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As Marvels

Nova obra do Universo Cinematográfico Marvel é minimamente divertida mesmo ficando aquém dos velhos tempos dos longas da casa

Texto por Andrizy Bento

Foto: Marvel/Disney/Divulgação

O trigésimo terceiro filme do Universo Cinematográfico Marvel (MCU) não é ruim como Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania. Mas também não é bom como Guardiões da Galáxia Vol. 3. E está há anos-luz de um Capitão América: Guerra CivilAs Marvels (The Marvels, EUA, 2023 – Marvel/Disney)  é bobo, esquecível, dispensável como muitos dos tie-in da Marvel nos cinemas que emulam as revistas da editora. Abraça a galhofa descaradamente e propõe cenas voluntária e propositalmente ridículas. Nem a Marvel mais está se levando a sério após tantas críticas à saturação pelo excesso e à perda de qualidade tanto narrativa quanto visual. O filme ri de si mesmo e isso até pode ser encarado como um ponto positivo. Porém, não o faz organicamente. O faz tentando ser cool.

No longa dirigido por Nia DaCosta, um mal entendido ocasionado pela presença de Carol Denvers (Brie Larson) põe fim ao tratado de paz entre as raças alienígenas kree skrull. Conforme visto no filme anterior da heroína, Capitã Marvel (2019), as duas raças são inimigas de longa data, mas estabeleceram um acordo de paz – que não demora a ser quebrado. Conhecida pelos kree como a Aniquiladora, Denvers foi a responsável por destruir a Inteligência Suprema, uma inteligência artificial que governava a nação fictícia de Hala, terra natal dos kree, tornando o planeta infértil, desprovido de recursos como água, oxigênio e luz solar. A nova líder deles, Dar-Benn (Zawe Ashton), consegue recuperar um poderoso artefato denominado Bracelete Quântico. No entanto, nota a ausência de seu par, não fazendo ideia de que o outro bracelete encontra-se em posse da adolescente Kamala Khan (Iman Vellani), um presente da avó da heroína introduzida na minissérie Ms. Marvel, da Disney+. Dar-Benn combina o tal bracelete com outro artefato, um cajado chamado de Arma Universal e que ela utiliza para destruir um ponto de salto no espaço.

O ex-diretor da S.H.I.E.L.D., Nick Fury (Samuel L. Jackson), agora no comando da estação espacial da S.A.B.E.R. (organização criada especialmente para os filmes do MCU, com o objetivo de proteger a Terra de ameaças internas e integrada por humanos e raças alienígenas, como os Skrull) alerta Carol Danvers e a astronauta e soldado, Monica Rambeau (Teyonah Parris), da S.W.O.R.D (organização governamental que lida com ameaças extraterrestres, esta sim introduzida nos quadrinhos da Marvel), para investigar a origem da anomalia causada por Dar-Benn. Quando Monica toca na anomalia do ponto de salto próxima à estação da S.A.B.E.R, ela, Danvers e Kamala trocam de lugar por meio de uma rede neural de transporte. Demora um pouco até que elas se deem conta de que as trocas ocorrem sempre que elas acionam seus superpoderes. As três precisam resolver conflitos internos e se unirem a fim de deter Dar-Benn que pretende drenar a atmosfera e os recursos de outros mundos a fim de suprir as necessidades e restabelecer Hala.

Um dos pontos que mais incomoda nesta produção da Marvel Studios é o fato de cobrar demais do espectador. Para compreender a trama de As Marvels em sua totalidade, é necessário ter visto não apenas o filme anterior da Capitã Marvel como as séries Ms. Marvel e WandaVision. O longa foge do conceito que Henry Jenkins propôs em seu seminal Cultura da Convergência, livro no qual dissertava sobre narrativa transmídia e como uma mesma história poderia se desenrolar em diferentes produtos, sem necessidade de redundâncias, mas também sem a obrigatoriedade do leitor/espectador consumir efetivamente todos os produtos ramificados para compreender inteiramente a narrativa. Assim, mesmo que um filme fosse continuação de outro ou desse origem a spin-offs em formato de séries, quadrinhos ou jogos de videogame, cada produto deveria funcionar independentemente, fazendo alusões aos seus predecessores ou aos seus derivados, mas dando poder para o público que irá consumir a história escolher em qual ou quais formatos quer consumi-la.

