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First Cow – A Primeira Vaca da América

Análise peculiar de um instante da colonização do oeste americano faz relações simbólicas com o capitalismo dos dias atuais

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

A embarcação contemporânea cortando a paisagem aparentemente inexplorada é um prenúncio do choque de perspectivas que veremos. Assim é, também, o quase literal simbolismo da descoberta dos cadáveres nos primeiros minutos do filme. First Cow – A Primeira Vaca da América (First Cow, EUA, 2019 – Vitrine Filmes) pretende escavar – como quem descobre corpos que um dia foram – a metáfora perfeita para o passado humano, visitar esse tempo com a perspectiva de um cinema atual. A colonização do Oeste norte-americano está sob nova investigação.

First Cow (disponível em streaming no Brasil pelo MUBI) é a pacata história da amizade entre Cookie (John Magaro) e um assassino somente identificado como “o homem chinês” (Orion Lee). Com a chegada da primeira vaca da região de Oregon, uma oportunidade de negócios atrai sua atenção, junto a riscos cada vez mais graves. Embora se tente encarar o longa como um western contemporâneo, não há identificação (ao menos com as linhas gerais do gênero) que não a época em que ele se passa. Ao contrário das narrativas bem arqueadas, submersas em conflitos morais e filosóficos, a simplicidade do florescimento de uma amizade.

Justamente por isso, First Cow demora a engrenar narrativamente. Contudo, se não há conflito ou tensão, há beleza e um retrato distinto da vida nos fortes americanos deste século. Kelly Reichardt, a diretora, prefere desenvolver Cookie e seu amigo com paciência, embora não hesite em demonstrar visualmente sua sinergia desde o início de sua interação. A sutileza da mise en scène de Reichardt, que retrata a primeira metade de seu longa com forte presença de planos fechados e, quando muito, médios, é o ponto focal mais interessante aqui.

A visão peculiar, porém, estende-se ao cenário sociopolítico da região. Se, como colocam os personagens, a civilização americana expande-se floresta adentro rumo ao inexplorado, são inegáveis as oportunidades de ganho de capital que irrompem. A constante busca por uma maneira de explorar o meio apenas para, inevitavelmente, escapar dele rumo a uma melhor paisagem, “mais quente” e agradável, é o principal vetor do conflito que balança o filme. No entanto, roubar o leite da recém-chegada vaca, propriedade do Comerciante-Chefe (Toby Jones), não é, em última análise, uma exploração da natureza ao redor. Ao contrário, diferente de todas as empreitadas sugeridas pelo imigrante chinês, ciente das demandas do mundo no momento, essa “estratégia de negócios” é uma afronta direta à estrutura capitalista do forte.

Assim sendo, o navio que quebra o quadro de paisagem também é simbolismo do processo de construção social que se fez presente nos Estados Unidos. A descoberta dos dois cadáveres pode ser surpreendente, mas o motivo de sua morte já nos é corriqueiro. First Cow acaba como um filme íntimo e muito terno, mas germina e transforma-se numa análise de um “desbravamento capitalista”, progenitor do capitalismo tardio em que vivemos.

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O Esquadrão Suicida

Sob o comando do diretor James Gunn, franquia ganha reboot e volta psicodélica às telas e repleta de criaturas bizarras

Texto por Andrizy Bento

Foto: Warner/Divulgação 

A DC é falha na construção de um universo cinematográfico estruturado e compartilhado nas telas, sendo pouco eficiente ao tentar conectar suas tramas devido à falta de unidade entre os filmes que compõem o DCEU (termo não oficial utilizado para se referir, em inglês, ao Universo Estendido DC). Em contrapartida, ganha do rival, o MCU (Universo Cinematográfico da Marvel), em estilo e por apostar em abordagens mais autorais em seus longas, distanciando-se do formulaico e da zona de conforto da Marvel Studios. A longeva parceria entre a DC e os estúdios Warner Bros investe em produtos ousados e se mostra mais disposta a correr riscos que, por vezes, acabam por condenar seus filmes nas bilheterias.

