Série provoca riso e choro com protagonistas conflituosos que só pensam em um dar ao outro um “troco” cada vez mais mirabolante
Texto por Tais Zago
Foto: Netflix/Divulgação
Até onde um pequeno desentendimento no trânsito pode chegar quando as duas pessoas envolvidas estão profundamente infelizes e insatisfeitas? Essa é a questão central de Treta (Beef, EUA – Netflix). Não, apesar do nome original, a série – iniciada agora em 2023 – não tem nada a ver com culinária ou alguma paixão carnívora. Nos Estados Unidos, a palavra para a carne bovina também serve como gíria para um desentendimento, um ressentimento ou, mais precisamente, uma “treta” entre pessoas. E esse “bife”, aqui, não é para amadores.
Lee Sung Jin é o criador e o roteirista dessa tragicomédia entre dois personagens completamente diferentes. Amy (Ali Wong) é uma bem sucedida empreendedora. Ela tem dinheiro, um marido considerado “perfeito”, uma filha e todo o luxo californiano na classe artística aos seus pés. Já Danny (Steven Yeun) é um empreiteiro endividado e fracassado, lutando para sobreviver e sustentar o irmão mais novo, enquanto sonha em comprar uma casa para seus pais. Em um cenário comum, os dois nunca coexistiriam. Apesar de ambos terem origem asiática, nada mais parece conectá-los. Até que um desentendimento no estacionamento de um shopping center – Amy buzina incessantemente enquanto Danny se recusa a sair da vaga – culmina em uma absurda perseguição pelas ruas de Los Angeles, quando ambos infringem diversas leis de trânsito e colocam pessoas em risco. Logo o acontecido cai nas redes sociais e assim se inicia uma procura dos dois por “investigadores amadores” de bairro da localidade de Calabasas.
A comediante e stand up Ali Wong nos entrega uma Amy profundamente frustrada e em conflito com suas verdadeiras vontades e a realidade da vida que ela construiu para si mesma. Se tudo é tão perfeito, por que ela ainda se sente infeliz? Esta é a questão que já nos acompanha a partir do primeiro episódio e continua até o último. Já Steven Yeun, mais conhecido do grande público por sua atuação como o Glenn de The Walking Dead, interpreta um Danny repleto de medos e insatisfações, apesar da sempre aparente autoconfiança, ele é castigado pelos seus sentimentos de fracasso e uma depressão que esconde de todos. Em cima da base criada pelos dois, cada episódio se torna uma montanha-russa de paybacks, onde cada decepção diária dos personagens consigo mesmos os leva a montar planos cada vez mais maquiavélicos e mirabolantes um contra o outro. Na vida de Amy e Danny, o foco principal se torna o beef, a treta, a qual nenhum deles parece realmente querer resolver ou perdoar.
Apesar da sinopse nos levar a crer que Treta seria mais uma comédia de slapsticks e vinganças malsucedidas, Lee Sung Jin consegue incluir uma miríade de conflitos internos, traumas e experiências que enriquecem seus personagens de tal forma, que, lá pelo meio, já conseguimos nos compadecer com a imagem horrível, mas real e crua, que Amy e Danny tem deles mesmos. É a queda da máscara construída com muito esforço. Os sonhos despedaçados deixando apenas o desespero e o ódio como substitutos da tristeza. A série possui diálogos e situações hilárias, daquelas de rirmos até chorar. Mas também nos arrasta a um abismo onde choramos sem rir. O toque reflexivo chega até a nos lembrar um pouco as divagações filosóficas do vitorioso do último Oscar, Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo. Uma tendência que parece permear muitas das obras da produtora indie A24, assim como uma forte queda para representações de um psicodelismo surrealista.
Será que não existe um pouquinho de Danny e Amy dentro de todos nós? Eu acho que sim. Ao menos quando invariavelmente descontamos nossas frustrações em discussões acaloradas, porém absurdas e sem utilidade prática, em redes sociais ou em situações mundanas do dia a dia. Nesse quesito, Treta vai além das telas e nos traz questionamentos válidos que podem nos conduzir a uma jornada de autoconhecimento.
