Anne Hathaway e Jessica Chastain provocam um tenso embarque em um thriller psicológico sobre maternidade e a falsa sensação de tranquilidade
Texto por Abonico Smith
Foto: Imagem Filmes/Califórnia Filmes/Divulgação
No mundo pós-guerra dos países desenvolvidos do século 20, o subúrbio significava esperança, prosperidade e tranquilidade. A classe média alta fazia as grandes cidades se expandirem e iam buscar ambientes confortáveis e saudáveis em residências construídas em espaços um tanto mais afastados, porém também relativamente próximos do centro urbano.
É no subúrbio que moram as inseparáveis amigas e também vizinhas Céline e Alice. Já tendo passado da casa dos 30 anos, ambas são felizes em seus casamentos perfeitos, com grandes partidos de maridos, rendas estáveis, proeminência em suas profissões e, o mais importante, realização como mães. Cada uma tem um filho e, como os meninos são quase irmãos (da mesma idade e estudam e brincam sempre juntos), tudo ainda se torna mais próximo daquela felicidade típica de comercial de margarina. Só que em dobro.
Assim começa Instinto Materno (Mother’s Instinct, EUA, 2024 – Imagem Filmes/Califórnia Filmes), novo filme com Anne Hathaway e Jessica Chastain encabeçando o elenco e também assinando como produtoras executivas. A história, na verdade, vem de um livro escrito pela belga Barbara Abel. Em 2018, o diretor e roteirista também nascido na Bélgica Olivier Masset-Depasse levou às telas uma adaptação da trama, que agora ganha versão hollywoodiana, mas sem mexer muito na estrutura original de Abel, que também assina o roteiro das duas versões. Os nomes mudaram um pouquinho mas a ambientação não: a tranquilidade do subúrbio parisiense passou para a de um não especificado nos EUA. Já a temporalidade permanece ali bem no início dos anos 1960, quando o poder nas mãos da família Kennedy passava uma enorme sensação de segurança aos EUA, mesmo com a Guerra Fria e outros conflitos rolando soltos longe do território nacional.
O ponto de não retorno ocorre quando Max, filho de Céline (Hathaway), perde a vida em uma tragédia doméstica que poderia muito bem ter sido evitada. É neste exato momento que as amigas passam a divergir radicalmente. Alice (Chastain) entra em uma espiral de paranoia e passa a desconfiar de tudo e a todo instante da vizinha. Estaria ela, talvez com a ajuda do marido, manipulando tudo secretamente a ponto de realmente ser uma ameaça para sua família? Ao se aproximar do pequeno Theo como forma de superar o luto e continuar exercendo o papel da maternidade, estaria ela, de fato, comportando-se como uma ameaça velada também à vida de seu filho?
Neste enredamento de suposições e frequentes crises de pânico, quem está na poltrona do cinema embarca junto com uma ótima atuação de Jessica. Só que pequenos detalhes vão dando, pouco a pouco, pistas do que pode estar acontecendo. Dica: um deles é a paleta de cor que vai sendo disponibilizada pelos figurinos de ambas as mulheres. Quanto a isso, quem gosta daqueles tons pastel bastante em voga naquela época vai vibrar, inclusive.
O thriller psicológico que estabelece a estreia na direção do francês Benoit Delhomme (que foi o diretor de fotografia na versão belga da história e só assumiu este longa porque Masset-Depasse precisou se afastar para focar em outro projeto) joga você, junto com a protagonista loira, em aspectos bem mundanos e sombrios que se escondem por trás da falsa felicidade do cotidiano nos subúrbios do lado de cima da linha do Equador. Mas também faz pensar sobre os sentimentos de luto e perda além de papeis e funções exercidas durante relacionamentos como a amizade e, sobretudo, a maternidade. Tudo com a perfeita química estabelecida neste terceiro trabalho em conjunto entre Hathaway e Chastain mais a tensão exigida pelo decorrer da trama criada por Abel.
Como o pai que sonhou em transformar as filhas Venus e Serena Williams em supercampeãs do tênis, Will Smith brilha em outro “filme de Will Smith”
Texto por Taís Zago
Foto: Warner/Divulgação
Richard Williams (Will Smith) não é mundialmente famoso pelos seus feitos ou talentos. Ele é famoso por ser o pai de Venus (Saniyya Sidney) e Serena Williams (Demi Singleton), as duas tenistas mais famosas e entre as mais espetaculares da história do tênis feminino. E este filme é quase que totalmente sobre ele – como o título King Richard: Criando Campeãs (King Richard, EUA, 2021 – Warner) não deixa duvida.
