História sobre a dinastia Von Erich do wrestling norte-americano mostra as sombras por trás das fantasias coloridas e das lutas “fakes”
Texto por Tais Zago
Foto: California Filmes/Divulgação
O título em português nos leva imediatamente a pensar em uma comédia estilo Nacho Libre (2006) ou em releituras oitentistas estadunidenses como Glow (2017) ou Cobra Kai (2018), mas Garra de Ferro (The Iron Claw, EUA/Reino Unido, 2023 – Califórnia Filmes) é bem mais do que aparenta à primeira vista. E o diretor Sean Durkin viu logo o potencial dramático dessa história cheia de perdas e de dores.
O filme começa mostrando o patriarca dos Von Erich, Fritz (Holt McCallany), ralando para sustentar sua família ao “representar” um vilão nazista alemão nos ringues de wrestling nos anos 1950 e 1960, quando o esporte ainda era pouco conhecido. Ao se aposentar, ele passou a apostar nos filhos para seguirem seus passos e conquistarem o que nunca conquistou: o título de campeão mundial dos pesos-pesados do esporte. Kevin (Zac Efron), Karry (Jeremy Allen White), David (Harris Dickinson) e Mike (Stanley Simons) se tornam automaticamente responsáveis por realizar os sonhos do frustrado Fritz, e, claro, nesse caminho, garantir o sustento de toda a família. Doris (Maura Tierney), a mãe dos rapazes, prefere se ausentar emocionalmente da criação de seus filhos, vivendo somente à sombra do marido.
Durkin, que também assina o roteiro, acaba nos enganando. Começamos dentro de uma história de sucesso de uma família aparentemente feliz e equilibrada, com filhos que representam o sonho de todos os pais – companheiros, fiéis, batalhadores e honestos. No mundo colorido do wrestling, onde rivais viajam juntos para lutas e são melhores amigos, onde o lado estético, o carisma e a interpretação estão no topo e a aptidão física e atlética ficam em segundo plano. O melhor lutador é o mais criativo, envolvente e que consegue mobilizar as massas de fãs. Depois passamos a ver as agruras por trás dos ringues, as dores, as contusões e fraturas e o uso de drogas e anabolizantes. Por fim deslizamos no mais profundo drama familiar.
Fritz conduz sua família com “garras de ferro”. Não aceita discussões sobre o destino dos filhos, não escuta seus problemas e nem se interessa por suas emoções. Assim como a mãe, ele deixa os garotos decidirem estes problemas “entre eles mesmos”. Kevin, Karry, David e Mike estão presos em uma estrutura de masculinidade tóxica onde o pai é o topo da pirâmide e a mãe um mero acessório visual para completar a perfeita família cristã texana.
E a perfeita foto de família vai aos poucos se esfarelando. Efron interpreta o tímido, porém disciplinado wrestler Kevin. Em toda sua vida o único objetivo foi realizar os desejos do pai. E o ator, talvez, esteja aqui em um de seus melhores papeis dramáticos. A fragilidade e o amor de Kevin por sua família são quase inabaláveis, assim como o físico trabalhado ao limite de Zac para o papel. Já Jeremy Allen White (The Bear) está nadando no auge de sua fama, assim como Karry, o irmão Von Erich que conseguiu conquistar o almejado cinturão de campeão. White interpreta Kerry como sendo o mais “selvagem” dos irmãos, um ex-candidato a atleta olímpico que acaba entrando nos negócios da família. David (Harris Dickinson) é o mais extrovertido e eloquente dos irmãos, o primeiro a se destacar nos ringues e a conquistar a plateia. Já Mike não tem muito jeito para a coisa. Gosta mesmo é de tocar instrumentos musicais e parece ser o mais sensível dos irmãos, mas nem ele foge ao destino traçado pelo pai.
Garra de Ferro é um drama sobre uma família altamente disfuncional, religiosa, com uma estrutura anacrônica. Na casa dos Von Erich não se fala de sentimentos e vontades, somente de objetivos a serem conquistados. Fritz ensinou a filhos que apenas um corpo forte, fé e armas são proteção para um homem. O resultado vemos aqui, mais uma vez.