Obra-prima de Dias Gomes ganha nova encenação e choca ao expor a olhos nus o país de hoje em um texto de seis décadas atrás
Texto por Abonico Smith
Foto: Festival de Curitiba/Divulgação
Soteropolitano de nascimento e radicado na cidade do Rio de Janeiro desde a adolescência, Alfredo de Freitas Dias Gomes é um nome intrinsecamente ligado à dramaturgia. Ganhou popularidade em todo o país a partir da formação de rede nacional da TV Globo nos anos 1970, quando assinou novelas marcantes como Bandeira 2, O Bem-Amado, O Espigão, Saramandaia e Roque Santeiro. Mas antes já era bem íntimo de romances literários e peças teatrais. Escreveu a primeira encenação aos 15 anos de idade e foi muito produtivo entre as décadas de 1940 e 1960, até ir para a televisão e formar uma legião de fãs e discípulos que vieram a marcar a história das produções nacionais.
O ano de 2022 marcou o centenário de Dias Gomes. Entretanto, apesar de sua intensa criação, o teatro brasileiro parece ter se esquecido de um de seus maiores criadores. Na temporada da retomada, não só a pós-pandemia como também na normalidade quatro anos tenebrosos e de aberrações na política brasileira, apenas uma peça assinada por ele esteve em cartaz. Compensou o fato também de não ser qualquer encenação, mas sim aquela que muitos consideram a maior de todas as peças (embora a concorrência com O Pagador de Promessas seja grande, na verdade). E que, depois de algumas semanas em temporada bem acalorada e comentada em São Paulo, está chegando agora a algumas outras capitais, inclusive tendo passado por duas noites de Teatro Guaíra lotado no Festival de Curitiba em 3 e 4 de abril.
O Bem-Amado Musicado é uma pequena adaptação do original escrito e encenado originalmente em 1962 sob o nome de Odorico, o Bem-Amado ou Os Mistérios do Amor e da Morte. No texto original de Dias Gomes nada, absolutamente nada foi alterado ou acrescentado. A única mudança que a trupe liderada pelo protagonista Cassio Scapin (que até então sempre alimentara o sonho de interpretar Odorico Paraguassu) e o diretor Ricardo Grasson apresentam em cena é uma coleção de novas canções, compostas exclusivamente por Zeca Baleiro e Newton Moreno e dirigidas por Marcio França (que também está no palco como o pistoleiro regenerado Zeca Diabo) para esta peça e executadas em cena por músicos e atores. Tanto que ganhou um novo título, justamente para se diferenciar do nome tradicional. A intenção, segundo Grasson e Scapin, foi tentar se distanciar ao máximo da grande trilha sonora feita por Toquinho e Vinícius de Moraes para a adaptação ao formato de folhetim feita pelo autor para o horário das 22h das novelas da Globo em 1973. Melhor também quanto à questão do pagamento de direitos autorais…
A versão trazida aos palcos exatamente seis décadas de depois é de uma competência só, não apenas quanto às novas músicas – que são executadas e cantadas pelos atores que fazem os personagens centrais da trama passada na pequenina cidade baiana de Sicupira (como Odorico, Zeca Diabo, as cabos eleitorais e três irmãs Cajazeiras, o aspone do prefeito Dirceu Borboleta, o vigário da igreja, o dono do jornal local e maior oponente político do protagonista). Cenários e figurinos também servem como colírio para os olhos, misturando referências da xilogravura dos cordéis nordestinos, a comédia dell’arte inserida nos filmes de Federico Fellini e todo o imaginário construído pelo teatro popular brasileiro. A química que envolve todo o elenco também se torna fator de destaque durante as quase duas horas de encenação.
Contudo, o que mais choca o espectador é a extrema atualidade do texto feito por Dias Gomes há seis décadas. Do começo ao fim, o dramaturgo parece não apenas ter utilizado como base para o seu misto de acidez e ironia para alfinetar a política brasileira realizada até então, mas também utilizado uma bola de cristal e previsto não só tudo aquilo que continuaria ocorrendo ao longo das décadsa e ainda se intensificaria em inimagináveis níveis estratosféricos nestes últimos quatro anos de (des)governo do falso messias. Mas, parafraseando o próprio Odorico Paraguassu e deixando de lado os entretantos para cegar aos finalmentes, a trama do prefeito corrupto envolve demagogia popularesca, fake news, nepotismo, desvio de verbas, gastos orbitais do dinheiro público. Também há ali os choques de interesse entre executivo e judiciário e o uso da religião para a descarada instrumentação política da classe trabalhadora.
