arantes do Nascimento. Ele compôs uma centena delas e chegou a lançar discos com Elis Regina e Sérgio Mendes. Também chegou a participar como protagonista de uma novela de TV. O folhetim Os Estranhos, foi levado ao ar pela TV Excelsior, entre março e agosto de 1969, mediando o contato de pacíficos extraterrestres, que queriam ajudar os seres humanos a resolver problemas complicados do dia a dia como os sentimentos de raiva e ciúmes. Como precisava seguir cumprindo suas obrigações como jogador de futebol, seu personagem tinha de ficar longe de qualquer envolvimento amoroso, para que as gravações ocorressem de forma organizada, ocupando os buracos da agenda cheia. Ivani Ribeiro (famosa por A Viagem) foi a autora da trama, escrita para fomentar a expectativa dos brasileiros pela primeira chegada do homem à lua. Gianfrancesco Guarnieri e Gonzaga Blota dirigiram um elenco que tinha, além de Pelé, Regina Duarte, Rosamaria Murtinho, Vida Alves, Claudio Corrêa e Castro, Osmar Prado, Stenio Garcia, Marcia de Windsor, Silvio de Abreu e o próprio Guarnieri. Depois, nos anos 1970 e 1980, ele atuaria em alguns filmes (em um deles, Fuga Para a Vitória, ao lado de Sylvester Stallone) e viraria personagem de HQ, em versão infantil, pelas mãos de Mauricio de Sousa.

Tricampeonato no México

O mundial disputado em 1970 foi o maior desafio da carreira de Pelé. Muito menos por sua capacidade, mais pelo psicológico. Ele havia se contundido durante as duas últimas semanas e ficado de fora dos jogos decisivos para a nossa seleção. Na preparação para a ida ao México seu rendimento também estava sendo constantemente colocado em xeque. Novas lesões e uma birra pessoal do então técnico, o cronista esportivo João Saldanha, ameaçavam a sua presença no time titular. A ditadura militar fez uma intervenção na Confederação Brasileira de Desportos, trocou o treinador (colocando no lugar o iniciante Zagallo, que poucos anos antes abandonara a trajetória de jogador para se dedicar à nova função) e bancou, junto com os companheiros de Amarelinha, a figura de Pelé nos gramados. Deu certo. Pelé viveu momentos iluminados na copa que deu o tricampeonato ao Brasil. Comandou um time avassalador em campo, que somou seis vitórias em seis jogos, totalizando 19 gols (média superior a três por partida). Pelé marcou quatro vezes, três na fase inicial e uma na final (um sonoro 4 a 1 contra a Itália, que também luta pelo tri e pela posse definitiva da taça Jules Rimet). Alimentou o time com grandes jogadas, passes e assistências para gols decisivos dos atacantes Jairzinho (na dura vitória de 1 a 0 contra a última campeã, a Inglaterra) e Rivelino (na semifinal contra os uruguaios, tira-teima da derrota em casa de 1950) mais o lateral e capitão Carlos Alberto (a tampa do caixão da goleada da final). Após o apito final, torcedores mexicanos, efusivos e entusiasmados com as performances brasileiras, invadiram o campo para carregar Pelé nos ombros e arrancar-lhe partes do uniforme.

Só que a Copa do México passou para a História também pelos incríveis quatro gols sensacionais que Pelé não fez (algum outro nome já conseguiu tal feito?). Na estreia contra a Tchecoslováquia, aos 41 minutos do primeiro tempo, quando o placar mostrava empate em 1 a 1, Pelé viu uma bola sobrar após a roubada do volante Clodoaldo, viu o goleiro adversário adiantado e ainda da parte defensiva do círculo central mandou um chutão em direção ao gol. Ivo Viktor correu em desespero de volta à baliza, olhando pra cima, mas a bola, caprichosamente, saiu pela linha de fundo, perto da trave esquerda. O lance, inédito em uma Copa do Mundo, inspirou outros jogadores anos e anos depois (como Rivaldo, Roger Flores e Fred, que obtiveram sucesso naquilo que Pelé não conseguira por capricho do destino). Quatro dias depois, ainda no começo do jogo, Jairzinho cruzou para a área e o camisa 10 testou firme a bola no canto inferior direito. Gordon Banks mergulhou de forma espetacular e conseguiu espalmar a bola para cima, tirando-a da direção certeira do gol. Muita gente considera até hoje esta como a maior defesa de um goleiro de todos os tempos. No segundo tempo da semifinal contra o Uruguai, Pelé protagonizou dois lances cruciais de puro reflexo com genialidade. Em um tiro de meta de Mazurkiewicz, o craque mandou a bola, de bate-pronto, de volta à meta uruguaia. Pena que o chute saiu fraco, facilitando a vida do goleiro. No final da partida, já com o placar decidido em 3 a 1 por pouco não saiu o quarto. Tostão fez uma enfiada rasteira e vertical no meio do campo, Pelé correu mais que todos os rivais, viu o goleiro saindo para fazer com os pés a interceptação, deixou a bola ir um lado do goleiro e foi pelo outro, completou o “drible da vaca” e quase da ponta da pequena área concluiu ao gol. De um lado, um zagueiro atabalhoado se jogou no gramado para tentar cortar. Do outro lado, a bola saiu também por capricho pela linha de fundo, bem perto da trave. Estes quatro lances, mais de meio século depois, ainda são capazes de encantar qualquer pessoa que admire a arte do futebol.