Visualmente o filme é um mergulho no mundo da tevê do início dos anos 1980, algo já trabalhado em outras obras – portanto, mais uma vez, temos chamadas espalhafatosas, muito neon e classic rock. Mas a cenografia fica mais intimista ao mostrar o rancho dos Von Erich e bem mais escura na parte final, bem final do filme.
Isto faz com que Garra de Ferro, mais uma excelente produção da casa A24, seja como um mergulho em um poço ou caminhar em um túnel – aos poucos a luz dá lugar às sombras. Mas como nem tudo é tristeza aqui e Durkin nos presenteia com uma linda cena onírica derradeira. A poesia do desejo final de Kevin para seus irmãos.
Na manhã da última quinta-feira, 15 de junho, recebemos a notícia da morte de Luiz Schiavon, tecladista e fundador do RPM, aos 64 anos. Além de ser precoce, é uma perda enorme para a música brasileira, uma vez que Schiavon foi um dos grandes nomes – talvez o maior – da inserção do sintetizador nas paradas pop dos anos 1980 em diante. Ele não foi exatamente o pioneiro, mas estava neste momento peculiar do tempo, no qual o instrumento de teclas se uniu à produção em escala cada vez mais massificada. A bordo do RPM, grupo que ele fundou em 1983, Schiavon assumiu condição de protagonista criativo, elaborando o conceito da banda e seu direcionamento musical.
Com a chegada do vocalista Paulo Ricardo – que também assumiria o baixo – um ano depois e mais as presenças de Fernando Deluqui e Paulo Pagni (conhecido como PA) na guitarra e na bateria, o RPM iniciou sua produção de canções, que resultaria num bom contrato com a CBS da época (hoje Sony) e num álbum, que se chamou Revoluções Por Minuto, lançado em 1985. É possível dizer que o quarteto se tornou, ainda que por cerca de um ano e pouco, a banda mais importante do Brasil em termos de execução e vendas de discos. Isso se devia à figura de Paulo Ricardo, que impunha doses generosas de sensualidade em suas interpretações e, sim, à qualidade das canções apresentadas.
Deste primeiro trabalho, o grupo cravou seis singles nas paradas, “Louras Geladas”, “Rádio Pirata”, “A Cruz e a Espada”, “Olhar 43”, “Revoluções Por Minuto” e “Juvenília”, que tocaram em todas as rádios e programas de auditório do país entre março de 1985 e todo o ano de 1986. A estabilidade econômica do Brasil à época, materializada pelo Plano Cruzado, turbinou as vendas deste primeiro álbum e assegurou o lançamento acelerado do segundo, Rádio Pirata – Ao Vivo, que saiu no fim de 1986.
Com este disco gravado ao vivo, o RPM tapava a lacuna da demanda por mais canções do grupo, que, exausto após turnês subsequentes por dois anos, estava esgotado e à beira do fim por conta dos desentendimentos internos. Ainda que parecesse uma usina de sucessos imparável, o RPM era palco de disputas criativas, sempre com Paulo Ricardo desejando inserir mais elementos roqueiros e Schiavon pendendo a balança para os timbres derivados do tecnopop e do new romantic, então vigentes na produção pop anglo-americana. Mesmo assim, a presença de covers de Caetano Veloso (“London, London”) e Secos & Molhados (“Flores Astrais”) no segundo álbum, além de um dueto com Milton Nascimento em “Feito Nós”, single de 1987, mostrava que a banda tinha mais do que o desejo simples pelo sucesso.