Nesta montagem, Scapin, França e Grasson se firmam como um sólido tripé para saudar a obra e a genialidade de Dias Gomes em um tempo em que as artes brasileiras, ainda se refazendo de um período terrível de trevas e achatamento, andam precisando do surgimento de novos autores como o baiano-carioca. Já faz quase um quarto de século que ele partiu – morreu no dia 18 de maio de 1999, vitimado por um acidente automobilístico em uma madrugada paulistana após ir ao teatro para ver uma ópera e jantar com a esposa. Ainda faz muita falta.
Série sobre a história de uma banda fictícia inspirada no Fleetwood Mac dos anos 1970 mistura ficção e sentimentos reais de forma mesmerizante
Texto por Taís Zago
Foto: Amazon Prime/Divulgação
Histórias de bandas fictícias/montadas por um casting em forma (ou não) de mockumentary – suposto documentário ficcional cheio de fatos falsos e/ou deboche – ou narradas em voice over por jornalistas e integrantes não é, de maneira alguma, novidade no universo cinematográfico. Tudo iniciou como formato musical com o fake documentário A Hard Day’s Night (1964) dos Beatles, que acabou inspirando o surgimento dosMonkees logo depois e ganhou força no final da década com musicais como Tommy (1969), da banda real The Who, e Spinal Tap (1984), tendo nova força nos anos 1990-2000 com obras mais dramáticas como Velvet Goldmine (1998), Quase Famosos (2000), Hedwig And The Angry Inch (2001) ou Dreamgirls (2006), para citar apenas alguns. A lista do estilo, portanto, é imensa. O que nos leva à pergunta: qual história ainda não foi contada?
A resposta é simples: nenhuma. Chegamos a um ponto onde arcos e enredos como pano de fundo de empreitadas musicais já se esgotaram. Adentramos, portanto, uma nova época. Uma época em que o importante não são mais as repetições de dramas, conflitos e situações engraçadas, mas sim o trabalho estético, o esmero dos atores e a riqueza dos diálogos. Assim chegamos no seriado de streaming que estreou em março chamado Daisy Jones & The Six (EUA, 2022 – Amazon Prime). O best-seller homônimo de 2019 da escritora Taylor Jenkins Reid, conta, em formato de entrevista com os envolvidos e membros da banda, as desavenças e os conflitos de mais um combo movido a sexo, drogas, soft rock e muito drama. Reid admitiu abertamente que a banda que a inspirou para o esqueleto do livro foi a mundialmente famosa Fleetwood Mac. O grupo subiu à apoteose musical ao vender mais de 40 milhões de cópias doálbum Rumours (1977) por todo o mundo, o 6º disco mais vendido nos anos 1970 e o 12º mais vendido de todos os tempos. Aos mitos e “rumores” envolvendo as conturbadas gravações do disco, viraram parte do folclore musical. O Fleetwood Macacabou se tornou sinônimo do estilo de vida rock’n’roll abastecido com entorpecentes, sofrimento e loucura. Os integrantes trabalhavam suas diferenças, amores e decepções em suas canções e o planeta assistia a tudo isso hipnotizado enquanto eles derramavam o conteúdo intenso de seus corações no palco em apresentações inesquecíveis até hoje.
Após ler o livro, pensei: tudo bem, trata-se aqui de mais um apanhado de clichês onde frontman e a frontwoman carregam a banda nas costas com sua relação conturbada. Pensei na hora, claro, em Stevie Nicks e Lindsey Buckingham; em Agnetha e Björn mais Benny e Anni-Frid, do Abba; em Ike e Tina Turner, ou em qualquer outro casal que trouxe a público suas desavenças e dores afetivas. Mas também vi o potencial cinematográfico de um enredo que sempre vai encontrar um nicho – a magia da liberdade conquistada nos anos 1970, a transgressão de valores conservadores, a atmosfera envolvente dos tempos pré e pós-hippie, um casal de protagonistas lindos, talentosos e extremamente carismáticos vivendo um amor torturado e nunca satisfatoriamente consumado. Era apenas uma questão de tempo até uma adaptação para as telas ser feita.
