Movies

A Baleia

Darren Aronofosky volta a incomodar com um espetacular Brendan Fraser como um professor em desenfreada busca pela não existência

Texto por Taís Zago

Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Samuel D. Hunter escreveu A Baleia tendo sua própria vida e trajetória como inspiração. Nascido em Moscow, Idaho, ele foi compelido a se assumir gay já na adolescência, sofreu com a homofobia provinciana e suas mazelas emocionais refletiram em um ganho rápido de peso durante os anos de universidade. Então, Samuel cria em A Baleia um “e se…” caso ele tivesse continuado o caminho que estava posto diante de si. Darren Aronofsky assistiu à peça em uma de suas muitas apresentações e rapidamente vislumbrou no roteiro material rico para um longa-metragem.

Para os que estão familiarizados com a obra cinematográfica de Aronofsky não é segredo algum que o diretor, roteirista e produtor se expressa, não raramente, usando os extremos dos comportamentos humanos. Ora aborda o vício em drogas em obras como A Vida Não É Um Sonho (2000), ora as profundezas da alma humana como em Cisne Negro (2010). Também não é raro em seu oeuvre uma jornada de modificação corporal baseada na busca de aceitação e fama que acaba por deteriorar lentamente seus personagens, como em O Lutador (2008). O ponto convergente de sua obra é uma visão desiludida do humano, o que não raramente nos arrasta a lugares incômodos e quase insuportáveis dentro de nossas cabeças.

Em A Baleia (The Whale, Estados Unidos, 2022 – Califórnia FIlmes), Aronofsky e Hunter trabalharam juntos para transpor dos palcos para o cinema toda a gama de sentimentos de Charlie, interpretado brilhantemente por Brendan Fraser, um homem solitário que vem seguindo um caminho sem volta de deterioração física, emocional e psicológica desde a perda de seu grande amor e companheiro de vida. Charlie é um excelente professor universitário de ensaios literários, ministra suas aulas via EAD, mas nunca permitiu a seus alunos que o vissem pela câmera. Há muito tempo Charlie não sai de casa, não cuida da saúde, não vê muitas pessoas. Uma de suas grandes dores foi o seu afastamento compulsório da filha, na época com 8 anos de idade, por ele ter assumido uma relação homoafetiva com um de seus estudantes. Tudo em Charlie é machucado. Apesar do foco em sua aparência como alegoria para a ruína, a parte mais evidente da tremenda dor que carrega é revelada pelos olhos e pela voz. Ao seu lado, tem a fiel amiga Liz (Hong Chau), uma enfermeira que o acompanha e tenta fazer os seus dias o mais confortável possível sem criticar com clichês e sem esmiuçar os motivos. Liz os conhece bem, mesmo que no fundo ela não queira aceitar o caminho escolhido por ele.

O filme, mesmo antes de ser lançado, gerou uma onda de críticas em relação à patologização da obesidade e do uso das chamadas fat suits (trajes de gordura) que os atores vestem para interpretar pessoas gordas e que muitas vezes já contribuiu para o estigma do grupo com representações em filmes de gosto duvidoso – como O Professor Aloprado (1996), com Eddie Murphy interpretando diversos personagens usando fat suits como uma característica depreciativa, ou em comédias românticas como O Amor É Cego (2001) com Gwyneth Paltrow, onde, bem, o titulo em português é autoexplicativo. Não foram raras as alegações de crueldade e de voyeurismo da obesidade. Aronofsky não é famoso pela sobriedade de suas representações. Ele procura sempre o limite, o que, às vezes, pode beirar uma caricatura de mau gosto. Tanto que A Baleia foi classificada como uma espécie de fat horror por uma ala da crítica. 

Sabendo isso de antemão, apelei para um artifício ao assistir A Baleia – reduzi a luminosidade da minha tela, diminuindo assim a importância e o impacto da apelação visual e concentrando apenas nas vozes, e, algumas vezes, nos olhares. E só pude chegar a uma única conclusão: Brendan Fraser é espetacular. Desconectando a caracterização, o que nos resta é uma alma partida de alguém que perdeu completamente o interesse de continuar vivendo. O que sentimos é um ser humano em rota de colisão irremediável e desesperançada. E nesse caminho pouco importa o figurino, a maquiagem ou o método escolhido para se alcançar o objetivo, quer seja ele por meio de drogas, comida, ausência de comida, sexo ou qualquer outra forma de se obter o resultado desejado – a não existência.

A dor de Charlie é profunda demais para ser remediada. O luto diário que mantém pelo seu amor perdido de forma violenta é insuperável, a ausência da filha e a culpa que o ronda de forma repetitiva o oprimem. Charlie tanto ruminou suas dores que se entregou a elas. O ponto de retorno já foi há muito abandonado. A depressão retirou a luz quase que completamente de sua rotina. E é exatamente nessa reta final de sua jornada que ele faz um último esforço desesperado para reatar o contato com sua filha Ellie (Sadie Sink), uma adolescente, que segundo as palavras da própria mãe (Samantha Morton, em aparição relâmpago) é simplesmente uma menina má. Charlie se nega a acreditar nisso. Mesmo em toda a escuridão em que vive, ele ainda nutre a esperança na luz de Ellie. Da mesma forma acolhe Thomas (Ty Simpkins), jovem que escolheu pregar a palavra de Deus como sendo a forma irrefutável da salvação humana.

