Music

Titãs – ao vivo

Megaturnê com a formação clássica do grupo reunida novamente no mesmo palco chega ao fim junto com o ano de 2023… Ou não?

Texto e fotos por Tanara de Araújo

Não há falta de romance em pensar que não foi algo muito pensado e estudado. Foi. Mas, com igual certeza, a expectativa de sucesso foi muito, muito além dos cálculos. Titãs Encontro – Todos ao Mesmo Tempo Agora se propôs a reunir os sete integrantes remanescentes da “maior banda do Brasil” para, como diz o título, um encontro. Datas espalhadas por várias cidades, ingressos esgotados em questão de horas, fãs empolgadíssimos, caixa registradora exultante. Rapidinho se impôs a necessidade de uma ligeira extensão, com o subtítulo devidamente rebatizado para Pra Dizer Adeus. E foi o encerramento dessa segunda etapa que se deu no quintal da banda, a cidade de São Paulo, na noite de 21 de dezembro, num Allianz Park bem recheado. As apresentações (supostamente) derradeiras se deram nos dias 22 e 23 de dezembro.

Celebre ou faça cara feia, o fato é que Titãs Encontro não é uma programação de shows que requenta sucessos de um grupo que já tinha esgotado seu fôlego e deixado integrantes pelo caminho. Não é um caça-níquel barato. Não é uma limonadinha saudosista feita de um limão duvidoso. Desculpe, haters, mas Titãs Encontro é um baita espetáculo. Um projeto de entretenimento que recorre a tudo o que pode para ser quase 100% irrepreensível: infinidade de hits, palco bonito com sistema de luzes/telões de primeira, som ok e, sobretudo, uma banda feliz, extremamente a fim de trabalhar e entregar ao público o que o público quer.

É claro que há muita nostalgia envolvida, tanto emocional quanto cultural. “Diversão”, que tem aberto os showsdesde o início da turnê, resgata aquele período que acreditávamos que “a vida até parece uma festa”; assim como “Bichos Escrotos” evoca o tempo que cantar a plenos pulmões “oncinha pintada, zebrinha listrada, coelhinho peludo, vão se foder!” era um ato de profunda rebeldia. Porém, não é só o coração daquele fã desde os 13 anos que batia

mais forte. Titãs Encontro é carregado de saudade de uma época que composições significativas – à base de poesia concreta, dor de cotovelo ou crítica social – namoravam firme com o mainstream. Chegavam a um público massivo, que até hoje é atingido por músicas que, por bem ou por mal, não envelheceram. “Polícia, “Miséria”, “Porrada”, “Homem Primata”, “Lugar Nenhum” e “Nome Aos Bois” (cuja letra ganhou uma atualização que vai da celebração à queixa de parte da plateia) são só alguns exemplos.

São tantos hits, de tantas naturezas, que a apresentação, a certa altura, quebra a seção rock/punk/pop ao meio para encaixar um momento mais leve, num revival de outro triunfo na história da banda, o Acústico MTV Titãs. Em banquinhos nos quais só conseguem sossegar por alguns minutos e Charles Gavin segurar um pouco o braço, eles se reúnem na frente do palco para tocar “Epitáfio” (com participação luxo das luzes de celulares do público), “Os Cegos do Castelo” e “Pra Dizer Adeus”. Ao final desse set, uma justa e delicada homenagem ao guitarrista Marcelo Frommer, morto em 2001 e substituído nesta turnê pelo icônico Liminha: sua filha Alice Frommer se junta ao grupo para cantar “Toda Cor” e “Não Vou Me Adaptar”. E se você não se rende ao lencinho nesse instante (embalado por uma foto belíssima de Frommer no telão), você não é humano, meu amigo.

A carga humana, aliás, é o grande segredo do sucesso de Titãs Encontro. São todos sessentões, com famílias, filhos, carreiras paralelas. Têm todo o direito de estarem cansados. Mas não. Não é só dinheiro, é felicidade. Ao longo de praticamente três horas, eles entram no palco, tocam, cantam, dançam e, o mais importante, mantêm um sorriso genuíno no rosto, aquela expressão que não mente sobre alguém que está fazendo verdadeiramente o que gosta, que está onde gosta, com quem gosta. Perde-se a conta de quantas interações, abraços e risinhos felizes eles trocam entre si no decorrer do show, assim como as manifestações de carinho, via gestos ou discursos, direcionadas aos fãs. Essa entrega fica muito evidente, é quase um tapa na cara, na figura de Joaquim Cláudio Corrêa de Mello Júnior, que a gente conhece por Branco Mello. Após passar por uma cirurgia para combater um tumor agressivo na hipofaringe que lhe custou boa parte da voz, o que ele faz? Segue não só fazendo seus tradicionais backings, como cantando do jeito que dá – e ele faz dar – clássicos como “Flores”, “Cabeça Dinossauro” e “32 Dentes”.