Richard também nunca foi atleta, ele trabalhava de guarda-noturno em um mall. Apesar do seu anunciado amor pelo tênis, segundo consta em sua própria biografia, ele decidiu treinar suas filhas no esporte após ver uma reportagem na TV sobre atletas femininas que ganhavam prêmios de até 40 mil dólares por torneios de “apenas” quatro dias. A decisão havia sido tomada e antes mesmo delas nascerem ele já tinha elaborado um plano de 78 páginas de como faria isso se tornar realidade. Oracene “Brandy” (Aunjanue Ellis), sua segunda esposa e mãe de Venus e Serena, acompanhou-o em seus sonhos e, apesar de ter outra profissão e muitas vezes ter que trabalhar sozinha para sustentar a família de sete pessoas, aprendeu a jogar tênis somente para ajudar no treino das meninas.
O casal, principalmente Richard, vislumbrou para as jovens tenistas um futuro de sucesso e dinheiro. E o peso dessa decisão nós sentimos na pressão enorme dele sobre as filhas, algo que fica claro em cada minuto filmado. Richard é turrão, teimoso e exige que elas treinem sem parar, faça sol ou chuva, frio ou calor. Ainda sobra tempo para ele adicionar ao pacote lições sobre humildade (as quais nem sempre segue em seu próprio comportamento). Já Brandy acalentava as meninas e fazia o que podia para garantir que elas tivessem uma vida normal de adolescentes apesar da rigidez do pai.
Para nós, que assistimos aos devaneios megalomaníacos de Richard, eles acabam por fazer sentido pois já conhecemos o desfecho dessa história. Sabemos tudo o que Venus e Serena fizeram pelo tênis norte-americano, pela visibilidade das mulheres pretas nos esportes antes somente guardados para as brancas. Sabemos da importância e do significado de suas vitórias, como esportistas e como exemplos de emancipação e independência feminina. Vimos o racismo que suportaram em episódios não muito bem encobertos pela mídia. Acompanhamos as barreiras e os recordes que quebraram. Mas, infelizmente, esses fatos não fazem parte do filme dirigido por Reinaldo Marcus Green. O foco aqui são os primeiros anos das duas atletas no esporte mais a figura central (e polarizante) de seu pai.
Will Smith interpreta em King Richard uma espécie de versão madura dos papéis que lhe deram prêmios e indicações – como Ali e Em Busca da Felicidade. Mesmo assim não consigo evitar a sensação de que, em papéis dramáticos, o ator é um one trick pony, tem um talento restrito a poucas nuances. Mas ainda é o Will Smith, o Fresh Prince Of Bel-Air, o Man In Black, um comediante nato. Portanto, com uma expressão aqui, um trejeito ali, discretamente, ele empresta um certa simpatia para o senhor ranzinza do título.
O filme foi feito baseado nas biografias do próprio Richard (Black & White – The Way I See It) e de Serena (My Life – Queen Of The Court), Venus e Serena foram consultadas, acompanharam as filmagens e autorizaram a versão que foi editada. Zach Baylin assina o roteiro que passou pelo crivo da irmã Isha Price (que é citada nos créditos como produtora executiva) e por Oracene.
Ficam bastante claros os esforços que foram feitos para Richard navegar entre mocinho e vilão, mas sem nunca adentrar algum dos extremos, o que torna o filme uma homenagem que em alguns momentos costeia a hagiografia. A intenção das irmãs Price e Williams foi uma correção da imagem do pai, que não raramente, era representado como superprotetor, e exagerado. Elas queriam dar a ele o reconhecimento pelo amor, engajamento e determinação que investiu em suas carreiras. Porém, nem toda a doçura e cuidado tira o gosto amargo de King Richard ser mais um one man show do Will Smith. A câmera está sempre nele, sendo que as reais queens aqui deveriam ser Serena e Venus. Por mais que Richard mereça reconhecimento, o seu papel não renderia um filme sem o brilho das estrelas das filhas.