Portanto, ninguém pode dizer que a DC não tenta. Abraçar propostas diferenciadas, ainda que se trate de um negócio arriscado, é louvável. Enquanto as realizações do bem-sucedido MCU são o que chamamos de filmes de produtor ou de estúdio, é visível que os cineastas por trás dos longas-metragens da DC buscam imprimir seu estilo e assinatura nas aventuras que levam às telas protagonizadas pelos heróis da marca. Assim, temos filmes mais sérios, sombrios e empolados como O Homem de Aço (2013) e Batman Vs Superman: A Origem da Justiça (2016), propostas que o público, em sua maioria, rejeitou; entretenimentos de fim de semana direcionados à toda família, que se aproximam mais da identidade de filmes de super-heróis que o público se acostumou a ver nas telas, dosando bem elementos como ação, comédia e romance, que é o caso dos dois longas da Mulher-Maravilha (2017 e 2020) e Aquaman (2018); um longa que aposta em uma atmosfera despretensiosa e infanto-juvenil a fim de capturar o interesse dos mais jovens pelos filmes da casa, apostando na reinvenção e modernização de um herói old school, como Shazam! (2019); um híbrido entre a gravidade de Snyder e o cartunesco de Joss Whedon, que sofreu na transição de diretores devido aos problemas de ordem pessoal que o primeiro enfrentou, que é o caso de Liga da Justiça (2017); e até alguns com atmosferas mais experimentais e narrativas tresloucadas, como Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa (2020) e este novo O Esquadrão Suicida (2021).

O marginalizado grupo que surgiu nas páginas dos quadrinhos em setembro de 1959, integrado por delinquentes altamente perigosos que topam se aventurar em missões sigilosas e suicidas em busca de de liberdade – ou ao menos da redução de suas penas na prisão – tem sua segunda chance nos cinemas após o fiasco de 2016. Dirigido por David Ayer, Esquadrão Suicida (sem o artigo na frente do nome), foi detonado por público e crítica. Dessa vez, dirigido por James Gunn, cineasta que assinou os dois longas dos Guardiões da GaláxiaO Esquadrão Suicida (The Suicide Squad, EUA/Canadá/Reino Unido, 2021 – Warner) manteve poucos nomes do primeiro filme. Obviamente, Margot Robbie (uma das poucas escolhas que deram certo) reprisa seu papel como Arlequina, desta vez ainda mais insana. A ótima Viola Davis ressurge como a moralmente ambígua Amanda Waller, mentora do Esquadrão, uma das escalações mais eficientes. Joel Kinnaman é outro que reaparece, interpretando Rick Flag. Sem grande destaque, Jai Courtney também repete seu papel como Capitão Bumerangue.

O grupo desajustado de vilões ainda se beneficia de acréscimos ao elenco, que é o caso de Idris Elba interpretando DuBois, o Sanguinário; John Cena, na pele do Pacificador; Sylvester Stallone, emprestando sua voz para o Tubarão-Rei Nanaue; David Dastmalchian, como Abner Krill , o Homem-Bolinha; Daniela Melchior, vivendo Cleo, a Caça-Ratos 2, com direito a um rato de estimação chamado Sebastian (dublado por Dee Bradley Baker); Peter Capaldi, assustadoramente brilhante como Pensador; e Alice Braga na pele de Sol Soria, a líder de uma facção rebelde.