Os criadores Scott Neustadter e Michael H. Weber não perderam tempo, adaptaram o livro de Reid e chamaram James Ponsoldt (Master Of None) e Nzingha Stewart (Little Fires Everywhere) para assumir a direção da maioria dos dez episódios totais da série, que, adequadamente, recebem o título de tracks 1 a 10. Para o elenco, buscaram atores que sabiam tocar instrumentos e cantar – sim, isso faz uma diferença enorme quando assistimos a qualquer tipo de biopic (mesmo que fake) de algum artista musical. E aqui a escolha foi mais que acertada. Para o papel de Daisy, foi escolhida Riley Keough (Neta de Elvis, filha de Lisa Marie Presley). A atriz incorpora o papel de uma forma mesmerizante. Traz profundidade, complexidade e uma intensidade maior do que a Daisy do livro de Reid nos apresenta. Seu “par romântico” é interpretado pelo sensacional Sam Claflin, que também não nos deixa nada a desejar ao nos mostrar um Billy contraditório, por vezes estrito e sisudo e em outras completamente entregue à sua paixão pela música.
A química entre os dois atores é inegável e palpável. É ela a força-motriz por trás de todos os episódios da série. É um clássico embate de egos, um vai-vem de sedução e tortura emocional que nos mantém vidrados todas as vezes que aparecem em cena. Uma queda de braço entre os opostos que se atraem irresistivelmente e que precisam desesperadamente um do outro para trazer à flor da pele a genialidade das composições e interpretações da banda. Perto da dupla, compreensivelmente, o resto do elenco meio que desaparece, apesar de suas performances também serem bem fortes.
Entre os coadjuvantes temos Suki Waterhouse como a tecladista Karen, que, em certo momento, forma um par romântico com o irmão de Billy, o guitarrista Graham, interpretado por Will Harrison. Também uma apologia ao outro casal polêmico do Fleetwood Mac (John e Christine McVie). Nabiyah Be merece uma menção honrosa pelo papel de Simone Jackson, a melhor amiga de Daisy, uma dancing queen da era disco e suporte emocional da cantora. Apesar de seu personagem não aparecer em vários capítulos Timothy Olyphant está sensacional como Rod Reyes, tour manager da trupe, assim como Tom Wright, que interpreta Teddy Price, produtor dos The Six e figura paterna de Billy.
O elenco, que já tinha certa experiência musical, passou por uma preparação para seus papéis que durou um ano inteiro, ao final do qual se apresentaram para os executivos da série. O resultado superou em muito o esperado e Daisy Jones & The Six realmente se transformou em uma banda real. E isso é o ponto alto de uma produção que não nos traz muitas surpresas em suas reviravoltas. O caminho de ascensão-queda-autorreflexão da banda só se torna mais verossímil ao percebemos que nada ali foi dublado e nem fingido. Os sentimentos irradiados são os sentimentos reais dos atores, seus movimentos, seus trejeitos. Cada um criou sua persona no palco e isso funcionou espetacularmente, quando poderia ser apenas mediano.
Daisy Jones & The Six completa com louvor a tarefa de mimetizar a realidade ao misturar sentimentos reais e ficção de uma forma envolvente e convincente. É um grande banquete para olhos e para os ouvidos que volta e meia ainda divagam sobre os loucos anos 1970 e a exploração dos limites da liberdade.
Billie Eilish, Modest Mouse, Jane’s Addiction, Paralamas, Aurora, Baco Exu do Blues, Tove Lo e Cigarettes After Sex: shows que marcaram o festival
Billie EIlish
Texto por Abonico Smith
Fotos: Reprodução
Entre os dias 24 e 26 de março foi realizada a décima edição brasileira do festival Lollapalooza, a última em parceria da produtora T4F com a americana LLC, detentora da marca do evento. Depois de cinco recentes cancelamentos de concertos programados para este ano, todo mundo foi surpreendido com a não vinda ao Brasil do headliner da última noite, o canadense Drake, horas antes dos portões do Autódromo de Interlagos serem abertos. A desculpa oficial do artista, esfarrapada, não colou: a de que estariam faltando pessoas de sua equipe no país. Entretanto, ele foi visto na madrugada anterior festando em Miami em conjunto com o rapper 50 Cent. E mais: estas pessoas de sua equipe já estavam em SP instalando no autódromo os telões e o material de seu espetáculo. Mas como é sempre melhor falar de coisas boas, deve também ser registrado um marco desta edição: pela primeira vez o line-up estava dividido quase igualitariamente entre artistas dos dois gêneros.