As atrizes Saniyya Sidney (Venus), Demi Singleton (Serena) e Aunjanue Ellis (Brandy) fazem maravilhas com o pouco de material que tiveram em mãos. Mesmo sem poderem aprofundar seus conflitos e sentimentos, elas impressionam. As meninas que tiveram de aprender a jogar tênis para seus papéis, e foram além: elas aprenderam as técnicas das irmãs Williams. O grande amor e a amizade entre as irmãs, que são cinco no total, também fica bastante evidente. O laço entre elas é bonito e comovente.
E aqui, se me permitem a sinceridade, era esse o filme que eu realmente gostaria de ver. Bem feito, com todo o esmero de produção, com Richard direitinho no seu papel, mas com o foco em Serena e Venus. Como essas duas mulheres espetaculares enxergam seu começo de carreira? Quais foram suas dificuldades? Quais suas pequenas/grandes vitórias pessoais? Os troféus nós conhecemos. Quais seus medos? Suas inseguranças? Elas, sim, somente elas são a razão dessa caminhada existir. Independentemente da dureza com que foram treinadas, do que foram privadas e do que abdicaram, essas duas mulheres são um grande exemplo de talento e perseverança. Criar um filme em torno do pai delas me parece ignorar seus protagonismos na história. Nos deixa a sensação de talentos moldados pelas mãos dos homens, quer seja Richard ou os treinadores Paul Cohen e Rick Macci.
Do ponto de vista da execução se trata de uma sport bio feita com todo o esmero. Aliás, acima da média, tanto que está merecidamente concorrendo em cinco categorias ao Oscar – filme, edição, ator, atriz coadjuvante, roteiro original. Então, vale bastante a pena assistir a ela.
Os bastidores do Rooftop Concert, que marcou a despedida da banda em show feito no terraço da Apple e chega agora aos cinemas brasileiros
Texto por Taís Zago
Fotos: Disney+/Divulgação
The Beatles: Get Back (Reino Unido/Nova Zelândia/EUA, 2021 – Disney+), é uma despedida. É sobre as sessões de filmagem dos ensaios dos Fab Four, em janeiro de 1969 no Twickenham Studio (depois no Apple Corps Studio), para o novo álbum com 14 músicas e para um projeto especial/documentário, que, em teoria, deveria marcar a volta da banda, mas que culminou com o fim dela com o famoso último show no terraço da AppleCorps em Londres. São três episódios divididos pelos 21 dias de filmagens, num total de 468 minutos de duração. O último deles, o tal Rooftop Concert propriamente dito, chega aos cinemas brasileiros em sessões especiais espalhadas por redes de dez cidades até o próximo domingo, 13 de fevereiro.
(ACHTUNG! Daqui dá pra pular direto pras conclusões finais para quem não tem paciência para as minhas chorumelas de fã ou não suporta SPOILERS de qualquer tipo).
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Tá aí ainda? So here we go…
Primeiramente (dedinho em riste!), sou beatlemaníaca. Daquelas que detestou o filme piadista Yesterday ou a romcom Across The Universe, que lê tudo que acha sobre os caras e ama a música desde sempre (ou pelo menos desde que aprendi o que era música na infância). Então este texto não é isento de idolatria, não é imparcial e muito menos é justo com todos os envolvidos. É passação de pano. TEJEM AVISADOS!
“Segundamente”, quero deixar claro que não sou lá muito fã do estilo bigger/brighter/better/greater de Peter Jackson. O cara adora um filme que nunca acaba. As 7+ horas de OSenhor dos Anéis me pareceram mais longas do que ler a trilogia, que, casualmente, eu adoro e tem um local especial no meu coraçãozinho nerd.
EPISÓDIO 1 – Dias 1 e 7
Começo logo com papo de groupie: o fenômeno Yoko Ono não pode ser ignorado. Ela estava em todo o lugar. Tava ali na frente da câmera costurando, comendo, escrevendo, pintando, escondendo a cara nas filmagens, cutucando o Lennon, deitando no ombro dele, sentada junto no banco do piano ou numa cadeira colada com a dele. Ela tava ali, quase como uma segunda pele do John. A única pessoa fora da banda e fora da equipe de produção com essa proximidade toda em todos os 21 dias de filmagens. Linda Eastman, assim como outras moças, também aparece, mas fica tirando fotos de longe, observando. É uma presença relaxante. Ela não reivindicou pra si quaisquer protagonismo e meio que alfineta a Ono nisso (tenho que registrar!). E não, não se trata de machismo: poderia ser o filho, a mãe, o namorado de qualquer um ali. Me pareceu um tanto intromissivo e inconveniente.