A Baleia, em parte por ser uma dramaturgia adaptada do teatro, é encenada com poucos personagens, tendo como única locação a casa de Charlie e, na maioria das cenas, apenas sua sala de estar. A fotografia é escura em quase sua totalidade, em parte para cooperar com os esforços de tornar a caracterização física mais verídica, mas também como alegoria da profunda depressão do protagonista. A música segue o mesmo caminho, assim como a edição. Tudo nos conduz para a melancolia e para a desesperança. Aronofsky sendo Aronofsky, portanto.

A Baleia é uma tragédia humana real sendo arrastada para o macabro, uma câmara de vácuo e ausência de luminosidade, um palco trágico, uma jornada de redenção e purificação por meio do sofrimento e do sacrifício. Poderia não ser assim, como aponta Samuel ao falar de seu roteiro, mas foi. Brendan Fraser recebeu o merecidíssimo Oscar de melhor ator, preenchendo todos os requisitos que Hollywood busca: um protagonista que retorna das cinzas após ser massacrado e abandonado pela indústria cinematográfica; um roteiro tenso, teatral e dramático; e um personagem que requer modificações físicas complexas da parte do ator para ser interpretado.

Music

Skank

Oito perguntas sobre o presente e o futuro da banda mineira que se despede do público neste domingo após 32 anos de carreira

Samuel, Lelo, Henrique e Haroldo (da esq. à dir.)

Texto e entrevista por Abonico Smith

Foto: Divulgação

Resta um. Apenas unzinho. Domingo próximo será o último dia. Às 19h do dia 26 de março de 2023, Samuel Rosa (guitarra, violão e vocais), Henrique Portugal (teclados, violão e vocais), Lelo Zaneti (baixo e vocais) e Haroldo Ferreti (bateria) sobem pela última vez ao palco juntos. Será o derradeiro show do Skank, após uma carreira contínua e muito bem-sucedida (tanto criativa quanto comercialmente) de 32 anos. Depois deste show, quem não viu in loco não terá mais tal chance. Daí só recorrendo a gravações em áudio e vídeo.

O local escolhido para o gran finale não poderia ser mais especial: o Mineirão, a maior arena a céu aberto de Belo Horizonte, a cidade que deu a banda ao mundo. O mesmo local que, no final do ano passado, assistiu lotado à emocionante retirada dos palcos de Milton Nascimento, outro ícone da música mineira. No caso do Skank, entretanto, há uma conexão a mais com o mundo do futebol. Além do grupo ser dividido meio e meio entre torcedores fanáticos dos dois maiores times de lá (Samuel e Henrique são Cruzeiro; Lelo e Haroldo, Atlético Mineiro), os integrantes passaram os primeiros anos da carreira vestindo camisas de muitos clubes nacionais em concertos, videoclipes e programas de televisão. Outra curiosidade: a primeira apresentação ao vivo do quarteto, em 5 de junho de 1991, contou com apenas 37 “testemunhas” comprando ingresso. Tudo devido ao fato de São Paulo e Bragantino estarem decidindo o Brasileirão naquela mesma noite.

show deste domingo no Mineirão colocará um ponto final na extensa turnê de despedida que já passou por diversas capitais e grandes cidades do país no último par de anos. Na verdade, o adeus estava programado para casar com a comemoração de trinta anos de existência da banda, em 2021. Contudo, a pandemia da covid-19 e a paralisação de quase dois anos na produção e realização de eventos culturais acabou provocando o adiamento da tour para os dois anos seguintes.

Mondo Bacana – que teve a sorte de acompanhar de perto a trajetória que rendeu treze discos (nove gravados em estúdio e mais quatro ao vivo) e seis DVDs – entrevistou o grupo nesta reta final. Henrique – que, assim como Samuel, participava do embrião que formou o Skank, um quarteto chamado Pouso Alto – respondeu a oito perguntas que pontuam não o passado, mas o presente e o futuro do Skank e seus membros. Afinal, é hora de se festejar um ciclo que termina e o próximo que estará se abrindo a cada um deles.

Março de 2023 foi o último mês de shows do Skank, depois de 32 anos de estrada. A cada dia que passa mais perto fica o fim. Como estão os corações e mentes dos quatro integrantes nestes dias derradeiros? Como está sendo encarar um encerramento de um ciclo tão grande?

Os shows têm sido uma verdadeira celebração. Estamos focados em nos divertir com nossos fãs e não sentimos essa melancolia de fim de um ciclo, porque foram anos muito gratificantes para nós quatro. Estamos vivendo as emoções, pedidos de música, particularidades de cada cidade. Temos a sensação de dever cumprido, por seguirmos juntos por tanto tempo e somos orgulhosos do legado que deixamos para os nossos fãs.

Muito se brinca que no Brasil as bandas de rock não costumam acabar oficialmente. Algumas dão um tempo, aproveitando para se reunir esporadicamente em turnês especiais pelo Brasil, outras se arrastam por um período, sendo postas em segundo plano diante de carreiras e projetos solo de seus integrantes. A pergunta que não quer calar: será mesmo o fim oficial do Skank ou, graças à amizade entre vocês, a porta estará ainda aberta para uma possível reunião no futuro?

Nós decidimos parar agora para que cada um possa ter tempo para se dedicar a projetos pessoais que a agenda intensa do Skank impedia. Mas a nossa música continua por todos os lados e de fácil acesso. O Skank sempre vai existir, independente de nós estarmos juntos tocando o Brasil. Enquanto todos ouvirem nossas músicas, estamos existindo.

