A vida e o ativismo de corpo e alma do organizador de um dos mais famosos protestos contra a segregação nos EUA dos anos 1960
Texto por Tais Zago
Foto: Netflix/Divulgação
Bayard Rustin não veio ao mundo para brincadeira. É possível que se alguém procurar num dicionário estadunidense o significado da palavra ativista provavelmente iria encontrar uma foto sua já de cara. Ou talvez não. Rustin gostava de atuar no background, mobilizando, organizando, angariando fundos e produzindo protestos que deram palco para outros personagens da luta do povo negro norte-americano brilharem, entre eles o reverendo Martin Luther King. King ainda era um bom amigo pessoal do furacão Bayard.
Rustin nasceu em 1912, na Pennsylvania, sob a pecha do filho ilegítimo. Foi criado pela avó Julia, que era da religião quaker mas frequentava, por causa do marido, uma igreja metodista episcopal africana. Julia também era um membro ativo da NAACP (National Association for the Advancement of Colored People), organização fundada em 1909 com o objetivo de avançar a busca pela igualdade racial e social para os afro-americanos. Podemos assim dizer que Rustin já fora politizado quase que no “berço” e seguiu, a partir de seus anos de universitário, uma carreira extremamente engajada na causa dos direitos humanos e das minorias raciais segregadas nos EUA. Bayard também era abertamente homossexual, o que, na época, o colocava ainda mais na mira do escrutínio público e da violência do Estado –a homossexualidade era considerada crime nos EUA até os anos 1960.
Mesmo com tantas adversidades, Rustin escolheu o caminho do pacifismo. Sua mobilização era calcada em protestos pacíficos, em diálogo e em esclarecimento. Isso mesmo em uma época em que os brancos norte-americanos pareciam apenas entender a linguagem da violência e do ódio irracional.
O diretor George C. Wolfe escolheu apresentar em Rustin (EUA, 2023 – Netflix), como recorte da vida desse grande personagem, os acontecimentos em torno da organização da famosa marcha em Washington DC em 28 de agosto de 1963. O evento mobilizou um total de 250 mil participantes, vindos de todos os cantos dos Estados Unidos para protestar contra a discriminação racial e mostrar apoio e exercer pressão sobre o governo de Kennedy e congresso para que a nova legislação dos direitos civis fosse finalmente votada e aprovada. Bayard tinha pouco mais de dois meses para fazer toda a organização do evento e viabilizar o protesto, que teria seu ponto alto em um dos discursos mais históricos de Martin Luther King.
De antemão, portanto, já se sabe que o ritmo será acelerado. Com jazz como pano de fundo as cenas e os cortes são rápidos e os diálogos, pontuais. Isso dá ao filme uma dinâmica própria que é carregada com louvor pelo maravilhoso Colman Domingo (que também participou do elenco do novo A Cor Púrpura) no papel de Bayard Rustin. O roteiro de Julian Breece e Dustin Lance Black alterna cenas da vida pessoal do portagonista, seus amores e seus amigos, e da corrida maluca contra o tempo para realizar a marcha. Domingo ofusca os outros personagens com sua atuação magnifica e nos faz querer levantar e militar pelas coisas que acreditamos. O ator conseguiu transpor para as telas a figura inspiradora de Rustin e sua grande capacidade de mobilização e de realização em uma época em que tudo o que a elite branca queria era dificultar manifestações por igualdade. Uma tarefa hercúlea em uma sociedade anacrônica.
Rustin nos contagia com sua energia e empolgação, mas também nos oferece uma janela para o mundo pessoal e os sacrifícios de quem busca grandes objetivos. Apesar de considerado protocolar por parte da critica, o filme se faz necessário e é um importante documento histórico homenageando um personagem de valor e destaque. Não é à toa que a produção saiu da casa de produções audiovisuais Higher Ground, do casal presidencial Barack e Michelle Obama. Disponível no canal de streaming Netflix, Rustin também abocanhou uma indicação a melhor ator do Oscar 2024. Como muita gente, fiquei de dedos cruzados por Colman Domingo naquela noite.
Misteriosa criatura que literalmente cai do céu transforma o dia a dia de um idoso rabugento em tocante drama de premissa sci-fi
Texto: Abonico Smith
Foto: Synapse/Divulgação
Na língua inglesa, o termo stranger designa tanto “estranha/o”ou “estrangeira/o”. Pode ser algo ou alguém que chega de outro lugar ou mesmo da própria região mas que não seja codificável de alguma forma para a gente. E é justamente esta ambiguidade de significados que faz esta palavra ser a grande norteadora de um filme como Nosso Amigo Extraordinário (Jules, EUA, 2023 – Synapse), que estreou nesta quinta-feira nos cinemas brasileiros.
