Movies

CODA – No Ritmo do Coração

Pequena joia cinematográfica conta como uma adolescente serve de elo de comunicação entre sua família surda e o mundo ao redor

Texto por Taís Zago

Foto: Amazon Prime Video/Divulgação 

Ruby Rossi (Emilia Jones) passou os seus 17 anos de vida em uma pequena cidade litorânea de Massachusetts com pouco mais de 30 mil habitantes chamada Gloucester. Como muitos outros adolescentes de sua idade, Ruby está no ultimo ano da high school, é uma aluna mediana e ainda não sabe direito o que fazer depois da formatura. Nunca pensou em se candidatar para nenhum college e nem possui muitos amigos, é uma underdog na sua escola. Além disso, ela pertence à uma família de pescadores e acorda todos os dias muito antes do sol nascer para sair de barco com o pai, Frank (Troy Kotsur), e seu irmão, Leo (Daniel Durant), para pescar em alto mar. Logo na primeira cena de CODA – No Ritmo do Coração (CODA, EUA/França/Canadá, 2021 – Amazon Prime) vemos Ruby separando peixes e cantarolando alegre “Something’s Got A Hold On Me”, de Etta James. Cantar é o que ela mais ama fazer quando não passa tempo com sua família, da qual também faz parte a sua mãe, Jackie (Marlee Matlin).

O titulo original do filme é um acrônimo para child of deaf adult(s), expressão que significa filho(a) de adulto(s) com surdez. E Ruby é uma dessas crianças, tanto seus pais Frank e Jackie como seu irmão mais velho Leo são surdos. A família se comunica com linguagens de sinais e, não raramente, dependem dela, que não possui problemas em sua audição, para a comunicação com o mundo ao redor. Desde pequena Ruby acumula, portanto, um grande leque de responsabilidades em relação a seus pais e irmão. 

O roteiro da também diretora Sian Heder é uma adaptação de La Famille Bélier (2014), onde a família em questão vive na zona rural e a menina também tem o dom musical. O diferencial aqui é o elenco. Enquanto no filme francês original os papéis dos personagens surdos são interpretados por atores que escutam (e que tiveram de estudar muito para aprender a comunicação), no americano, Sian optou por contratar atores que realmente possuem a deficiência auditiva, sendo a mais conhecida Marlee Matlin, que além de ter ganho o Oscar e o Globo de Ouro pelo filme Children of a Lesser God (1986), é uma ativista norte-americana pelos direitos dos surdos pela National Association of the Deaf. Essa se mostrou uma das melhores decisões dramáticas para o resultado final. O pai de Ruby, Frank, é esplendidamente interpretado por Troy Kotsur. Frank é livre e engraçado e o amor dele pela filha é comovente. Emilia Jones também está encantadora como Ruby, tanto por sua voz potente como pela ternura e a naturalidade de sua expressão corporal.

Em uma decisão quase inédita para norte-americanos – pois apenas The Sound Of Metal (2020) havia usado esse recurso – a Apple, produtora, decidiu lançar o filme com legendas fixas também para os diálogos fora da interpretação de sinais. Até então, nos cinemas, as pessoas surdas precisavam assistir a sessões com legendas ou usar óculos especiais para enxergá-las.

No Ritmo do Coração é um daqueles longas onde risos e lágrimas rolam quase ao mesmo tempo. Para alguns, inclusive, essa mistura adentrou o kitsch. A personagem Ruby carrega o mundo em suas costas desde os primeiros dez minutos de filme e essa insinuação, mesmo que não intencional, alimenta clichês sobre a dependência de pessoas com necessidades especiais de outras consideradas “totalmente funcionais” pela sociedade. Heder poderia ter sido mais sutil e indireta com algumas cenas que vão muito além do necessário para provar seu argumento. Mas pelo bem do drama já constatamos que diretores americanos não raramente optam por expor que os sentimentos e atitudes de forma enfática e exacerbada. E, claro, sempre vai ter aquela cena do tudo ou nada, onde todos protagonistas precisam se mobilizar e correr contra o tempo para aproveitar a última chance de realizar seus sonhos. 