Haverá algum produto especial extraído desta turnê de despedida? Algum filme, documentário, disco ao vivo?

Estamos registrando todos os shows e no Mineirão será feita uma bela produção para o encerramento deste ciclo.  O que faremos com estas imagens só será decidido depois da turnê.

Cada um de vocês quatro já definiu o que fará da vida após o fim do Skank? Vão continuar atuando no território da música? Alguma coisa já pode ser adiantada sobre a nova fase pós-Skank? No caso do Samuel, há alguma chance de rolar uma turnê a dois violões com o parceiro de composição Nando Reis (que acabou de fazer algo assim com a Pitty)?

Estamos focados ainda na turnê e nos organizado e programando nossos trabalhos solos. Alguns de nós já tem coisas paralelas à banda e vamos seguir trabalhando com outros amigos, com outros projetos. A gente entende que agora é o momento de cada um devolver para a música tudo o que ela nos deu durante todos esses anos.

Depois do sucesso e desfile de hits dos primeiros discos da banda, o Skank tomou uma decisão interessante: usar o dinheiro da gravadora que seria para gravar em bons estúdios na construção e realização de um estúdio próprio da banda. Se não me engano, ficava no terreno da casa do Haroldo. Este estúdio ainda existe e é utilizado? Agora, com a separação, será usado também para novos trabalhos e gravações musicais dos quatro integrantes?

Esse estúdio que você está se referindo era o Maquina.  Na verdade os donos eram eu, Haroldo e o Lelo. Mas já o vendemos há algum tempo.  A vida intensa na estrada com o Skank impossibilitava a gestão dele.  O Haroldo, viciado em estúdio, já montou outro só pra ele. Inclusive o Skank tem ensaiado neste local.

Nos dias de hoje, a música parece ter perdido a condição de finalidade e se transformado em apenas um meio. Tanto que festivais não vendem mais música há tempos, vendem experiências. Os mais jovens estão perdendo o costume de sair à noite para se comungar com outras pessoas desconhecidas ou conhecidas e ver uma banda tocar ao vivo em pequenos espaços. Nas plataformas digitais, a frieza do algoritmo substitui o aconchego do amigo ou irmão mais velho para apresentar aquilo que você ainda não conhece e deveria ouvir… Como é fazer música em tempos de streaming, quando um rápido clique no botão pode alterar e encurtar o tempo de audição de uma faixa, até em questão de segundos, e velocidade voraz para uma não tão paciente assim GenZ?

Depois de passar por tantas mudanças, continuo acreditando que o mais importante é que a música seja boa. As mudanças tecnológicas acabaram mudando a forma como as pessoas escutam música. É uma geração que tem pressa para assimilar informação e quando algo não agrada eles mudam para o próximo. Isso mudou também o jeito de compor e produzir canções.

Como o Skank vê o espaço para o segmento pop/rock dentro da música nacional de hoje? Pergunto isso o domínio arrasador do sertanejo que se refletiu por cerca da última década e meia parece estar se diluindo e sendo combatido, no gosto da GenZ, pela presença do funk e do pop mais dançante e com grooves (Anitta, Pabllo Vittar, Gloria Groove, Ludmilla). De alguma forma isso anima vocês para um futuro mais próximo de quando as gerações 1980 e 1990 do rock vieram com tudo no mercado fonográfico nacional?
O rock já teve um papel importante na sociedade que era questionar os valores sociais. Hoje em dia, este papel é do hip hop. O Brasil nunca foi um país forte no rock. Temos e tivemos alguns expoentes, mas sempre enxerguei um movimento pop/rock forte e poucas bandas de rock puro. Somos um país de misturas culturais, com uma grande força na parte rítmica.

Vocês são herdeiros e discípulos diretos do Clube da Esquina, grupo/disco que recentemente ganhou o primeiro lugar em uma votação de especialistas e imprensa (da qual eu tenho orgulho de ter participado, aliás) dos melhores álbuns de todos os tempos da música brasileira. Como avaliam este resultado? O tempo é mesmo o melhor curador para que se perceba a qualidade de uma obra musical? Ainda mais em tempos de música digital, que parece ter deixado igual a força de qualquer obra gravada em qualquer tempo e em qualquer geração…

A digitalização da música mudou a relação das pessoas com os artistas. Hoje em dia, as pessoas conhecem mais as canções do que dos artistas que as interpretam. Em compensação, acabou com a temporalidade das canções. Não existe mais o velho e o novo, todos estão iguais. Isto foi ótimo.  A nossa relação com o Clube da Esquina é natural, ainda mais no meu caso pois fui criado no bairro de Santa Tereza aqui em BH. Este é um álbum histórico para a música brasileira. Escutei do ator Matheus Nachtergaele que o mineiro se mistura pouco com outros artistas, só que é muito profundo na maioria das coisas que faz.  Pra mim este álbum é isto. Profundo e intenso.