Não é o que ocorre no caso de As Marvels. Não dá para simplesmente assistir ao filme sem ter acompanhado filmes e séries que vieram antes, pois o roteiro pouco se preocupa em situar o espectador quanto às mitologias de cada personagem. De minha perspectiva, eu entendi a função de Monica Rambeau mas fiquei perdida no que diz respeito a Kamala, pois não vi absolutamente nada a respeito da série estrelada pela heroína teen na Disney+. Portanto, é necessário adentrar a sala de projeção já conhecendo de antemão as produções que introduziram as personagens que estrelam este filme. De que modo? Assinando o serviço de streaming da Disney. Um dos famosos ardis do capitalismo e capitaneado por um conglomerado que está monopolizando a indústria do entretenimento… Fica difícil assim.

A primeira troca de lugar por teletransporte entre as heroínas é divertida e propõe cenas de ação até interessantes porém nada surpreendentes. Os cortes das lutas deixam evidente o quão mal coreografadas são e dependem de muito trabalho de montagem para soarem legais ou minimamente decentes na tela. Houve um downgrade nas produções da Marvel também no departamento de efeitos visuais, pois o CGI traz uma impressão de design de videogame pouco sofisticado. A vilã é, mais uma vez, o maior ponto fraco dos filmes. Como grande parte dos vilões do MCU, eles não são desenvolvidos para além de uma aventura, caindo no ostracismo logo após o fim da projeção. 

Há toda uma sequência musical que ecoa uma vibe Disney e parece descontextualizada no longa, envolvendo um casamento arranjado entre Carol Denvers e o príncipe Yan (Park Seo-joon) de Aladna. E outra sequência em que inúmeros gatos, aliás, espécimes da raça alienígena Flerken que assumem forma de gato, engolem humanos e skrulls a torto e a direito. A intenção de ambas é se destacarem como passagens comicamente absurdas do enredo, mas são puramente anódinas. O pai de Kamala (Mohan Kapur), a bordo da estação espacial de S.A.B.E.R., explicando a um dos aliens com aparência humana (Abraham Popoola) acerca de previdência privada e direitos trabalhistas não toma nem um minuto de tela e consegue ser uma cena mais engraçada do que as citadas.

Falando em boas cenas (e elas são poucas no conjunto), uma das primeiras estreladas por Kamala no longa, é uma sequência animada que alude aos quadrinhos da Marvel e é adorável exatamente por evocar o espírito e a leveza do material de origem da personagem. Outra grata surpresa é a cena pós-créditos que revela Kelsey Grammer, intérprete do mutante Fera em X-Men: O Confronto Final (2006) e X-Men: Dias de um Futuro Esquecido (2014), reprisando o papel – só que, ao invés da maquiagem questionável de outrora, trazendo um CGI questionável. Mas a gente releva pelo fato de o ator estar com quase 70 anos e, como mencionado, a make dos longas dos X-Men já não eram uma obra-prima. Além disso, a trilha sonora utilizada aproveita os temas de X-Men 2 (2003) e de Dias de um Futuro Esquecido, o que é suficiente para aplacar qualquer insatisfação.