Já nos primeiros 15 minutos do episódio (e nos 15 últimos, com a Ono berrando no microfone no chamado “Freak Out”) isso me incomodou. Aí eu me perguntei: forçaram a barra pra provar a teoria do efeito Yoko Ono na edição? Quiseram tirar o fiofó do George, do Paul e do próprio John da reta na culpa pela separação? O Lennon obrigava a Yoko a ficar junto dele pra receber o tempo todo aprovação? Ou a relação dela com o Lennon era realmente a de dois carrapatos insuportáveis que não davam um peido sem o outro atrás cheirando? Eu não sei a resposta. Mas me deu incômodo me imaginar no lugar dos outros três músicos que estavam ali. Talvez porque eu seja uma pessoa que detesta ter alguém olhando por cima do meu ombro ou colado em mim enquanto trabalho. Se Lennon e Yoko fossem hoje um casal, acho que seriam daqueles com perfil compartilhado no fêice chamado “Yonnon/Leko”. Not a good picture. Pelo menos não para mim, que curto não ter um gêmeo siamês como par romântico.
Eu também vi aqui claramente quatro caras que se sentem meninos e sentam no colo das suas mulheres (ou pelo menos John e Paul). Sim, tem aquela infantilização masculina clássica. Os Beatles não foram os primeiros e nem os últimos nisso. E não estou normalizando comportamento tóxico. As mulheres são forçadas em posições desconfortáveis, onde fatalmente são pintadas como bruxas por orbitarem em torno de seus reizinhos (que demandam isso delas).
Intrigas/fofocas/brigas à parte. Que banda, meus amigos! Que banda! Quem nessa vida já assistiu a alguma gravação, ou ensaio ou mesmo uma jam de músicos sabe do que tô falando. Eles eram uma fonte exuberante de criatividade e talento. O som não mente. A gente entende a grandeza dessa instituição que começou como uma boy band produzida pelo Brian Epstein. A gente escuta e vê, é trabalho, é cansaço, é um estresse tremendo, mas também é prazer. A gente enxerga isso nos olhares trocados, nas discussões, nos sorrisos, nas lembranças. O talento flui dos dedos e das bocas.
Mas sim, também é (era) NEGÓCIO. Dinheiro pra muita gente. Muito dinheiro. As trivialidades do backstage de uma banda mundialmente famosa: onde fazer show? Qual figurino? Com ou sem barba? Qual música? Vale cavocar na caixinha das esquecidas? E as lembranças que elas trazem?
Perto do final do episódio, George abandona a banda. John atira: “Se ele não voltar, chamamos o Clapton”. Fade out.
EPISÓDIO 2 – Dias 8 a 16
A pressão sobre a banda é imensa, principalmente a vinda da parte do diretor das filmagens, o tal mala, wannabe vilão do charuto Michael Lindsay-Hogg. Em 1969, as pessoas ainda não viviam em tempos onde se tem responsabilidade emocional (na maior parte, ainda elas não têm). Os produtores não medem as palavras, dão na lata que já faz quatro anos desde o último álbum-show e que esse tem que dar certo. Paul e John já estão afastados. John vive na bolha cor-de-rosa dele com a Yoko. Paul ressente o fato da banda não funcionar como um relógio suíço. Ringo e George não têm o mesmo protagonismo. Mas George foi o primeiro a levantar acampamento, principalmente pelas implicâncias de Lennon.