Movies

Aftersun

Cineasta estreia com um dilacerante drama sobre amadurecimento e a relação da filha de 11 anos com o pai emocionalmente abalado

Textos por Leonardo Andreiko e Janaina Monteiro

Fotos: 02 Play/Mubi/Divulgação

Há filmes que desde o início prendem nossa atenção. Anunciam sua chegada e, com presença de espírito, nos catapultam para dentro de si e ocupam nossas mentes até o final. Não raro eles também sabem encerrar sua estadia, seja por meio de uma conclusão narrativa ou deixando-nos abertos à incerteza. Na vida, contudo, o fim de uma história raramente é anunciado. Nosso último encontro com alguém não vem acompanhado do letreiro onde vem escrito “fim”. Aftersun (Reino Unido/EUA, 2022 – O2 Play/Mubi), queridinho da crítica mundial e arrebatador de premiações deste ano (incluindo o Troféu Bandeira Paulista, para novos diretores na Mostra de São Paulo), consegue o feito de fazer os dois.

O longa-metragem, primeiro da diretora escocesa Charlotte Wells, retrata uma viagem de Calum (Paul Mescal) e Sophie (Frankie Corio), sua filha de 11 anos, para um resort no Mediterrâneo. Em meio às atividades de férias, mergulhos e jantares, acompanhamos o amadurecimento do olhar de Sophie sobre o mundo, a conflituosa relação de Calum consigo mesmo e o movimento de aproximação–distanciamento de pai e filha.

Wells tece um delicado véu que unifica os muitos percursos temáticos que Aftersun explora, de modo que consegue abordar questões socioeconômicas, melancólicas, psicológicas e até mesmo de coming of age mantendo um filme coeso e direcionado. É sob a decupagem simples (mas não minimalista) de suas cenas que a diretora projeta os diferentes estados de espírito que permeiam sua obra. É simples pela movimentação desperturbada: o interesse nos planos longos e nos detalhes em cena. O fora-de-campo cumpre uma função essencialmente especulativa (por imaginarmos o que se passa para além das câmeras), mas também de tensão – as elipses, omissões simbólicas e a subexposição esmagadora do mar à noite são aspectos constitutivos da forma da obra. Não somente floreiam o que se passa como discursam sobre ele, o expandem.

O resultado, primoroso de certo, é um filme que carrega consigo a complexidade de duas vidas, e não somente a superficialidade de uma trama, uma mera premissa. Enquanto Sophie descobre relações, modos de interação e o romance que permeia a vida, a operação emocional de Calum é praticamente oposta. A pré-adolescente se encontra num movimento de afastamento da magia do jogo, do karaokê e da infância, partindo ao mundo dos interesses românticos e das nuances adolescentes, que faz florescer seu próprio desejo ao mesmo tempo que descobre e se interessa pelo desejo do outro. Seu mundo é o hotel, suas piscinas e o fliperama. Em paralelo, seu pai não consegue desvencilhar-se do próprio passado, das próprias aspirações e da opressão do mundo à volta. Seu desejo é sempre presente, mas reprimido – fuma escondido de sua filha, projeta saídas de problemas materiais para além da viagem, preocupa-se com o dinheiro e rememora o passado sem noção certa do futuro.

Das muitas sequências memoráveis, vejo aquela em que Calum almeja o tapete sem poder comprá-lo como uma das mais potentes. Em um quadro repleto de tapetes, empilhados sobre os demais numa espécie de sótão/estoque, irrompem Calum, Sophie, o vendedor e um tapete estendido ao chão, no qual o protagonista finca o olhar. Não é o desejo pelo artefato que o interessa, mas a capacidade de carregar consigo as histórias daqueles que o teceram.

Em um jogo de cena entre esse plano conjunto e um tocante close-up de Paul Mescal (que desde Normal People, série que projetou o astro às telas mundiais, é uma marca de sua carreira), o delicado olhar da direção faz o papel de nos impor a realidade emotiva que vive o protagonista. Em crise por não ver no tempo presente cumpridos seus sonhos de criança e muito menos os próximos passos na vida adulta, Calum se deita num de muitos tapetes e respira – busca sentir a história, mas não é capaz de tê-la.

Pincelando sua narrativa com o recurso da filmagem caseira que marcou o final dos anos 1990 e o começo do novo milênio, Wells opera uma exploração vívida da psique de suas personagens e o poder cristalizador da matéria-prima do cinema: o vídeo. São muitas as instâncias em que as brincadeiras de Frankie segurando a câmera, bem como os registros mais aterrados e “documentais” de Calum, são monumentos da memória, revelando ao espectador um passado muito latente e carregado de afetos. Não à toa, em dado momento, a espectadora é a própria Frankie, já adulta, que ao assistir as filmagens rememora e reinterpreta sua história e relação com o próprio pai.

Aftersun é, sem dúvidas, um dos lançamentos mais potentes deste ano, um sopro de ar fresco sobre o claustrofóbico e agonizante cenário das franquias intermináveis e lançamentos decepcionantes. Esse é um filme que emociona ao ser assistido, mas também é um dos raros que emocionam ao escrever sobre. Charlotte Wells, ao trabalhar a partir de sua própria memória, parece recuperar uma constatação óbvia, mas não menos potente: não há letreiro de “fim” para anunciar o último encontro. E é isso que os torna especiais. (LA)

***

Gatilhos mentais podem ser acionados de várias maneiras, fazendo revisitar memórias guardadas nas mais profundas gavetas e que trazem à tona calafrios e sensações nada agradáveis. Tem gente, por exemplo, que associa assistir a vídeos caseiros a uma certa melancolia. Talvez porque saiba que quando alguém querido, da família, se for, essa é uma das formas de se perpetuar as lembranças, sejam elas alegres ou não. 

