Music

Nenhum de Nós – ao vivo

Sem um integrante, banda apresenta em Curitiba uma acentuada veia rock’n’roll jamais vista em shows anteriores

Texto por Abonico Smith

Fotos de iaskara

Quando vou escrever o texto de alguma resenha procuro pensar numa ideia referente ao objeto da análise. Pode ser algo sobre o artista, a obra, o público-alvo, mas necessariamente precisa poder me dar algum assunto para discorrer sobre, defender alguma teoria – seja positiva ou negativa – a respeito disso. Quando solicitei o credenciamento para realizar a cobertura da recente passagem do Nenhum de Nós por Curitiba fiquei matutando a respeito do que iria ser a costura do texto.

Acabei me fixando em um ponto curioso. Ainda são várias as bandas que colocaram o rock no mainstream brasileiro a partir dos anos 1980 que permanecem em atividade. Isso que dizer que lá se vão entre três e quatro décadas continuas de shows e lançamentos de discos (no formato do momento do mercado fonográfico que fosse). Só quase todas sofreram com perdas pelo caminho. Mortes, desentendimentos, rompimentos e saídas dos integrantes de suas formações, se não a original, a clássica, aquela que ficou conhecida pelo grande público. Só para citar algumas que permanecem vivas: Blitz, Rádio Táxi, RPM, Barão Vermelho, Titãs, Ultraje a Rigor, Ratos de Porão, Mercenárias, Replicantes, Ira!, Capital Inicial, Biquíni, Inocentes, Plebe Rude, Legião Urbana (ops, essa não pode, judicialmente, nem utilizar o próprio nome durante as turnês!). Se o panorama se estender para os anos 1990, outra década de ouro do gênero no Brasil, temos Raimundos, Nação Zumbi, mundo livre s/a, Planet Hemp, Natiruts, Relespública, Sepultura e por aí vai. Caso você queira estender o panorama aos anos 1970, dá para adicionar dois heróis da resistência bem famosos, que mais recentemente decidiram retomar a trajetória como conjunto: Mutantes e Novos Baianos.

São poucos os exemplos quem sobreviveu ao desmonte mantendo o mesmo time clássico de músicos. Pode-se começar por aquelas exceções graças a curiosidades. O Los Hermanos só volta a se reunir em turnês esporádicas a cada três ou quatro anos. O Skank permaneceu unido até o começo deste ano até, enfim, dar adeus aos palcos. O Pato Fu iniciou como um trio que está lá até hoje na linha de frente, embora outros instrumentistas (teclados, bateria, percussão) tenham ido e vindo na formação. Dá para contar nos dedos de uma mão aqueles que permanecem intocáveis: Jota Quest, Racionais MCs (ainda mais para quem defende a teoria de que o rap é o novo rock), Paralamas do Sucesso (que inclusive montaram um show baseado no trio-que-vira-quarteto, com o tecladista que toca com eles desde sempre) e, o foco deste texto, Nenhum de Nós. Muitos músicos dizem que fazer parte de uma banda é como manter um casamento, quase sempre com mais de duas pessoas envolvidas. Por isso dar continuidade ao relacionamento acaba virando algo difícil quanto com o passar dos anos. Sem falar no sempre eterno Made In Brazil.

O Nenhum de Nós é um caso interessante quanto a isso. Começou em Porto Alegre em 1986 como um trio (Thedy Corrêa, baixo e voz; Carlos Stein, guitarra; Sady Homrich, bateria) e nos anos seguintes gravou os dois primeiros discos, já com três grandes hits  nacional (“Camila, Camila”, “Eu Caminhava” e “O Astronauta de Mármore”). O terceiro, de 1990, indicou um crescimento tanto no direcionamento sonoro (a incorporação de timbres e instrumentos que flertavam com a música tradicional gaúcha) e o acréscimo de Veco Marques para se dividir entre os violões e a segunda guitarra. Em 1996, já no sexto disco, o quarteto virou oficialmente um quinteto, com o músico de apoio João Vicenti (teclados e acordeon) virando membro fixo. Já na primeira década do novo século, Thedy passou a se dedicar mais à função de frontman sem ter de estar sempre tocando algo com as mãos. Por isso, deixou o baixo a cargo de Estevão Camargo, que desde então acompanha o grupo nos concertos sem, contudo, figurar na formação oficial. Portanto, é um trio que virou quarto, transformou-se em quinteto e hoje viaja como sexteto. Mas o mais importante é que quem entrou para o time não saiu mais. Nunca mais. Pelo menos até agora. Ou não?