Primeiro conhecemos Milton Robinson (Ben Kingsley), que representa o estranho. Aos 78 anos, ele vive sozinho em uma pequena cidade do oeste do estado da Pensilvânia. Viúvo, ele não fala com o filho por causa de divergências parentais do passado. A filha Denise, veterinária, é o seu único elo familiar, embora as conversas sejam poucas, praticamente por telefone e à base de algumas turras. A idade avançada ainda dá indícios de que desenvolve sinais de Alzheimer, como uma constante apresentação de repetições e esquecimentos. Sua vida consiste basicamente em ficar em casa assistindo a alguns programas de televisão e se reunir periodicamente com outros moradores da região em uma assembleia pública para sugestão de ideias que possam vir a causar algum tipo de benfeitoria para o município. Contudo, ninguém parece levá-lo muito a sério, sobretudo quando abre a boca para dizer alguma coisa.
O cotidiano de Milton começa a ganhar um novo sentido quando em uma noite, de uma hora para a outra, desaba um OVNI no quintal de sua casa e uma criatura alienígena se vê presa e perdida na Terra, sem poder fazer muito para voltar logo para casa. De aparência humanoide, cor cinzenta e temperamento pacífico e amigável, ela não emite qualquer som. Apenas se comunica com Robinson por meio de olhares expressivos e poucas movimentações corporais. Também não existe nela indicação de gênero sexual. Por isso, o batismo de Jules – dado por uma amiga de Milton que acaba descobrindo a/o “hóspede secreto” – lhe cai bem. Afinal, este nome de origem francesa é neutro, serve tanto para o masculino quanto o feminino.
Jules comanda uma revolução na vida do aposentado. Aos poucos, sua rabugice, em muito provocada pelo sentimento de solidão, transforma-se em amizade. Quem também experimenta a mesma sensação são duas amigas de mesma faixa etária (porém de pensamentos, progressista e conservador, completamente em oposição uma da outra).Elas não só descobrem o grande segredo do protagonista como também passam a dividir confidências de vida e nutrir amor pela criatura que literalmente caiu do céu. O ser alienígena passa a atuar como uma espécie de psiquiatra: dá ouvidos para as confissões e lembranças dos terráqueos e, assim, faz com que eles se sintam melhor ao passar a limpo tudo o que sentem com as pessoas e as coisas ao redor deles. Tudo porque agora já possuem uma companhia para conversar e que lhes dê a devida atenção.
Mais conhecido em Hollywood por outra função nos bastidores de Hollywood, a de produtor (no seu currículo estão longas como Pequena Miss Sunshine, Uma Vida Iluminada e o recente Um Lindo Dia na Vizinhança), o diretor Marc Turtletaub esbarra na tangente da ficção científica para conceber um bom drama sobre o comportamento humano. O roteiro dá umas capengadas, ainda mais na fase em que o governo americano, que procura esconder dos cidadãos a existência do disco-voador visto no céu da cidade, manda os policias locais investigarem (e depois invadirem) a casa de Milton. A trilha sonora assinada pelo alemão Volker Bertelmann, vencedor do último oscar da categoria por Nada de Novo no Front, também exagera nas pontuações do stacatto em demasia para demonstrar toda a tensão vivia pelos quatro personagens principais do ato final.
Uma coisa, porém, é inegável: a grande atuação de Jade Quon como Jules. Debaixo de uma caprichada maquiagem de rosto e corpo (que levava horas e horas para acabar e precisou ser feita trinta vezes no total durante as filmagens), a atriz, de traços e ascendência asiática, um metro e meio de altura e que também é mais conhecida em Hollywood por outra função, a de dublê, se mostra soberba nos olhares e nos gestos econômicos, sutis. Somando-se à experiência e ao talento de Kingsley, provoca uma bela química na tela e mostra que nem sempre o uso de CGI é tão necessário assim para um filme de premissa sci-fi.
Nosso Amigo Extraordinário é obra pequena no orçamento e nas pretensões, mas grande no resultado e nas emoções despertadas em quem a assiste. Pena que o título em português soe tão deslocado (e óbvio demais) ao perder a ambiguidade e o mistério do nome original. Certas vezes, para o bem desta obra, torna-se recomendável manter os trunfos de um idioma estrangeiro e achar estranho que o público brasileiro possa vir a entender.
Billie Eilish, Modest Mouse, Jane’s Addiction, Paralamas, Aurora, Baco Exu do Blues, Tove Lo e Cigarettes After Sex: shows que marcaram o festival
Billie EIlish
Texto por Abonico Smith
Fotos: Reprodução
Entre os dias 24 e 26 de março foi realizada a décima edição brasileira do festival Lollapalooza, a última em parceria da produtora T4F com a americana LLC, detentora da marca do evento. Depois de cinco recentes cancelamentos de concertos programados para este ano, todo mundo foi surpreendido com a não vinda ao Brasil do headliner da última noite, o canadense Drake, horas antes dos portões do Autódromo de Interlagos serem abertos. A desculpa oficial do artista, esfarrapada, não colou: a de que estariam faltando pessoas de sua equipe no país. Entretanto, ele foi visto na madrugada anterior festando em Miami em conjunto com o rapper 50 Cent. E mais: estas pessoas de sua equipe já estavam em SP instalando no autódromo os telões e o material de seu espetáculo. Mas como é sempre melhor falar de coisas boas, deve também ser registrado um marco desta edição: pela primeira vez o line-up estava dividido quase igualitariamente entre artistas dos dois gêneros.