Numa reunião com a presença de Linda, rola uma reclamação sobre a Yoko falar pelo John. Não sei se foi proposital (por estar na frente das câmeras) ou não. Paul sai em defesa do young love dos dois. Fica claro que John tem dificuldades de conciliar seu amor pela Yoko e a dedicação necessária para os Beatles. O problema é, obviamente, o conflito de John. Alguém curte que alguma pessoa fale no lugar de um colega de trabalho/amigo? Eu não curto. E detesto que falem por mim. Talvez John não tivesse coragem de expor o que realmente sentia aos colegas de banda (chegou a pincelar esse assunto numa conversa com Paul) e usou Ono pra isso – ou não. Aqui as versões divergem, dependendo do testemunho. Porém fica claro que todos se sentem incomodados com a onipresença e a interferência da Ono. Machismo? Não sei. Nesse ponto restaram dois beatles: Ringo e Paul. E ninguém parece saber como continuar. Linda tenta participar das discussões e Paul rebate: “Fique fora disso, Yoko!”. Todos riem, inclusive Linda.
Outro take, outro dia. Do nada, aparece Peter Sellers pra um chit chat com John, Ringo & Paul. Assim como aparece, também some. Nonsense e encheção de linguiça. Aqui Peter Jackson mostra a sua incapacidade de síntese.
Os Beatles pleiteam a volta de George e John e mudam as gravações para os estúdios da Apple Corps e abandonam a ideia do especial para a TV. As coisas parecem melhorar.
Ear candy pros fãs: começam as gravações, e a gente se sente um mega stalker adentrando solo sagrado. “Don’t Let Me Down”, “She Came In Through The Bathroom Window”, “Oh Darling”, “Get Back”, “Across The Universe”, “Dig A Pony”, “The Long And Winding Road”, “I’ve Got a Feeling”, “Two Of Us”, “Let It Be”. Tem tudo ali, como sai, como foi criado. Assim como a aula sobre centenas de artistas (muitos de blues) que inspiraram o som dos Fab Four. Lennon/McCartney é a dupla criativa dos sonhos (pelo menos para mim), George também tem suas participações, mas Ringo é quase um baterista contratado, sua contribuição não é extensiva. Se isso já não fosse claro antes, fica muito óbvio em “Get Back”. Assim como a assimetria das suas sobrancelhas.
Mas a força motriz, que finalmente impulsiona as gravações, chega na figura de Billy Preston (tecladista de Little Richard). Amigo de longa data dos Beatles (ainda do tempo da turnê em Hamburgo), ele assume o piano e parece resolver o último impasse técnico-criativo nas gravações. Oficialmente, Billy passou no estúdio apenas pra dar um “oi”. E ficou. Billy vira o quinto beatle no álbum.
No impasse sobre o show/apresentação ao vivo para a TV previsto no começo das filmagens, todas as sugestões dadas são abandonadas, para o descontentamento de Paul. O que vejo é que ele simplesmente não queria que a experiência acabasse sem uma apresentação da banda. Interesse comercial? Apego saudosista? Whatevah. Achei fofo, sim. No final, alguém surge com a ideia de fazer o show no rooftop da Apple Corps. Paul se entusiasma na hora.
EPISÓDIO 3 – Dias 17 a 22
O terceiro episódio inicia com um raro momento somente entre Ringo e George, quando Ringo apresenta pra ele “Octopus’s Garden” ao piano. John chega e assume a bateria. Mais um clássico surgindo da jam das filmagens para o Abbey Road de 1969 (não tô citando nem de longe tudo que os quatro nos apresentam nessas oito horas de documentário… Watch and hear!).
Heather visita o estúdio com Paul. Primeira e única criança a fazer aparição no reality. Tem momentos fofura dela com a banda, inclusive no colo de Paul com ele tocando “Let It Be” ou brincando na bateria de Ringo. Mas assim como aparece ela some de novo e daí temos pela terceira vez (uma por episódio) a Yoko Ono berrando desafinada no microfone, no que chamam de “Freak Out”(imagino que fosse um exercício de descontração para todos). Pessoalmente esse seria o momento que eu, estando na produção, sairia pra fumar um baseado na rua ou tomar um rivotril. Imagino que tenha muita gente que deva achar os grunhidos e gemidos da Ono uma performance poderosa e libertadora. Count me out, eu não acho.
As discussões em torno dos aspectos técnicos das gravações são incessantes. Principalmente Paul mostra insatisfação com os PAs. A captação do som não é satisfatória: os quatro reclamam que não se escutam. Paul se coloca o tempo todo sob pressão e, como não teria como deixar de ser, quem se coloca sob enorme pressão exerce essa mesma pressão nos outros. Paul é um perfeccionista. Ainda não enxergo a pura ambição financeira, apenas a (auto)exigência artística. Portanto, acusar Paul de pensar apenas nos Beatles como uma “empresa” (como ele é frequentemente acusado) é um tremendo erro de julgamento (do ponto de vista de uma fã).