O Mondo Bacana comenta um pouco dos oito shows que deixarão esta edição do Lolla na história dos grandes festivais de música pop do Brasil.
Billie Eilish
Única headliner originalmente anunciada a se apresentar em Interlagos (além de Drake, o Blink 182 também não veio para cá), ela já era aguardada havia algum tempo por aqui. Afinal, este seria seu primeiro concerto no país, já que o anterior fora cancelado por causa da pandemia. Em cima daquele palco enorme, tendo a companhia apenas de seu inseparável irmão e produtor Phinneas e um baterista, ela – com o verde e amarelo predominando no figurino grande e largo sobre a malha preta que lhe escondia o corpo – entregou o que prometia: uma boa coleção de letras intimistas a respeito de observações, sensações e sentimentos de uma garota vivendo os anos finais de sua adolescência. Intimista também foi sua performance: sem muitos pulos, correrias ou coreografias ensaiadas, era quase apenas ela cantando ao microfone. Quer dizer, cantando às vezes. Billie só cantava o necessário e muitas vezes sua voz ecoava pelo autódromo junto com os instrumentos também pré-gravados. O que deixava o show redondo, sem espaço para improvisos ou erros. Só que teve momentos em que os manos abriam mão do playback e se arriscavam em momentos semiacústicos para mostrarem que não são uma fraude ao vivo: foram cerca de meia dúzia de canções com Phinneas dedilhando o violão ou o piano para a irmãzinha soltar o gogó de alcance não muito grande.
Modest Mouse
Quem foi a genial pessoa responsável pela grade de shows que conseguiu jogar o grupo para uma tarde de sexta-feira? Modest Mouse – um dos ícones do indie rock americano dos anos 2000 – não é para a GenZ, é para gente mais velha. Melhor: para quase todo mundo que não tem a) grana disponível de salário ou frilas para pagar o caro ingresso do festival; b) saco ou corpo para aguentar ficar um dia sequer em uma maratona de shows; c) horário disponível para ir assistir a uma banda tocar às quatro da tarde de sexta-feira. Sob um sol escaldante, o vocalista Isaac Brock estava vermelho feito um camarão, à frente de seu quinteto que foge da musicalidade óbvia e mistura lo-fi, folk e psicodelismo em doses nada comerciais. O resultado foi uma banda competentíssima tocando para quase ninguém, sendo a maior parte disso gente que desconhecia por completo o repertório loteado entre sua boa discografia. Hits como “Float On” e “Dashboard” ficaram desperdiçados naquela escala gigantesca ao ar livre. De qualquer maneira, quem viu in loco ou pelo streaming foi abençoado pela tardia estreia do Modest Mouse em solo brasileiro. Antes tarde do que muito mais tarde. Antes de tarde durante a semana do que nunca.
Jane’s Addiction
Perry Farrell idealizou o Lollapalooza em 1991 como um festival ambulante, que pudesse rodar algumas grandes cidades norte-americanas com uma escalação de excelentes bandas alternativas como suporte para a turnê de despedida de sua banda. Deu tão certo que o Jane’s Addiction se separou mas o Lolla continou trilhando seu caminho de sucesso durante os meados dos anos 1990. Perry, então, quase sempre vem prestigiar a edição brasileira. Agora trouxe a tiracolo a reformada banda que o revelou para o mundo da música. Integrantes originais… ou quase, já que o guitarrista Dave Navarro (que saiu do JA para tocar no Red Hot Chili Peppers) continua afastado dos palcos para tratar da saúde (covid longa como justificativa oficial, rehab longa como rumor alimentado entre os fãs do grupo). De qualquer forma, seu substituto, o também ex-guitarrista do RHCP Josh Klinghoffer, mostrou ser uma escolha acertada. Enquanto o baterista Stephen Perkins e o baixista Eric Avery (que também costuma ser músico de apoio do Garbage) se entendem perfeitamente em uma cozinha rítmica hipnótica e dançante, Josh jorrava os efeitos de pedais que fazem a sonoridade da banda flutuar entre o hard rock, o psicodelismo e o groove. Para completar, uma trinca de dançarinas comandada pela atual mulher de Farrell faziam pole dances sensuais ao fundo do palco, dando um approach cênico diferente às canções. Em Interlagos, o set list foi reduzido por conta do tempo destinado ao show, socado no meio da programação da tarde do segundo dia. De qualquer forma, ficou bem dividido entre os dois primeiros e incensados discos da banda, concebidos entre 1988 e 1990, antes das brigas internas que levaram à implosão precoce da carreira. De qualquer forma, reunidos já nas casas dos 50 e 60 anos de idade, os músicos mostraram por aqui que estão como vinho: quanto mais velhos, melhor. Maturidade e experiência – e um longo hiato interrompido por outras duas reuniões e discos criados em 2003 e 2011 – fizeram bem. Em um sábado fraco de opções, o Jane’s Addiction chegou quietinho e fez uma puta (e despretensiosa) apresentação. Ainda terminou com uma batucada em homenagem ao amigo Taylor Hawkins, que morria havia exatamente naquela data, no ano anterior… horas antes do show do Foo Fighters na Colômbia e de viajar para tocar no Lollapalooza brasileiro.