O Mondo Bacana comenta um pouco dos oito shows que deixarão esta edição do Lolla na história dos grandes festivais de música pop do Brasil.
Billie Eilish
Única headliner originalmente anunciada a se apresentar em Interlagos (além de Drake, o Blink 182 também não veio para cá), ela já era aguardada havia algum tempo por aqui. Afinal, este seria seu primeiro concerto no país, já que o anterior fora cancelado por causa da pandemia. Em cima daquele palco enorme, tendo a companhia apenas de seu inseparável irmão e produtor Phinneas e um baterista, ela – com o verde e amarelo predominando no figurino grande e largo sobre a malha preta que lhe escondia o corpo – entregou o que prometia: uma boa coleção de letras intimistas a respeito de observações, sensações e sentimentos de uma garota vivendo os anos finais de sua adolescência. Intimista também foi sua performance: sem muitos pulos, correrias ou coreografias ensaiadas, era quase apenas ela cantando ao microfone. Quer dizer, cantando às vezes. Billie só cantava o necessário e muitas vezes sua voz ecoava pelo autódromo junto com os instrumentos também pré-gravados. O que deixava o show redondo, sem espaço para improvisos ou erros. Só que teve momentos em que os manos abriam mão do playback e se arriscavam em momentos semiacústicos para mostrarem que não são uma fraude ao vivo: foram cerca de meia dúzia de canções com Phinneas dedilhando o violão ou o piano para a irmãzinha soltar o gogó de alcance não muito grande.
Modest Mouse
Quem foi a genial pessoa responsável pela grade de shows que conseguiu jogar o grupo para uma tarde de sexta-feira? Modest Mouse – um dos ícones do indie rock americano dos anos 2000 – não é para a GenZ, é para gente mais velha. Melhor: para quase todo mundo que não tem a) grana disponível de salário ou frilas para pagar o caro ingresso do festival; b) saco ou corpo para aguentar ficar um dia sequer em uma maratona de shows; c) horário disponível para ir assistir a uma banda tocar às quatro da tarde de sexta-feira. Sob um sol escaldante, o vocalista Isaac Brock estava vermelho feito um camarão, à frente de seu quinteto que foge da musicalidade óbvia e mistura lo-fi, folk e psicodelismo em doses nada comerciais. O resultado foi uma banda competentíssima tocando para quase ninguém, sendo a maior parte disso gente que desconhecia por completo o repertório loteado entre sua boa discografia. Hits como “Float On” e “Dashboard” ficaram desperdiçados naquela escala gigantesca ao ar livre. De qualquer maneira, quem viu in loco ou pelo streaming foi abençoado pela tardia estreia do Modest Mouse em solo brasileiro. Antes tarde do que muito mais tarde. Antes de tarde durante a semana do que nunca.
Jane’s Addiction
Perry Farrell idealizou o Lollapalooza em 1991 como um festival ambulante, que pudesse rodar algumas grandes cidades norte-americanas com uma escalação de excelentes bandas alternativas como suporte para a turnê de despedida de sua banda. Deu tão certo que o Jane’s Addiction se separou mas o Lolla continou trilhando seu caminho de sucesso durante os meados dos anos 1990. Perry, então, quase sempre vem prestigiar a edição brasileira. Agora trouxe a tiracolo a reformada banda que o revelou para o mundo da música. Integrantes originais… ou quase, já que o guitarrista Dave Navarro (que saiu do JA para tocar no Red Hot Chili Peppers) continua afastado dos palcos para tratar da saúde (covid longa como justificativa oficial, rehab longa como rumor alimentado entre os fãs do grupo). De qualquer forma, seu substituto, o também ex-guitarrista do RHCP Josh Klinghoffer, mostrou ser uma escolha acertada. Enquanto o baterista Stephen Perkins e o baixista Eric Avery (que também costuma ser músico de apoio do Garbage) se entendem perfeitamente em uma cozinha rítmica hipnótica e dançante, Josh jorrava os efeitos de pedais que fazem a sonoridade da banda flutuar entre o hard rock, o psicodelismo e o groove. Para completar, uma trinca de dançarinas comandada pela atual mulher de Farrell faziam pole dances sensuais ao fundo do palco, dando um approach cênico diferente às canções. Em Interlagos, o set list foi reduzido por conta do tempo destinado ao show, socado no meio da programação da tarde do segundo dia. De qualquer forma, ficou bem dividido entre os dois primeiros e incensados discos da banda, concebidos entre 1988 e 1990, antes das brigas internas que levaram à implosão precoce da carreira. De qualquer forma, reunidos já nas casas dos 50 e 60 anos de idade, os músicos mostraram por aqui que estão como vinho: quanto mais velhos, melhor. Maturidade e experiência – e um longo hiato interrompido por outras duas reuniões e discos criados em 2003 e 2011 – fizeram bem. Em um sábado fraco de opções, o Jane’s Addiction chegou quietinho e fez uma puta (e despretensiosa) apresentação. Ainda terminou com uma batucada em homenagem ao amigo Taylor Hawkins, que morria havia exatamente naquela data, no ano anterior… horas antes do show do Foo Fighters na Colômbia e de viajar para tocar no Lollapalooza brasileiro.