A cena imediatamente anterior aos créditos mostra Kamala recrutando heroínas para um time mais jovem de Vingadores, o que remete à primeiríssima cena pós-créditos do MCU, em Homem de Ferro (2008), na qual Nick Fury apresentava a Tony Stark (Robert Downey Jr.) a Iniciativa Vingadores. A passagem deixa nítido o propósito desta fase da Marvel nos cinemas. E as reações durante a sessão também. Enquanto os adultos presentes pareciam entediados e sequer arriscavam um sorriso sem graça diante das tentativas de humor malsucedidas do longa, as crianças pareceram se divertir. De fato, As Marvels aponta para um público mais infantil. Nem posso dizer que, mercadologicamente, não seja uma decisão acertada – a de crescer com seu público. Contudo, para os mais velhos, fica um gosto amargo ao se comparar exemplares como Quantumania e As Marvels aos filmes mais antigos da casa, como o próprio Homem de Ferro. Também há de se reconhecer que os as décadas de 1980, 1990 e mesmo o início dos anos 2000 eram pródigos em lançamentos de longas destinados a um público infantil de qualidade imensamente superior a este As Marvels, tanto em termos narrativos quanto visuais.

De qualquer forma, o longa funciona como uma sessão da tarde descompromissada que você provavelmente assistiria pela TV em uma tarde chuvosa e por falta de opções mais interessantes. Talvez, assim, corresse o risco de achar minimamente divertido.

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Pedágio

Segundo longa da diretora e roteirista Carolina Markowicz junta a influência do Cinema Novo a outra atuação magistral de Maeve Jinkings

Texto por Abonico Smith

Foto: Paris Filmes/Divulgação

A palavra pedágio vem do latim medieval “pedaticum”, que significa “o direito de pisar em um determinado lugar”. Para exercer esse direito, desde lá atrás precisava ser paga uma quantia e valia para pessoas, animais e mercadorias. Hoje se utiliza mais em relação ao transporte terrestre, sendo a taxa cobrada pelo poder público ou uma empresa concessionária outorgada, para que os investimentos feitos na construção ou na conservação da via possam ser ressarcidos.

Suellen (Maeve Jinkins) acorda todo dia muito cedo e sai de casa antes mesmo do dia clarear. Ela trabalha em uma cabine de pedágio em uma rodovia que passa por Cubatão, cidade da região metropolitana da baixada santista. Todo santo dia sua função é cobrar cada carro que para ali pela cancela, quase sempre trocando dinheiro grosso e muitas vezes ouvindo cantadas sem graça de homens ao volante. Recebe uma mixaria de salário, mora mal e divide a casa com seu filho de quase 18 anos de idade. Quem também passa muito tempo por lá, só para comer e dormir, é o namorado Arauto (Thomas Aquino). O marasmo de sua vida combinado com um bofe aproveitador a tiracolo não a incomodam. Suellen não aceita mesmo é a sexualidade do adolescente, exposta pelo próprio através de vídeos de dublagem gravados toscamente no próprio quarto postados na internet. Enquanto vai levando a vida tolerando Tiquinho (Kauan Alvarenga), Suellen cai no papo de sua amiga de trabalho, a evangélica neopentecostal Telma (Aline Marta Maia), para pagar um curso de cura gay que será ministrado em seu templo por um “pastor que vem da Europa”. Só que o valor é alto e não cabe dentro do orçamento mensal. A não ser que, como é bem comum no Brasil, haja um jeitinho…

É exatamente neste ponto que Pedágio (Brasil, 2023 – Paris Filmes), o segundo longa assinado pela cineasta paulista Carolina Markowicz revela a sua temática principal. Ao contrário do que vem sendo falado por aí e divulgado até na sinopse oficial do filme, esta não é uma obra que finca seus pés na questão de como é ser LGBTQIA+ no Brasil e sentir na pele as dores que vêm do preconceito e discriminação sofridos no dia a dia. Sim, o assunto é importante e norteia a trama paralela do filho da protagonista, inclusive na convivência entre os dois. Só que esta é, acima de tudo, uma obra sobre escolhas. De objetivos de vida, de crenças e de percurso para o futuro. Tiquinho já fez a sua escolha. É firme e determinado dela, sabe bem o que quer e, do alto de sua quase maioridade penal, luta incansavelmente por ela – o que faz de Kauan, outrora incensado nos trabalhos anteriores em curtas, uma grande promessa da dramaturgia nacional. Arauto também tem a dele: ser um bon vivant no meio da malandragem, sem precisar se esforçar em trabalhos convencionais, perder um churrasco com amigos no meio da semana de tarde ou mesmo enrolar a companheira para conseguir benefícios na casa de Suellen. Telma também possui: dubla ser uma pacata e boa esposa de anos e anos para o marido e segue indo aos cultos.

