Movies

Eu, Capitão

A aventura de dois adolescentes senegaleses que tentam entrar ilegalmente na Europa pela lente de polêmico cineasta italiano

Texto por Abonico Smith

Foto: Pandora/Divulgação

Suavidade é uma palavra praticamente inexistente no léxico cinematográfico de Matteo Garrone. O cineasta italiano, por sinal, é bastante ardiloso ao envolver o espectador com belas imagens, daquelas de encher os olhos e prender de vez a atenção em seu longa-metragem. Entretanto, com requintes de crueldade, dá aquela reviravolta e passa a pincelar a história com tomadas violentas, incômodas, daquelas de fazer quem está vendo na mesma vibe de sofrimento de quem está levando a pior na tela.

Ë assim novamente com sua mais nova obra, Eu, Capitão (Io Capitano, Itália/França/Bélgica, 2023 – Pandora), um dos cinco títulos finalistas para a disputa do Oscar de Filme Internacional neste ano. Chegando nesta semana ao circuito brasileiro, a história gira em torno da tentativa de dois primos adolescentes senegaleses que usam dia após dia surradas camisas e agasalhos de seleções e clubes de futebol europeus. Eles estão em busca de um grande sonho: deixar para trás a vida na pobreza na periferia de Dacar e embarcar em uma viagem rumo ao continente europeu, onde lá pode ser vivida uma vida melhor e mais digna, com mais oportunidades para trabalho, sobretudo no meio da música, a grande paixão do protagonista Seydou (Seydou Sarr, um então desconhecido talento que aponta para um grande futuro tanto na dramaturgia quanto na música). Ele e Moussa (Moustapha Fall) juntam uma boa grana em segredo e partem sem avisar ninguém, nem mesmo as mães. São alertados algumas vezes de quão perigosa é a tentativa de cruzar o Mediterrâneo em condições precárias para emigrar de modo ilegal pelo território italiano. Mas nem dão bola para isso. Fala mais alto o idealismo, a bravura, a esperança, a coragem e aquela impulsividade típica dos jovens somada à certeza de que absolutamente nada vai dar errado.

Então Seydou e Moussa partem para uma aventura que, sob a direção de Garrone, torna-se tão bela quanto épica no início. Uma das primeiras dificuldades é a sobrevivência no deserto árido, sob sol escaldante e aquela sensação angustiante de só se ver areia para todos os lados, até a linha do horizonte. Durante o começo da trip, então, vem a Seydou o primeiro sinal e que sempre alguma coisa pode dar muito ruim, quando ele se separa do primo e do grupo com os outros andarilhos para tentar socorrer uma mulher à beira da morte por sede. É justamente aí que Matteo tem a oportunidade de inserir outros elementos típicos de seus longas: a polêmica, o realismo fantástico e a mitologia. Na tela, Seydou passa a puxar pela mão a mulher que voa candidamente, enquanto o espectador se confunde, sem saber o que é realidade e o que é alucinação (de ambos!). Quando mais a situação vai se tornando perigosa para o garoto, mais Garrone vai trabalhando suas características no desenrolar da história.

O que se mostra ser um road movie pintado por tintas da triste realidade de uma questão social que se abate entre os migrantes ilegais que tentam passar da África para a Europa. Quem verdadeiramente se aproveita do sonho ingênuo de quem embarca na tentativa de deixar uma vida para trás e recomeçar outra do zero? O que acontece com quem morre no meio do caminho? E o que é feito com aqueles que conseguem atravessar o Mediterrâneo e chegar ao outro lado? São perguntas que o cineasta vai fazendo brotar na cabeça de quem assiste sem perder a chance de desenvolver uma trama ficcional em torno disso tudo, com muito de sua assinatura pessoal, que vem chamando a atenção do universo da moda e do cinema hollywoodiano nos últimos quinze anos.

Talvez este conjunto de coisas impactantes tenha impulsionado Eu, Capitão para a disputa final com outras grandes produções não faladas na língua inglesa. Muito provavelmente não deveria ganhar, mas ajuda a compor um excelente time de obras de fora do eixo nesta temporada.