Paralamas do Sucesso
Ter 40 anos de carreira fonográfica não é para qualquer um. Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone sabem disso e utilizam um arsenal de clássicoscolecionados em sua extensa discografia para disparar um show magnífico. É hit atrás de hit quase sem intervalo para respirar. Foi assim neste Lollapalloza, na tarde de sol de um domingo para uma maioria de plateia formada por GenZ e millennials. O repertório começou com canções mais representativas da faceta ska (“Vital e Sua Moto”, “Patrulha Noturna”, “Ska”, “Loirinha Bombril”) e passeou por toda a galeria das duas primeiras décadas de carreira, misturando reggae, dub, afrobeat, rock, citações (Tim Maia, Titãs, Raul Seixas) e muita injeção rítmica contínua para não deixar ninguém totalmente parado – pelo menos um dos pezinhos não teve como resistir. Herbert começou enfrentando problemas técnicos, contornados sabiamente com conversas fora do microfone com um roadie enquanto não parava de cantar as letras para a plateia. Tirando este pequeno detalhe, que não chegou a comprometer a apresentação aliás, os Paralamas mostraram toda a sua realeza na música pop nacional. Não precisa de firulas, telões, coreografias, trocas de roupa, andar para lá e para cá no palco ou ao redor dele. Só precisa de música. E muito boa música. Referências para se criar música de qualidade eles sempre tiveram também. São uma banda pós-punk brasilis roots (a sonoridade two-tone em verde e amarelo, inclusive com versos politizados e críticos transformados para a nossa realidade!) e isso ainda faz toda a diferença. Mesmo diante de uma molecada que não chegou a viver os tempos dos vinis e CDs lançados com essas músicas.
Aurora
É só começar a ouvir a sua extensão vocal de soprano que não tem como não embarcar junto nesta fantasia musical que é seu show. Ela mesma parece uma pequena e adorável duende, sempre a saltitar feliz e travessa pelos vastos campos verdes. Seu look também ajuda: vestes claras e em tonalidades pasteis, pés descalços, pele alva e um cabelinho curto e de um chanel tão branco quanto sua melanina norueguesa. Muita gente que estava ali na plateia sabia de cor e salteado as letras, cantava junto e se emocionava por estar na frente de Aurora Asknes. Pudera. A artista faz da voz um belo poder instrumental, além de ser hábil nas palavras para demonstrar seus mais profundos sentimentos acerca da vida e da natureza. Mas também não precisa ser expert na obra dela para se render ao poder desta guria escandinava, solta, espontânea, natural e sem qualquer maquiagem, capaz de provocar um midsommar tão contagiante aqui no hemisfério sul e em pleno cair da tarde de um domingo quente brasileiro.
Baco Exu do Blues
Ele entrou na grade do Lolla como uma rápida solução caseira para suprir o cancelamento quase em cima da hora de Willow, filha do astro Will Smith. E ainda entregou uma das mais emocionantes performances em língua brasileira deste Lollapalooza. Generoso, o baiano de quatro discos lançados nos últimos seis anos fez questão de não brilhar sozinho. No telão, prestou reverência a personalidades negras já falecidas como Marielle Franco, Elza Soares, Muhammad Ali, 2Pac Shakur e Nelson Mandela. E no meio do repertório montado com alguns de seus grandes sucessos ainda cedeu espaço lá na frente para cada uma de suas backings (Aísha, Alma Thomas e Mirella Costa) dividirem as atenções, o microfone e o gogó poderoso. Mirella, por sua vez, protagonizou uma emocionante homenagem à também soteropolitana Gal Costa, ao mandar, a capella, um trecho de “Força Estranha”. Mancando e dando passos lentos, Baco fez o que pode, cenicamente, para superar o estiramento na panturrilha sofrido poucos dias antes. E ainda mandou a letra para espinafrar o grande ausente da noite, Drake, sendo complementado por xingamentos dirigidos pelo público ao astro chiliquento canadense. Mostrou, como Kevin Parker (Tame Impala) na noite anterior, que nem sérias limitações físicas para a locomoção não podem servir como desculpa para não cantar aos fãs.
Tove Lo e Pabllo Vittar
Tove Lo
Outra atração nórdica dominical, a sueca mostrou que um show de música pop pode muito bem ser construído em cima de… música pop. Nada pode tirar o primeiro plano. Pelo contrário. Figurinos podem ser um bom complemento (no caso, uma roupa colante em tons verdes que lhe permitiu fazer o manjado gesto de mostrar os seios à plateia). Coreografias também. Mas um palco deve ser povoado por musicistas tocando seus instrumentos, cantora realmente cantando e dispensando playbacks descarados e a ausência de um time de bailarinos indo para lá e para cá, chamando mais a atenção dos olhos do que os ouvidos. Tove Lo é muito mais discípula de Madonna do que muita gente pode pensar. Ela canta, dança, brinca com a sexualidade diante de uma multidão e mostra ser uma artista de força suficiente para ter um longo futuro pela frente. E olha que ela já tem cinco álbuns feitos de 2014 para cá.
