Music

Pitty – ao vivo

Em show de aniversário do álbum de estreia, cantora se emociona com lembranças, se vê madura e poderosa e “ressignifica” o passado

Texto por Marcos Bragatto (Rock em Geral)

Foto de Amanda Respício (Rock em Geral)

Um riff de guitarra bem distorcido quebra o silêncio no palco. Um átimo de segundo depois, o mesmo riff e a mesma distorção que, com as luzes agora acesas, vê-se que vem de uma guitarra atravessada no tronco de uma garota. Não uma qualquer, mas A garota, dona da festa toda e de mais um pouco. Garotas com guitarras costumam seduzir aos borbotões e é assim que dois varões, um de cada lado, juntam-se a ela no meio do palco, ao passo que outro, atrás, espanca os tambores sem dó e assim se faz a mágica do riff no rock’n’roll, condutor principal da tal música. É assim que Pitty, a tal garota com guitarra, comanda o singelo começo de “O Lobo”, a tal música, na noite de 29 de abril, um sábado, em uma Fundição Progresso com gente jorrando pelo ladrão, no Rio de Janeiro.

É o show que marca o aniversário de 20 anos – olhe só, vejam vocês – do álbum de estreia da cantora, Admirável Chip Novo, e o plano é tocar todas as músicas dele e otras cositas mas. É uma turnê revivalista, sim, mas Pitty, dada a rebeldias e não é de hoje, trata logo de desfazer o conceito e dizer que a apresentação é “uma ressignificação, o Chip Novo hoje”. Olhando para o palco, com o cenário criado para essa turnê, dá pra entender. Passarelas laterais com uma outra atrás da bateria, um telão low profile com cortinas sobrepostas ao fundo que recebem efeitos de luz simples, mas bastante eficientes. No começo, a imagem da “garrinchinha de botas e pernas tortas” no telão dá lugar ao mulherão em que ela se converteu que surge já de guitarra em punho, atrás da banda, no alto, detonando em “Teto de Vidro”.

É a abertura do álbum com a tríade matadora que tem ainda “Admirável Chip Novo” e a entrada de bateria, agora conduzida por Jean Dolabella (do Ego Kill Talent e com o Sepultura no currículo), e “Máscara”, coisa de arrasar quarteirão. E é isso que acontece com o povaréu que não se incomoda nem um pouco em participar, em frenético pula-pula e cantando tudo a plenos pulmões. As músicas são intervaladas por trechos de conversas da pequena Pitty (em ligação a cobrar de Salvador para o Rio) para tratar do envio do material que se tornaria esse disco e ainda se impondo ante a interesses da gravadora, que não curtiu, à época, a vontade da cantora de que “Máscara” fosse o primeiro single do disco. O resto é história e é muita história que se passa na cabeça de quase todo mundo ali – há jovens e muitos jovens há 20 anos ou mais, quando Chip Novo saiu.

Assim Pitty se esforça para segurar o choro e suplantar e emoção em várias passagens. Honra seja feita, embora tenha saído dos cafundós de Salvador, foi no Rio, por força da sede da gravadora, que ela deu os primeiros passos na carreira, tocando em tudo o que é canto underground da cidade, muitas vezes para alguns gatos pingados e em condições bem acanhadas, para dizer o mínimo. Diferentemente do trio que a acompanha – além de Jean, tem o ótimo guitarrista Matin Mendonça e o baixista Paulo Kishimoto – ela viveu tudo isso, o que carrega o espetáculo com mais emoção ainda. Pena que, nesse show, não tenha entrado nenhuma citação aos guerreiros da época: o guitarrista Peu, falecido em 2013; o baixista Joe, desafeto depois de questões levadas à justiça trabalhista; e o batera Duda.

show de íntegra do disco segue o desafio de tocar músicas que podem não ser tão conhecidas assim e que não eram executadas com frequência ao vivo nem na época em que foram lançadas. E também de tocar ou não todas elas na ordem em que foram gravadas – porque uma coisa é bolar uma sequência de disco, outra é de como apresentá-las no palco. É claro que Pitty foi na decisão corajosa de manter a ordem do CD, respaldada pelo fato de nada menos que cinco singles terem sido lançados na época, todos com boas execuções radiofônicas, em um tempo em que isso fazia a diferença. E, no fundo, no fundo, ela sabe que fã da Pitty – fã de rock – é quase sempre do tipo que conhece tudo. É o que acontece com a cantoria comendo solta em praticamente todas as músicas, em umas mais, noutras menos. E ainda tinha aqueles esperando justamente as menos tocadas ao longo da carreira.