Movies, TV

Saltburn

Um estudo ácido da fantasia de ascensão social da classe média com polêmicas e a primorosa atuação de Barry Keoghan e Jacob Elordi

Texto por Tais Zago

Foto: MGM/Amazon/Divulgação

Desde novembro do ano passado, quando foi lançado na plataforma Prime Video, Saltburn (Reino Unido/EUA, 2023 – MGM/Amazon), vem agitando a critica de cinema, sobretudo a amadora. Há tempos não viamos um filme tão polarizante: as avaliações vão do zero ao dez em uma mesma pagina de comentários. Intrigada, deixei para assisti-lo nas férias de final de ano e, assim como mais ou menos 50% dos cinéfilos, eu amei o filme. Mas, calma, vou explicar o porquê, mesmo que minha interpretação não tenha passado pela cabeça dos produtores ou roteiristas.

A jovem atriz e já muito premiada Emerald Fennell assina a direção e o roteiro desse thriller ácido e provocador sobre um grupo de estudantes da renomada universidade de Oxford nos anos 2000, mas principalmente sobre a intensa amizade entre Felix Catton (Jacob Elordi) e Oliver (Barry Keoghan). Fennell, ela mesma uma milennial, afirma que algumas de suas experiências universitárias influenciaram a criação do roteiro original. Isso, claro, sempre atribui um toque especialmente nostálgico às produções.

Saltburn, como anda na moda ultimamente, é um filme que cria uma atmosfera, uma vibe de uma época em especial. Para realçar esse clima, a caprichada produção não poupa nada em apuros técnicos e detalhes para proporcionar ao espectador a experiência mais próxima possível da realidade de abastados ingleses curtindo despreocupadamente a juventude enquanto fogem de seus fantasmas pessoais. São jovens explorando limites e curtindo a vida como se não houvesse aula amanhã de manhã (quem nunca passou por essa fase que atire a primeira pedra!). 

Mas seria ingênuo afirmar que o filme fica apenas nesse triangulo festa-ressaca-responsabilidade de adulto. A trama central trata de obsessão, ódio, inveja e ressentimentos que usam a fantasia do encantamento amoroso com verniz para encobrir sua feiura. A acusação mais frenquente dos desgostosos é a de que Saltburn seria um quase plágio de O Talentoso Mr. Ripley (1999). Não há como negar os paralelos, porém Saltburn tem outro foco e do meio para o fim não sabemos mais direito onde estamos pisando. Seria Oliver um pobre menino pobre e Felix um pobre menino rico? A síndrome de salvador de parte da elite mundial seria uma porta aberta para uma vingança dos menos abastados? Estamos assistindo a uma orgia entre psicopatas de diversos calibres? Talvez tudo junto. Ou nada disso. Para mim, Saltburn é um estudo ácido e irônico da fantasia de ascensão social da classe média, da relação de amor e ódio pelo dinheiro, sobre uma infinita insatisfação do ser humano pelo o que possui, independentemente de posição social.

Já o que é indiscutível sobre essa produção são as primorosas atuações de seus atores, Barry e Jacob. À intensidade da interação dos dois nos causa arrepios e não somente pela delicia visual de seus corpos e rostos esteticamente perfeitos – o que também tem gerado um certo frisson. A câmera nesse filme é um voyeur dos mais experientes. Ela nos leva à um mergulho na intensidade do desejo de Oliver: sentimos com ele o gosto da água da banheira ou da terra (e aqui não vou dar spoilers do contexto para os que ainda não assistiram ao longa).