É um negócio absolutamente perfeito? Não. Nem sempre se pode ser Deus. O som, ao menos em parte da pista do Allianz Park nessa quinta-feira, pecou no retorno da voz, tornando por vezes difícil distinguir o que eles cantavam. O que salvava era que basicamente todo mundo sabia todas as entradas e todas as letras. O público era legal e participativo? Dava para se dizer que, guardadas as devidas proporções, sim. É claro que os adoradores de shows vistos pela tela do celular sempre marcam presença, assim como, apesar de haver vários jovens e até crianças na plateia, não é mais uma opção para a esmagadora maioria pogar em “Polícia”. Já o acompanhamento das músicas na ponta da língua e do fundo da alma somado à obediência aos comandos de mãos, braços e palmas estava em dia. Parabéns aos acadêmicos da associação!

Foram, enfim, 36 canções, cinco a mais desde a estreia do projeto em maio deste ano, no Rio de Janeiro. Ganharam vez “Será Que é Isso o Que Eu Necessito?”, “Nem Sempre Se Pode Ser Deus”, “Domingo”, “Querem Meu Sangue” e “O Quê”. Incrementos bem-vindos num inventário que podia render pelo menos mais um outro set list inteiro com composições de sucesso e lados B queridos dos fãs (cadê “Corações e Mentes” e “Eu Não Vou Dizer Nada”?).

Se fosse um projeto de longo prazo, a estrutura engessada do repertório, que não costuma abrir brechinhas para surpresas de uma noite para a outra, talvez fosse um ponto sensível. O planejamento detalhado do set list é, com certeza, peça importante para o funcionamento (e triunfo) da turnê como um todo. Por outro lado, não incentiva a ida a mais de um show ou dois – exceto, claro, se você for do tipo obcecado. Seria um problema ótimo para lidar. Infelizmente, porém, segundo garantem os próprios Titãs, Encontro se encerra junto com 2023. Mas é aquilo: não confio em ninguém com 32 dentes.

Set list: “Diversão”, “Lugar Nenhum”, “Desordem”, “Tô Cansado”, “Igreja”, “Homem Primata”, Será Que é Isso o Que Eu Necessito?”, “Nem Sempre Se Pode Ser Deus”, “Estado Violência”, “O Pulso”, “Comida”, “Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas”, “Nome Aos Bois”, “Eu Não Sei Fazer Música”, “Cabeça Dinossauro”, “Epitáfio”, “Os Cegos do Castelo”, “Pra Dizer Adeus”, “Toda Cor”, “Não Vou Me Adaptar”, “Família”, “Querem Meu Sangue”, “Go Back”, “É Preciso Saber Viver”, “Domingo”, “Flores”, “32 Dentes”, “O Quê”, “Televisão”, “Porrada”, “Polícia”. “AA UU”e “Bichos Escrotos”. Bis: “Miséria”, “Marvin” e “Sonífera Ilha”.

Books, Movies

A Noite das Bruxas

Terceira aventura do detetive Hercule Poirot chega às telas juntando a verve literária de Agatha Christie à onda atual dos filmes de terror

Texto por Abonico Smith

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Agatha Christie é um dos nomes mais festejados da literatura de ficção e entretenimento de todo o século 20. Sua escrita agradável aliada a intrincados enredos repletos de mortes, mistério e suspense criaram uma legião de adoradores, sobretudo do principal personagem criado pela britânica. Protagonista de dezenas de histórias publicadas por décadas, o detetive Hercule Poirot tornou-se um rei do whodunnit com seu faro implacável para descobrir pistas nos menores e mais escondidos sinais deixados nas cenas dos crimes e amarrar motivos e pessoas envolvidas com perspicácia e inteligência extrema, assombrando não só as pessoas ao redor como também todos os leitores. Nada mais natural, portanto, que meios populares como o cinema e TV absorvessem as tramas para oferecê-las às novas gerações por meio do audiovisual.