“Típicos americanos. Mal chegam e já vão atirando”

A abertura frenética introduz uma equipe descartável que faz jus ao título de O Esquadrão Suicida, utilizada como mera distração enquanto a equipe original executa sua missão. Como se tratam de personagens com pouco tempo de tela, isso impede que o espectador chegue a se afeiçoar a algum deles. Contudo, essa amostra visceral de carnificina durante a introdução já dá uma ideia ao espectador do que serão as próximas duas horas de filme: alto teor de sangue, violência gráfica e humor corrosivo que tomam conta da tela. O novo Esquadrão Suicida ainda alia a narrativa sombria a uma estética psicodélica, lançando mão de uma cartela cromática intensamente colorida porém funcional e injetando doses cavalares de acidez em seu texto.

A ação ocorre no fictício Corto Maltese, pequeno país insular próximo à costa da América do Sul. O objetivo da equipe é se infiltrar em Jotunheim, instalação científica que abriga o Projeto Estrela-do-Mar, um misterioso experimento criado durante a 2ª Guerra Mundial e que, segundo as fontes confiáveis que abastecem Waller de informações, tem procedência extraterrestre. Nas mãos erradas, porém, ela oferece risco de catástrofe global. Waller, então, recruta novos integrantes para seu Esquadrão e cabe ao grupo destruir todos os vestígios do projeto.

A trama resgata e utiliza personagens bizarros e obscuros das HQs, que só poderiam ter a oportunidade de brilhar e fazer alguma diferença nas telas em um filme da estirpe de O Esquadrão Suicida, onde o tom autorreferente e autossatírico impera. A produção é repleta de sequências de ação inverossímeis, passagens indigestas e uma overdose de cenas absurdas temperadas com sangue, recheadas de mutilações e que culminam em uma tremenda sinfonia de caos e destruição. Ainda investe em tiradas cômicas bem pontuadas que conseguem arrancar risadas genuínas do público, muitas delas vindas da personagem de Margot Robbie. A cinematografia elegante compõe planos engenhosos, com movimentos de câmera inteligentes e certeiros, garantindo um visual arrojado capaz de surpreender o espectador. Destaque para uma determinada sequência de luta que é visível através do reflexo de um capacete – sem dúvida, uma das mais memoráveis do ano.

É fato que nem tudo funciona. Boa parte da passagem que elucida o drama da Caça Ratos 2, uma cena constrangedora na pista de dança e a sequência com timing arrastado em que Nanaue faz “novos amigos estúpidos” (bem em meio ao clímax do longa), poderiam ter sido cortadas na ilha de edição, pois são momentos que soam deslocados na trama. Sem contar os excessos da trilha sonora e o quanto alguns personagens parecem guardar ecos das figuras apresentadas em Guardiões da Galáxia (não é difícil se pegar fazendo associações entre Nanaue e Groot, por exemplo). Porém, seus méritos mais do que compensam essas e outras falhas.

Com um roteiro objetivo, extremamente simples, mas bem costurado, reserva espaço considerável em meio ao humor e às sequências de ação, para tecer uma crítica afiada à hipocrisia e hegemonia norte-americana em situações de guerra, O governo americano aparece, como de praxe, pregando uma falsa ideia de paz que se trata de pura estética, revestindo-se de uma aura pacifista para encobrir sua participação em esquemas de corrupção e atos bárbaros. Nesse sentido, é no personagem do Pacificador que o texto alcança um simbolismo perfeito. James Gunn foi a escolha ideal para fazer o reboot desta franquia nos cinemas. O diretor já havia mostrado que era bom em conduzir tramas fantásticas, repleta de criaturas bizarras, com muito bom-humor, mas conferindo humanidade aos personagens e plausibilidade ao enredo – como é possível observar nos longas dos Guardiões da Galáxia. Aqui, além de dosar de maneira assertiva os elementos dramáticos, Gunn parece ter tido mais autonomia no que confere tanto às escolhas narrativas quanto visuais, fazendo prevalecer sua assinatura. O resultado é um filme psicodélico, inventivo, experimental, ousado e altamente divertido. A chance que o Esquadrão Suicida merecia na telona.