Por isso, assim que a personagem Sophie (a estreante Frankie Corio) aperta o play no registro de suas férias na Turquia com o pai Callum (Paul Mescal) só tive uma certeza: a de que seria engolida por uma imensa onda gigante de nostalgia, chamada Aftersun (Reino Unido/EUA, 2022 – O2 Play/Mubi).

Quando este primeiro longa-metragem da escocesa Charlotte Wells terminou, fiquei atônita por alguns momentos na frente da tela. E mesmo que eu tentasse me desvencilhar de tudo aquilo que havia assistido nos últimos cem minutos não conseguia recuperar o fôlego de jeito nenhum. Não conseguia me soltar daqueles fragmentos de uma história avassaladora. 

Charlotte me deixou completamente hipnotizada pela narrativa desenhada de forma melancolicamente deslumbrante para mostrar o período em que um pai separado, de 30 e poucos anos, e sua filha pré-adolescente de 11 passam juntos.

Do início ao fim, a diretora nos proporciona um mergulho na relação entre os dois, mostrando a paternidade por um viés diferente daquele que costumamos ver no cinema. Podemos lembrar de vários longas, por exemplo, como o delicado O Mundo de Jack e Rose, protagonizado por Daniel Day-Lewis, mas dificilmente algum título supere Aftersun no quesito profundidade.

Em entrevistas à imprensa estrangeira, Charlotte revelou que concebeu o filme a partir do momento em que se deparou com álbuns de fotografias antigas da família. Portanto, existe muito de autobiográfico no roteiro assinado por ela. 

Ao passo que o espectador é apresentado aos protagonistas, é possível perceber também que Charlotte busca uma certa inspiração na sua compatriota Lynne Ramsay, também conhecida por dirigir filmes complexos sobre as fraquezas humanas de uma outra perspectiva, como fez com o também avassalador Precisamos Falar Sobre Kevin

Aftersun é muito mais que uma história sobre a conexão entre pai e filha. É sobre o vazio, o desespero. Sobre ter de sorrir e zelar pela vida de outra pessoa enquanto se está dilacerado por dentro. Para traduzir essa relação delicada de afeto e dar pistas do estado mental de Calum, Charlotte nos brinda com muito plano detalhe, como na cena em que mãos de pai e filha se unem, e movimentos de câmera sutis, quando enquadra os livros de meditação dispostos em cima de uma estante.

Em início de carreira, Paul Mescal (o galã de Normal People) se mostra gigante quando de costas consegue representar com seu choro desesperador toda a agonia da personagem. Frankie Corio é a personificação de toda pré-adolescente, que faz suas descobertas e não tem papas na língua ao falar as verdades para o pai. 

Para contextualizar a época, a cineasta recorre a objetos e outros artifícios: a filmadora de Sophie, o walkman de Callum, as canções que marcaram a época, como “Tender”, da banda de britpop Blur. Assim, pouco a pouco, vamos nos guiando por fragmentos dessa viagem registrada pelos olhos de Sophie. E nos dando conta do sofrimento de seu pai e a luta dele para sobreviver. Seja quando ele diz para a ex-mulher, numa cabine telefônica, que ainda a ama (“Por que você disse eu te amo pra mamãe?”, pergunta Sophie logo em seguida). Seja na cena do karaokê em que a filha, ao contrário de todas as outras vezes, canta sozinha. E uma das cenas mais arrebatadoras do filme é, sem dúvida, a “última dança” de Callum ao som de “Under Pressure”.

Depois de Aftersun, será difícil ouvir a canção de David Bowie com o Queen sem se lembrar dessa estreia arrebatadora de Charlotte Wells. (JM)

Music

Floripa Eco Festival – ao vivo

Jorge Ben Jor, Planet Hemp, Baco Exu do Blues, Donavon Frankenreiter, Emicida e outros grandes shows aliados à discussão sobre sustentabilidade

Jorge Ben Jor

Texto e fotos por Frederico Di Lullo

Um festival Massa. Com M maiúsculo. No dia 18 de setembro, todos os caminhos levaram ao Eco Festival, com shows nacionais e internacionais de renome, lembrando até os bons e velhos Planetas Atlântida que rolavam na temporada de verão de Florianópolis na primeira década (e parte da segunda) deste milênio. Como esse é um papo saudosista, esse detalhe fica para outro momento. Vamos, então, viver o hoje e falar um pouco do que vivemos na atualidade. 

Infelizmente, a cidade sofre com acessos restritos e, por isso, naquele sábado chegamos ao Centro de Eventos Luiz Henrique da Silveira quando o Floripa Eco Festival já estava aquecendo todos os presentes. Era a vez de Mike Love, num tremendo pôr-do-sol, agitar a todos com seu reggae, numa perfeita simbiose com o fim de tarde da capital catarinense. Assim, o músico havaiano passou pelos principais sucessos de sua extensa carreira. Sem dúvida, apreciar a performance dele em “Permanent Holiday” e “Human Race” foi um dos pontos altos do evento. E isso que ele estava só começando!

Com uma produção impecável e pontualidade britânica, o Eco Festival continuou com nada menos do que Donavon Frankenreiter. Não se pode deixar de citar aqui que a combinação de surfista e artista é a cara da Ilha da Magia. O cantor mandou um set list com seus maiores clássicos, entre eles as necessárias “Big Wave”, “Free”, “It Don’t Matter” e “Shine”, tudo numa vibe muito especial. Sempre ouvimos que amor de festival tende a ser para sempre. Por isso, acreditamos que casais que assistiram juntos ao show do californiano tendem a ficarem juntos. Mas não foi o nosso caso: pouco antes de Donavon acabar já estávamos posicionados no outro palco para a atração que estava escalada para depois: o aguardado Baco Exu do Blues.