George apresenta “Something”, na qual ele trabalhou nos últimos seis meses. E a gente se derrete escutando. Só não derrete quem é feito de pedra diante de tanta doçura. Billy Preston testa um stylophone trazido pelo John ao estúdio. O mesmo modelo que dei de presente pra alguém num passado longínquo, o prateado original. Get Backis also forcing me back to old memories. Faz parte.
Paul fala: “O melhor de nós sai quando estamos sob pressão. With our backs against the wall”. Não acho que isso se aplique aos quatro da mesma forma. E, contrariando expectativas, John concorda com Paul. O ponto de divergência parece ser bem mais George. Ringo segue sendo Ringo, entrega o que se espera dele sem drama e sem crises. John quer mais pelo menos seis semanas no estúdio.
Dia 20 das gravações e apenas sete músicas são consideradas “prontas”. Michael, o “diretor” do filme, é uma figura extremamente irritante. Vemos aqui os tempos pré-reality/documentário de música, quando a expectativa é apresentar uma imagem polida e ordenada da banda. George não quer subir no terraço para a apresentação, contrariando os outros três que curtiram a idéia. Eles começam a ensaiar para o show.
Abbey Road encontra Let It Be. George quer partir para a carreira solo. “Fuck all that, I’m gonna do ME for a bit.”
Chega o dia do antológico Rooftop Concert. Câmeras foram posicionadas no prédio do outro lado da rua da Apple Corps. Dentro do estúdio, Glyn Johns (engenheiro de som) se prepara para gravar a apresentação. As pessoas começam a se juntar em telhados e na rua em frente ao prédio e a espicharem pescoços nas janelas. Em meia hora de show, a polícia londrina recebe 30 chamados de perturbação do silêncio. A produção faz o que pode pra impedir que os coppers invadam o terraço e acabem com a festa.
A partir daqui nem tem como narrar mais nada. Só ouvir mesmo. Esse spoiler eu não dou. É só arrepios.
The End.
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CONCLUSÃO (pulem pra cá se vocês não tiveram saco pro textão):
The Beatles: Get Back é sobre reminiscências. É uma espécie de ajuste de contas poético. Me senti uma penetra. Mesmo sem estar ali na cadeira entre Paul e John (como a Yoko Ono aparece em vários takes). Eles tinham um mundo só deles, por mais que divergissem em quase tudo. E eu admiro essa conexão, mesmo sabendo do risco e da intensidade desse tipo de comprometimento e suas consequências.
A qualidade de som e vídeo, a maestria de combinar o som com as imagens é indiscutível. É uma obra impecável (não esperaria diferente dessa parceria Disney/Jackson). Geral anda chamando Get Back do “Melhor Reality do Mundo”. Pra mim vai além, é uma documentação histórica.
Vale a pena, mas só pros fãs (tanto dos Beatles como do processo de criação musical). O que já inclui MUITA GENTE.
Quem tem ranço dos Beatles ou não tem paciência para o formato “ensaio”/reality involuntário, já aviso: fica longe. Tu vai dormir.
Documentário disseca a personalidade de um dos mais curiosos e controversos personagens da cultura pop do final do século 20
Texto por Fábio Soares
Foto: Netflix/Divulgação
Quem está na faixa dos 40 anos, como eu, lembra-se bem da invasão dos serviços 0900 no Brasil na reta final dos anos 1990. Eram quilométricos números telefônicos que ofereciam de tudo: sexo virtual, loterias, receitas culinárias, salas de bate-papo e, acima de tudo, previsões astrológicas. E na esteira desta demanda por good vibrations emanadas de call centers, uma figura destacava-se das demais. Um andrógino cujo visual emulava um misto de Clóvis Bornay e Hebe Camargo. Seu nome: Walter Mercado Salinas.