Foi preciso muito poder de convencimento para a CBS recolocar o RPM em estúdio para a gravação do terceiro álbum. Ofertas de discos solo dos participantes, mixagem em Los Angeles, orçamento polpudo liberado, tudo foi posto na mesa para que o grupo entregasse mais uma fornada de possíveis hits. Talvez os conflitos internos, talvez uma mudança de perspectiva, talvez o espírito daquele 1988, no qual a lambada já surgia como uma alternativa viável para o público jovem, sabe-se lá, mas o fato é que o novo disco, intitulado simplesmente RPM, veio muito mais profundo e “difícil” em relação aos dois discos anteriores. A preocupação estética da banda com arranjos, timbres e letras afastava o álbum do sucesso almejado, ainda que canções como “Partners”, “Um Caso de Amor Assim” e “Quatro Coiotes” tenham tocado medianamente nas rádios. Foi uma pena, pois este álbum tem detalhes interessantes e excêntricos, como a presença de Bezerra da Silva em “O Teu Futuro Espelha Essa Grandeza”. Poucos meses depois desse lançamento, o RPM encerrou as atividades.
Nos anos seguintes até a semana passada, quando lançou o fraquíssimo single “Liberdade”, o RPM veio e foi, em diferentes encarnações. Na mais importante delas, em 2002, a banda gravou um disco ao vivo para a MTV, além de canções inéditas (como “Vida Real”, que se tornou o insuportável tema do não menos insuportável Big Brother Brasil). Alguns discos foram lançados, shows e apresentações aconteceram, além de mais e mais disputas judiciais entre os integrantes da banda. Nada do que foi feito depois de 1988 vale a pena ser considerado seriamente na antologia da banda.
Luiz Schiavon, por sua vez, também trabalhou em trilhas sonoras para a TV, como as das novelas O Rei do Gado, Terra Nostra e Esperança, para as quais também escreveu canções originais, além de selecionar músicas que fizeram parte das tramas. De 2004 a 2010, foi diretor musical do Domingão do Faustão, interagindo frequentemente, ao vivo, com o apresentador do programa de auditório da Rede Globo.
No último dia 25 de abril, uma terça-feira, a região da Grande Florianópolis recebeu uma das maiores lendas do rock mundial. O Kiss apresentou-se pela última vez no Brasil, depois de trazer para cá (pela terceira vez) sua turnê de despedida (batizada End Of The Road) e passar (desta vez) por outros quatro pontos do país (Manaus, Brasília, Belo Horizonte e São Paulo).
Alocado estrategicamente do lado direito do palco montado no Hard Rock Live (na cidade catarinense de São José), cheguei diretamente do trabalho para poder cobrir este que deve ser o último concerto do quarteto pelas terras de Machado de Assis ou, melhor falando, do poeta Cruz e Sousa. Incrivelmente dez minutos antes do horário previsto (21h), os quatro cavaleiros do apocalipse já desciam por enormes plataformas para chegar próximo de nós, meros mortais, entoando a seminal “Detroit Rock City”. A essa altura, meu amigo, a audiência era um verdadeiro delírio musical, com homens e mulheres de todas as idades cantando a plenos pulmões toda a música. E todas as que estariam por vir. A plateia era composta, em maioria, por muitas famílias, onde era nítido o amor geracional pelo rock e pela banda destes quatro senhores. Algo lindo e épico demais.
Diferente da última passagem da banda por este sul do sul do mundo, no ano de 2015, desta vez sim tivemos o espetáculo completo, recheado de trajes extravagantes, maquiagens marcantes, plataformas levadiças, efeitos visuais, pirotecnia, fogo, sangue, luz e demais elementos que tornam o show do grupo algo único, simplesmente o maior espetáculo da terra. Também foi nítido que, desde o início da perfoirmance, o Kiss demonstrou toda a sua energia e paixão pelo rock, coisa pouco vista em vários shows de pessoas que possuem a metade de idade de Paul Stanley, Gene Simmons, Eric Singer e Tommy Thayer.
Sobre as músicas, nenhuma surpresa. O set list cravou só clássicos da banda, que há meio século percorre o mundo tocando “I Was Made For Lovin’ You”, “Calling Dr Love”, “I Love It Loud”, “Deuce”, “Psycho Circus”, “Love Gun”, “God Of Thunder”, “Black Diamond”, “Do You Love Me” e “Rock And Roll All Nite”, entre outras. Esta última, inclusive, foi a que fechou a noite histórica, com aquela tradicional chuva de confetes, fogo e loucuras que precedem a saída de cena da banda – e, neste caso, o fim da passagem física do Kiss pelo Brasil, iniciada já exatos 40 anos, lá em 1983, no Maracanã.