Antes de continuar, não há como deixar de comentar a respeito o objetivo do evento, que une música e sustentabilidade. Numa proposta muito utilizada em 2022, quando muito se fala sobre os impactos de ações da sociedade para um mundo melhor, precisa-se lembrar que, além dos shows de sábado, houve nos dois dias anteriores o Eco Summit. O congresso reuniu conteúdo em prol da sustentabilidade ambiental, por meio de workshops, apresentações, mesas de debate e apresentações de cases de sucesso. Sim, é necessário discutir o entretenimento para além do entretenimento e a Sleepwalkers, empresa que produziu o festival, fez isso de maneira exemplar. Parabéns, amigos!

Baco Exu do Blues

Voltando a aquele sábado, um dos concertos mais aguardados iniciou, apresentando as músicas do recente trabalho Quantas Vezes Você Já Foi Amado?, lançado em janeiro deste ano. Foi assim que as mais de 22 mil pessoas presentes cantaram as já clássicas canções “20 ligações”, “Samba In Paris”, “Lágrimas” e “Mulheres Grandes”. Sim, estamos falando de Baco, caso você não tenha entendido! Também não faltaram “Flamingos”, “Hotel Caro” e “Me Desculpa, Jay Z”. Todo mundo cantou e dançou junto. Foi uma vibe incrível!

Logo após chegou a vez de apresentar a prata da casa. Muita gente que não mora em Floripa ou até mesmo nos limites de Santa Catarina se perguntava quem era essa tal de Dazaranha. Mas os veteranos nativos jogavam em casa e fizeram um show incrível, como sempre, impressionando quem não os conhecia e entregando a qualidade de sempre para quem já os acompanha há mais de 20 anos. E, acredite, praticamente todos os presentes cantaram boa parte dos refrãos das músicas. No repertório não faltaram clássicos como “Fé Menina”, “Salão de Festa a Vapor” “Vagabundo Confesso” e “Com ou Sem”. Pelo menos pra nós, contudo, o ponto alto foi “Afinar as Rezas”, quando se presenciou a maior interação com a plateia. E ainda tinha mais coisa para apresentar…

Sim, apesar do cansaço, como ficar parado na hora de Jorge Ben Jor? E se tem algo que o morador do Copacabana Palace sabe é fazer apresentações memoráveis. Acompanhado por uma banda afiada, Ben Jor colocou todos os presentes para dançar com clássicos como “Take It Easy My Brother Charles”, “Oba, Lá Vem Ela”, “Menina Mulher de Pele Preta”, “Chove Chuva”, “Mas Que Nada”,  “Balança a Pema”, “Magnólia”… Poderíamos citar todo o repertório e ainda faltariam adjetivos para descrever Jorge. O tempo passa e, aos 83 anos, cada vez fica mais evidente que ele é um alquimista e tem a pedra filosofal da imortalidade do corpo –  porque a do trabalho está mais do que assegurada.

Minutos depois, o público foi à loucura quando Emicida iniciou sua performance com uma introdução em vídeo necessária nos tempos atuais. Ele não veio sozinho também: reuniu em cima do palco os maiores nomes do rap nacional na atualidade: Criolo, Rael e Rashid. Cada um no seu momento, participaram do show emplacando os clássicos como “Levanta e Anda”, “Passarinhos”, “AmarElo”, “Libre”, “Paisagem” e “Eminência Parda”. De repente, Marcelo D2 e BNegão se juntam à trupe para uma performance incrível em conjunto na música “Grajauex” de Criolo. Mais uma das cenas que cravaram o festival no coração de todos os presentes.

Tinha tempo para mais? Sim. Eram quase duas da madrugada quando a ex-quadrilha da fumaça pousou no Eco. Era o Planet Hemp, mais Hemp do que nunca! Não dá para negar que é uma das nossas bandas favoritas, seja pela mistura entre rap, rock, reggae e hardcore, tão característica pela sonoridadeou pela ideologia. O fato é a trupe comandanda por BNegão e D2 incendiou tudo até a última ponta, num show fod@ pra c@r@lho, com uma vibe renovada, que nos traz a esperança de um mundo melhor. Começando com “Não Compre, Plante!” e passando por músicas como “Legalize Já“, “Maryjane”, “100% Hardcore”, além da cover de “Crise Geral”, do Ratos de Porão, a banda tirou as últimas forças de energia que ainda restavam da galera presente, fechando o line up com chave de ouro.

Sem dúvida, o Eco Festival foi um dos festivais do ano. E já foi anunciada sua próxima edição, para 2023. Ficamos ansiosos e expectantes por novas experiências musicais. Agora é esperar e descansar.