Madrugada de 17 de setembro deste ano. Perto da uma da manhã, o Nenhum de Nós está sendo aguardado por uma plateia ávida por rock cantado em português. A banda gaúcha era a atração principal da noite no White Hall Jockey Eventos, que lançava a edição deste ano do Prime Rock Festival em Curitiba, evento anual que reúne grandes nomes do segmento durante um dia todo na Pedreira Paulo Leminski – informações sobre atrações, ingressos e tudo mais do próximo dia 9 de dezembro você encontra clicando aqui). Chego quase em cima da hora do início do show e me posiciono bem na cara do palco, mas na lateral direita. Era uma área reservada para ingressos vip. Dali, bem na grade, enxergava com perfeição a frente toda. Mas pouco via a bateria colocada ali ao fundo.

Entraram os músicos. Thedy, Carlos, Veco, Sady, Estevão… Mas cadê João? Me dirigi em direção ao centro e só então caiu a ficha: não havia nada de teclas disposto no palco. Nada da sanfona, nenhum teclado sequer. Atrás dos guitarristas e do vocalista, apenas o kit de Homrich e o pedestal com microfone para o baixista fazer os backings. O que teria acontecido com Vicenti? Espero alguma informação dita entre as músicas a respeito da ausência. Nada. Teria saído do grupo?

Lembro rapidamente que horas antes havia procurado na internet NdN informação mais recente sobre a banda. Algum lançamento, algum anúncio. Afinal, já fazia um tempinho que não sabia nada a respeito de novidades. Para minha surpresa, um comunicado dizia que o site oficial está em fase de reconstrução e em breve estará novamente ativo. Fui às redes sociais do NdN e também nada de novo encontrei por lá. Enquanto isso, as primeiras canções seguiam e Thedy continuava sem se pronunciar a respeito da “nova formação” de quinteto.

Passou mais um filme ligeiro em minha cabeça. O de que jornalistas também passam por perrengues em suas coberturas externas. Muitas vezes o cenário encontrado no local pode não bater com as informações prévias que existem sobre aquela pauta. Me peguei ficando surpreso e ansioso por alguma peça que ainda faltava no quebra-cabeça. Acompanho a trajetória ao vivo do NdN com regularidade desde 1988, quando assisti em um palquinho armado no Parque Barigui ao lançamento do primeiro álbum deles (e na sequência fui entrevistá-los no microônibus estacionado nos bastidores). Na foto utilizada nas peças promocionais da apresentação do White Hall o tecladista estava presente. Cadê João Vicenti e por quê ele não estava lá eram as perguntas que se repetiam em marteladas na mente. Havia ainda espaço para mais outras duas: será que todo o mote previamente pensado para escrever este texto teria simplesmente desabado em questão de segundos e eu teria de me virar para achar um fio condutor ali, meio que do nada, enquanto as músicas eram tocadas?

Um certo nervosismo tomou conta depois de um punhado delas. Fui observando como estavam os arranjos sem piano, teclado e acordeon. Percebi que Thedy empunhou mais vezes o violão, tecendo o fundo das bases harmônicas. Percebi também que o volume das guitarras de Veco e Carlos estavam mais alto do que o de outros shows anteriores em que estive presente. Com mais peso e distorções também. Puxava na cabeça a lembrança das gravações em discos de estúdio. Tinha momentos em que eles (às vezes um, às vezes outro, às vezes os dois juntos) substituíam os riffs tocados nas teclas pretas e brancas ali nas ligas metálicas que formam as seis cordas. Aos poucos ia criando um plano B para poder fazer a resenha enquanto ainda esperava alguma fala sobre a ausência da noite. Criatividade e improviso também são recursos de última hora que podem (e devem) ser utilizados durante o exercício do jornalismo.