>> Leia aqui a parte 1 desta homenagem a Pelé

Movies

Argentina, 1985

Ricardo Darin brilha como o procurador que levou a punição a muitos dos crimes cometidos pelos militares durante a ditadura recente no país vizinho

Texto por Tais Zago

Foto: Amazon Prime Video/Divulgação

Sejamos honestos. A Argentina fez o que não fizemos no Brasil. Puniu os crimes (pelo menos de alguns) dos militares responsáveis pelos sumiços, assassinatos, torturas, coações, estupros, ameaças e mordaças aplicados aos seus cidadãos durante a última ditadura civil-militar que levou o país aos joelhos entre os anos de 1976 e 1983. Em um julgamento de magnitude somente vista antes em Nürnberg após a Segunda Guerra Mundial, os crimes atrozes, detalhados em centenas de depoimentos de sobreviventes e familiares de vítimas, chocaram os presentes, os argentinos e o resto do mundo. 

Em 1985, pouco após a queda do regime e durante o governo Alfonsín (1983-1989), onde foi anulada a Lei de Auto-Anistia, foram assinados decretos que possibilitaram o julgamento dos militares pelos crimes de lesa-humanidade cometidos. Queda essa, precisamos lembrar, que ocorreu graças à incansável resistência de agrupamentos do povo – como o das Mães da Praça de Maio, que lutavam pelos seus filhos desaparecidos – greves gerais, denúncias internacionais de violações dos direitos humanos e uma forte crise econômica. Finalmente, após as forças armadas jogarem a batata quente para o âmbito civil, generais das forças armadas sentaram no banco dos réus. Porém, tais figurões, ainda calcados no poder que exerciam sobre boa parte da população e das instituições governamentais, entraram confiantes de um veredito de inocência. 

Mas eles não esperavam encontrar pelo caminho o procurador Julio Strassera (Ricardo Darin), o procurador-adjunto Luis Moreno Ocampo (Juan Pedro Lanzani) e um grupo de jovens advogados e servidores públicos que viajaram toda a Argentina e juntaram, em pouco mais de quatro meses de trabalho, uma infinidade de casos e provas contra os militares e seus subordinados. A estimativa é que havia um total de 30 mil pessoas desaparecidas durante o “reinado” do ditador Videla e seus comparsas.

Temos em Argentina, 1985 (Argentina/Reino Unido/EUA, 2022 – Amazon Prime Video) um clássico filme de tribunais. E com as etapas que já conhecemos: investigação, captação de provas e depoimentos, estratégias de advogados, testemunhas acuadas, ameaças constantes de morte e um julgamento que, se não plenamente bem sucedido, serviu como inspiração, impulso e precedente para pelo menos mil outros processos desde então. Vemos aqui a Buenos Aires da metade dos anos 1980, com seus prédios imponentes, orelhões vermelhos, bancas de jornais e pequenos restaurantes de bairro. Apesar de pouco se passar fora da sala do tribunal ou de repartições públicas, há um apreço pelos detalhes na produção. O diretor Santiago Mitre, que já trabalhou diversas vezes com o ícone Darin, mostra-nos um Strassera lacônico e de humor esparso. Um promotor que não perde a cabeça por bobagens, mas que, quando convocado, não retrocede e nem desvia por um minuto sequer do seu objetivo. O ator está espetacular como o funcionário público que, apesar de obediente, não desperdiça uma chance de trazer justiça para as vítimas – e mesmo após o veredito continua trabalhando arduamente. Lanzani, como Moreno Ocampo, um típico jovem criado em família militar mas que nunca tolerou o regime, exagera um pouco na dramatização do papel. Uma pontinha de exagero que destoou um pouco da atuação certeira e pontual de Darin – Strassera era protocolar no trabalho e ao mesmo tempo um pai terno em casa. 

Também não é de se ignorar uma certa pecha hollywoodiana na obra. A presença do filho de Strassera em diversas cenas, transferindo para o olhar infantil o desenrolar dos acontecimentos, poderia ser deixada de lado. No mais, as atuações são comedidas tanto nos momentos mais tensos quanto nos mais leves. É essa dosagem que torna Argentina, 1985 uma obra indispensável, tanto como entretenimento quanto material educacional (principalmente no momento atual brasileiro, onde sentimos na pele o resultado de uma anistia e o esquecimento dos horrores da ditadura). Os argentinos festejam a lembrança das derrotas e vitórias do seu passado. Com respeito, mas também com orgulho. Exatamente para que a sua democracia continue forte e viva.