Como por exemplo “Do Mesmo Lado”, rock enguitarrado dos bons, no qual Pitty canta “escondida” atrás de uma cortina branca e recebe focos de luzes coloridas, de modo que sua silhueta aparece distorcida e borrada, de acordo com os movimentos, em excelente efeito visual. Dá pra lembrar que “Só de Passagem” é uma pedrada nu metal das boas, e aí brilha Dolabella detonando na bateria; e a já citada “O Lobo” vira um rockão daqueles de obediência ao riff. Dentre os hits, vale destacar a lentinha “Equalize”, não pela música em si, mas por evidenciar uma Pitty bem resolvida com a sensualidade que parecia lhe incomodar. Se antes tinha dificuldade até para cantar uma letra mais de relacionamento/romântica, hoje desfila o corpo de modo soberano pelo palco e não só nessa música. E ainda recomenda ao público que “solte a pélvis”. É a tal da – repita-se – menininha convertida em mulherão.

O show é todo fechadinho em 1h40 e bolado para ser mesmo especial. É repartido em três blocos. Se o primeiro tem as 11 músicas do álbum Admirável Chip Novo, o segundo traz um complemento da época, com “Seu Mestre Mandou”, espécie de sobra, que se converte em nervoso hardcore dos tempos do Inkoma, e três covers, com destaque absoluto para “Love Buzz”, da banda holandesa Shocking Blue, eternizada na voz de Kurt Cobain, do Nirvana. No bis, é a hora da representatividade dos outros álbuns da cantora. Aí realçam “Memórias”, esticada com uma jam session em que cada músico é apresentado e sola em seu instrumento e tem Pitty refestelada no solo, e o arremate com “Me Adora”, a canção mais pop/colante dela e talvez a de maior sucesso, para terminar a altíssimo astral.

Em suma: o show é verdadeiro espetáculo planejado para uma ocasião especial e que tem vida própria. O que lhe dá, e antemão, o status de imperdível.

Set list: “Teto de Vidro”, “Admirável Chip Novo”, “Máscara”, “Equalize”, “O Lobo”, “Emboscada”, “Do Mesmo Lado”, “Temporal”, “Só de Passagem”, “I Wanna Be”, “Semana Que Vem”, “Seu Mestre Mandou”, “Sailin’ On”, “Love Buzz” e “Femme Fatale”. Bis: “Setevidas”, “Memórias”, “Na Sua Estante” e “Me Adora”.

Movies

A Baleia

Darren Aronofosky volta a incomodar com um espetacular Brendan Fraser como um professor em desenfreada busca pela não existência

Texto por Taís Zago

Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Samuel D. Hunter escreveu A Baleia tendo sua própria vida e trajetória como inspiração. Nascido em Moscow, Idaho, ele foi compelido a se assumir gay já na adolescência, sofreu com a homofobia provinciana e suas mazelas emocionais refletiram em um ganho rápido de peso durante os anos de universidade. Então, Samuel cria em A Baleia um “e se…” caso ele tivesse continuado o caminho que estava posto diante de si. Darren Aronofsky assistiu à peça em uma de suas muitas apresentações e rapidamente vislumbrou no roteiro material rico para um longa-metragem.

Para os que estão familiarizados com a obra cinematográfica de Aronofsky não é segredo algum que o diretor, roteirista e produtor se expressa, não raramente, usando os extremos dos comportamentos humanos. Ora aborda o vício em drogas em obras como A Vida Não É Um Sonho (2000), ora as profundezas da alma humana como em Cisne Negro (2010). Também não é raro em seu oeuvre uma jornada de modificação corporal baseada na busca de aceitação e fama que acaba por deteriorar lentamente seus personagens, como em O Lutador (2008). O ponto convergente de sua obra é uma visão desiludida do humano, o que não raramente nos arrasta a lugares incômodos e quase insuportáveis dentro de nossas cabeças.