Em resumo: se de fato foi a última vez, será épico ter vivenciado ao vivo e em cores um verdadeiro espetáculo de rock’n roll. Deixará saudades em todos os fãs brasileiros e marcará a história catarinense para sempre.
Set List: “Detroit Rock City”, “Shout It Out Loud”, “Deuce”, “War Machine”, “Heaven’s On Fire”, “I Love It Loud”, “Say Yeah”, “Cold Gin”, “Lick It Up”, “Makin’ Love”, “Calling Dr Love”, “Psycho Circus”, “God Of Thunder”, “Love Gun”, “I Was Made For Lovin’ You” e “Black Diamond”. Bis: “Beth”, “Do You Love Me” e “Rock And Roll All Nite”.
Série sobre a história de uma banda fictícia inspirada no Fleetwood Mac dos anos 1970 mistura ficção e sentimentos reais de forma mesmerizante
Texto por Taís Zago
Foto: Amazon Prime/Divulgação
Histórias de bandas fictícias/montadas por um casting em forma (ou não) de mockumentary – suposto documentário ficcional cheio de fatos falsos e/ou deboche – ou narradas em voice over por jornalistas e integrantes não é, de maneira alguma, novidade no universo cinematográfico. Tudo iniciou como formato musical com o fake documentário A Hard Day’s Night (1964) dos Beatles, que acabou inspirando o surgimento dosMonkees logo depois e ganhou força no final da década com musicais como Tommy (1969), da banda real The Who, e Spinal Tap (1984), tendo nova força nos anos 1990-2000 com obras mais dramáticas como Velvet Goldmine (1998), Quase Famosos (2000), Hedwig And The Angry Inch (2001) ou Dreamgirls (2006), para citar apenas alguns. A lista do estilo, portanto, é imensa. O que nos leva à pergunta: qual história ainda não foi contada?
A resposta é simples: nenhuma. Chegamos a um ponto onde arcos e enredos como pano de fundo de empreitadas musicais já se esgotaram. Adentramos, portanto, uma nova época. Uma época em que o importante não são mais as repetições de dramas, conflitos e situações engraçadas, mas sim o trabalho estético, o esmero dos atores e a riqueza dos diálogos. Assim chegamos no seriado de streaming que estreou em março chamado Daisy Jones & The Six (EUA, 2022 – Amazon Prime). O best-seller homônimo de 2019 da escritora Taylor Jenkins Reid, conta, em formato de entrevista com os envolvidos e membros da banda, as desavenças e os conflitos de mais um combo movido a sexo, drogas, soft rock e muito drama. Reid admitiu abertamente que a banda que a inspirou para o esqueleto do livro foi a mundialmente famosa Fleetwood Mac. O grupo subiu à apoteose musical ao vender mais de 40 milhões de cópias doálbum Rumours (1977) por todo o mundo, o 6º disco mais vendido nos anos 1970 e o 12º mais vendido de todos os tempos. Aos mitos e “rumores” envolvendo as conturbadas gravações do disco, viraram parte do folclore musical. O Fleetwood Macacabou se tornou sinônimo do estilo de vida rock’n’roll abastecido com entorpecentes, sofrimento e loucura. Os integrantes trabalhavam suas diferenças, amores e decepções em suas canções e o planeta assistia a tudo isso hipnotizado enquanto eles derramavam o conteúdo intenso de seus corações no palco em apresentações inesquecíveis até hoje.
Após ler o livro, pensei: tudo bem, trata-se aqui de mais um apanhado de clichês onde frontman e a frontwoman carregam a banda nas costas com sua relação conturbada. Pensei na hora, claro, em Stevie Nicks e Lindsey Buckingham; em Agnetha e Björn mais Benny e Anni-Frid, do Abba; em Ike e Tina Turner, ou em qualquer outro casal que trouxe a público suas desavenças e dores afetivas. Mas também vi o potencial cinematográfico de um enredo que sempre vai encontrar um nicho – a magia da liberdade conquistada nos anos 1970, a transgressão de valores conservadores, a atmosfera envolvente dos tempos pré e pós-hippie, um casal de protagonistas lindos, talentosos e extremamente carismáticos vivendo um amor torturado e nunca satisfatoriamente consumado. Era apenas uma questão de tempo até uma adaptação para as telas ser feita.