A onda do cinema sensorial chegou com força – para os menos estetas, isso vem como uma prova de frivolidade e fraqueza dos roteiros. Se for analisado friamente, Saltburn é uma piada pra qualquer investigador de mesa de boteco e de podcast de true crime e é exatamente por essa obviedade de tamanho descuido que escolhi considerá-lo genial. Saltburn não é um retrato da realidade. Acho que nem almeja ser. Eu entendo o filme como um wetdream de um jovem que sonha com reconhecimento e fortuna, com sexo, drogas e tuxedos. Com exageros e indulgências. Com um amor canibalístico que devora o outro por completo. Um acerto de contas com quem nasce em berço dourado. Um delírio pós-puberdade. Um coming of age de acidez macabra

Se nada disso estimular o interesse pelo filme, ainda temos Elordi como eye candy. O muso da série Euphoria aparece sensualizando em quase todos frames. E esse foi um dos motivos para que Saltburn tivesse uma das estreias mais concorridas dos últimos tempos e recebesse o titulo de filme polêmico de 2023. A estrela de Jacob está em ascensão, assim como o incrivel talento de Barry Keoghan, que provavelmente receberá indicação para o Oscar pela interpretação de Oliver. E se mesmo assim você ainda estiver em duvida, vale a pena conferir o filme para ver Rosamund Pike como Elspeth Catton, a obtusa, alienada e fria mãe de Felix e Venetia (Alison Oliver).

Music

Gross – ao vivo

Rock’n’roll, uma estrada deserta e nuances musicais: a noite de um show impecável do ex-guitarrista da Cachorro Grande

Texto e foto por Frederico Di Lullo

Era 18 de maio e passava das 20h30 quando peguei a estrada saindo da cidade de Palhoça com destino certo: a Dubai Brasileira. Também conhecida como Balneário Camboriú (ou até mesmo BC), a localidade iria receber a primeira data da turnê por Santa Catarina de Marcelo Gross, que também teria cidades como Joinville e Blumenau no roteiro. As Próximas Horas Serão Muito Boas, segundo álbum da Cachorro Grande, gravado no icônico estúdio Bafo de Bira lá em 2003 e lançado no ano seguinte encartado na “revista do Lobão”, foi a trilha sonora que balançou a trip semanal, numa espécie de culto do que estaria por vir naquela quinta-feira.

Após algumas paradas técnicas, cheguei ao local do show, a charmosa ArtHouseBC. Eu não conhecia o espaço artístico-cultural e fiquei surpreendido positivamente. No local funcionam cinema, auditório, coworking, bar, café, loja e estúdio… TUDO NO MESMO LUGAR E MEIO QUE AO MESMO TEMPO! O conceito é incrível e, por vez, depois de algumas cervejas, era possível fechar os olhos e se imaginar em algum local de Londres ou Amsterdam. Mas que bom que estávamos no sul do sul do mundo e prestes a assistir a um dos maiores músicos da contemporaneidade: o exímio compositor e eterno guitarrista da Cachorro Grande.

Passava das 23h, quando  a banda chegou ao ArtHouseBC e sem muitas firulas e iniciou com “Alô, Liguei” e “Me Recuperar”. Ambos são clássicos da carreira solo de Gross, que estão presentes em Chumbo & Pluma, trabalho de 2017. Com uma plateia ansiosa e em êxtase apesar de pequena, o trio era iluminado não só pela luz do palco mas sim pelo brilho que a banda como um todo emana, capitaneada pela guitarra e a voz de Marcelo. Isso sem mencionar o lendário baterista Julio Sasquatt e o baixista Lucas Chini, que atualmente formam a banda de apoio. Muito talento. Muita luz. Muita energia. Muito rock’n’rollbaby! E, sim, desde o primeiro acorde, desde a primeira nota, todos os presentes ficaram cativados.

Cabe destacar que o atual show de Gross, chamado Tour 50 Anos de Rock, é uma visita a todos os momentos da carreira do guitarrista. Por isso, o clima teve ares de nostalgia. Com isso, ao longo da apresentação, ficou cada vez mais nítida a habilidade excepcional dele na guitarra. Seus solos eram precisos e cheios de paixão. Sua voz rouca e marcante embalou “Eu Aqui e Você Nem Aí”, “Que Loucura”, “Lunático”, “Purpurina”, “Sinceramente”, “A Dança das Almas” e “O Novo Namorado”, dentre outras tantas músicas que viabilizaram o espetáculo. Aliás, a última faixa mencionada foi, pra mim, uma grande surpresa! Afinal de contas, Júpiter Maçã e os Pereiras Azuiz a lançaram em 1995 (mas isso é papo para outra resenha!).