Porém nada disso tira o brilho dessa pequena joia cinematográfica, que surpreendeu a todos no Sundance Festival de 2021 ao ser o primeiro filme concorrente a abocanhar ao mesmo tempo os prêmios de júri, publico, direção e o especial de melhor elenco. Em 2022, Troy Kotsur venceu o SAG Awards de melhor ator e os atores venceram na categoria Elenco. A lista de troféus é longa, mas a jornada de premiações de No Ritmo do Coração ainda parece longe de chegar ao fim. Além de indicações ao BAFTA britânico e ao Globo de Ouro, também concorre três vezes ao Oscar 2022 – ator coadjuvante, roteiro e filme. Temos aqui um daqueles filmes revelação daqueles de ter um cartaz cheio de medalhinhas e troféus. Do tipo que nos seduz enquanto zapeamos entre centenas de imagens buscando entretenimento de qualidade. Eu, pessoalmente, acho que os louros são muito merecidos.

Movies, Music, Series, TV

The Beatles: Get Back

Os bastidores do Rooftop Concert, que marcou a despedida da banda em show feito no terraço da Apple e chega agora aos cinemas brasileiros

Texto por Taís Zago

Fotos: Disney+/Divulgação

The Beatles: Get Back (Reino Unido/Nova Zelândia/EUA, 2021 – Disney+), é uma despedida. É sobre as sessões de filmagem dos ensaios dos Fab Four, em janeiro de 1969 no Twickenham Studio (depois no Apple Corps Studio), para o novo álbum com 14 músicas e para um projeto especial/documentário, que, em teoria, deveria marcar a volta da banda, mas que culminou com o fim dela com o famoso último show no terraço da AppleCorps em Londres. São três episódios divididos pelos 21 dias de filmagens, num total de 468 minutos de duração. O último deles, o tal Rooftop Concert propriamente dito, chega aos cinemas brasileiros em sessões especiais espalhadas por redes de dez cidades até o próximo domingo, 13 de fevereiro.

(ACHTUNG! Daqui dá pra pular direto pras conclusões finais para quem não tem paciência para as minhas chorumelas de fã ou não suporta SPOILERS de qualquer tipo).

———————————————————————

Tá aí ainda? So here we go

Primeiramente (dedinho em riste!), sou beatlemaníaca. Daquelas que detestou o filme piadista Yesterday ou a romcom Across The Universe, que lê tudo que acha sobre os caras e ama a música desde sempre (ou pelo menos desde que aprendi o que era música na infância). Então este texto não é isento de idolatria, não é imparcial e muito menos é justo com todos os envolvidos. É passação de pano. TEJEM AVISADOS!

“Segundamente”, quero deixar claro que não sou lá muito fã do estilo bigger/brighter/better/greater de Peter Jackson. O cara adora um filme que nunca acaba. As 7+ horas de O Senhor dos Anéis me pareceram mais longas do que ler a trilogia, que, casualmente, eu adoro e tem um local especial no meu coraçãozinho nerd

EPISÓDIO 1 – Dias 1 e 7

Começo logo com papo de groupie: o fenômeno Yoko Ono não pode ser ignorado. Ela estava em todo o lugar. Tava ali na frente da câmera costurando, comendo, escrevendo, pintando, escondendo a cara nas filmagens, cutucando o Lennon, deitando no ombro dele, sentada junto no banco do piano ou numa cadeira colada com a dele. Ela tava ali, quase como uma segunda pele do John. A única pessoa fora da banda e fora da equipe de produção com essa proximidade toda em todos os 21 dias de filmagens. Linda Eastman, assim como outras moças, também aparece, mas fica tirando fotos de longe, observando. É uma presença relaxante. Ela não reivindicou pra si quaisquer protagonismo e meio que alfineta a Ono nisso (tenho que registrar!). E não, não se trata de machismo: poderia ser o filho, a mãe, o namorado de qualquer um ali. Me pareceu um tanto intromissivo e inconveniente.