Os criadores Scott Neustadter e Michael H. Weber não perderam tempo, adaptaram o livro de Reid e chamaram James Ponsoldt (Master Of None) e Nzingha Stewart (Little Fires Everywhere) para assumir a direção da maioria dos dez episódios totais da série, que, adequadamente, recebem o título de tracks 1 a 10. Para o elenco, buscaram atores que sabiam tocar instrumentos e cantar – sim, isso faz uma diferença enorme quando assistimos a qualquer tipo de biopic (mesmo que fake) de algum artista musical. E aqui a escolha foi mais que acertada. Para o papel de Daisy, foi escolhida Riley Keough (Neta de Elvis, filha de Lisa Marie Presley). A atriz incorpora o papel de uma forma mesmerizante. Traz profundidade, complexidade e uma intensidade maior do que a Daisy do livro de Reid nos apresenta. Seu “par romântico” é interpretado pelo sensacional Sam Claflin, que também não nos deixa nada a desejar ao nos mostrar um Billy contraditório, por vezes estrito e sisudo e em outras completamente entregue à sua paixão pela música.
A química entre os dois atores é inegável e palpável. É ela a força-motriz por trás de todos os episódios da série. É um clássico embate de egos, um vai-vem de sedução e tortura emocional que nos mantém vidrados todas as vezes que aparecem em cena. Uma queda de braço entre os opostos que se atraem irresistivelmente e que precisam desesperadamente um do outro para trazer à flor da pele a genialidade das composições e interpretações da banda. Perto da dupla, compreensivelmente, o resto do elenco meio que desaparece, apesar de suas performances também serem bem fortes.
Entre os coadjuvantes temos Suki Waterhouse como a tecladista Karen, que, em certo momento, forma um par romântico com o irmão de Billy, o guitarrista Graham, interpretado por Will Harrison. Também uma apologia ao outro casal polêmico do Fleetwood Mac (John e Christine McVie). Nabiyah Be merece uma menção honrosa pelo papel de Simone Jackson, a melhor amiga de Daisy, uma dancing queen da era disco e suporte emocional da cantora. Apesar de seu personagem não aparecer em vários capítulos Timothy Olyphant está sensacional como Rod Reyes, tour manager da trupe, assim como Tom Wright, que interpreta Teddy Price, produtor dos The Six e figura paterna de Billy.
O elenco, que já tinha certa experiência musical, passou por uma preparação para seus papéis que durou um ano inteiro, ao final do qual se apresentaram para os executivos da série. O resultado superou em muito o esperado e Daisy Jones & The Six realmente se transformou em uma banda real. E isso é o ponto alto de uma produção que não nos traz muitas surpresas em suas reviravoltas. O caminho de ascensão-queda-autorreflexão da banda só se torna mais verossímil ao percebemos que nada ali foi dublado e nem fingido. Os sentimentos irradiados são os sentimentos reais dos atores, seus movimentos, seus trejeitos. Cada um criou sua persona no palco e isso funcionou espetacularmente, quando poderia ser apenas mediano.
Daisy Jones & The Six completa com louvor a tarefa de mimetizar a realidade ao misturar sentimentos reais e ficção de uma forma envolvente e convincente. É um grande banquete para olhos e para os ouvidos que volta e meia ainda divagam sobre os loucos anos 1970 e a exploração dos limites da liberdade.
Nos minutos que antecederam o primeiro show da turnê Music Of The Spheres em Curitiba (21 de março último), o som de um sino ecoava pelo estádio Major Couto Pereira. Esse tilintar, que assume propósitos distintos em cada religião, traz um simbolismo em comum: representa a harmonia universal.