Cada canção, meu amigo, era uma jornada musical repleta de saudosismo e acabou me envolvendo completamente. Em resumo, esta noite de maio em Balneário Camboriú foi uma verdadeira e honesta ode ao rock cantado em português (mesmo com uma cover dos Beatles encaixada no repertório). Performance impecável, presença de palco cativante, clima intimista, interação com o público e cerveja gelada foram os atenuantes de uma experiência memorável para todos os presentes.

No final, aplausos entusiasmados ecoaram na sala do ArtHouseBC. Isso só demonstrou o reconhecimento e o carinho do público. Marcelo Gross não precisava provar nada a ninguém, mas detém genialidade musical e carisma inegável. Sem sombra de dúvida, ele é um dos grandes nomes do rock. Não só o gaúcho, mas sim do Brasil todo.

Quando o show acabou, só restou achar um pico para bater um lanche, pegar a estrada, colocar La Máquina de Hacer Pájaros no bluetooth e depois descansar para acordar cedo e enfrentar o último dia útil da semana. Enfim, só sabia que aquelas próximas horas seriam muito boas.

Set list: “Alô, Liguei”, “Me Recuperar”, “Eu Aqui e Você Nem Aí”, “Que Loucura”, “Carnaval”, “Lunático”, “O Novo Namorado”, “Disfarça”, “Taxman”, “Bom Brasileiro”, “A Dança das Almas”, “Dia Perfeito”, “O Buraco da Fresta”, “Sinceramente” e “Purpurina”.

Music

Tame Impala – ao vivo

Kevin Parker dribla uma fratura no quadril para guiar os fãs na Argentina em uma hora e meia de catarse psicodélica

Texto por Frederico Di Lullo

Foto: Reprodução

Algumas coisas na vida são inesquecíveis. Você, certamente, irá lembrar para sempre do seu primeiro dia de escola, daquela paixão que arrebatou seu coração ainda adolescente, de uma viagem com amigos ou até mesmo do fim de um relacionamento. Eu, por exemplo, irei me lembrar do show do Tame Impala no Lollapalooza Argentina para sempre. Aconteça o que que acontecer. E agora vou explicar o motivo nesta humilde resenha.

Cheguei no Hipódromo de San Isidro, em Buenos Aires, por volta das 17h do dia 18 de março de 2023 e logo me impressionei com o tamanho do festival. Tudo numa distância longa, com necessários vários minutos de caminhada. O sol estava começando a ficar mais fraco e a temperatura de 34ºC ia diminuindo com a ausência de luz natural. Após presenciar os concertos de Wallows, Jane’s Addiction, Catupecu Machu (uma parte), 1975 (outra parte) e ter tomado apenas duas cervejas por 1100 pesos cada (equivalente a 14 reais; sim, o festival permitia o consumo de apenas duas latas por dia!), chegou o momento de me posicionar defronte ao palco Samsung para poder presenciar pela primeira vez uma das minhas bandas favoritas.

Assim, sete anos depois e com Kevin Parker recentemente submetido a uma cirurgia no quadril fraturado, o Tame Impala voltava para a Argentina, reencontrando-se com um público em verdadeiro frenesi e euforia desmedida. Eram 20h45 em ponto e eu estava junto a dezenas de milhares de pessoas.

E os australianos deram, com toda certeza, um dos melhores espetáculos do Lollapalooza Argentina 2023. Após um vídeo introdutório distópico, no qual era apresentado Rushium, o medicamento psicodélico presente durante toda a turnê do álbum The Slow Rush, o frontman entrou auxiliado por muletas e recebeu uma estrondosa e merecida ovação. Sim, em tempos de cancelamentos repentinos e caprichosos cortes, a atitude de Kevin é louvável e necessária. Obrigado por não desistir de nós!