Já nos primeiros 15 minutos do episódio (e nos 15 últimos, com a Ono berrando no microfone no chamado “Freak Out”) isso me incomodou. Aí eu me perguntei: forçaram a barra pra provar a teoria do efeito Yoko Ono na edição? Quiseram tirar o fiofó do George, do Paul e do próprio John da reta na culpa pela separação? O Lennon obrigava a Yoko a ficar junto dele pra receber o tempo todo aprovação? Ou a relação dela com o Lennon era realmente a de dois carrapatos insuportáveis que não davam um peido sem o outro atrás cheirando? Eu não sei a resposta. Mas me deu incômodo me imaginar no lugar dos outros três músicos que estavam ali. Talvez porque eu seja uma pessoa que detesta ter alguém olhando por cima do meu ombro ou colado em mim enquanto trabalho. Se Lennon e Yoko fossem hoje um casal, acho que seriam daqueles com perfil compartilhado no fêice chamado “Yonnon/Leko”. Not a good picture. Pelo menos não para mim, que curto não ter um gêmeo siamês como par romântico. 

Eu também vi aqui claramente quatro caras que se sentem meninos e sentam no colo das suas mulheres (ou pelo menos John e Paul). Sim, tem aquela infantilização masculina clássica. Os Beatles não foram os primeiros e nem os últimos nisso. E não estou normalizando comportamento tóxico. As mulheres são forçadas em posições desconfortáveis, onde fatalmente são pintadas como bruxas por orbitarem em torno de seus reizinhos (que demandam isso delas).

Intrigas/fofocas/brigas à parte. Que banda, meus amigos! Que banda! Quem nessa vida já assistiu a alguma gravação, ou ensaio ou mesmo uma jam de músicos sabe do que tô falando. Eles eram uma fonte exuberante de criatividade e talento. O som não mente. A gente entende a grandeza dessa instituição que começou como uma boy band produzida pelo Brian Epstein. A gente escuta e vê, é trabalho, é cansaço, é um estresse tremendo, mas também é prazer. A gente enxerga isso nos olhares trocados, nas discussões, nos sorrisos, nas lembranças. O talento flui dos dedos e das bocas.

Mas sim, também é (era) NEGÓCIO. Dinheiro pra muita gente. Muito dinheiro. As trivialidades do backstage de uma banda mundialmente famosa: onde fazer show? Qual figurino? Com ou sem barba? Qual música? Vale cavocar na caixinha das esquecidas? E as lembranças que elas trazem?

Perto do final do episódio, George abandona a banda. John atira: “Se ele não voltar, chamamos o Clapton”. Fade out.

EPISÓDIO 2 – Dias 8 a 16

A pressão sobre a banda é imensa, principalmente a vinda da parte do diretor das filmagens, o tal mala, wannabe vilão do charuto Michael Lindsay-Hogg. Em 1969, as pessoas ainda não viviam em tempos onde se tem responsabilidade emocional (na maior parte, ainda elas não têm). Os produtores não medem as palavras, dão na lata que já faz quatro anos desde o último álbum-show e que esse tem que dar certo. Paul e John já estão afastados. John vive na bolha cor-de-rosa dele com a Yoko. Paul ressente o fato da banda não funcionar como um relógio suíço. Ringo e George não têm o mesmo protagonismo. Mas George foi o primeiro a levantar acampamento, principalmente pelas implicâncias de Lennon.

Numa reunião com a presença de Linda, rola uma reclamação sobre a Yoko falar pelo John. Não sei se foi proposital (por estar na frente das câmeras) ou não. Paul sai em defesa do young love dos dois. Fica claro que John tem dificuldades de conciliar seu amor pela Yoko e a dedicação necessária para os Beatles. O problema é, obviamente, o conflito de John. Alguém curte que alguma pessoa fale no lugar de um colega de trabalho/amigo? Eu não curto. E detesto que falem por mim. Talvez John não tivesse coragem de expor o que realmente sentia aos colegas de banda (chegou a pincelar esse assunto numa conversa com Paul) e usou Ono pra isso – ou não. Aqui as versões divergem, dependendo do testemunho. Porém fica claro que todos se sentem incomodados com a onipresença e a interferência da Ono. Machismo? Não sei. Nesse ponto restaram dois beatles: Ringo e Paul. E ninguém parece saber como continuar. Linda tenta participar das discussões e Paul rebate: “Fique fora disso, Yoko!”. Todos riem, inclusive Linda.