Nascido numa fazenda em Ponce, Porto Rico, em 1932, o pequeno Walter já apresentava distinto comportamento dos demais garotos de sua idade desde pequeno. Não se misturava ou andava a cavalo como os demais. Passava seus dias lendo muitos livros e aprendendo piano, sempre com o incentivo de sua mãe “Ser diferente era um dom, ser comum era a regra. Eu sabia que não era comum”, dizia sobre sua adolescência. Neste período ele descobriu duas de suas grandes paixões: o teatro e a dança. Sua beleza chamou a atenção da Univision, principal emissora portorriquenha, e não demorou muito para que o dândi se transformasse num astro das telenovelas locais.
Sua paixão pelo teatro, no entanto, perdurava. E foi em uma de suas idas a um programa de auditório local para a divulgação de uma peça que o milagre aconteceu: vestido com o figurino do espetáculo, Mercado foi incentivado a falar também de uma outra coisa bem diferente. “Walter, você leu as mãos de todos os integrantes da produção antes de ir ao ar. Fale um pouco sobre astrologia para nossos telespectadores”, disse o apresentador. Como uma metralhadora giratória e com largo e hipnotizante gestual, Mercado percorreu os doze signos do zodíaco falando sobre fé, força e, sobretudo, amor. O público, em casa, foi à loucura! Congestionou as linhas telefônicas da emissora e exigiu o retorno da exótica criatura já no dia seguinte. E o que começou como um quadro fixo de quinze minutos, transformou-se numa atração própria (e diária) com uma hora de duração, quebrando todos os índices de audiência na época.
Sua androginia foi fundamental para transformá-lo num exemplo para a comunidade gay local. Numa Porto Rico devastada por uma sociedade machista e homofóbica, Mercado era o super-herói queer. Com notável coragem, transitava entre a figura do amante latino e da bicha de meia-idade, jamais assumindo publicamente sua homossexualidade e dando um nó na cabeça de seus detratores. “Fazem piadas com minha imagem porque, no fundo, gostariam de ser iguais a mim”, bradava, dotado de fúria dissonante ao seu temperamento. Não se assumir foi o preço a se pagar para se obter a paz. Triste, porém, necessário.
Era a metade dos anos 1970 e a popularidade de Mercado na América Central explodia de maneira vertiginosa, seguindo intacta por toda a década de seguinte. A “mambembice” da TV portorriquenha, entretanto, parecia pouco para seu potencial midiático. Potencial este que chamou a atenção de um sujeito chamado Bill Bakula. Conquistando a confiança de Walter, Bakula levou-o ao mercado que interessava: os Estados Unidos. E não demorou para o astrólogo transformar-se num fenômeno pop junto à comunidade latina. O alcance de seu midiatismo parecia não ter limites: encontrou-se com Bill Clinton e concedeu consultas particulares a Ronald Reagan. Tornou-se celebridade também no Reino Unido e na Península Ibérica. E sua chegada ao Brasil justamente coincidiu com a onda 0900.
Ligue Djá: O Lendário Walter Mercado (Mucho Mucho Amor: The Legend Of Walter Mercado, EUA, 2020 – Netflix), disponibilizado em julho diretamente em streaming, fornece ao público respostas para um par de fundamentais questionamentos: Walter Mercado realmente era o charlatão alardeado aos quatro ventos e virou motivo de piada em solo brasileiro no final dos anos 1990? Por que ele sumiu da mídia em 2006 e nunca mais retornou aos holofotes até pouco antes de sua morte, ocorrida em novembro de 2019?Durante cerca de uma hora e meia Ligue Djá desconstrói o mito, ao passo que a figura humana por trás do personagem se sobressai. Por baixo de toda sua exacerbada excentricidade, opulência, capas, joias e anéis, havia uma pessoa comum. Um religioso filho de Deus, um fã de Oscar Wilde que no fundo queria ser como Dorian Gray: “Meu retrato envelhecerá, mas não minha imagem”, costumava afirmar o emplasticado comunicador que permanentemente ansiava em emanar sua mensagem, eternamente finalizada com a frase “mucho, mucho amor” (slogan que no Brasil, graças ao serviço 0900 e ao carregado sotaque, transformou-se em português no imperativo “ligue djá”).