Assim, sob uma catarse de efeitos visuais, lasers coloridos, overdrives e distorções, o Tame Impala começou sua jornada naquela mistura de pop psicodélico, rock clássico, sintetizadores e indie rock. O set list veio com “One More Year” e, na sequência, “Bordeline”, talvez a música mais popular do seu quarto álbum.

Durante a apresentação da banda, tive diversas sensações e agitos sensorais. Um deles foi, sem dúvida, viajar através dos loops coloridos que a sequência de “Nangs”, “Breathe Deeper” e “Posthumous Forgiveness” proporcionou: uma repetição infinita, profunda e que parecia congelar o tempo. Mas o show continuava e depois rolaram os clássicos absolutos como “Elephant”, “Lost In Yesterday” e “Apocalypse Dreams”.

A física diz que não é possível estar acelerado e, ao mesmo tempo, pairando sem movimento nenhum. Contudo, Parker e companhia demostraram isso no momento de Mutant Gossip, quando todo mundo pareceu mover-se através das ondas que apareciam ao fundo, desaparecendo no oceano de psicodelia. E se diz o ditado popular  que“as águas calmas são profundas”, o que veio depois foi o mergulho absoluto ao abismo. Era tempo de “Let It Happen”, “Feels Like We Only Go Backwards”, “Eventually” e “One More Hour, que fechou a primeira parte do show e encontrou a comunhão de corpos dançando como se não houvesse amanhã.

Ainda houve tempo para um bis quiçá um pouco mais introspectivo, mas igualmente enérgico. Aqui foi tocado “The Less I Know the Better” e “New Person, Same Old Mistakes”. Assim, pontualmente às 22h15, o turbilhão colorido psicodélico chamado Tame Impala encerrou sua participação no Lollapalooza Argentina, deixando todos os fãs realmente em êxtase e com muita coisa para processar, entender e viabilizar. Do fundo do meu coração, espero ver novamente eles em breve.

Fumei um cigarro, respirei fundo e corri para assistir ao Twenty One Pilots. Mas essa história conto em outro momento.

Set list: Rushium Intro, “One More Year”, “Borderline”, “Nangs”, “Breathe Deeper”, “Posthumous Forgiveness”, “Elephant”, “Lost In Yesterday”, “Apocalypse Dreams”, Mutant Gossip, “Let It Happen”, “Feels Like We Only Go Backwards”, “Eventually” e “One More Hour”. Bis: “The Less I Know the Better” e “New Person, Same Old Mistakes”.

Movies

Aftersun

Cineasta estreia com um dilacerante drama sobre amadurecimento e a relação da filha de 11 anos com o pai emocionalmente abalado

Textos por Leonardo Andreiko e Janaina Monteiro

Fotos: 02 Play/Mubi/Divulgação

Há filmes que desde o início prendem nossa atenção. Anunciam sua chegada e, com presença de espírito, nos catapultam para dentro de si e ocupam nossas mentes até o final. Não raro eles também sabem encerrar sua estadia, seja por meio de uma conclusão narrativa ou deixando-nos abertos à incerteza. Na vida, contudo, o fim de uma história raramente é anunciado. Nosso último encontro com alguém não vem acompanhado do letreiro onde vem escrito “fim”. Aftersun (Reino Unido/EUA, 2022 – O2 Play/Mubi), queridinho da crítica mundial e arrebatador de premiações deste ano (incluindo o Troféu Bandeira Paulista, para novos diretores na Mostra de São Paulo), consegue o feito de fazer os dois.

O longa-metragem, primeiro da diretora escocesa Charlotte Wells, retrata uma viagem de Calum (Paul Mescal) e Sophie (Frankie Corio), sua filha de 11 anos, para um resort no Mediterrâneo. Em meio às atividades de férias, mergulhos e jantares, acompanhamos o amadurecimento do olhar de Sophie sobre o mundo, a conflituosa relação de Calum consigo mesmo e o movimento de aproximação–distanciamento de pai e filha.