Cigarettes After Sex
Todo ilusionista sabe muito bem que o segredo do sucesso de sua performance está na habilidade de deslocar a atenção do público para um local diferente daquele onde realmente “acontece” o truque. A derradeira das três noites do Lolla, de fato, foi equivalente a um show de ilusionismo. Todo mundo esperando o headliner Drake e depois todo mundo desapontado e xingando o arredio Drake por nem ter viajado ao Brasil. Muita gente comentando o fato de que o DJ e produtor de IDM Skrillex havia sido escalado de improviso para ocupar o horário e o palco anteriormente destinado ao fujão. Muita gente indo embora ao cair da noite, já desesperançoso de que ali em Interlagos acontecesse mais alguma coisa estupenda no autódromo. Espertos, porém, foram aqueles que não arredaram o pé e ficaram no local (ou sintonizados no streaming) até as nove da noite, de olhos bem atentos a um dos palcos secundários. Ali, já aos 45 minutos do segundo tempo do festival, os acréscimos permitiram uma magnífica performance de um singelo trio norte-americano que, por meio da internet, tornou-se objeto de culto nos últimos anos por um pessoal mais antenado. O Cigarettes After Sex veio para impactar com todo o seu minimalismo. Cênico, com seus integrantes tocando quase sempre parados no palco, dispostos geometricamente lado a lado. Sonoro, com somente um vocal (de seu líder e criador Greg Gonzalez) e a mínima movimentação possível de baixo, guitarra e bateria. Havia uma textura de teclados pré-gravados disparada como pano de fundo para a maioria das canções. Mas isso só reforçou a atmosfera etérea e hipnótica do concerto. Fotógrafos não foram permitidos no pit à frente do palco. Quem ficou em casa assistiu a uma transmissão noir, que impôs a ausência de captação de qualquer cor pelas câmeras que não fossem o preto e o branco. Com ares de cabaré decadente, algo tipicamente David Lynch, o CAS fechou as cortinas da décima edição premiando poucos felizardos com algo meio difícil de acontecer em um grande festival. Truque de mestre.
Reencarnação da banda de Wayne Hussey mostra em Curitiba como se pode lidar com maestria com o envelhecimento no mundo do rock
Mission
Texto por Abonico Smith
Fotos: iaskara
Saber envelhecer dentro do rock’n’roll é uma arte. Afinal, este é um universo que cobra alto o preço do passar dos anos. A voz muda, o corpo muda, os pensamentos mudam, as vontades mudam, o jeito de ser muda. Fica praticamente impossível querer reeditar algum tempo de glória que ficou reservado lá atrás, às lembranças do passado. Fã que é fã, entretanto, vai querer sempre reviver algo através da memória afetiva disparada por letras, melodias e riffs. Se não for por streaming ou disco, certamente quer aproveitar a chance de estar frente a frente com o artista para ouvir as mesmas músicas que volta e meia entram em seus ouvidos. Muitos estão ali querendo um elo vicioso com uma pessoa ou conjunto de pessoas que quase sempre não existem mais. O que chega a ser duro para muita gente: o de presenciar um arista veterano já bem diferente daquele que toca seu coração. Por isso é necessário sempre se reinventar do lado de cima do palco e, por outro lado, saber aceitar a evolução natural das coisas.
Com o Mission, este diálogo entre banda e plateia se mostrou algo bem fluido e resolvido na última noite de 26 de outubro. O quarteto britânico esteve em Curitiba, na Ópera de Arame, em uma de suas paradas de sua recente turnê de seis datas pelo Brasil. Como o vocalista e guitarrista Wayne Hussey mora há muito tempo no país, ele deu uma privilegiada à terra de sua esposa durante a nova ressurreição da banda que o consagrou durante a segunda metade dos anos 1980. De quebra, trouxe consigo duas importantes peças daquela formação clássica: o baixista e cofundador Craig Adams e o guitarrista Simon Hinkler. Portanto, 75% daquele Mission que a maior parte dos fãs conheceu e passou a admirar.
Só que é impossível parar os ponteiros do relógio e 1986, o ano do lançamento do primeiro álbum, vai ficando cada vez mais para trás no calendário. Os cabelos brancos aparecem (para os escudeiros Adams e Hinkler, a solução foi raspar toda a careca), o peso vai aumentando e aquele gás todo da juventude se dissipa. Tampouco não há mais como ficar sustentando os personagens mezzo hippiesmezzo góticos de outrora, de cabelos compridos e cheios de lenços, maquiagem, bijuterias e figurino vistoso. O grupo não está muito mais cênico, também na performance de palco. Também, já tendo ultrapassado a casa dos 60 anos, não tem mais como se comportar como aquele eterno moleque tipo Peter Pan.