Outro take, outro dia. Do nada, aparece Peter Sellers pra um chit chat com John, Ringo & Paul. Assim como aparece, também some. Nonsense e encheção de linguiça. Aqui Peter Jackson mostra a sua incapacidade de síntese.

Os Beatles pleiteam a volta de George e John e mudam as gravações para os estúdios da Apple Corps e abandonam a ideia do especial para a TV. As coisas parecem melhorar. 

Ear candy pros fãs: começam as gravações, e a gente se sente um mega stalker adentrando solo sagrado. “Don’t Let Me Down”, “She Came In Through The Bathroom Window”, “Oh Darling”, “Get Back”, “Across The Universe”, “Dig A Pony”, “The Long And Winding Road”, “I’ve Got a Feeling”, “Two Of Us”, “Let It Be”. Tem tudo ali, como sai, como foi criado. Assim como a aula sobre centenas de artistas (muitos de blues) que inspiraram o som dos Fab Four. Lennon/McCartney é a dupla criativa dos sonhos (pelo menos para mim), George também tem suas participações, mas Ringo é quase um baterista contratado, sua contribuição não é extensiva. Se isso já não fosse claro antes, fica muito óbvio em “Get Back”. Assim como a assimetria das suas sobrancelhas.

Mas a força motriz, que finalmente impulsiona as gravações, chega na figura de Billy Preston (tecladista de Little Richard). Amigo de longa data dos Beatles (ainda do tempo da turnê em Hamburgo), ele assume o piano e parece resolver o último impasse técnico-criativo nas gravações. Oficialmente, Billy passou no estúdio apenas pra dar um “oi”. E ficou. Billy vira o quinto beatle no álbum. 

No impasse sobre o show/apresentação ao vivo para a TV previsto no começo das filmagens, todas as sugestões dadas são abandonadas, para o descontentamento de Paul. O que vejo é que ele simplesmente não queria que a experiência acabasse sem uma apresentação da banda. Interesse comercial? Apego saudosista? Whatevah. Achei fofo, sim. No final, alguém surge com a ideia de fazer o show no rooftop da Apple Corps. Paul se entusiasma na hora.

EPISÓDIO 3 – Dias 17 a 22

O terceiro episódio inicia com um raro momento somente entre Ringo e George, quando Ringo apresenta pra ele “Octopus’s Garden” ao piano. John chega e assume a bateria. Mais um clássico surgindo da jam das filmagens para o Abbey Road de 1969 (não tô citando nem de longe tudo que os quatro nos apresentam nessas oito horas de documentário… Watch and hear!).

Heather visita o estúdio com Paul. Primeira e única criança a fazer aparição no reality. Tem momentos fofura dela com a banda, inclusive no colo de Paul com ele tocando “Let It Be” ou brincando na bateria de Ringo. Mas assim como aparece ela some de novo e daí temos pela terceira vez (uma por episódio) a Yoko Ono berrando desafinada no microfone, no que chamam de “Freak Out”(imagino que fosse um exercício de descontração para todos). Pessoalmente esse seria o momento que eu, estando na produção, sairia pra fumar um baseado na rua ou tomar um rivotril. Imagino que tenha muita gente que deva achar os grunhidos e gemidos da Ono uma performance poderosa e libertadora. Count me out, eu não acho.

As discussões em torno dos aspectos técnicos das gravações são incessantes. Principalmente Paul mostra insatisfação com os PAs. A captação do som não é satisfatória: os quatro reclamam que não se escutam. Paul se coloca o tempo todo sob pressão e, como não teria como deixar de ser, quem se coloca sob enorme pressão exerce essa mesma pressão nos outros. Paul é um perfeccionista. Ainda não enxergo a pura ambição financeira, apenas a (auto)exigência artística. Portanto, acusar Paul de pensar apenas nos Beatles como uma “empresa” (como ele é frequentemente acusado) é um tremendo erro de julgamento (do ponto de vista de uma fã).

George apresenta “Something”, na qual ele trabalhou nos últimos seis meses. E a gente se derrete escutando. Só não derrete quem é feito de pedra diante de tanta doçura. Billy Preston testa um stylophone trazido pelo John ao estúdio. O mesmo modelo que dei de presente pra alguém num passado longínquo, o prateado original. Get Back is also forcing me back to old memories. Faz parte.