Diretor alemão aposta em ritmo dinâmico, bela fotografia e críticas sociais nas entrelinhas desta trama sem diálogos
Texto por Janaina Monteiro
Foto: Pandora/Divulgação
Prender a atenção do público na poltrona do cinema para assistir a um filme falado já é tarefa que exige criatividade. Imagine, então, se for uma história sem diálogos. Além de trama engenhosa, é preciso, sobretudo, expressividade do elenco, trilha sonora empolgante e um ritmo dinâmico na montagem. De Quem é o Sutiã? (Vom Lokführer, der die Liebe suchte…, Alemanha/Azerbaijão, 2018 – Pandora) consegue reunir alguns desses requisitos, mas exige uma certa dose de paciência por parte do espectador.
O filme é uma verdadeira torre de babel: trata-se de uma produção alemã, rodada no Azerbaijão (ex-república soviética na Ásia Ocidental que tem a tradição do cinema azeri) e com um time de atores e atrizes de países como Bósnia, Geórgia, Sérvia, Rússia, Espanha (de onde vem Paz Vega, numa curta aparição aqui) e França (representada por Denis Lavant). Alguns espectadores – que não costumam ler críticas antes de assistir ao filme – chegam ao cinema surpresos com o fato de a história ser muda. Pensam até em desistir, mas você, que veio até aqui neste texto, nem pense em fazer isso! O diretor alemão Veit Helmer, esforçadamente, consegue segurar o público na poltrona aproveitando a bela fotografia (que mostra as montanhas do Cáucaso), trilha sonora que lembra a de O Fabuloso Destino de Amelie Poulain e um enredo que nos remete a filmes do cineasta francês Jacques Tati.
O protagonista é o maquinista interpretado pelo sérvio Predrag “Miki” Manojlović. Prestes a se aposentar e passar o bastão para seu sucessor Kamal (Lavant), Nurlan realiza suas últimas viagens pela capital Baku. O trem passa por vielas que ficam a centímetros dos trilhos e, por isso, vive arrancando uma peça de roupa do varal. Sempre ao final do expediente, Nurlan cumpre o ritual de devolver o objeto para o morador, seja um lençol ou uma bola de uma criança que ficou presa no veículo, e caminha como um príncipe à procura de sua Cinderela.
Na primeira parte do filme, o espectador se familiariza com a rotina de Nurlan, um homem solitário, que tenta pedir em vão a mão de uma jovem moradora da região. Para isso é preciso pagar o dote da noiva, mas ele não consegue por não ter força suficiente, não o dinheiro.
Numa de suas últimas viagens, o trem fisga um sutiã azul e branco. Nurlan fica obcecado pela imagem da mulher, dona da lingerie. Como se trata de uma peça íntima, no início, ele tenta se desfazer do acessório por pudor, mas o dever de devolvê-lo fala mais alto. Depois de um prólogo arrastado, pode-se dizer, então, que a saga de Nurlan começa e o protagonista, lembrando Walter Matthau, bate de porta em porta no vilarejo para encontrar a dona dos seios que se encaixam na numeração do sutiã. Obviamente, a ousadia é vista com desconfiança por todos. Afinal, onde já se viu um idoso entrar na casa de mulheres, viúvas, mães de família com filhos pequenos para criar, mulheres da vida, idosas, adolescentes e entregar a peça íntima para que elas o provem? Para piorar, ninguém fala no filme, seja pra gritar “socorro” ou dizer “seja bem-vindo”. Por isso, os gestos abertos e principalmente as expressões, como sorriso largo e olhos arregalados, são os condutores da performance narrativa.
Até então, o filme parece se tratar de uma fábula encantadora, singela e sutil. Contudo, o roteiro vem acompanhado de um recheio que não lembra a doçura de um manjar turco. A começar por um menino cuja função é avisar os moradores quando o trem se aproxima. O garoto, a grande surpresa da trama, sai correndo com um apito a tiracolo sempre que escuta o outro apito, o do trem. O menino, que também ”trabalha” de garçom num bar, sendo tratado como um cachorro pelo dono, ajuda Nurlan a encontrar o sutiã. Nas entrelinhas da história, também é possível perceber a crítica ao machismo. Volta e meia o maquinista é expulso da casa das donzelas pelo marido barbudo que trata a esposa como propriedade.
A história até chega a arrancar alguns risos da plateia, mas não gargalhadas. Quando se aproxima do final, o mesmo flashback repetido uma série de vezes torna a narrativa um pouco cansativa. Só que vale a pena esperar pelo desfecho poético, emocionante e digno até de provocar lágrimas.