O Mission hoje é muito mais focado na música e tão somente na música. É subir ao palco, pegar os instrumentos e tocar. Sem muita variação, o que confere ao repertório uma veia muito mais punk por conta da crueza impressa aos arranjos, mesmo ainda ornamentados pelos dedilhados e tessituras psicodélicas traçadas pelos dedos de Hinkler. Wayne, por exemplo, empunha sua famosa guitarra de doze cordas do início do fim, o que dá aquela encorpada nas harmonias. Craig, dono de incríveis linhas de baixo, segura com maestria os backings, mesmo na hora dos timbres mais agudos, como os do miolo de “Severina”. E o novo baterista, da metade da idade do resto, senta a mão nas baquetas, conferindo mais peso e pungência a clássicos como “Wasteland”, “Deliverance” e “Like a Child Again”.
Pena que não deu para conferir como ficou a versão 2022 de “Tower Of Strength”. O hit, no disco carregado daquela percussão enevoada de tons zeppelinianos, foi o protagonista do momento “vergonha alheia da noite”. Programado para encerrar o set list, a música foi cortada abruptamente quando a plateia curitibana, louca para ir embora do local porque já havia passado da meia-noite e todos ali corriam o risco de virar abóbora, debandou-se em massa quando o primeiro bis se encerrou ao som de “The Crystal Ocean”. Não adiantou nada dar a deixa de manter as luzes apagadas, esperando a banda tomar uns goles de água na coxia para entregar a canção derradeira.
O Mission de 2022 também não parece nada preocupar em só se alimentar apenas do passado distante. Claro que o grosso do repertório vem de seus primeiros álbuns, mas também há espaço para pérolas não muito conhecidas por quem não é fã hardcore, gravadas em discos mais recentes. “Met-Amor-Phosis”, “Within The Deepest Darkness (Fearful) e “Grotesque” representam bem a verve autoral de Hussey pós-fama, todas elas exemplares de que poderiam ter feito bem mais sucesso caso tivessem sido compostas no tempo em que os videoclipes ainda impulsionavam e muito a popularidade de uma canção. Por outro lado, o grupo também não se prende somente a peças mais conhecidas. Para equilibrar ainda mais o repertório, aparecem raridades como “Naked and Savage” e a cover de “Like a Hurricane” (hora em que o vocalista dá um pseudoesporro nos fãs por estes não saberem cantar a letra do clássico de Neil Young).
Hussey, que cerca de década e meia atrás já havia passado por Curitiba para se apresentar sozinho no palco e cantando uma série de músicas de outros autores das quais sempre gostou, voltou a abrir a gavetinha de seu lado intérprete neste show da Ópera de Arame. No meio de “Swoon”, meteu um trecho de “Heroes”, de David Bowie. Já “Wasteland” foi bastante estendida graças à inserção de “Light My Fire”, dos Doors, e “Marian”, do Sisters Of Mercy. Detalhe (e também uma private joke): o autor desta música não é só Andrew Eldritch; ela é uma parceria com o próprio Hussey, que junto com Craig Adams fora integrante das “irmãs da misericórdia” até a gravação do álbum de estreia (First and Last and Always, de 1985).
Michael Aston’s Gene Loves Jezebel
Se o Mission fez uma apresentação sóbria e cativante do início ao fim, infelizmente, o mesmo não pode ser dito da banda de abertura, a parte norte-americana que usa o nome de Gene Loves Jezebel e está sob a liderança o cofundador Michael Aston (explicando: desde que os irmãos gêmeos Michael e Jay Aston brigaram feio, existem dois GLJ em ação pelo mundo e gravando discos). Primeiro porque o vocalista era uma piada no palco. No melhor e no pior sentido. No melhor: com o bom humor sempre nos píncaros, ele não se furta a fazer palhaçadas, se jogar no chão, rastejar, fingir-se de morto, ir brindar junto ao público, fazer caretas. Diversão garantida. Só que também, muito provavelmente por conta de uma conta alta de abusos, estava completamente sem voz em Curitiba, muitas vezes jogando refrão pra galera e fazendo os fãs do gargarejo suprirem a falta de gogó. Também contou contra justamente a falta de performance junto à banda. Pareciam dois segmentos distintos e desconectados, cada um fazendo o seu e juntando somente no casamento entre base instrumental e melodia.
Também foi desfavorável o fato do set list contar somente com dois hits poderosos (“Desire” e “The Motion of Love”) e estes justamente serem programados para encerrar o show na sequência. Para muita gente ali que desconhecia o todo da carreira do GLJ, ter que aturar nove músicas pode ter sido um porre para ser recompensado em dose dupla lá no final. Afinal, convenhamos: olhando para um espectro maior daquela segunda geração do pós-punk britânico, a que tirou o subgênero do meio alternativo e galgou as paradas ali pelos meados dos anos 1980, a banda nem foi tão grande e popular assim. Ok, tinha uma turma de 40+ colada na grade que sabia cantar cada verso ao lado de Michael e até lhe ofereceu uma insólita bandeira do País de Gales assim que ele se dirigiu ao microfone (sinal de que sabem da história do cara!), mas era uma empolgadíssima minoria.