Paralamas do Sucesso
Ter 40 anos de carreira fonográfica não é para qualquer um. Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone sabem disso e utilizam um arsenal de clássicoscolecionados em sua extensa discografia para disparar um show magnífico. É hit atrás de hit quase sem intervalo para respirar. Foi assim neste Lollapalloza, na tarde de sol de um domingo para uma maioria de plateia formada por GenZ e millennials. O repertório começou com canções mais representativas da faceta ska (“Vital e Sua Moto”, “Patrulha Noturna”, “Ska”, “Loirinha Bombril”) e passeou por toda a galeria das duas primeiras décadas de carreira, misturando reggae, dub, afrobeat, rock, citações (Tim Maia, Titãs, Raul Seixas) e muita injeção rítmica contínua para não deixar ninguém totalmente parado – pelo menos um dos pezinhos não teve como resistir. Herbert começou enfrentando problemas técnicos, contornados sabiamente com conversas fora do microfone com um roadie enquanto não parava de cantar as letras para a plateia. Tirando este pequeno detalhe, que não chegou a comprometer a apresentação aliás, os Paralamas mostraram toda a sua realeza na música pop nacional. Não precisa de firulas, telões, coreografias, trocas de roupa, andar para lá e para cá no palco ou ao redor dele. Só precisa de música. E muito boa música. Referências para se criar música de qualidade eles sempre tiveram também. São uma banda pós-punk brasilis roots (a sonoridade two-tone em verde e amarelo, inclusive com versos politizados e críticos transformados para a nossa realidade!) e isso ainda faz toda a diferença. Mesmo diante de uma molecada que não chegou a viver os tempos dos vinis e CDs lançados com essas músicas.
Aurora
É só começar a ouvir a sua extensão vocal de soprano que não tem como não embarcar junto nesta fantasia musical que é seu show. Ela mesma parece uma pequena e adorável duende, sempre a saltitar feliz e travessa pelos vastos campos verdes. Seu look também ajuda: vestes claras e em tonalidades pasteis, pés descalços, pele alva e um cabelinho curto e de um chanel tão branco quanto sua melanina norueguesa. Muita gente que estava ali na plateia sabia de cor e salteado as letras, cantava junto e se emocionava por estar na frente de Aurora Asknes. Pudera. A artista faz da voz um belo poder instrumental, além de ser hábil nas palavras para demonstrar seus mais profundos sentimentos acerca da vida e da natureza. Mas também não precisa ser expert na obra dela para se render ao poder desta guria escandinava, solta, espontânea, natural e sem qualquer maquiagem, capaz de provocar um midsommar tão contagiante aqui no hemisfério sul e em pleno cair da tarde de um domingo quente brasileiro.