Depois de algum sucesso nas telonas durante os anos 1970, o personagem voltou recentemente a ganhar foco em Hollywood, desta vez vivido pelo ator e diretor Kenneth Branagh. Em dobradinha com o roteirista Michael Green, ele recolocou Poirot nas salas de projeção (ou melhor, nos trilhos), em 2017, adaptando o clássico Assassinato no Expresso Oriente. Com elenco estelar e direção de arte (o que inclui cenários e figurinos) de encher os olhos para quem gosta de toda a pompa e beleza do visual vintage. O sucesso de bilheteria logo proporcionou uma segunda produção (outro título bastante popular) também com os mesmos ingredientes. Contudo, a pandemia e polêmicas pessoais em torno de Armie Hammer, um dos atores principais de Morte no Nilo, fizeram o longa ser engavetado e ter sua estreia adiada para o começo de 2022.

Por isso o curto intervalo de tempo para uma terceira obra, que chega aos cinemas de todo o mundo nesta semana. A Noite das Bruxas (A Haunting In Venice, EUA/Reino Unido/Itália, 2023 – Fox/Disney), entretanto, quebra um pouco o esquema dos anteriores para correr maiores riscos. Boa jogada de Green e Branagh, que acertam em cheio, já que a adaptação do crime ocorrido no cruzeiro de luxo que percorre as águas do rio egípcio deu uma bela balançada e quase provocou o naufrágio da continuidade do detetive belga no cinema. Para começar, a diferença já vem na escolha da obra literária dentro da galeria de títulos escritos por Christie. Não só Hallowe’en Party é um romance um tanto quanto desconhecido do grande público como ele também é uma das criações derradeiras dela. O livro saiu em 1969, mais de trinta anos depois de Assassinato no Experesso Oriente e Morte no Nilo. Agatha já estava nos anos finais de sua longeva vida e isso acaba por se refletir na premissa da trama. Outro detalhe é que esta história de Poirot mergulha fundo no terror, mais precisamente em questões ligadas ao sobrenatural – o que vira um grande chamariz de audiência, já que este é o gênero que vem bombando há várias temporadas nas bilheterias mundiais, sempre com grande oferta de títulos pipocando aqui e ali, inclusive produções de países fora do eixo anglo-americano.

Terceiro apontamento: o filme joga o protagonista em nos aposentos lúgubres de um castelo supostamente assombrado na Veneza do pós-guerra, de onde nem ele nem ninguém pode sair por conta da água dos canais e da chuva torrencial que cai a noite inteira. Entre fantasmas, comunicação com os mortos e tentativas bem e mal sucedidas de assassinatos, o protagonista precisa lutar contra seus próprios demônios e manter-se mentalmente são para poder solucionar o que está à sua frente. Ou seja, ele bate o pé no ceticismo mais irretocável para provar que o mundo de lá realmente não existe e o além-vida não passa de uma sequência de farsas e fraudes. Mesmo que tudo pareça, de fato, real.

Hercule, entretanto, não está sozinho nesta empreitada. Aliás, ele nem desejava estar lá no castelo. Ao ter escolhido a charmosa e secular cidade no nordeste italiano para morar enquanto curte a aposentadoria de sua vida como investigador, acaba sendo procurado por uma velha amiga, a autora de livros de suspense e mistério Ariadne Oliver. Interpretado por Tina Fey, este explícito alter-ego de Agatha Christie transformado em um de seus personagens mais famosos, convence Poirot a ajuda-la em mais um caso que pretende utilizar em seus livros: desvendar se uma famosa médium é capaz de conversar mesmo com quem já bateu as botas. Os dois vão a uma sessão promovida pela mãe de uma jovem que teria sido assassinada anos antes, na noite de 31 de outubro. Enquanto isso, a mesma mulher promove no castelo uma festa local e tradicional para as crianças da cidade naquela data.

Michael e Kenneth mexem bastante na história criada por Agatha, a ponto de nem utilizar o nome original do livro (na verdade, o título em português resgata o mesmo utilizado por aqui desde o seu primeiro lançamento). Joyce Reynolds, a tal sensitiva mediúnica, não é uma adolescente de 13 anos de idade e que garante ter presenciado um homicídio. No filme, aliás, ela já tem idade bem avançada e provoca polêmica na opinião pública, sendo inclusive presa por acusações de falsidade ideológica. Michelle Yeoh faz o papel e garante alguns pequenos alívios cômicos da história, sobretudo nos diálogos trocados com o “insensível” e racional detetive.

Diferentemente de Morte no Nilo, aqui o foco é na trama mesmo, não no passado de Hercule Poirot e em dilemas pessoais trazidos por ele lá do passado. Com isso, não só Michael e Kenneth enxugam bastante o tempo de projeção como permitem uma narrativa mais fluida e direta, sem tanta lenga-lenga e demora para engrenar e envolver o espectador no misterioso caso. Tudo bem que em determinadas ocasiões os jump scares apresentados não diferem muito do trivial dos filmes de terror. Entretanto, essa ferramenta não compromete o resultado final nem o envolvimento do espectador. Aliás, a trilha sonora composta pela celista islandesa Hildur Guðnadóttir ajuda a dissociar as imagens do lugar-comum.