Music

A-ha – ao vivo

Abismo na relação entre os três músicos deixa o show dedicado ao álbum de estreia morno e aquém da devoção dos fãs brasileiros

Textos por Abonico Smith (Curitiba) e Fabio Soares (São Paulo)

Foto: Abonico Smith

Se existe uma plena certeza no mundo da música pop ela se encontra na implacabilidade do tempo. Para o bem e para o mal. No primeiro caso, ele corrige injustiças e acaba vir a determinar que um disco ou artista que porventura tenha passado meio em branco no passado seja descoberto e passe a se tornar algo bem influente para as gerações posteriores. Tom Zé e, mais recentemente, Kate Bush são bons exemplos disso. No segundo, o tempo age para desgastar a química inicial que deu certo e encantou muita gente lá no inicio. Acontece quase sempre com bandas. Quando há duas ou mais pessoas envolvidas na mesma carreira, é bem provável que no decorrer dos anos comecem a aparecer conflitos de interesse, mudanças de percepções e divergências de vontades. Fora da música, é como se distanciar daquelas amizades de infância e adolescência que sempre habitaram a nossa memória. Você pode lembrar as pessoas com carinho só que a dureza da vida adulta e a transformação das personalidades faz tudo esfriar de um jeito que voltar atrás e continuar aquela proximidade de outrora é tão impossível quanto parar os ponteiros do relógio.

Com o A-ha foi exatamente isso o que ocorreu. Com quase quarenta anos de trajetória nas costas, o trio norueguês conquistou o sucesso com um punhado de músicas gravadas nos primeiros quatro álbuns, espalhados no intervalo de meia década (entre 1985 e 1990). De lá para cá vieram mais alguns discos, muitas brigas e desavenças internas, duas separações acompanhadas por projetos solo e o retorno à manutenção da marca por meio de viagens pelo mundo. A última delas, que somou passagens por seis cidades brasileiras e sete apresentações ao vivo, foi determinante para que se revelasse em cima do palco toda a distância que hoje existe entre Morten Harket (vocais), Magne Furuholmen (teclados e violão) e Pal Waaktaar-Savoy (guitarras e violão). Em Curitiba, escala final da turnê que comemorava os 35 anos do álbum de estreia Hunting High And Low (na verdade, a vinda ao nosso país estava marcada para o segundo semestre de 2020, mas dois adiamentos aconteceram por conta da extensão da pandemia da covid-19), fico mais do que evidente esse abismo todo entre os três. O documentário A-ha: The Movie, lançado agora nos cinemas europeus e exibido em junho pelo festival In-Edit Brasil, já entregava que os camarins são separados e os três raramente aparecem na mesma cena durante entrevistas e flagrantes de imagens de bastidores. Na capital paranaense, ele mal se falavam ou olhavam em cima do palco montado atrás de um dos gols da Arena da Baixada. Também não se abraçaram. Nem no encerramento, durante o agradecimento ao público, o que costuma ser algo corriqueiro quando se trata de um grupo de rock.

Juntar os três em uma mesma fotografia não era algo tão fácil em virtude da logística montada no estádio do Athlético Paranaense. De qualquer maneira, a melhor saída para ilustrar este texto seria não cometer injustiça com qualquer um dos músicos. Deixar um ou dois deles fora de cena se equivaleria a não reconhecer que o A-ha só sobrevive hoje pela unidade que se forma quando todas as peças musicais do quebra-cabeças norueguês se juntam. Afinal, a qualidade e o peso das letras, melodias, riffs e arranjos são igualmente distribuídos aos três. Morten, Mags e Pal sabem que são fortes juntos, mesmo que por anos precisem se tolerar amistosamente para manter a engrenagem chamada A-ha em ação. Tudo isto significa a sobrevivência no mercado musical, apesar de não haver muita renovação de plateia – o que se viu na arquibancada da Arena foi um maciço desfile de fãs acima dos 40 anos de idade.

Ter deixado alguns hits de fora do set list para poder abrigar em seu miolo o repertório integral de Hunting High And Low pode ter desagradado muita gente que estava por lá na expectativa de ouvir uma live version de “You Are The One”, “Stay On These Roads” ou “Touchy!”, por exemplo. O fato de muitas faixas mais obscuras do primeiro álbum, por melhores que sejam em estúdio, não ganharem o brilho necessário quando executadas ao vivo também não foi tão relevante assim. Só que o que mais pesou muito no cômputo final para o saldo de quase duas horas de um show morno, muito morno, foi mesmo a falta de química entre os três integrantes. As principais canções são boas e incendeiam qualquer público de qualquer faixa etária. Os três são excelentes músicos, cada qual em seu instrumento predominante – o já sessentão Morten, sobretudo, não deixa nada a dever no alcance de oitavas mais agudas pelo qual se tornou famoso desde “Take On Me”, apesar de todo mundo saber que o avanço da idade acaba impondo certas dificuldades e limitações vocais a qualquer pessoa que canta. Só que precisão técnica e profissionalismo extremo não fazem engrenar um show de rock em sua totalidade. Rock é e sempre foi pegada, energia, pulsação, dinâmica, ímpeto, víscera, explosão. O resto ainda pode ser música das boas, claro, mas não coloca fogo em um show de rock tal qual o concebemos desde os anos 1950. 

Essa apresentação do A-ha na Arena da Baixada, na noite de 25 de julho, estava mais para um concerto de câmara de música pop. No palco, uma miniorquestra de seis integrantes. Havia três músicos de apoio, também vindos da Noruega, de exímio talento nos sintetizadores, contrabaixo e bateria. E havia os outros três, os astros principais da noite, procurando ser tão precisos quanto um relógio (mesmo com pequenos deslizes e erros de notas durante justamente o gran finale com “Take On Me”) em respeito aos fãs e ao atraso de dois anos na vinda ao nosso país. Só que um relógio funciona com uma engrenagem mecânica. Sem sentimentos, sem emoções, sem arroubos. Tique-taque depois de outro tique-taque, tão somente. Do início ao fim era perceptível que havia muito mais brilho no olho em quem estava pelas arquibancadas inferior e superior – embora valha ressaltar todo o esforço do tecladista Mags ao se apresentar naquela noite depois de ter passado horas de apuro na cidade por causa de um violento piriri.