Em A Baleia (The Whale, Estados Unidos, 2022 – Califórnia FIlmes), Aronofsky e Hunter trabalharam juntos para transpor dos palcos para o cinema toda a gama de sentimentos de Charlie, interpretado brilhantemente por Brendan Fraser, um homem solitário que vem seguindo um caminho sem volta de deterioração física, emocional e psicológica desde a perda de seu grande amor e companheiro de vida. Charlie é um excelente professor universitário de ensaios literários, ministra suas aulas via EAD, mas nunca permitiu a seus alunos que o vissem pela câmera. Há muito tempo Charlie não sai de casa, não cuida da saúde, não vê muitas pessoas. Uma de suas grandes dores foi o seu afastamento compulsório da filha, na época com 8 anos de idade, por ele ter assumido uma relação homoafetiva com um de seus estudantes. Tudo em Charlie é machucado. Apesar do foco em sua aparência como alegoria para a ruína, a parte mais evidente da tremenda dor que carrega é revelada pelos olhos e pela voz. Ao seu lado, tem a fiel amiga Liz (Hong Chau), uma enfermeira que o acompanha e tenta fazer os seus dias o mais confortável possível sem criticar com clichês e sem esmiuçar os motivos. Liz os conhece bem, mesmo que no fundo ela não queira aceitar o caminho escolhido por ele.

O filme, mesmo antes de ser lançado, gerou uma onda de críticas em relação à patologização da obesidade e do uso das chamadas fat suits (trajes de gordura) que os atores vestem para interpretar pessoas gordas e que muitas vezes já contribuiu para o estigma do grupo com representações em filmes de gosto duvidoso – como O Professor Aloprado (1996), com Eddie Murphy interpretando diversos personagens usando fat suits como uma característica depreciativa, ou em comédias românticas como O Amor É Cego (2001) com Gwyneth Paltrow, onde, bem, o titulo em português é autoexplicativo. Não foram raras as alegações de crueldade e de voyeurismo da obesidade. Aronofsky não é famoso pela sobriedade de suas representações. Ele procura sempre o limite, o que, às vezes, pode beirar uma caricatura de mau gosto. Tanto que A Baleia foi classificada como uma espécie de fat horror por uma ala da crítica. 

Sabendo isso de antemão, apelei para um artifício ao assistir A Baleia – reduzi a luminosidade da minha tela, diminuindo assim a importância e o impacto da apelação visual e concentrando apenas nas vozes, e, algumas vezes, nos olhares. E só pude chegar a uma única conclusão: Brendan Fraser é espetacular. Desconectando a caracterização, o que nos resta é uma alma partida de alguém que perdeu completamente o interesse de continuar vivendo. O que sentimos é um ser humano em rota de colisão irremediável e desesperançada. E nesse caminho pouco importa o figurino, a maquiagem ou o método escolhido para se alcançar o objetivo, quer seja ele por meio de drogas, comida, ausência de comida, sexo ou qualquer outra forma de se obter o resultado desejado – a não existência.

A dor de Charlie é profunda demais para ser remediada. O luto diário que mantém pelo seu amor perdido de forma violenta é insuperável, a ausência da filha e a culpa que o ronda de forma repetitiva o oprimem. Charlie tanto ruminou suas dores que se entregou a elas. O ponto de retorno já foi há muito abandonado. A depressão retirou a luz quase que completamente de sua rotina. E é exatamente nessa reta final de sua jornada que ele faz um último esforço desesperado para reatar o contato com sua filha Ellie (Sadie Sink), uma adolescente, que segundo as palavras da própria mãe (Samantha Morton, em aparição relâmpago) é simplesmente uma menina má. Charlie se nega a acreditar nisso. Mesmo em toda a escuridão em que vive, ele ainda nutre a esperança na luz de Ellie. Da mesma forma acolhe Thomas (Ty Simpkins), jovem que escolheu pregar a palavra de Deus como sendo a forma irrefutável da salvação humana.

A Baleia, em parte por ser uma dramaturgia adaptada do teatro, é encenada com poucos personagens, tendo como única locação a casa de Charlie e, na maioria das cenas, apenas sua sala de estar. A fotografia é escura em quase sua totalidade, em parte para cooperar com os esforços de tornar a caracterização física mais verídica, mas também como alegoria da profunda depressão do protagonista. A música segue o mesmo caminho, assim como a edição. Tudo nos conduz para a melancolia e para a desesperança. Aronofsky sendo Aronofsky, portanto.

A Baleia é uma tragédia humana real sendo arrastada para o macabro, uma câmara de vácuo e ausência de luminosidade, um palco trágico, uma jornada de redenção e purificação por meio do sofrimento e do sacrifício. Poderia não ser assim, como aponta Samuel ao falar de seu roteiro, mas foi. Brendan Fraser recebeu o merecidíssimo Oscar de melhor ator, preenchendo todos os requisitos que Hollywood busca: um protagonista que retorna das cinzas após ser massacrado e abandonado pela indústria cinematográfica; um roteiro tenso, teatral e dramático; e um personagem que requer modificações físicas complexas da parte do ator para ser interpretado.