Wells tece um delicado véu que unifica os muitos percursos temáticos que Aftersun explora, de modo que consegue abordar questões socioeconômicas, melancólicas, psicológicas e até mesmo de coming of age mantendo um filme coeso e direcionado. É sob a decupagem simples (mas não minimalista) de suas cenas que a diretora projeta os diferentes estados de espírito que permeiam sua obra. É simples pela movimentação desperturbada: o interesse nos planos longos e nos detalhes em cena. O fora-de-campo cumpre uma função essencialmente especulativa (por imaginarmos o que se passa para além das câmeras), mas também de tensão – as elipses, omissões simbólicas e a subexposição esmagadora do mar à noite são aspectos constitutivos da forma da obra. Não somente floreiam o que se passa como discursam sobre ele, o expandem.

O resultado, primoroso de certo, é um filme que carrega consigo a complexidade de duas vidas, e não somente a superficialidade de uma trama, uma mera premissa. Enquanto Sophie descobre relações, modos de interação e o romance que permeia a vida, a operação emocional de Calum é praticamente oposta. A pré-adolescente se encontra num movimento de afastamento da magia do jogo, do karaokê e da infância, partindo ao mundo dos interesses românticos e das nuances adolescentes, que faz florescer seu próprio desejo ao mesmo tempo que descobre e se interessa pelo desejo do outro. Seu mundo é o hotel, suas piscinas e o fliperama. Em paralelo, seu pai não consegue desvencilhar-se do próprio passado, das próprias aspirações e da opressão do mundo à volta. Seu desejo é sempre presente, mas reprimido – fuma escondido de sua filha, projeta saídas de problemas materiais para além da viagem, preocupa-se com o dinheiro e rememora o passado sem noção certa do futuro.

Das muitas sequências memoráveis, vejo aquela em que Calum almeja o tapete sem poder comprá-lo como uma das mais potentes. Em um quadro repleto de tapetes, empilhados sobre os demais numa espécie de sótão/estoque, irrompem Calum, Sophie, o vendedor e um tapete estendido ao chão, no qual o protagonista finca o olhar. Não é o desejo pelo artefato que o interessa, mas a capacidade de carregar consigo as histórias daqueles que o teceram.

Em um jogo de cena entre esse plano conjunto e um tocante close-up de Paul Mescal (que desde Normal People, série que projetou o astro às telas mundiais, é uma marca de sua carreira), o delicado olhar da direção faz o papel de nos impor a realidade emotiva que vive o protagonista. Em crise por não ver no tempo presente cumpridos seus sonhos de criança e muito menos os próximos passos na vida adulta, Calum se deita num de muitos tapetes e respira – busca sentir a história, mas não é capaz de tê-la.

Pincelando sua narrativa com o recurso da filmagem caseira que marcou o final dos anos 1990 e o começo do novo milênio, Wells opera uma exploração vívida da psique de suas personagens e o poder cristalizador da matéria-prima do cinema: o vídeo. São muitas as instâncias em que as brincadeiras de Frankie segurando a câmera, bem como os registros mais aterrados e “documentais” de Calum, são monumentos da memória, revelando ao espectador um passado muito latente e carregado de afetos. Não à toa, em dado momento, a espectadora é a própria Frankie, já adulta, que ao assistir as filmagens rememora e reinterpreta sua história e relação com o próprio pai.

Aftersun é, sem dúvidas, um dos lançamentos mais potentes deste ano, um sopro de ar fresco sobre o claustrofóbico e agonizante cenário das franquias intermináveis e lançamentos decepcionantes. Esse é um filme que emociona ao ser assistido, mas também é um dos raros que emocionam ao escrever sobre. Charlotte Wells, ao trabalhar a partir de sua própria memória, parece recuperar uma constatação óbvia, mas não menos potente: não há letreiro de “fim” para anunciar o último encontro. E é isso que os torna especiais. (LA)

***

Gatilhos mentais podem ser acionados de várias maneiras, fazendo revisitar memórias guardadas nas mais profundas gavetas e que trazem à tona calafrios e sensações nada agradáveis. Tem gente, por exemplo, que associa assistir a vídeos caseiros a uma certa melancolia. Talvez porque saiba que quando alguém querido, da família, se for, essa é uma das formas de se perpetuar as lembranças, sejam elas alegres ou não. 