Talentosa diretora e roteirista que é, Carolina coloca em cima da protagonista o foco principal desta questão das opções realizadas em atitudes que podem vir a mudar um futuro próximo. Nem é muito o fato de Suellen se jogar de cabeça nas novas decisões, mas o fato delas serem motivadas por outras pessoas. As escolhas não advêm de sua personalidade. Ela é sumariamente convencida pelo namorado ou por sua amiga para fazer coisas que, segundo eles, irão satisfazer as suas vontades/necessidades e melhorar logo a vida, sem pensar muito nas consequências que podem ser provocadas. Nessas horas, seu filho, que é quem mais lhe dá suporte dias após dia, é o que menos importa e este é o pedágio que lhe cabe pagar. Tudo isso, claro, embalado por mais uma magistral atuação de Maeve, que vem traçando tanto no cinema quanto no streaming uma carreira de intérprete que já a credencia para entrar no rol das maiores atrizes brasileiras deste século 21.

Rodado em dois meses na cidade de Cubatão – famosa por suas fábricas que despejam sem parar uma poluição que acaba contrastando com a beleza da natureza local – este novo filme de Markowicz reforça a sua tendência pela crueza das imagens. Locações reais, looks cotidianos, histórias com muita verossimilhança em diálogos, ações e construções de personagens.  Tem os dois pés ali no terreno do neorrealismo italiano como grande influência na sétima arte desde os tempos do Cinema Novo. Toca, comove, emociona, justamente por saber transformar em um breve momento de entretenimento questões socioculturais, principalmente relacionadas à classe trabalhadora, com altas doses de humanidade. Quase impossível não sair do cinema sem pensar em muito daquilo que a cineasta conta na história.

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Jeanne Dielman

Slow cinema de Chantal Akerman perturba ao retratar a rotina de três dias de uma mãe solo em um bairro modesto de Bruxelas

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Divulgação

No final de 2022, a tradicional lista de melhores filmes da História da revista britânica Sight & Sound foi publicada e carregou consigo uma surpresa: pela primeira vez, um filme dirigido por uma mulher foi considerado o melhor de todos. É Jeanne Dielman (Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles, Bélgica/França, 1975), da cineasta Chantal Akerman, que foi exibido nas telas do 12° festival Olhar de Cinema, em Curitiba, neste mês de junho.

Essa é uma obra disruptiva na história do cinema. Com seu olhar feminista, a belga Akerman traz à tela o trabalho doméstico não pago e toda a pressão psicológica que o acompanha ao retratar três dias na vida de Jeanne (Delphine Seyrig), sua protagonista. Assistimos a ela descascando batatas, lavando a louça, se vestindo e despindo, preparando as refeições para si mesma e o filho, Sylvain (Jan Decorte), e por aí vai. A rotina agonizantemente dedicada ao outro de uma mãe solo num bairro modesto de Bruxelas.

slow cinema de Chantal, estética que privilegia a ação sem cortes, a câmera parada e a reflexão sobre a passagem do tempo, não faz do filme uma experiência vazia. Muito pelo contrário. Cada plano tem um propósito, cada detalhe se torna gritante quando encarado por vários minutos em uma tela de cinema. Há um motivo para cada gesto da interpretação de Seyrig, que se mescla à parede do quarto, faz-se sumir em seu pijama. Há uma razão para a ausência de contrastes nos cômodos desta casa, sempre preenchida por uma luz chapada que deve ser apagada sempre que se caminha do banheiro à sala, à cozinha, ao quarto. 