Movies

Triângulo da Tristeza

Cineasta sueco volta a criticar acidamente a hipocrisia da sociedade, agora  com trama eat the rich que envolve o mundo da moda e um cruzeiro

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Diamond Films/Divulgação

O cinema do sueco Ruben Östlund é feito para desafiar o espectador. Sua intenção é clara: instigar e provocar reações nada açucaradas com suas sátiras ácidas, recheadas de criatividade. E esse jeitinho sueco de criticar a hipocrisia da sociedade vem lhe rendendo cada vez prestígio entre a classe, sobretudo perante seus colegas europeus. Com Triângulo da Tristeza (Triangle Of Sadness, EUA/Suécia/Reino Unido/Alemanha/França/Turquia/Dinamarca/Grécia/Suíça/México, 2022 – Diamond Films), Ruben repetiu o feito de The Square, de 2017 e levou mais uma vez a Palma de Ouro no Festival de Cannes, tornando-se o nono cineasta a ter duas palmas de ouro na história.

Sim, a exploração dos pobres pelos ricos, da situação oprimido versus opressor, pode ter se tornado um tema batido, só que o modo como Ruben escancara essa disparidade entre os superricos e a classe trabalhadora é, de fato, instigante e capaz de chocar aqueles mais acanhados. Afinal, o sueco coloca no mesmo barco (ou melhor, no mesmo cruzeiro) personagens estereotipados e um tanto caricatos, mas é eficiente ao subverter os papeis e modelos de comportamento, como ao travar o embate entre o magnata russo capitalista Dimitry (Zlatko Buric), dono de uma empresa de fertilizante, e o comandante do navio, bêbado e comunista, interpretado por Woody Harrelson. Os dois protagonizam um dos momentos mais hilários e geniais do cinema recente.

Em comparação a The Square, em Triângulo da Tristeza Ruben fez questão de usar PH beirando a zero. Sua qualidade “cítrica e crítica” já fica evidente nas peças de divulgação do filme. Na conta do Instagram, por exemplo, não escapam vômitos dourados de caviar. “Free botox for everyone” (botox grátis para todos, em português), estampa um cartaz. 

O botox, nesse caso, é para ser injetado sobretudo no chamado triângulo da tristeza, que leva esse nome por conta das marcas de expressão quando contraímos a testa, seja para chorar ou para estampar a insatisfação. Preste atenção, vá na frente do espelho e perceba a medida do seu triângulo. 

Essa explicação do que vem a ser o tal triângulo da tristeza surge logo no início do filme (que, aliás, conta com três atos bem marcados). No início, somos apresentados a uma série de modelos que participam de um teste para estampar uma campanha publicitária de uma loja de roupas. Um deles é Carl (Harris Dickson). Para vender para os ricos, a orientação é fazer cara blasé e acionar a região do triângulo. Para o público consumidor de artigos populares, o modelo deve abusar dos sorrisos radiantes. 

Carl namora a também modelo e influenciadora digital Yaya, interpretada pela atriz Charlbi Dean (que morreu, aos 32 anos, vítima de sepse, em agosto do ano passado, não tendo a felicidade em ver o filme indicado em três das categorias principais do Oscar: filme, direção e melhor roteiro original). 

Questões monetárias e de equidade social e de gênero já surgem como o fio condutor da narrativa no diálogo entre Carl e Yaya a respeito de quem deve pagar o jantar do casal. E o rapaz se sente ofendido porque sua namorada é quem ganha mais e, portanto, ela acha que deveria pagar. No segundo ato, os dois aparecem como convidados de um cruzeiro ao lado de ricaços, entre eles um casal de representantes da indústria bélica. Viciada em likes, Yaya não desgruda de seu celular. Carl lê Dostoievski na beira da piscina. 

Quando o naufrágio dá início ao terceiro ato, Ruben inverte o triângulo (ou melhor, a pirâmide social). O mais forte ali não é quem tem dinheiro, mas quem consegue ser mais forte e se impor. Neste momento, a personagem da filipina Dolly de Leon, de nome Abigail, vai mostrar quem manda na ilha – o que, certamente, deixaria Jean-Jacques Rousseau de boca aberta.

Aliás, foi o filósofo francês quem disse “quando o povo não tiver mais nada o que comer, ele comerá os ricos”. E assim o cinema vai abrindo cada vez mais espaço a uma espécie de subgnênero: o “eat the rich”, que surpreendeu o mundo com Parasita levando o Oscar alguns anos atrás. Ou seja, quando o barco afunda, a conta bancária não faz a mínima diferença.