Baco Exu do Blues
Ele entrou na grade do Lolla como uma rápida solução caseira para suprir o cancelamento quase em cima da hora de Willow, filha do astro Will Smith. E ainda entregou uma das mais emocionantes performances em língua brasileira deste Lollapalooza. Generoso, o baiano de quatro discos lançados nos últimos seis anos fez questão de não brilhar sozinho. No telão, prestou reverência a personalidades negras já falecidas como Marielle Franco, Elza Soares, Muhammad Ali, 2Pac Shakur e Nelson Mandela. E no meio do repertório montado com alguns de seus grandes sucessos ainda cedeu espaço lá na frente para cada uma de suas backings (Aísha, Alma Thomas e Mirella Costa) dividirem as atenções, o microfone e o gogó poderoso. Mirella, por sua vez, protagonizou uma emocionante homenagem à também soteropolitana Gal Costa, ao mandar, a capella, um trecho de “Força Estranha”. Mancando e dando passos lentos, Baco fez o que pode, cenicamente, para superar o estiramento na panturrilha sofrido poucos dias antes. E ainda mandou a letra para espinafrar o grande ausente da noite, Drake, sendo complementado por xingamentos dirigidos pelo público ao astro chiliquento canadense. Mostrou, como Kevin Parker (Tame Impala) na noite anterior, que nem sérias limitações físicas para a locomoção não podem servir como desculpa para não cantar aos fãs.
Tove Lo e Pabllo Vittar
Tove Lo
Outra atração nórdica dominical, a sueca mostrou que um show de música pop pode muito bem ser construído em cima de… música pop. Nada pode tirar o primeiro plano. Pelo contrário. Figurinos podem ser um bom complemento (no caso, uma roupa colante em tons verdes que lhe permitiu fazer o manjado gesto de mostrar os seios à plateia). Coreografias também. Mas um palco deve ser povoado por musicistas tocando seus instrumentos, cantora realmente cantando e dispensando playbacks descarados e a ausência de um time de bailarinos indo para lá e para cá, chamando mais a atenção dos olhos do que os ouvidos. Tove Lo é muito mais discípula de Madonna do que muita gente pode pensar. Ela canta, dança, brinca com a sexualidade diante de uma multidão e mostra ser uma artista de força suficiente para ter um longo futuro pela frente. E olha que ela já tem cinco álbuns feitos de 2014 para cá.
Cigarettes After Sex
Todo ilusionista sabe muito bem que o segredo do sucesso de sua performance está na habilidade de deslocar a atenção do público para um local diferente daquele onde realmente “acontece” o truque. A derradeira das três noites do Lolla, de fato, foi equivalente a um show de ilusionismo. Todo mundo esperando o headliner Drake e depois todo mundo desapontado e xingando o arredio Drake por nem ter viajado ao Brasil. Muita gente comentando o fato de que o DJ e produtor de IDM Skrillex havia sido escalado de improviso para ocupar o horário e o palco anteriormente destinado ao fujão. Muita gente indo embora ao cair da noite, já desesperançoso de que ali em Interlagos acontecesse mais alguma coisa estupenda no autódromo. Espertos, porém, foram aqueles que não arredaram o pé e ficaram no local (ou sintonizados no streaming) até as nove da noite, de olhos bem atentos a um dos palcos secundários. Ali, já aos 45 minutos do segundo tempo do festival, os acréscimos permitiram uma magnífica performance de um singelo trio norte-americano que, por meio da internet, tornou-se objeto de culto nos últimos anos por um pessoal mais antenado. O Cigarettes After Sex veio para impactar com todo o seu minimalismo. Cênico, com seus integrantes tocando quase sempre parados no palco, dispostos geometricamente lado a lado. Sonoro, com somente um vocal (de seu líder e criador Greg Gonzalez) e a mínima movimentação possível de baixo, guitarra e bateria. Havia uma textura de teclados pré-gravados disparada como pano de fundo para a maioria das canções. Mas isso só reforçou a atmosfera etérea e hipnótica do concerto. Fotógrafos não foram permitidos no pit à frente do palco. Quem ficou em casa assistiu a uma transmissão noir, que impôs a ausência de captação de qualquer cor pelas câmeras que não fossem o preto e o branco. Com ares de cabaré decadente, algo tipicamente David Lynch, o CAS fechou as cortinas da décima edição premiando poucos felizardos com algo meio difícil de acontecer em um grande festival. Truque de mestre.