Por isso, assim que a personagem Sophie (a estreante Frankie Corio) aperta o play no registro de suas férias na Turquia com o pai Callum (Paul Mescal) só tive uma certeza: a de que seria engolida por uma imensa onda gigante de nostalgia, chamada Aftersun (Reino Unido/EUA, 2022 – O2 Play/Mubi).

Quando este primeiro longa-metragem da escocesa Charlotte Wells terminou, fiquei atônita por alguns momentos na frente da tela. E mesmo que eu tentasse me desvencilhar de tudo aquilo que havia assistido nos últimos cem minutos não conseguia recuperar o fôlego de jeito nenhum. Não conseguia me soltar daqueles fragmentos de uma história avassaladora. 

Charlotte me deixou completamente hipnotizada pela narrativa desenhada de forma melancolicamente deslumbrante para mostrar o período em que um pai separado, de 30 e poucos anos, e sua filha pré-adolescente de 11 passam juntos.

Do início ao fim, a diretora nos proporciona um mergulho na relação entre os dois, mostrando a paternidade por um viés diferente daquele que costumamos ver no cinema. Podemos lembrar de vários longas, por exemplo, como o delicado O Mundo de Jack e Rose, protagonizado por Daniel Day-Lewis, mas dificilmente algum título supere Aftersun no quesito profundidade.

Em entrevistas à imprensa estrangeira, Charlotte revelou que concebeu o filme a partir do momento em que se deparou com álbuns de fotografias antigas da família. Portanto, existe muito de autobiográfico no roteiro assinado por ela. 

Ao passo que o espectador é apresentado aos protagonistas, é possível perceber também que Charlotte busca uma certa inspiração na sua compatriota Lynne Ramsay, também conhecida por dirigir filmes complexos sobre as fraquezas humanas de uma outra perspectiva, como fez com o também avassalador Precisamos Falar Sobre Kevin

Aftersun é muito mais que uma história sobre a conexão entre pai e filha. É sobre o vazio, o desespero. Sobre ter de sorrir e zelar pela vida de outra pessoa enquanto se está dilacerado por dentro. Para traduzir essa relação delicada de afeto e dar pistas do estado mental de Calum, Charlotte nos brinda com muito plano detalhe, como na cena em que mãos de pai e filha se unem, e movimentos de câmera sutis, quando enquadra os livros de meditação dispostos em cima de uma estante.

Em início de carreira, Paul Mescal (o galã de Normal People) se mostra gigante quando de costas consegue representar com seu choro desesperador toda a agonia da personagem. Frankie Corio é a personificação de toda pré-adolescente, que faz suas descobertas e não tem papas na língua ao falar as verdades para o pai. 

Para contextualizar a época, a cineasta recorre a objetos e outros artifícios: a filmadora de Sophie, o walkman de Callum, as canções que marcaram a época, como “Tender”, da banda de britpop Blur. Assim, pouco a pouco, vamos nos guiando por fragmentos dessa viagem registrada pelos olhos de Sophie. E nos dando conta do sofrimento de seu pai e a luta dele para sobreviver. Seja quando ele diz para a ex-mulher, numa cabine telefônica, que ainda a ama (“Por que você disse eu te amo pra mamãe?”, pergunta Sophie logo em seguida). Seja na cena do karaokê em que a filha, ao contrário de todas as outras vezes, canta sozinha. E uma das cenas mais arrebatadoras do filme é, sem dúvida, a “última dança” de Callum ao som de “Under Pressure”.

Depois de Aftersun, será difícil ouvir a canção de David Bowie com o Queen sem se lembrar dessa estreia arrebatadora de Charlotte Wells. (JM)