Ao sentir o tempo despendido por Jeanne, embarcamos em um estado de reflexão constante sobre sua condição consigo mesma, com aqueles com que se relaciona e com o mundo patriarcal da Europa setentista. Neste sentido, um olhar particularmente brasileiro percebe como a arte desse período e local discutia temáticas que tardaram muito a serem introduzidos por aqui.

Ainda assim, o longa-metragem ganha fôlego na história do cinema em sua qualidade universal. O retrato da mulher de baixa renda, com o filho encostado, presa a rituais e rotinas das quais não deseja fazer parte, toca a todos – ou pelo menos deveria. Vê-lo não é uma experiência tranquila e este empacamento é absolutamente essencial à compreensão da obra. Se não aguentamos nem três horas da vida de Jeanne Dielman, uma mulher entre várias a estar presa neste papel, quem dirá uma vida inteira? Chantal Akerman cria um exercício provocativo de alteridade, olhar e reconhecer a diferença, e por isso causa tamanho incômodo.

A maioria do público que esteve na sessão que acompanhei no Olhar de Cinema, em um domingo à tarde em Curitiba, era masculina e cisgênera. É uma declaração indissociável da recepção do filme, que explica a hesitação nas palmas e os comentários de “esperava outra coisa” que rondavam o público. Se este é o caso aqui, não é preciso muito esforço para perceber o tamanho do choque causado pela estreia da obra no festival de Cannes em 1975.

Na esteira da criação de Akerman e Seyrig, que também foi uma cineasta engajadíssima no feminismo na sétima arte, toda uma nova tradição formal, temática e de voz pode ser percebida. A quem interessa o estudo do Cinema, é uma obra indispensável. A quem interessa a reflexão crítica sobre o modo de vida e trabalho que nossa sociedade leva, é uma obra indispensável. Muitos podem não gostar, mas não vejo quem não poderia se beneficiar da experiência de acompanhar, por meros três dias, a vida de Jeanne Dielman. 

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Lollapalooza Brasil 2023 – ao vivo

Billie Eilish, Modest Mouse, Jane’s Addiction, Paralamas, Aurora, Baco Exu do Blues, Tove Lo e Cigarettes After Sex: shows que marcaram o festival

Billie EIlish

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução

Entre os dias 24 e 26 de março foi realizada a décima edição brasileira do festival Lollapalooza, a última em parceria da produtora T4F com a americana LLC, detentora da marca do evento. Depois de cinco recentes cancelamentos de concertos programados para este ano, todo mundo foi surpreendido com a não vinda ao Brasil do headliner da última noite, o canadense Drake, horas antes dos portões do Autódromo de Interlagos serem abertos. A desculpa oficial do artista, esfarrapada, não colou: a de que estariam faltando pessoas de sua equipe no país. Entretanto, ele foi visto na madrugada anterior festando em Miami em conjunto com o rapper 50 Cent. E mais: estas pessoas de sua equipe já estavam em SP instalando no autódromo os telões e o material de seu espetáculo. Mas como é sempre melhor falar de coisas boas, deve também ser registrado um marco desta edição: pela primeira vez o line-up estava dividido quase igualitariamente entre artistas dos dois gêneros.

O Mondo Bacana comenta um pouco dos oito shows que deixarão esta edição do Lolla na história dos grandes festivais de música pop do Brasil.