Paul fala: “O melhor de nós sai quando estamos sob pressão. With our backs against the wall”. Não acho que isso se aplique aos quatro da mesma forma. E, contrariando expectativas, John concorda com Paul. O ponto de divergência parece ser bem mais George. Ringo segue sendo Ringo, entrega o que se espera dele sem drama e sem crises. John quer mais pelo menos seis semanas no estúdio.

Dia 20 das gravações e apenas sete músicas são consideradas “prontas”. Michael, o “diretor” do filme, é uma figura extremamente irritante. Vemos aqui os tempos pré-reality/documentário de música, quando a expectativa é apresentar uma imagem polida e ordenada da banda. George não quer subir no terraço para a apresentação, contrariando os outros três que curtiram a idéia. Eles começam a ensaiar para o show.

Abbey Road encontra Let It Be. George quer partir para a carreira solo. “Fuck all that, I’m gonna do ME for a bit.”

Chega o dia do antológico Rooftop Concert. Câmeras foram posicionadas no prédio do outro lado da rua da Apple Corps. Dentro do estúdio, Glyn Johns (engenheiro de som) se prepara para gravar a apresentação. As pessoas começam a se juntar em telhados e na rua em frente ao prédio e a espicharem pescoços nas janelas. Em meia hora de show, a polícia londrina recebe 30 chamados de perturbação do silêncio. A produção faz o que pode pra impedir que os coppers invadam o terraço e acabem com a festa.

A partir daqui nem tem como narrar mais nada. Só ouvir mesmo. Esse spoiler eu não dou. É só arrepios.

The End.

——————————————————————

CONCLUSÃO (pulem pra cá se vocês não tiveram saco pro textão):

The Beatles: Get Back é sobre reminiscências. É uma espécie de ajuste de contas poético. Me senti uma penetra. Mesmo sem estar ali na cadeira entre Paul e John (como a Yoko Ono aparece em vários takes). Eles tinham um mundo só deles, por mais que divergissem em quase tudo. E eu admiro essa conexão, mesmo sabendo do risco e da intensidade desse tipo de comprometimento e suas consequências.

A qualidade de som e vídeo, a maestria de combinar o som com as imagens é indiscutível. É uma obra impecável (não esperaria diferente dessa parceria Disney/Jackson). Geral anda chamando Get Back do “Melhor Reality do Mundo”. Pra mim vai além, é uma documentação histórica.

Vale a pena, mas só pros fãs (tanto dos Beatles como do processo de criação musical). O que já inclui MUITA GENTE. 

Quem tem ranço dos Beatles ou não tem paciência para o formato “ensaio”/reality involuntário, já aviso: fica longe. Tu vai dormir.

Movies

A Crônica Francesa

Wes Anderson agora intercala cores vibrantes com o charme do preto e branco para contar cinco histórias sobre a derradeira edição de uma revista

Texto por Camila Lima

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Assistir a um filme novo de Wes Anderson é uma experiência que vem acompanhada de certas expectativas, considerando o estilo tão característico do cineasta. Por exemplo, uma estética estonteante e marcada pela forte presença da simetria e pelo uso meticuloso das cores ou personagens que refletem as mais diversas facetas humanas de forma cômica são coisas que você espera de uma obra do cineasta. E que, definitivamente, volta a encontrar em A Crônica Francesa (The French Dispatch, EUA/Alemanha, 2021 – Fox/Disney). 

A história inicia com a trágica morte do editor-chefe da The French Despatch of the Liberty Kansas Evening Sun, revista estadunidense com sede na fictícia cidade francesa de Ennui-sur-Blasé. Em seu testamento, Arthur Howitzer Jr (Bill Murray) determina o fim da publicação após sua passagem. Com isso, a redação se mobiliza para produzir a última edição. O nome é uma clara referência à New Yorker – o que se evidencia nos créditos finais, com a presença de ilustrações que imitam as clássicas capas da revista nova-iorquina. 