Se o Mission demonstraria logo depois ter sabido envelhecer bem, esta encarnação do GLJ esbarrou no contrário e não passou de uma mera caricatura de si próprio num passado de quatro décadas. Aliás, caricatura borrada. No look inclusive. Daquele Michael com olhos pintados e o cabelo espetado, bagunçado e cheio daqueles anos 1980 sobrou apenas uma criatura que estava mais para irmão gêmeo (embora seja dois anos mais velho) do Robert Smith, do Cure. Triste.
Set list Mission: “Beyond The Pale”, “Hands Across The Ocean”, “Into The Blue”, “Met-Amor-Phosis”, “Naked and Savage”, “Swoon”, “Severina”, “Like a Child Again”, “Grotesque”, “Butterfly On a Wheel”, “Wasteland”, “Within The Deepest Darkness (Fearful)” e “Deliverance”. Bis: “Like a Hurricane” e “The Crystal Ocean”.
Set list Gene Loves Jezebel: “Heartache”, “Always a Flame”, “Downhill Both Ways”, “Cow”, “Beyond Doubt”, “Suspiction”, “Bruises”, “Twenty Killer Hurts”, “Gorgeous”, “Desire” e “The Motion Of Love”.
Novo filme fala sobre o luto pelo protagonista mas peca ao se estender em personagens demais e tramas paralelas subdesenvolvidas
Texto por Andrizy Bento
Foto: Marvel/Disney/Divulgação
“Só as pessoas mais feridas podem ser grandes líderes”
Sequência do grande sucesso de público e crítica Pantera Negra, de 2018, este Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (Black Panther: Wakanda Forever, EUA, 2022 – Marvel/Disney) deveria ser um um filme sobre Shuri, uma produção que se dedicasse a mostrar o crescimento da personagem interpretada pela atriz Letitia Wright, que se obriga a amadurecer após inúmeras perdas. Toda a tragédia em seu entorno daria consistência à jornada da heroína e seria enredo suficiente para um longa, tendo como mola-mestra o luto pela morte do irmão, o rei T’challa (Chadwick Boseman). Uma base lúgubre, triste, mas funcional e eficiente para situar a heroína no panteão de super-heróis que é o MCU (Universo Cinematográfico da Marvel). Porém, é Hollywood e Wakanda Para Sempre faz parte de uma safra de produtos que ultrapassou o nicho ao qual era destinada no passado. Não apenas os fãs de quadrinhos de super-heróis consomem esses filmes hoje em dia. Já há um tempo eles abrangem o público em geral.
Portanto, é necessário fanservice para agradar aos marvetes, introduzindo tudo o que for possível da mitologia dos quadrinhos; contextualizar esse fanservice para atingir os espectadores que não conhecem a base original; e, considerando que a Marvel Studios optou por não escalar um substituto para Boseman (falecido em 2020, vítima de um câncer de cólon) seja por carinho ao saudoso ator ou por preferir não despertar a fúria dos ardorosos fãs, em uma demonstração solene de respeito, compor uma obra cuja essência é o luto pelo rei T’Challa e um tributo a Boseman. Toda a história de sucessão protagonizada por Shuri tem esse sabor agridoce de despedida ao intérprete de Pantera Negra, além de ser intercalada por diversas tramas paralelas. O resultado é um longa sem unidade, que aponta para vários lados. É difícil dar coesão a todos os núcleos narrativos. O diretor Ryan Coogler não parece se esforçar muito para alcançar tal objetivo, contentando-se com épicas cenas de ação e profusas sequências de pesar pela perda de T’Challa. É grandioso na embalagem, porém razoável no conteúdo.
O que fez Pantera Negra se destacar dentre os longas da franquia MCU nos cinemas, levando-o até mesmo a concorrer ao Oscar de melhor filme, era o equilíbrio do conjunto. Coogler apostou em uma lenda fascinante, com cenas de ação certeiras e uma crítica ao imperialismo americano. Em sua essência, a produção de 2018 era feliz e bem-sucedida ao construir nas telas uma mitologia convincente, envolvendo cerimônias ritualísticas e fortes representações culturais que fundamentam Wakanda sem dispensar as boas e velhas lutas coreografadas, explosões e perseguições que fazem a festa dos fãs de blockbusters e ainda trazia uma base política sólida ao discutir racismo e colonialismo. Wakanda Para Sempre apresenta todos esses elementos, mas de maneira desorganizada e totalmente over.