O elenco também se mostra mais afiado do que aquele escolhido para o segundo longa. Além de Fey e Yeoh, temos aqui Kelly Reilly (a tal mãe da jovem), Camille Cottin (a empregada da mulher), Jamie Dorman (um médico que sofre com o estresse pós-traumático provocado pelos horrores da Segunda Guerra Mundial), Jude Hill (o filho dele, entrando na puberdade e um adolescente nada convencional), Emma Laird e Ali Khan (os irmãos que querem fazer de Reynolds uma mera escada para poderem fugir aos Estados Unidos e morar lá de vez).

Para um filme que propõe a quem assiste embarcar em uma sessão de quase duas horas de entretenimento de qualidade, com direito a astúcia e inteligência, A Noite das Bruxas deve garantir a sobrevivência de Hercule Poirot nas telas por mais um bom tempo. E não só isso, aliás. James Pritchard, bisneto da escritora britânica, administrador de seu legado e produtor executivo dos longas dirigidos e estrelados por Branagh, dá indícios de que um novo elemento do agathaverso está prestes a ser descortinado. Pode estar vindo por aí a primeira história da  versão feminina de Poirot, a senhora solteirona que brinca de detetive amadora conhecida como Miss Marple.

Music

Foo Fighters + Garbage + Wet Leg – ao vivo

Com duas bandas de abertura de luxo, banda de Dave Grohl faz show arrebatador em Curitiba com o baterista substituto de Taylor Hawkins

Foo Fighters (Dave Grohl e Josh Freeze)

Texto e foto Wet Leg por Abonico Smith

Fotos Foo Fighters e Garbage: Alessandra Tolc (Photolc)

Cobertura realizada em parceria com o site Rock On Board

Bogotá, 25 de março de 2022. A notícia vinda da Colômbia caía como uma bomba entre os espectadores do festival Estéreo Picnic que aguardavam ansiosamente para ver o show do headliner Foo Fighters. Horas antes, no quarto do hotel, o coração do baterista Taylor Hawkins não resistia a mais uma experiência química depois de tantos abusos. A banda, atônita e sem ter o que fazer, cancelava em cima da hora a apresentação no evento e tudo mais que ainda faria na perna sul-americana da turnê. A data subsequente seria no dia seguinte, no Brasil, em outro evento de grande porte, o Lollapalooza.

Curitiba, 7 de setembro de 2023. Para fazer dois concertos no Brasil, o Foo Fighters faz uma pequena pausa na tour norte-americana, que trouxe a banda de volta aos palcos em maio último. Um deles dentro de um festival, o The Town, em São Paulo. Dois dias antes, porém, o sexteto comandado por Dave Grohl pagou aos fãs daqui uma dívida de gratidão ao realizar na capital paranaense o primeiro show em solo brasileiro após a trágica morte de Hawkins e a confirmação de que a carreira da banda seguiria em frente. E o que se viu foi uma intensa troca de emoções. De um lado, uma plateia de cerca de 45 mil pessoas em êxtase, cantando de cabo a rabo todos os versos. Do outro, um frontman aliviado, agradecendo todo o apoio dado depois do baque. “Espero agora que, de alguma maneira, nós ajudemos vocês a sobreviverem, porque vocês nos ajudaram a fazer isso”, disse.

O responsável pela continuação da engrenagem, segundo o vocalista apontou, é o novo membro Josh Freese. “Ele já tocou em trezentas bandas. Vocês podem não reconhecê-lo mas com certeza conhecem algo de algum trabalho que já tenha feito”, disse. Baterista bastante requisitado tanto para estúdios como palcos, ele já tocou e gravou com gente como Nine Inch Nails, Guns N’Roses, Devo, Queens Of The Stone Age, A Perfect Circle, Weezer, Miley Cyrus, Selena Gomez, Katy Perry, Ricky Martin, Avril Lavigne, Danny Elfman e Sting. Comparado por muita gente na pista com o ator Ryan Gosling (astro de filmes como Barbie e La La Land), o “novato” mostrou ter sido mesmo a melhor escolha para a substituição de Hawkins. Destreza, segurança, habilidade, virtuosismo, diálogo com vários gêneros (hardcorehard rockheavy metalpop, reggae, punknew wave, industrial, indie) fazem parte de seu currículo. A única coisa que não dá para fazer mesmo é ocupar o lugar do falecido integrante à frente do palco.