Billie Eilish

Única headliner originalmente anunciada a se apresentar em Interlagos (além de Drake, o Blink 182 também não veio para cá), ela já era aguardada havia algum tempo por aqui. Afinal, este seria seu primeiro concerto no país, já que o anterior fora cancelado por causa da pandemia. Em cima daquele palco enorme, tendo a companhia apenas de seu inseparável irmão e produtor Phinneas e um baterista, ela – com o verde e amarelo predominando no figurino grande e largo sobre a malha preta que lhe escondia o corpo – entregou o que prometia: uma boa coleção de letras intimistas a respeito de observações, sensações e sentimentos de uma garota vivendo os anos finais de sua adolescência. Intimista também foi sua performance: sem muitos pulos, correrias ou coreografias ensaiadas, era quase apenas ela cantando ao microfone. Quer dizer, cantando às vezes. Billie só cantava o necessário e muitas vezes sua voz ecoava pelo autódromo junto com os instrumentos também pré-gravados. O que deixava o show redondo, sem espaço para improvisos ou erros. Só que teve momentos em que os manos abriam mão do playback e se arriscavam em momentos semiacústicos para mostrarem que não são uma fraude ao vivo: foram cerca de meia dúzia de canções com Phinneas dedilhando o violão ou o piano para a irmãzinha soltar o gogó de alcance não muito grande.

Modest Mouse

Quem foi a genial pessoa responsável pela grade de shows que conseguiu jogar o grupo para uma tarde de sexta-feira? Modest Mouse – um dos ícones do indie rock americano dos anos 2000 – não é para a GenZ, é para gente mais velha. Melhor: para quase todo mundo que não tem a) grana disponível de salário ou frilas para pagar o caro ingresso do festival; b) saco ou corpo para aguentar ficar um dia sequer em uma maratona de shows; c) horário disponível para ir assistir a uma banda tocar às quatro da tarde de sexta-feira. Sob um sol escaldante, o vocalista Isaac Brock estava vermelho feito um camarão, à frente de seu quinteto que foge da musicalidade óbvia e mistura lo-fi, folk e psicodelismo em doses nada comerciais. O resultado foi uma banda competentíssima tocando para quase ninguém, sendo a maior parte disso gente que desconhecia por completo o repertório loteado entre sua boa discografia. Hits como “Float On” e  “Dashboard” ficaram desperdiçados  naquela escala gigantesca ao ar livre. De qualquer maneira, quem viu in loco ou pelo streaming foi abençoado pela tardia estreia do Modest Mouse em solo brasileiro. Antes tarde do que muito mais tarde. Antes de tarde durante a semana do que nunca.

Jane’s Addiction

Perry Farrell idealizou o Lollapalooza em 1991 como um festival ambulante, que pudesse rodar algumas grandes cidades norte-americanas com uma escalação de excelentes bandas alternativas como suporte para a turnê de despedida de sua banda. Deu tão certo que o Jane’s Addiction se separou mas o Lolla continou trilhando seu caminho de sucesso durante os meados dos anos 1990. Perry, então, quase sempre vem prestigiar a edição brasileira. Agora trouxe a tiracolo a reformada banda que o revelou para o mundo da música. Integrantes originais… ou quase, já que o guitarrista Dave Navarro (que saiu do JA para tocar no Red Hot Chili Peppers) continua afastado dos palcos para tratar da saúde (covid longa como justificativa oficial, rehab longa como rumor alimentado entre os fãs do grupo). De qualquer forma, seu substituto, o também ex-guitarrista do RHCP Josh Klinghoffer, mostrou ser uma escolha acertada. Enquanto o baterista Stephen Perkins e o baixista Eric Avery (que também costuma ser músico de apoio do Garbage) se entendem perfeitamente em uma cozinha rítmica hipnótica e dançante, Josh jorrava os efeitos de pedais que fazem a sonoridade da banda flutuar entre o hard rock, o psicodelismo e o groove. Para completar, uma trinca de dançarinas comandada pela atual mulher de Farrell faziam pole dances sensuais ao fundo do palco, dando um approach cênico diferente às canções. Em Interlagos, o set list foi reduzido por conta do tempo destinado ao show, socado no meio da programação da tarde do segundo dia. De qualquer forma, ficou bem dividido entre os dois primeiros e incensados discos da banda, concebidos entre 1988 e 1990, antes das brigas internas que levaram à implosão precoce da carreira. De qualquer forma, reunidos já nas casas dos 50 e 60 anos de idade, os músicos mostraram por aqui que estão como vinho: quanto mais velhos, melhor. Maturidade e experiência – e um longo hiato interrompido por outras duas reuniões e discos criados em 2003 e 2011 – fizeram bem. Em um sábado fraco de opções, o Jane’s Addiction chegou quietinho e fez uma puta (e despretensiosa) apresentação. Ainda terminou com uma batucada em homenagem ao amigo Taylor Hawkins, que morria havia exatamente naquela data, no ano anterior… horas antes do show do Foo Fighters na Colômbia e de viajar para tocar no Lollapalooza brasileiro.