Cate Blanchett domina as telas como a genial regente que não faz qualquer questão de esconder a falta de humildade
Texto por Taís Zago
Foto: Universal Pictures/Divulgação
Lydia Tár (Cate Blanchett) está no topo do mundo. Como uma das mais conhecidas e respeitadas regentes e compositoras da atualidade, ela reina quase soberana – uma das únicas mulheres a reger orquestras famosas, interpretar de forma singular gênios da música erudita como Mahler enquanto principal regente da Orquestra Filarmônica de Berlim ou dar aula em escolas da elite musical como a nova-iorquina Julliard. Tár não faz questão alguma de esconder a sua falta de humildade. Ela sabe que é singular e ao seu redor só tolera a presença de outras personalidades singulares. Tudo que leva seu nome é um sucesso instantâneo e serve de inspiração para muitos outros aspirantes à carreira de regente. Quem cruza o seu caminho ou discorda de sua opinião é decepado de seu convívio, com a frieza digna de narcisistas e sem aviso prévio.
O diretor e roteirista Todd Field retorna às grandes telas após uma pausa de 16 anos desde seu último filme Pecados Íntimos (2006) e não está para brincadeira. O ex-ator (participou do elenco de De Olhos Bem Fechados, de Stanley Kubrick, por exemplo) abandonou precocemente uma carreira promissora na frente para ficar somente atrás das câmeras. Em Tár (EUA, 2022 – Universal Pictures), mostra a que veio – as imagens são fortes e os diálogos profundamente reflexivos, a fotografia é escura e fria, os personagens não nos permitem que os coloquemos em papais definidos de virtude ou falha humana. Soa como Ingmar Bergman, mas não é. Blanchett não é Ullmann. Blanchett é Blanchett.
Para quem há tempo acompanha a carreira da excepcional atriz, afirmar isso tem um amplo significado: estamos diante de uma artista que busca na arte a constante superação de seus limites, tanto técnicos quanto emocionais. Cate atua em três línguas (inglês, um pouco de francês e alemão) aprendeu sobre regência e a tocar instrumentos na preparação. Mas a sua entrega diante das câmeras é mesmerizante, nenhum preparo técnico supera a capacidade da atriz de entrar na pele de Lydia e torná-la sua. Essa fusão visceral é inegável e evidente em cada cena. Tár, apesar de contar com um amplo elenco de atores tarimbados como a francesa Noémie Merlant e a alemã Nina Hoss, é praticamente um monólogo de Blanchett. O holofote está nela por toda a sua jornada, do cume de seu sucesso e reconhecimento até sua desastrosa queda.
Se você busca relações polarizadas e monocromáticas, Tár pode não ser uma boa pedida. O diretor nos coloca (e se coloca) na posição de um mero observador sem julgamento moral e sem conduzir a jornada de Lydia de uma forma óbvia. Mas como nada é perfeito – fora a atuação da Cate, claro – mais tardar a partir da metade do filme chegamos a nos questionar a necessidade de uma duração de 158 minutos para nos contar essa história. Há uma repetição de temas e de situações que, mesmo que sendo o desejado pela produção, acaba por não acrescentar muito ao todo. Uma duração de 100 a 120 minutos já daria perfeitamente conta do recado. Ao pisar no acelerador na última meia hora, Field nos deixa um pouco perdidos, pois já tínhamos internalizado, assim como em uma música, o ritmo imposto. Mas aqui não se trata de música pop. Nos universos dos virtuoses clássicos, a surpresa faz parte da experiência e desconcertar a plateia pode ser o objetivo.
Além disso, a escolha de uma Berlim invernal como locação para o “miolo” da trama, apesar de evidenciar a frieza das relações entre os personagens, coloca desnecessariamente as cenas sob uma perspectiva dura demais. Mas sim, viver em Berlim tem disso e falo por experiência própria. Nenhuma outra cidade desse planeta tem tanto poder sobre os humores das pessoas de acordo com suas estações do ano. Nenhum lugar casa tão bem criatividade com niilismo ou liberdade de expressão com opressão cultural e arrogância. Uma verdadeira meca para as elites intelectuais e criativas do mundo todo. Lydia está no lugar certo para viver seu narcisismo até as últimas consequências e nos arrasta com ela ao mergulho no abismo, independentemente da nossa vontade.
Por tudo isso, enxergo um terceiro Oscar para Cate no horizonte. E talvez seja o mais merecido de toda sua carreira.