Taylor era responsável por uma parte bem divertida dos shows do Foo Fighters: a hora dos covers variados e inusitados. Com a desenvoltura de rockstar, largava as baquetas para ocupar por duas ou três canções o microfone de Grohl, que, temporariamente, voltava a relembrar seus tempos de bateria no Nirvana. Agora, esses coversviraram apenas citações introdutórias durante a apresentação de cada um dos seis integrantes – pena que nada na íntegra, por Dave não saber a letra. No Couto Pereira, os fãs tiveram um pequeno aperitivo de Beastie Boys (“Sabotage”), NIN (“March Of The Pigs”), Ramones (“Blitzkrieg Bop”), Devo (“Whip It”) e um até então inédito na turnê Led Zeppelin (“Stairway To Heaven”, em um momento-piada sobre o tempo da gig). Ainda deu para acrescentar os enxertos de riffs de Black Sabbath (“Paranoid”), Jethro Tull (”Aqualung”) e Metallica (“Enter The Sandman”) no arranjo para “No Son Of Mine”, porque o vocalista queria “conhecer a plateia”.

show foi extenso, repertório idem. Em 2h45 de apresentação, a banda tocou 23 canções, pinçando faixas de nove dos dez álbuns da discografia. Teve espaço até para surpresas. Na volta para o bis, foi encaixada a recentíssima “The Teacher” (de But Here We Are, disco lançado no último mês de junho). Um pouco antes rolaram o reggae “Shame Shame” (de Medicine At Midnight, de 2021) e a semiconhecida “Generator” (de There’s Nothing Left To Lose, de 1999, quando o FF ainda dava seus primeiros passos como banda). Volta e meia, inclusive, Grohl exaltava a longa trajetória de 28 anos e celebrava a primeira vinda de muitos a um show do sexteto.

Musicalmente uma apresentação de Dave e sua turma é tiro certeiro. Hit atrás de hit praticamente, com a ajuda de coros em uníssono da plateia. Também ajuda a angariar uma ampla gama de fãs distintos toda a variedade de referências sonoras trazidas pelos seis músicos – valem aqui, aliás, os mesmos gêneros descritos mais acima para Josh. Em questão cênica, Grohl também é irrepreensível. Sabe como poucos comandar uma multidão. Segura sem parar, tanto em gestos quanto em palavras, a plateia durante quase três horas. Não existe quem não saia extasiado do local ao acender de todas as luzes. Banda e audiência.

Um encontro com o FF já valeria por toda a noite, ainda mais em se tratando de uma volta por cima de maneira efusiva e perfeita como já era antes da tragédia colombiana do ano passado. Só que a noite do Dia da Independência no estádio do Coritiba ainda teve de brinde duas grandes bandas como entradas para o prato principal.

Wet Leg (Hester Chambers e Rhian Teasdale)

Às seis e meia, já escurecendo, o Wet Leg abriu os trabalhos. Idealizado e comandado pelas vocalistas, guitarristas e BFF Rhian Teasdale e Hester Chambers, o quinteto formado durante a pandemia é a mais deliciosa surpresa do rock guitarreiro deste último par de anos. Suas letras são exemplo da mais bela despretensão literária, celebrando coisas cotidianas como a nota baixa da escola, um pedaço de merda, uma desilusão amorosa, o tédio ou o prazer de se divertir solitariamente em uma festa. Rhian, especialmente, dialoga muito bem com o universo adolescente. Veste roupas esportivas oversized a la Billie Eilish, Enche sua guitarra toda de adesivos brilhantes, coloridos e com motivos de bichinhos. Tenta se comunicar com a plateia falando ao microfone o máximo que sua visível timidez permite. Já tem 30 anos de idade mas achou um ponto de conexão com a molecada mais nova, que compõe boa parte do fanbase do grupo.

Seu homônimo álbum de estreia, lançado no ano passado pelo cultuado selo independente Domino, foi celebrado como um dos grandes títulos britânicos da temporada passada. Entre os prêmios conquistados neste ano estão dois Grammy (música e disco alternativos) e dois Brit Awards (banda e revelação). O show ainda é curto – são apenas dez canções (sendo seis singles celebrados por fãs, imprensa e até mesmo Barack Obama) e quarenta minutos que voam se você estiver dançando e curtindo sem parar. Mas a festa é garantida, a barulheira também. Já dá para prever um longo e excelente caminho para as meninas e seus companheiros. Em Curitiba, o Wet Leg foi bem recebido apesar do desconhecimento total de boa parte da plateia. Conquistou muita gente nova e ouviu os gritos de “what?” de seu hit maior, “Chaise Longue”, ecoando por todo o estádio.