A homenagem a Chadwick Boseman tem início nos créditos de abertura, continua na bela sequência inicial que representa a cerimônia fúnebre e se estende por toda a história. Após a morte de T’Challa, a rainha Ramonda (Angela Bassett) faz o possível para proteger sua nação de poderosos líderes estrangeiros que buscam se apossar do vibranium (metal fictício encontrado em abundância em Wakanda, que possui a capacidade de absorver todas as vibrações em sua proximidade, bem como a energia cinética direcionada a ela e faz com que a terra natal do Pantera Negra seja rica e poderosa), ao mesmo tempo em que tem de lidar com o luto pela perda do filho e tentar uma conexão com a filha, Shuri, que parece ter se fechado em um casulo após a morte do irmão.
Nesse ínterim, entidades do governo descobrem que Wakanda não é o único lugar a possuir vibranium, identificando-o também no fundo do oceano por meio de um detector construído especificamente para rastrear o elemento. A matéria é proveniente do reino submarino governado por Namor (Tenoch Huerta), um mutante com poderes extraordinários derivados de sua herança genética incomum, com fisiologia anfíbia, força sobre-humana, supervelocidade e pés alados que garantem a ele a capacidade de voar. Ao tomar conhecimento do detector de vibranium, Namor entra em contato com Wakanda a fim de solicitar apoio para que capturem a cientista responsável pela invenção. Riri Williams (Dominique Thorne) é uma jovem universitária que não faz ideia que é o principal alvo dessa caçada. Em meio a tudo isso, Shuri precisa encontrar seu lugar entre as lideranças de Wakanda, digladiando com o próprio rancor e sentimento de vingança que a consome.
O elenco numeroso e as diversas tramas paralelas centradas em diferentes personagens tornam os já eloquentes 161 minutos de Wakanda Para Sempre insuficientes para trabalhar tanto material. Por isso mesmo, várias discussões interessantes acabam exploradas de maneira superficial, alcançando um nível muito raso de debate. É o caso, por exemplo, da tão alardeada (ao menos nos materiais de divulgação!) liderança feminina, que ganha pouca substância. Outros temas trabalhados com pouca profundidade neste exemplar afrofuturista da Marvel são justamente a questão racial e o imperialismo americano. Há muita coisa acontecendo na tela e, ainda assim, o roteiro peca ao não se aprofundar em nenhuma delas: a tentativa de focar em Shuri, as introduções de Namor e Riri Williams e o plot envolvendo o agente Everett Ross (Martin Freeman). Todas essas tramas socadas em um único longa tornam o enredo desequilibrado.
Entendo que Wakanda Para Sempre ocupa uma posição difícil na franquia dos Vingadores. O longa tinha a ingrata função de “substituir” o herói de forma nobre, sem ferir seu legado. Mas toda essa construção aliada à introdução de duas personagens importantes transforma o longa em um bolo de noiva e é justamente o desenvolvimento de Shuri que acaba ofuscado. É até irônico, pois, mesmo sem querer, a personagem já acenava para essa possibilidade desde o ritual de desafio no primeiro longa. A pedra angular deste longa-metragem deveria ser a preparação do terreno para que, aos poucos, Shuri ganhasse protagonismo.
Há um momento em que a princesa pergunta a Namor o porquê de estar lhe contando tudo isso. E eu não resisti e respondi mentalmente: porque filmes hollywoodianos têm a mania de serem expositivos demais e contar origens por meio de flashbacks manjados. A insistência da indústria em subestimar a inteligência do público se baseia na crença de que o espectador não vai ser capaz de acompanhar uma história na tela se tudo não for devidamente explicado.
Se já não bastasse o excesso de tramas que incham o longa, a montagem vacila em diversos momentos, especialmente ao mostrar os desdobramentos de lutas tão definitivas, intercalando ambas e tirando o impacto do desfecho das duas. Como tradição dos filmes do estúdio, este não foge à regra de apresentar embates corporais repletos de cortes secos e abruptos. O design de produção continua primoroso e as cenas pirotécnicas que se desenrolam tanto em terra firme como no mar são empolgantes, embora o longa peque pela falta de contrastes, especialmente nas cenas que se passam no reino de Namor, Talokan. A trilha sonora é composta de vários temas interessantes, mas o conjunto da obra é deveras saturado. Há todo um cuidado em retratar a cultura dos wakandanos, explorando seus costumes e a mitologia dos povos que ocupam aquele território. O mesmo não acontece com os talokans. Mas nem vou reclamar nesse quesito, porque, além da certeza de que Namor regressará, isso só tornaria a produção ainda mais longa e modorrenta. Por falar nisso, a guerra entre as duas nações é maniqueísta e bidimensional, abusando de um artifício muito raso para deflagrar o conflito.
O filme que encerra a fase mais criticada do MCU também é um reflexo da mesma, composta de filmes muito apoteóticos em suas intenções, mas inchados ou apáticos em seus resultados. Wakanda Para Sempre é emocional em diversas passagens, especialmente ao rememorar T’Challa. É conceitual, ao abordar o luto cinematograficamente, mostrando como cada figura do elenco lida com a morte do personagem, do ator e do amigo. Mas não é funcional, não possui um fim, um objetivo. Um demérito irreparável quando nos referimos a obras cinematográficas. Eis um tributo a Chadwick Boseman que não faz a devida justiça a seu homenageado.