“Ativar o sininho” antes do espetáculo era como se a banda inglesa Coldplay fizesse um convite para plateia entrar em sintonia e acompanhar o storytelling espacial da jornada que estava prestes a começar. E a missão seria cumprida com sucesso: ao longo das duas horas seguintes, todos alcançariam a mesma frequência e entrariam numa completa catarse.
Quando Chris Martin, Jonny Buckland, Will Champion e Guy Berryman surgiram no palco B, as famosas e “caras” pulseiras luminosas entram em cena e mostram o poder que a multidão tem de abraçar uma banda que acaba de completar 23 anos de carreira fonográfica. Uma trajetória marcada por voos altos e rasantes, que explora diferentes ritmos mas com um denominador comum: olhe para as estrelas.
Céus repletos delas, aliás, sempre estiveram presentes, de alguma forma, nas canções de Coldplay, até inspirarem esse álbum kubrickiano, em que as 12 canções formam um sistema solar próprio. O próximo, muito provavelmente, será sobre o lado brilhante da lua. E desde o big bang coldplayano é possível perceber esse embate entre luz e escuridão. Até que a luz decide tomar conta de tudo. Literalmente.
A primeira canção do show, “Higher Power” já incendeou o estádio como uma bola de fogo. São mais de 43 mil pessoas presentes neste universo iluminado. Cada uma delas se tornou uma estrela. A estrela viva que brilha na vida de Chris Martin desde Parachutes, lançado em 2000.
Predestinado ao sucesso, o britânico da Cornualha e filho do seu Anthony – que faz questão de acompanhá-lo na turnê – previu no documentário Coldplay: A Head Full Of Dreams (lançado há seis anos, após sua separação da atriz Gwyneth Paltrow) que a sua odisseia terrestre começaria logo ahead. Em… 2002! E, de fato, nesse ano Coldplay trouxe ao mundo o disco que o catapultou ao status de uma das maiores bandas dos anos 00. A Rush Of Blood To The Head apresentava sucessos como “Clocks” e “The Scientist” (e seu videoclipe arrebatador, com a narrativa de trás para frente). No início do milênio, o bug não aconteceu e os britânicos conquistavam o mainstream com um som melódico, misturando guitarras elétricas ao piano. Foram três prêmios Grammy.
Nessa época, Chris Martin era um jovem frontman, ainda de espírito meio rebelde, impulsivo, que volta e meia aparecia na mídia sendo acusado de agredir fotógrafos, bem diferente de seu comportamento atual, e seu ritual de gratidão. Hoje, quem tem um celular nas mãos é um potencial paparazzo. Por isso, Chris, que sempre se mostrou arredio a esse tipo de coisa, foi de certa forma obrigado a fazer um “combinado” com a plateia antes de entoar seu hino “A Sky Full Of Stars”. Em cada apresentação, o vocalista lança aquele “xiiiiu” imponente, que faz parte da linguagem universal, sobretudo entre pais e filhos, para milhares de pessoas. Seja na sua terra natal ou no Brasil, onde é mais complicado pedir silêncio.
Educadamente, ele solicita que os presentes aproveitem apenas uma música sem fazer registros pelo celular. 99% do público obedece. Entre o 1% estava uma guria do meu lado. Por isso, fiz questão de colocar o braço na frente da câmera dela. Sorry, aê! Mas pedido do boss a gente obedece.
E foi assim, sem câmera e com um celular tijolinho, que fui ao show da turnê X&Y, em 2007. O terceiro álbum da banda, um dos meus preferidos. Local: Via Funchal, uma casa de concertos em São Paulo com capacidade para apenas três mil pessoas. Aliás, assim como na turnê Music of Spheres, os ingressos foram disputadíssimos. Graças ao meu PC 486 com conexão dial up, consegui garantir um par de entradas. Mais tarde, assistindo ao mesmo documentário, soube que a gravação de X&Y foi conturbada por vários fatores, entre eles a saída do coprodutor do álbum, Ken Nelson. Ao contrário da explosão de cores da turnê atual, a banda se apresentou de preto nessa turnê.