A estética dessa nova empreitada do diretor e roteirista não tem tanto os usuais tons pasteis e aquele visual que lembra uma mistura de art nouveau e ilustração de livro infantil. Este filme é algo que parece ser mais “maduro”, mais sóbrio. Porém, as cores são para dar sensações à narrativa, principalmente com a intercalação entre o charmoso preto e branco e o colorido. Este, uma coisa mais caótica embora meticulosamente calculada com o uso de cores bastante vibrantes e bem saturadas. Já a simetria, outra constante nas obras de Anderson, bate ponto de novo. Outros recursos também se repetem ao longo do filme, como o travelling e os takes parados com elementos em profundidades diferentes do plano

No entanto, o aspecto que talvez mais chame atenção em A Crônica Francesa seja o roteiro, justamente por apresentar maior complexidade do que é visto quando a assinatura é de Wes Anderson. O enredo se subdivide em cinco plots diferentes: o principal, centrado na redação da The French Despatch e na mobilização de seus jornalistas após a morte do editor-chefe, e outras quatro histórias correspondentes a quatro sessões da derradeira edição da revista. Para dar vida a esse jogo dramático, o filme conta com um elenco e tanto: Bill Murray, Owen Wilson, Edward Norton, Adrien Brody e Tilda Swinton (cinco que já trabalharam com o cineasta), mais “novidades” como Timothée Chalamet, Benicio del Toro, Léa Seydoux, Frances McDormand e Jeffrey Wright.

Em seu décimo longa-metragem, o texano galga mais um passo na fantasia cativante que habita seu universo particular, agora estendendo os tentáculos rumo à elegância do mais refinado e cultural país do velho continente. Quem já havia caído de amores por ele em algum ponto antecedente de sua trajetória cinematográfica marcada por pessoas improváveis e situações absurdas terá ainda mais motivos para continuar se encantando com a grife Wes Anderson. Pode ainda não conquistar as principais estatuetas do Oscar. Pode ainda estar longe de arrecadação blockbuster de bilheterias mundiais. Entretanto, suas encantadoras crônicas de uma sociedade divergente são o suficiente para, a cada novo filme, inscrever seu nome na galeria dos grandes da sétima arte deste século 21.

Music

Smashing Pumpkins

Há 25 anos, o surto de grandiloquência de Mellon Collie And The Infinite Sadness projetava a banda ao estrelato e cobrava um preço alto demais

Texto por Fábio Soares

Foto: Reprodução

Quando Robert Smith concebeu Disintegration ao mundo, em 1989, sabia que não poderia errar. Às vésperas de completar 30 anos de idade, o líder do Cure tinha a plena consciência de que o oitavo álbum da banda não tinha o direito de assumir o papel de peça descartável em sua discografia. Teria de alcançar o patamar de obra de arte, custe o que custasse. E se não o fez, chegou bem próximo a isso. Disintegration é, até hoje, objeto de culto e devoção de dez entre uma dezena de fãs dos ingleses. Sua atmosfera de sonho sublimemente musicou as dúvidas, tristezas e crises emocionais na entrada da terceira década de vida de qualquer indivíduo. A trilha sonora para meus problemas. Mesmo que eu já tenha passado dos 40.

Corta para 1995. William Patrick Corgan, líder dos Smashing Pumpkins, tinha 28 anos de idade quando estava em estúdio para gravar sua obra-prima antes de chegar à terceira dezena da idade. Apesar do relativo sucesso entre o público indieSiamese Dream, o álbum de 1993, foi ofuscado pelo movimento grunge e comeu a poeira que a turma de Seattle havia deixado na estrada. Dois anos mais tarde (e com a morte de Kurt Cobain, um ano antes) pertencia aos Pumpkins a bola da vez. O posto de maior banda do planeta estava vago. O momento era aquele e Corgan sabia muito bem disso.

Para o maior álbum de sua vida, Billy Corgan apostou alto: seria um CD duplo, sem fáceis aplausos ou momentos felizes. Seria um projeto triste com atmosfera de sonho. Melancólico como todas as viradas dos 29 para os 30 são.