Garbage (Shirley Manson e Butch Vig)

Como segunda atração da noite, às quinze para as oito, um nome de luxo: o Garbage. De carreira tão extensa quanto o FF, o grupo norte-americano é formado por três amigos superprodutores (os guitarristas Duke Erikson e Steve Marker, mais o baterista Butch Vig) e uma vocalista poderosa e carismática (a escocesa mais californiana que existe, Shirley Manson). No Couto Pereira, equilibrou o set list entre clássicos dos dois primeiros álbuns (o homônimo, de 1995, e Version 2.0, de 1998) e algumas faixas do mais recente (No Gods No Masters, de 2021). Ainda apresentou um convidado mais do que  especial: o baixista Eric Avery, também fundador do Jane’s Addiction. Depois de um começo morno, virou o jogo com “Cities In Dust”, cover de Siouxsie & The Banshees puxada para o lado industrial e lançada para o Record Store Day de 2022 como lado B do single de “Witness To Your Love”). Daí vieram os hits nineties “I Think I’m Paranoid”, “Stupid Girl”, “Vow”, “Push It” e “Only Happy When It Rains”. Esta última ganhou nova introdução, com veia bluesy, levada ao piano por Erikson e cantada com muito mais melancolia por Manson.

É pública e notória a química entre Vig, Marker e Erikson, que já produziram muitos discos de qualidade no Smart Studios, pequeno e aconchegante local de gravação situado em Madison, Wiscosin, e de propriedade dos dois primeiros. Garbage, Nirvana, Smashing Pumpkins, L7, Soul Asylum, Tegan & Sara, Sparklehorse, Fall Out Boy, Death Cab For Cutie e Tad, por exemplo, produziram boas faixas e álbuns clássicos ali. Manson soltando o gogó, performando como diva em estiloso vestido vermelho e sendo muito simpática com a plateia é a cereja do bolo. Contudo, alguma coisa incomoda no Garbage quando o assunto é a banda ao vivo. Chama a atenção nos arranjos muito das bases eletrônicas disparadas. Parece que os três músicos (exceção feita justamente ao extra Avery) estão ali apenas para soltar peso, distorção e presença de palco, preenchendo espaços que são bons aos olhos e à comunicação com a plateia mas que em um todo sonoro ficam aquém do esperado para tamanha magnitude deles nos estúdios. Claro que não compromete em nada o resultado final, mas para quem espera um pouco mais de entrega musical ali no cara a cara esta combinação entre o live e o pré-gravado soa como algo entre o preguiçoso e o relaxado.

Set list Foo Fighters: “All My Life”, “The Pretender”, “Learn To Fly”, “No Son Of Mine”, “Rescued”, “Walk”, “Times Like These”, “Under You”, “La Dee Da”, “Breakout”, “My Hero”, “This Is A Call”, “The Sky Is A Neighborhood”, “Shame Shame”, “Nothing At All”, “These Days”, “Generator”, “The Glass”, ”Monkeywrench”, “Aurora” e “Best Of You”.Bis: “The Teacher” e “Everlong”.

Set List Garbage: “Supervixen”, “The Men Who Ruled The World”, “Wolves”, “Cities In Dust”, “I Think I’m Paranoid”, “Godhead”, “Stupid Girl”, “Vow”, “Only Happy When It Rains” e “Push It”.

Set list Wet Leg: “Being In Love”, “Wet Dream”, Supermarket”, “Convincing”, “Oh No”, “Piece Of Shit”, “Ur Mum”, “Too Late Now”, “Angelica” e “Chaise Longue”.

Movies

Oppenheimer

Cinebiografia do “pai da bomba atômica” traz três horas de grandiloquência e desafios autorais com a assinatura de Christopher Nolan

Texto por Abonico Smith

Foto: Universal Pictures/Divulgação

A biografia de Julius Robert Oppenheimer é uma das mais interessantes do último século. Nova-iorquino descendente de uma abastada família de origem germânica e judia, cresceu com os estudos bancados em uma conceituada escola particular chamada Ethical Cultural Society, algo bastante incomum para uma criança naquele início dos 1900. Logo manifestou interesse por áreas diversas, chegando a se formar em Matemática, Ciências e Literaturas Grega e Francesa. 