E aquele rock espacial com elementos eletrônicos de “Talk” (que traz um sample de “Computer Love”, do Kraftwerk), “Speed Of Sound” e, claro, “Fix You” me fisgou 100%. Depois desse show, o universo conspirou e consegui me aproximar de Chris Martin, mesmo com receio de sua fama de explosivo. “Você fez parte da cura”, disse a ele, mencionando “Clocks”, canção favorita da minha mãe quando tratava seu primeiro câncer de mama. Já, durante a pandemia, foi “Higher Power” que entrou na playlist da cura do meu carcinoma in situ.
De volta a 2023, antes mesmo de o Coldplay aterrissar em São Paulo, a banda do contra já preparava terreno para eles. No mundinho das redes sociais, uma chuva de meteoros da magnitude haters invadia o meu feed. Era um bombardeio de textos, justificando que “a banda acabou no segundo disco”, “essa banda é pra fã que usa sapatênis” (bem, eu fui de tênis plataforma) e “Coldplay é uma banda coach”. Enquanto uns seguem no “bla, bla, bla”, prefiro pegar carona no “ooh, ooh, ooh, ooh, ooh, ooooooh, oh” e viver a minha vida!
Mesmo porque a banda dos contra sempre existirá. O que não existiu até agora foi um espetáculo tecnológico nessas proporções (que deixou o U2 nas Havaianas), com uma estrutura gigantesca em três palcos, aproximando a plateia do artista, e, o mais importante, que promove a inclusão, a sustentabilidade e torna o espectador o protagonista do espetáculo.
Chris era, em Curitiba, como o maestro de uma orquestra, conduzindo suas estrelas, com sua mensagem clara como a luz da lua, sempre estampada no peito (“Love” e “Everyone is an alien somewhere”). Ele corria freneticamente pela passarela e aproveitava cada centímetro da megaestrutura, do palco principal até o palco B, onde cantou a belíssima “Viva La Vida”, do álbum de mesmo título produzido por Brian Eno e que representou um salto na carreira dos ingleses. De lá, entoaram também “Something Just Like This”, uma canção fofa, graciosa, sobre heróis da vida real e que, por sinal, era o sinal do recreio do meu filho na escola. No palco C, lá no fundo do estádio, surgiram para cantar “Magic”. Dessa vez, na versão aportuguesada, repetindo a performance do Rock In Rio em 2022 (concerto que fez a banda postergar a turnê brasileira para 2023, aliás). No Couto Pereira, não tivemos sandys, nem jorges, nem miltons. Mas tivemos “Every Teardrop Is A Waterfall”, do álbum Mylo Xyloto (2011). Inclusive, essa fora a segunda vez que a canção entra no setlist da turnê. No dia seguinte, para alegria dos fãs na capital paranaense, teve “Orphans”, do introspectivo Every Day Life.
Como Chris Martin se movimentava na “velocidade do som”, é muito fácil perdê-lo de vista ao vivo. Isso explica o uso de bases pré-gravadas. Mesmo estando em plena forma, é difícil conseguir tanto fôlego assim. Enquanto o vocalista cantava e passeava pelo seu universo, durante boa parte das canções, Jonny, Will e Guy permaneciam em suas posições no palco principal, curtindo o próprio show, como se fossem músicos de apoio.
Quando revisitam os hits mais antigos e que catapultaram a banda ao estrelato, como “Yellow”, “The Scientist” e “Clocks”, os ingleses mostram que tocam de verdade. Na primeira, o coro da plateia chegou a emocionar Chris Martin, que dizia “beautiful”. Lindo mesmo foi poder ver Jonny dedilhando o riff a poucos metros de distância. Já na segunda, houve um problema na modulação das guitarras e foi preciso interromper a música. Em vez de voltar ao start, entretanto, seguiram da metade.
No final de toda essa viagem estelar, cheia de luzes, com direito a planetas infláveis (alguns deles voltaram pra casa de ônibus biarticulado, inclusive) e que reuniu um público tão diverso, de crianças a idosos, o que ficou foi a prova da evolução. As letras mais recentes do Coldplay podem até soar um pouco repetitivas. Mas talvez não estejamos acostumados a tamanha positividade e de uma banda que alcançou um séquito de fãs por mérito e não por ter caído de paraquedas.