set list do Nenhum de Nós em versão quinteto acabava surpreendendo. Nunca havia visto os gaúchos em uma performance tão (com o perdão do trocadilho besta para um artista que já lançou alguns discos acústicos!) elétrica. A veia pop que sempre permeou aquela extensa coleção de hits que o grupo costuma tocar ao vivo nunca havia soado tão rock’n’roll como ali, naquele instante. Várias vezes me peguei olhando o figurino escolhido pelo vocalista para se apresentar na capital paranaense. Uma jaqueta jeans trazia vários signos do rock entre o cult e ounderground. O slogan básico rock’n’roll, uma caveira, uma cruz, um enorme rosto de David Bowie do look raio colorido no rosto enfeitava as nas costas, um X bem grande na lateral frontal (que poderia remeter tanto à negação e à ruptura propostas pelo gênero como também à histórica banda punk X, de Los Angeles). Por baixo da jaqueta, uma camiseta com a estampa onde se lia o nome original do livro Espere a Primavera, Bandini. Publicada em 1938, a primeira obra de John Fante fala sobre o típico sentimento de inadaptação durante a adolescência, o fato de se sentir deslocado em relação à família, escola e sistema vigente. O protagonista Bandini nada mais era do que o alter ego do autor, que depois viria a escrever o clássico Pergunte ao Pó e se tornar um dos nomes mais cultuados da literatura underground norte-americana do século 20. Sei que Thedy é um consumidor voraz de livros e HQs. Estaria ali na camiseta dele um recado discreto sobre a “nova fase” do NdN?

Conforme o show se encaminhava para o final sentia o que em inglês se chama de mixed emotions. Gosto demais do terceiro álbum, Extraño, de 1990, no qual o Nenhum de Nós passou a incorporar elementos e influências da música regional do sul do país, criando uma identidade própria que passou a diferenciá-la de outros grupos locais de sua época – inclusive incluí o disco na minha votação feita para o recentemente lançado livro sobre os cem maiores álbuns do rock gaúcho. Com o tempo e a rápida consolidação do então músico de apoio João Vicenti na formação oficial, o NdN foi desenhando uma sólida discografia em conjunto com grande fanbase em todo o país. Saiu de uma grande gravadora, pipocou por vários selos menores e/ou independentes, voltou a uma major, retornou à independência (estacionando em 2009, enfim, no do it yourself do selo ligado à própria produtora de shows que sempre esteve com a banda). Tudo isso sem diminuir o volume de convites, viagens, lançamentos e fãs. Como assim, de uma hora para outra, depois de três décadas, poderia haver uma nova adaptação sonora tão repentina?

Ao mesmo tempo, a garra e o afinco mostrados ali, sem João e com muita segurança, possibilitaram que, sim, poderiam servir como um alívio imediato (com o perdão do trocadilho que faz uso do nome de uma música de outros gaúchos, os Engenheiros do Hawaii!) para um possível imediatamente “novo” NdN. Ao vivo já resolvido. Talvez em estúdio preparando novidades e surpresas para logo.

set list foi chegando ao final com os refrões dos diversos hits cantados a plenos pulmões e algumas covers adicionadas estrategicamente no repertório – afinal o evento era para promover o vindouro festival que celebra o rock nacional. Teve, então, “O Segundo Sol” (de Nando Reis mas muito famosa na voz de Cassia Eller), “Gita”(de Raul Seixas, de quem eles já regravaram “Tente Outra Vez”), “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo” (de Lô Borges e lançado no histórico álbum Clube da Esquina) e “Toda Forma de Amor” (de Lulu Santos). As duas últimas, aliás, os gaúchos regravaram em Outros, disco de intérprete dedicado ao repertório alheio, lançado em 2012). E o encerramento (por que não?) do bis ficou com “O Astronauta de Mármore”, a consagrada versão em português para “Starman”, de David Bowie. Contudo, nenhum palavra proferida a respeito de João Vicenti não estar ali. 