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1917

História ambientada na Primeira Guerra Mundial é tecnicamente perfeita porém sem conteúdo substancial

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Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Universal Pictures/Divulgação

O mágico Roger Deakins. Sam Mendes, o diretor de Skyfall e Beleza Americana. Composição de Thomas Newman. No elenco, Colin Firth, Andrew Scott e Benedict Cumberbatch, o duo de Sherlock. Mais Richard Madden e Dean-Charles Chapman, Robb Stark e Tommen Baratheon, respectivamente. Mais George McKay, de Capitão Fantástico. Vários ingredientes para o sucesso, não é? Nem tanto.

1917 (Reino Unido/Estados Unidos, 2019 – Universal Pictures) chega aos cinemas brasileiros com um grande hype. Recém-coroado melhor filme de drama pelo Globo de Ouro (algo questionável, para ser bondoso), sua trama, que se passa na Primeira Guerra Mundial (começando em 6 de abril de 1917, precisamente), acompanha os cabos Schofield e Blake (McKay e Chapman, respectivamente) na missão suicida de atravessar as linhas inimigas e cancelar um ataque inglês, que, caso efetuado, cairá direto numa armadilha alemã.

Tecnicamente, o filme é irretocável. Como sempre, a fotografia de Deakins desenvolve a atmosfera, repleta de trincheiras e cidades destruídas, criando magnitude e opressão no mesmo plano. Cada quadro, uma pintura, sem dúvidas. Aqui, no entanto, há um desafio a mais: 1917 é rodado inteiramente em planos sequência, com muita movimentação de câmera e personagens.

Numa versão grandiosa da abertura de Skyfall, Mendes acompanha cada passo de Schofield e Blake, do momento em que são chamados pelo General Erinmore (Firth) até a completude de sua missão. Há uma clara ciência dos riscos, em especial em diálogos, mas o comprimento infindável dos planos torna a tensão da guerra muito mais palpável.

O desenho de som (indicado ao Oscar, aliás) é primoroso, mesclando o hiperrealismo que o gênero pede à sensacional trilha de Thomas Newman, que combina os opressores sintetizadores segurando uma nota com momentos épicos, melódicos e grandiosos. A edição, por outro lado, fica renegada a um trabalho de colar peças no exato momento em que a direção planejou que elas fossem coladas. A dimensão criadora da montagem é inexistente aqui, o que não é em si um demérito, mas uma pena – visto que se perde muito da atuação do ótimo elenco ao abolir a opção de um plano/contra-plano.

No entanto, com todos os seus méritos, 1917 é um filme de espetáculo, e é somente assim que funciona. A excelência de Deakins e o movimento incessante da câmera carregam o filme por suas quase duas horas, porém a falta de densidade dos protagonistas e diálogos curtos e grossos – um ponto alto do longa, já que não se espera exposição à toa no meio de uma guerra, não é? – afasta o público de imersão na jornada do personagem, tornando essa duração um pouco arrastada, quase entediante em dados momentos. Assim, os personagens tornam-se vazios e os coadjuvantes mais ainda – completamente efêmeros e, se não fosse pela densidade das atuações, momentos esquecíveis.

O longa é repleto de bons momentos, com tensão e atuações fenomenais, só que os respiros entre eles desaceleram demais a trama, sem tração para manter o espectador emocionalmente envolvido. 1917 é, no entanto, um ótimo retrato da guerra, crua e assoladora. Neste sentido, o tempo do filme somente engrandece o comentário, por aterrar o público não somente nas batalhas, mas no dia a dia, as longas caminhadas, a fome e o medo de um cabo na Grande Guerra. Contudo, os personagens não passam disso: soldados na WWI, perdendo a camada emocional tão poderosa da sétima arte.

Tecnicamente superior à maioria dos filmes de guerra, 1917 é um experimento cinematográfico impactante, uma experiência fílmica de colar o espectador na cadeira. Quando respira, porém, lembra o público que é oco, uma experiência sem substância. Lindo pacote, presente medíocre.