Apreciador também das artes, seu  negócio mesmo era estudar. Com afinco e muita dedicação. Terminou em 1925 a faculdade de Química em Harvard e logo se mudou para o Reino Unido. Como seu negócio não era ficar manuseando os equipamentos de um laboratório, partiu, na sequência, para fazer doutorado em Física na Alemanha. Pelo menos ali, o ambiente era de sua preferência: estar em contato com físicos renomados e mergulhar de cabeça nas mais trabalhadas e complicadas questões teóricas da área. Enquanto investigava processos em partículas subatômicas, já como professor de física repatriado aos Estados  Unidos, começou a se envolver em assuntos políticos que o preocupavam: a ascensão do fascismo na Europa, em especial o nazismo na terra natal de seu pai. Passou, inclusive, a financiar organizações contra a extrema-direita após herdar a fortuna da família e flertou brevemente com o partido comunista, o qual abandonou também após se decepcionar com o desdém da ditadura stalinista em relação à ciência. Até que, advertido por Albert Einstein e Leo Szilard sobre a ameaça de Hitler ter em mãos o pioneirismo de ter uma bomba atômica, passou a pesquisar como ter o urânio 235 a partir do mineral natural e foi contratado pelo governo norte-americano, em 1942, para chefiar o Projeto Manhattan e comandar uma equipe de cientistas para obter, em um megalaboratório secreto, a energia nuclear a fim de ser incluída em operações militares. Era contra o uso de toda e qualquer arma química como instrumento de guerra, inclusive chamava a indústria armamentista de trabalho demoníaco. Após o sucesso do grande teste realizado em 1945 no deserto de Los Alamos, no Novo México, demitiu-se da direção do projeto. Semanas depois, viu o mundo se aterrorizar com os dois cogumelos que dizimaram as regiões das cidades de Hiroshima e Nagasaki, escolhidas para serem o alvo de uma nação japonesa que ainda não havia se rendido na Segunda Guerra Mundial. Oppie – como era carinhosamente chamado – não só entrou para a História (contra a sua vontade e interesse) como “o pai da bomba atômica” como ainda caiu em desgraça em seu país, através de mentiras e manipulações políticas movidas pelo conservadorismo maccarthista que o levaram a julgamentos e destruíram sua reputação pública e a trajetória profissional.

Uma figura tão controversa e famosa só poderia ter sua biopic com a assinatura de outro nome do cinema com credenciais iguais: o diretor, roteirista e produtor Christopher Nolan. Eis que Oppenheimer (Reino Unido/EUA, 2023 – Universal Pictures) chega às telas com toda a grandiloquência possível. Primeiro, é uma biografia de três horas de duração, feita com tecnologia para ser exibida em telas IMAX (inclusive com a primazia de exibir, estilosamente, várias cenas em preto e branco). Depois, a data escolhida para o lançamento: em pleno verão lá de cima, período reservado para as estreias de blockbusters populares (como,por exemplo, Barbie, com quem luta pelas bilheterias neste fim de semana de estreia). Tem também o elenco recheadíssimo de estrelas: Cillian Murphy (o protagonista, em magistral atuação), Emily Blunt (a esposa), Florence Pugh (a amante), Robert Downey Jr (o antagonista), Kenneth Branagh, Matt Damon, Gary Oldman, Josh Hartnett, Matthew Modine, Benny Safdie, Rami Malek, Casey Affleck, Olivia Thrilby, Jason Clarke, James D’Arcy e outros mais em pontas ou papéis secundários.

Claro que a cinematografia de Hoyte van Hoytema (parceiro de Nolan em vários outros filmes) é um luxo só. Não só em toda a sequência que culmina no momento de maior dramaticidade, o teste bem sucedido da megaexplosão em Los Alamos. Os muitos closes em Oppie e mais a fusão entre os delírios, os pensamentos e a realidade vivida por ele também reforçam a tensão que sempre o rondou por vários anos (o antes e o depois da “fama”). O desenho de som também impressiona – e ainda prega uma grande peça na hora H da tal explosão. Outro bom trunfo do longa é todo o  vai-vem da narrativa criada pelo próprio Nolan, que adianta e antecede no tempo o tempo todo, desorientando o espectador quanto a causas e consequências durante a trajetória do cientista.

Aliás, as três horas de duração também se tornam um grande truque imposto pelo cineasta ardiloso para o público. Uma sucessão de personagens aparecem e desaparecem da tela, muitos dados e conceitos teóricos (que vão de física e química a política e ética) embaralham a mente. Torna-se um grande desafio ficar imerso na poltrona do cinema por todo este tempo, ainda mais se a pessoa não tem muito conhecimento prévio da Segunda Guerra Mundial ou mesmo paciência para uma trama mais reflexiva e sem muitos efeitos visuais criados por CGI (o que é bem comum nos blockbusters apresentados em Imax e algo ausente em uma obra do diretor). Não será comum ver gente saindo do cinema reclamando que muito deste tempo poderia um pouco reduzido. Por isso mesmo, Barbie larga com amplo favoritismo na somatória das bilheterias do mundo todo.