Paralamas do Sucesso

Ter 40 anos de carreira fonográfica não é para qualquer um. Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone sabem disso e utilizam um arsenal de clássicos colecionados em sua extensa discografia para disparar um show magnífico. É hit atrás de hit  quase sem intervalo para respirar. Foi assim neste Lollapalloza, na tarde de sol de um domingo para uma maioria de plateia formada por GenZ e millennials. O repertório começou com canções mais representativas da faceta ska (“Vital e Sua Moto”, “Patrulha Noturna”, “Ska”, “Loirinha Bombril”) e passeou por toda a galeria das duas primeiras décadas de carreira, misturando reggaedubafrobeat, rock, citações (Tim Maia, Titãs, Raul Seixas) e muita injeção rítmica contínua para não deixar ninguém totalmente parado – pelo menos um dos pezinhos não teve como resistir. Herbert começou enfrentando problemas técnicos, contornados sabiamente com conversas fora do microfone com um roadie enquanto não parava de cantar as letras para a plateia. Tirando este pequeno detalhe, que não chegou a comprometer a apresentação aliás, os Paralamas mostraram toda a sua realeza na música pop nacional. Não precisa de firulas, telões, coreografias, trocas de roupa, andar para lá e para cá no palco ou ao redor dele. Só precisa de música. E muito boa música. Referências para se criar música de qualidade eles sempre tiveram também. São uma banda pós-punk brasilis roots (a sonoridade two-tone em verde e amarelo, inclusive com versos politizados e críticos transformados para a nossa realidade!) e isso ainda faz toda a diferença. Mesmo diante de uma molecada que não chegou a viver os tempos dos vinis e CDs lançados com essas músicas.

Aurora

É só começar a ouvir a sua extensão vocal de soprano que não tem como não embarcar junto nesta fantasia musical que é seu show. Ela mesma parece uma pequena e adorável duende, sempre a saltitar feliz e travessa pelos vastos campos verdes. Seu look também ajuda: vestes claras e em tonalidades pasteis, pés descalços, pele alva e um cabelinho curto e de um chanel tão branco quanto sua melanina norueguesa. Muita gente que estava ali na plateia sabia de cor e salteado as letras, cantava junto e se emocionava por estar na frente de Aurora Asknes. Pudera. A artista faz da voz um belo poder instrumental, além de ser hábil nas palavras para demonstrar seus mais profundos sentimentos acerca da vida e da natureza. Mas também não precisa ser expert na obra dela para se render ao poder desta guria escandinava, solta, espontânea, natural e sem qualquer maquiagem, capaz de provocar um midsommar tão contagiante aqui no hemisfério sul e em pleno cair da tarde de um domingo quente brasileiro.