Mellon Collie And The Infinite Sadness já nasceu grandioso. Partindo de seu projeto gráfico (na capa, a figura de um semianjo a partir de uma estrela) à concepção de seu luxuoso encarte, o álbum possuía 28 canções condensadas em duas metades conceituais e previamente batizadas. “Dawn To Dusk” (“do amanhecer ao anoitecer”, em português) representava o dia, a luz, a euforia das drogas propriamente dita. Já “Twilight To Starlight” (“do crepúsculo à luz das estrelas”) simbolizava a noite, a escuridão, a depressão após a passagem do efeito psicotrópico.

Sua audição continua não sendo fácil, mesmo após um quarto de século de seu lançamento – o disco chegou às lojas no dia 24 de outubro daquele ano. Mellon Collie… não é conceitual em sua acepção e se há algo neste sentido ao longo de quase 30 faixas é a atmosfera de colagens de imagens que vivenciamos durante um sonho. Se a hipnótica “To Forgive” dá passagem ao quase hardcore de “Fuck You (An Ode To No One)” no primeiro disco, no outro é o inverso que dá as cartas: a desconcertante beleza de “Stumbleine” abre espaço para “X.Y.U.”, um arrasa-quarteirão com sete minutos de duração e ares de heavy metal. Para quem estranhou, tarde demais! Afinal, Mellon Collie… vinha para confundir e não para explicar.

O fator MTV exerceu importante papel para o sucesso da megalomaníaca empreitada. A banda produziu poderosos videoclipes para os três hit singles do álbum: “Bullet With Butterfly Wings”, “1979” e “Tonight, Tonight”. No Video Music Awards de 1996, por causa deste último (cujas imagens prestavam uma grande homenagem ao pai dos efeitos especiais no cinema, o francês Georges Méliès), o quarteto comandado por Corgan passou o rodo na premiação com nada menos que seis troféus, incluindo “Clipe do Ano”. Tudo perfeito, não? Nada poderia dar errado…

Mas deu. A obsessão e perfeccionismo quase doentios de Billy Corgan em lançar “o álbum perfeito da vida, do mundo e do sistema solar” cobrou um preço alto demais à banda. Algumas sessões de gravação de Mellon Collie… atingiram inimagináveis dezoito horas consecutivas. O esgotamento físico e mental era evidente inclusive na turnê de promoção do disco.

Durante a passagem por São Paulo e Rio de Janeiro, na derradeira edição do festival Hollywood Rock, em janeiro de 1996, já era explícito o descompasso entre Corgan e a baixista D’Arcy, o guitarrista James Iha e o baterista Jimmy Chamberlain. E coube ao último ser protagonista do mais triste episódio da carreira da banda. Em julho do mesmo ano, em um quarto de hotel em Nova York e na companhia do baterista, o tecladista Jonathan Melvoin, que viajava contratado como músico de apoio, sofria uma fatal overdose de heroína. Chamberlain ganhou do chefe – que àquela altura já havia comprado dos outros três suas partes dos direitos da banda – a demissão sumária. Então, os Pumpkins foram lançados ao fundo do poço de um ano trágico.

Espera lá… Não era essa a real intenção de Mellon Collie…? As oposições? Tamanho sucesso acompanhado de uma tragédia como esta, não fazia parte do script? Procuro acreditar que tamanha densidade de obras como Mellon Collie… cobram seu preço de qualquer maneira. Para o bem ou para o mal. Não se concebe uma salada emocional como esta, repleta de lirismo e arranjos díspares, sem escapar impunemente. Sua concepção soa como nossas vidas: altos e baixos sem fim, transitando entre o sagrado e o profano. Sua audição merece atenção tão meticulosa que mesmo agora, 25 anos depois, ainda é possível descobrir novos detalhes que passaram até então despercebidos.

Billy Corgan quis nos dar uma obra de arte. Conseguiu. Quis ainda que ela nos marcasse por euforia e dor. Conseguiu também. E o que fica é que Mellon Collie And The Infinite Sadness será nossa válvula de escape a desafogar emoções diversas por muitos anos. Porque assim é a arte, propriamente dita. E porque é ao conjunto de tudo isso que dedicamos a alcunha “vida”. Mesmo que encharcada por melancolia. Mesmo que repleta de infinita tristeza. Mesmo que registrada no CD duplo mais vendido daqueles anos finais do século 20.