Claro que sempre haverá a turma do contra. O importante é saber conviver com ela. E isso o tal do Cristóvão João Antônio Martins parece ter aprendido direitinho. E isso é “Biutyful”! (JM)
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A experiência do primeiro dos dois shows do Coldplay em Curitiba (21 e 22 de março) começou já na fila quilométrica para o estádio Major Antônio Couto Pereira. Os fãs cantavam as músicas e comemoravam a cada curva que os deixava mais próximos da entrada. Com a pulseira no braço, a noite foi aberta pelo trio escocês Chvrches. Mesmo com eles entregando a alma em sua performance, os fãs apenas chamavam os astros ingleses para o palco. Com o Couto lotado e quase nenhum espaço livre entre as mais de 40 mil pessoas, a banda entrou às 21h ao som da música “Flying Theme”, do filme E.T.– O Extraterrestre, de Steven Spielberg. Isso já deixava claro que a noite seria mágica.
O set list apresentado pelos britânicos começou com “Higher Power”, Mesmo particularmente não gostando, a canção se tornou uma experiência inesquecível. Todo show tem uma atmosfera mágica, capaz de transportar qualquer um para outra realidade durante as duas horas de duração. O Coldplay, porém, conseguiu subir o nível desta virtude artística. As pulseiras brilhantes se tornaram um espetáculo à parte ao iluminar todo o estádio de acordo com as batidas de cada música. De certa forma, o público virou parte da performance da banda. A noite ainda contou com fogos de artifício, balões em formato de planetas (fazendo referência ao novo álbum deles), luzes coloridas e muitos confetes que tornaram tudo ainda mais bonito e especial. É até difícil escolher um destaque máximo. Para mim, o grande espetáculo aconteceu durante “Clocks”, quando todo o estádio assumiu uma cor verde que brilhava acompanhando as notas dedilhadas ao piano enquanto um show de luzes formava um céu também esverdeado e projetado em cima da plateia.
O ânimo da banda também era contagiante. Consgeuia deixar todos alegres e animados do começo ao fim. Ajudava também o engajamento de Chris Martin com seus fãs. O cantor falou em português, leu diversos dos cartazes levados pelo público, pediu para a plateia completar as letras e cantar junto com ele durante músicas como “Paradise” e “Viva La Vida”. O que tornou a experiência ainda mais única foi na hora de convidar uma fã para tocar uma música com ele. O cantor ainda desceu do palco principal para se apresentar em um espaço menor disponibilizado no meio da plateia. Lá mandou “Sparks” e uma versão em nosso idioma de “Magic”. “Chamo de mágia”, começou, com aquele sotaque.
O final do show também foi maravilhoso. A performance de “FixYou”, penúltima do extenso repertório, ficará, com certeza marcada na mente de todos os fãs que estavam presentes naquela noite do Couto Pereira. Todas as pulseiras brilhavam em um amarelo dourado enquanto Chris, ainda com toda energia do mundo, cantava o refrão (“Lights will guide you home/ And ignite your bones/ And I will try to fix you”). Pouco depois,quando começou a gravação de “A Wave”, todos foram embora radiantes e “consertados” com toda aquela vibração transmitida pela banda. (CG)
Set list em Curitiba: “Music Of The Spheres” (intro), “Higher Power”, “Adventure Of A Lifetime”, “Paradise”, “The Scientist”, “Viva La Vida”, “Something Just Like This”, “Fly On”, “MMIX”, “Every Teardrop Is A Waterfall”/”Orphans”, “Yellow”, “Human Heart”, “People Of The Pride”, “Clocks”, “Infinity Sign”, “Hymn For The Weekend”, “Aeterna”, “My Universe”, “A Sky Full Of Stars”, “Sparks”, “Magic” (em português), “Humankind”, “FixYou”, “Biutyful” e “A Wave” (outro).