Baco Exu do Blues

Ele entrou na grade do Lolla como uma rápida solução caseira para suprir o cancelamento quase em cima da hora de Willow, filha do astro Will Smith. E ainda entregou uma das mais emocionantes performances em língua brasileira deste Lollapalooza. Generoso, o baiano de quatro discos lançados nos últimos seis anos fez questão de não brilhar sozinho. No telão, prestou reverência a personalidades negras já falecidas como Marielle Franco, Elza Soares, Muhammad Ali, 2Pac Shakur e Nelson Mandela. E no meio do repertório montado com alguns de seus grandes sucessos ainda cedeu espaço lá na frente para cada uma de suas backings (Aísha, Alma Thomas e Mirella Costa) dividirem as atenções, o microfone e o gogó poderoso. Mirella, por sua vez, protagonizou uma emocionante homenagem à também soteropolitana Gal Costa, ao mandar, a capella, um trecho de “Força Estranha”. Mancando e dando passos lentos, Baco fez o que pode, cenicamente, para superar o estiramento na panturrilha sofrido poucos dias antes. E ainda mandou a letra para espinafrar o grande ausente da noite, Drake, sendo complementado por xingamentos dirigidos pelo público ao astro chiliquento canadense. Mostrou, como Kevin Parker (Tame Impala) na noite anterior, que nem sérias limitações físicas para a locomoção não podem servir como desculpa para não cantar aos fãs.

Tove Lo e Pabllo Vittar

Tove Lo

Outra atração nórdica dominical, a sueca mostrou que um show de música pop pode muito bem ser construído em cima de… música pop. Nada pode tirar o primeiro plano. Pelo contrário. Figurinos podem ser um bom complemento (no caso, uma roupa colante em tons verdes que lhe permitiu fazer o manjado gesto de mostrar os seios à plateia). Coreografias também. Mas um palco deve ser povoado por musicistas tocando seus instrumentos, cantora realmente cantando e dispensando playbacks descarados e a ausência de um time de bailarinos indo para lá e para cá, chamando mais a atenção dos olhos do que os ouvidos. Tove Lo é muito mais discípula de Madonna do que muita gente pode pensar. Ela canta, dança, brinca com a sexualidade diante de uma multidão e mostra ser uma artista de força suficiente para ter um longo futuro pela frente. E olha que ela já tem cinco álbuns feitos de 2014 para cá.

Cigarettes After Sex

Todo ilusionista sabe muito bem que o segredo do sucesso de sua performance está na habilidade de deslocar a atenção do público para um local diferente daquele onde realmente “acontece” o truque. A derradeira das três noites do Lolla, de fato, foi equivalente a um show de ilusionismo. Todo mundo esperando o headliner Drake e depois todo mundo desapontado e xingando o arredio Drake por nem ter viajado ao Brasil. Muita gente comentando o fato de que o DJ e produtor de IDM Skrillex havia sido escalado de improviso para ocupar o horário e o palco anteriormente destinado ao fujão. Muita gente indo embora ao cair da noite, já desesperançoso de que ali em Interlagos acontecesse mais alguma coisa estupenda no autódromo. Espertos, porém, foram aqueles que não arredaram o pé e ficaram no local (ou sintonizados no streaming) até as nove da noite, de olhos bem atentos a um dos palcos secundários. Ali, já aos 45 minutos do segundo tempo do festival, os acréscimos permitiram uma magnífica performance de um singelo trio norte-americano que, por meio da internet, tornou-se objeto de culto nos últimos anos por um pessoal mais antenado. O Cigarettes After Sex veio para impactar com todo o seu minimalismo. Cênico, com seus integrantes tocando quase sempre parados no palco, dispostos geometricamente lado a lado. Sonoro, com somente um vocal (de seu líder e criador Greg Gonzalez) e a mínima movimentação possível de baixo, guitarra e bateria. Havia uma textura de teclados pré-gravados disparada como pano de fundo para a maioria das canções. Mas isso só reforçou a atmosfera etérea e hipnótica do concerto. Fotógrafos não foram permitidos no pit à frente do palco. Quem ficou em casa assistiu a uma transmissão noir, que impôs a ausência de captação de qualquer cor pelas câmeras que não fossem o preto e o branco. Com ares de cabaré decadente, algo tipicamente David Lynch, o CAS fechou as cortinas da décima edição premiando poucos felizardos com algo meio difícil de acontecer em um grande festival. Truque de mestre.