Em virtude de tamanha devoção do público brasileiro, o A-ha costuma volta e meia tocar aqui no país. Tomara que sobrevivam internamente às turras até a próxima oportunidade de voltarem para cá e se acertem em todas as suas diferenças. Com o repertório e a técnica que eles têm (e são dois elementos que fazem falta a muitas bandas por aí mundo afora), as chances de Morten, Mags e Pal protagonizarem uma noite bem mais quente e devolverem à altura toda a energia que sai de casa para ir vê-los em uma segunda-feira à noite. Ficaria não apenas mais justo no fim das contas, mas também mais propício para o que se entende por um show de rock. (AS)

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Nos primeiros minutos do documentário A-ha: The Movie, o entrevistador dirige um questionamento simples e objetivo ao tecladista Magne Furuholmen.

– Ainda tem vontade de gravar material inédito com a banda?

– Não!

– Não?

– Não.

– Por quê?

– Porque, a esta altura do campeonato, seria uma máquina de moer cérebros e não quero passar por este processo novamente.

Anos após a declaração acima, a previsão de Magne não se concretizou por um único motivo: o tecladista não suporta o vocalista Morten Harket , tampouco o guitarrista Pal Waaktaar-Savoy. Mas negócios são negócios e quando há cifras milionárias envolvidas, abre-se uma exceção.

O A-ha já pisou em solo brasileiro por umas 635 vezes. Chegou inclusive a se apresentar na Festa do Peão de Barretos, no ano de 2002. Tantas vezes, porém, não fez diminuir a idolatria que o público brasileiro sente pelo trio. Muito pelo contrário. E foi com este espírito de “karaokê de terça à noite” que um público aficcionado e carente de shows (a simples execução de “Everybody Wants To Rule The World”, do Tears For Fears, fez parte da plateia entoar sua melodia a plenos pulmões antes da banda norueguesa vir ao palco) dirigiu-se no último 19 de julho ao antigo Espaço das Américas, em São Paulo, que atualmente empresta seu nome a um renomado plano de saúde.

Desta vez, porém, a proposta era diferente. Com o pretexto de “comemorar” os trinta e cinco anos de lançamento do début Hunting High And Low (de 1985), a banda executou na íntegra seu álbum de estreia. Boa idéia? Talvez. Funcionou ao vivo? Não. Com uma modorrenta quadra de canções incidentais (incluindo a inédita (e fraquíssima) “Forest For The Trees, que será parte integrante de True North, novo album do trio a ser lançado agora em outubro, somente após quase meia hora de apresentação Hunting High And Low é revisitado com “Train Of Thought”. A categoria dos músicos permanece ilibada após quase quatro décadas de carreira, incluindo o alcance vocal de Harket, atingindo inimagináveis falsetes às vésperas de completar 63 anos de idade. 

Claro que a devoção da plateia brasileira é um auxílio luxuoso que não pode ser desprezado. Coube ao público cantar os versos da faixa-título do álbum, executada inicialmente em formato semi-acústico. Já na tríade “The Blue Sky”, “Living a Boy’s Adventure Tale” e “The Sun Always Shines On TV”, as onipresentes texturas de sintetizadores de Magne fazem a “cama sonora” funcionar. O público, completamente entregue, pouco importou-se com Pal isolar-se na extremidade direita do palco como um funcionário de cartório, em plena sexta-feira, rezando para o ponteiro do relógio chegar às cinco da tarde.

Após a execução da íntegra do primeiro álbum, coube a “Cry Wolf” e a espetacular “I’ve Been Losing You” prepararem a atmosfera para um bis curto, direto e com gosto de fim de feira. “Take On Me” é a “With Or Without You” do A-ha. Clássico obrigatório mesmo que seus integrantes queiram execrá-la.

Fim da apresentação. luzes acesas e uma certeza: Hunting High And Low segue como um dos mais importantes discos de estréia dos últimos 40 anos. Só que mas executá-lo na íntegra em um único show torna a apresentação burocrática e modorrenta, transformando o trio numa espécie de Imperatriz Leopoldinense da música pop, com desfiles extremamente técnicos para vencer campeonatos porém, longe (mas muito longe mesmo) de empolgar uma arquibancada. (FS)

Set list: “Sycamore Leaves”, “The Swing Of Things”, “Crying In The Rain”, “Forest For The Trees”* ou “You Have What It Takes”*, “Train Of Thought”, “Hunting High And Low”, “The Blue Sky”, “Living a Boy’s Adventure Tale”, “The Sun Always Shines On TV”, “And You Tell Me”, “Love Is The Reason”, “I Dream Myself Alive”, “Here I Stand And Face The Rain”, “The Blood That Moves The Body”, “We’re Looking For Whales”, “Cry Wolf”, “I’ve Been Losing You” e “The Living Daylights”. Bis: “Take On Me”.

* As duas músicas se revezaram nesta posição durante esta turnê pelo Brasil