Desta forma, Nolan continua sendo Nolan com toda pompa possível. Oferece mais um filme difícil, perfeccionista e impactante. E mais: ao recontar a história de Oppenheimer, brinca de mergulhar no passado para mexer com as entrelinhas do presente. Não será muito difícil fazer conexões mentais com fatos e pessoas do nosso tempo recente. 

Series, TV

Treta

Série provoca riso e choro com protagonistas conflituosos que só pensam em um dar ao outro um “troco” cada vez mais mirabolante

Texto por Tais Zago

Foto: Netflix/Divulgação

Até onde um pequeno desentendimento no trânsito pode chegar quando as duas pessoas envolvidas estão profundamente infelizes e insatisfeitas? Essa é a questão central de Treta (Beef, EUA – Netflix). Não, apesar do nome original, a série – iniciada agora em 2023 – não tem nada a ver com culinária ou alguma paixão carnívora. Nos Estados Unidos, a palavra para a carne bovina também serve como gíria para um desentendimento, um ressentimento ou, mais precisamente, uma “treta” entre pessoas. E esse “bife”, aqui, não é para amadores.

Lee Sung Jin é o criador e o roteirista dessa tragicomédia entre dois personagens completamente diferentes. Amy (Ali Wong) é uma bem sucedida empreendedora. Ela tem dinheiro, um marido considerado “perfeito”, uma filha e todo o luxo californiano na classe artística aos seus pés. Já Danny (Steven Yeun) é um empreiteiro endividado e fracassado, lutando para sobreviver e sustentar o irmão mais novo, enquanto sonha em comprar uma casa para seus pais. Em um cenário comum, os dois nunca coexistiriam. Apesar de ambos terem origem asiática, nada mais parece conectá-los. Até que um desentendimento no estacionamento de um shopping center – Amy buzina incessantemente enquanto Danny se recusa a sair da vaga – culmina em uma absurda perseguição pelas ruas de Los Angeles, quando ambos infringem diversas leis de trânsito e colocam pessoas em risco. Logo o acontecido cai nas redes sociais e assim se inicia uma procura dos dois por “investigadores amadores” de bairro da localidade de Calabasas.  

A comediante e stand up Ali Wong nos entrega uma Amy profundamente frustrada e em conflito com suas verdadeiras vontades e a realidade da vida que ela construiu para si mesma. Se tudo é tão perfeito, por que ela ainda se sente infeliz? Esta é a questão que já nos acompanha a partir do primeiro episódio e continua até o último. Já Steven Yeun, mais conhecido do grande público por sua atuação como o Glenn de The Walking Dead, interpreta um Danny repleto de medos e insatisfações, apesar da sempre aparente autoconfiança, ele é castigado pelos seus sentimentos de fracasso e uma depressão que esconde de todos. Em cima da base criada pelos dois, cada episódio se torna uma montanha-russa de paybacks, onde cada decepção diária dos personagens consigo mesmos os leva a montar planos cada vez mais maquiavélicos e mirabolantes um contra o outro. Na vida de Amy e Danny, o foco principal se torna o beef, a treta, a qual nenhum deles parece realmente querer resolver ou perdoar.

Apesar da sinopse nos levar a crer que Treta seria mais uma comédia de slapsticks e vinganças malsucedidas, Lee Sung Jin consegue incluir uma miríade de conflitos internos, traumas e experiências que enriquecem seus personagens de tal forma, que, lá pelo meio, já conseguimos nos compadecer com a imagem horrível, mas real e crua, que Amy e Danny tem deles mesmos. É a queda da máscara construída com muito esforço. Os sonhos despedaçados deixando apenas o desespero e o ódio como substitutos da tristeza. A série possui diálogos e situações hilárias, daquelas de rirmos até chorar. Mas também nos arrasta a um abismo onde choramos sem rir. O toque reflexivo chega até a nos lembrar um pouco as divagações filosóficas do vitorioso do último Oscar, Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo. Uma tendência que parece permear muitas das obras da produtora indie A24, assim como uma forte queda para representações de um psicodelismo surrealista.

Será que não existe um pouquinho de Danny e Amy dentro de todos nós? Eu acho que sim. Ao menos quando invariavelmente descontamos nossas frustrações em discussões acaloradas, porém absurdas e sem utilidade prática, em redes sociais ou em situações mundanas do dia a dia. Nesse quesito, Treta vai além das telas e nos traz questionamentos válidos que podem nos conduzir a uma jornada de autoconhecimento.