Depois de cerca de uma hora e quinze de apresentação, saí do White Hall ainda encafifado mas com uma ideia simples e básica: mandar uma mensagem para Thedy perguntando o porquê da ausência de João. A resposta chegou no meu whatsapp horas depois, dando, enfim, uma conclusão para o mistério: ele sequer embarcara para Curitiba, pois havia sentido uma indisposição. Menos mal. O Nenhum de Nós não perdera um membro. O desfalque era apenas momentâneo e a sonoridade com a mistura de elementos da música gaúcha não fora descartada. Lado positivo: quem esteve ali na casa pode ver um raro show do NdN em que ele voltava às origens guitarreias pré-Extraño, porém com muito mais peso e barulho. E o fim definitivo dessa incógnita ainda possibilitou uma saída robusta para a tarefa de escrever o texto sobre o concerto: transformá-lo em misto de resenha, relato pessoal da noite e crônica gonzo.

Set list: “Paz e Amor”, “Notícia Boa”, “Eu Caminhava”, “Amanhã ou Depois”, “Eu Não Entendo”, “Das Coisas Que Eu Entendo”, “O Segundo Sol”, “Sobre o Tempo”, “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo”, “Diga a Ela”, “Gita”, “Julho de 93”, “Você Vai Lembrar de Mim”, “Vou Deixar Que Você Se Vá” e “Camila, Camila”. Bis: “Toda Forma de Amor” e “O Astronauta de Mármore”.

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Pantera Negra: Wakanda Para Sempre

Novo filme fala sobre o luto pelo protagonista mas peca ao se estender em personagens demais e tramas paralelas subdesenvolvidas

Texto por Andrizy Bento

Foto: Marvel/Disney/Divulgação

“Só as pessoas mais feridas podem ser grandes líderes”

Sequência do grande sucesso de público e crítica Pantera Negra, de 2018, este Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (Black Panther: Wakanda Forever, EUA, 2022 – Marvel/Disney) deveria ser um um filme sobre Shuri, uma produção que se dedicasse a mostrar o crescimento da personagem interpretada pela atriz Letitia Wright, que se obriga a amadurecer após inúmeras perdas. Toda a tragédia em seu entorno daria consistência à jornada da heroína e seria enredo suficiente para um longa, tendo como mola-mestra o luto pela morte do irmão, o rei T’challa (Chadwick Boseman). Uma base lúgubre, triste, mas funcional e eficiente para situar a heroína no panteão de super-heróis que é o MCU (Universo Cinematográfico da Marvel). Porém, é Hollywood e Wakanda Para Sempre faz parte de uma safra de produtos que ultrapassou o nicho ao qual era destinada no passado. Não apenas os fãs de quadrinhos de super-heróis consomem esses filmes hoje em dia. Já há um tempo eles abrangem o público em geral.

Portanto, é necessário fanservice para agradar aos marvetes, introduzindo tudo o que for possível da mitologia dos quadrinhos; contextualizar esse fanservice para atingir os espectadores que não conhecem a base original; e, considerando que a Marvel Studios optou por não escalar um substituto para Boseman (falecido em 2020, vítima de um câncer de cólon) seja por carinho ao saudoso ator ou por preferir não despertar a fúria dos ardorosos fãs, em uma demonstração solene de respeito, compor uma obra cuja essência é o luto pelo rei T’Challa e um tributo a Boseman. Toda a história de sucessão protagonizada por Shuri tem esse sabor agridoce de despedida ao intérprete de Pantera Negra, além de ser intercalada por diversas tramas paralelas. O resultado é um longa sem unidade, que aponta para vários lados. É difícil dar coesão a todos os núcleos narrativos. O diretor Ryan Coogler não parece se esforçar muito para alcançar tal objetivo, contentando-se com épicas cenas de ação e profusas sequências de pesar pela perda de T’Challa. É grandioso na embalagem, porém razoável no conteúdo.   

O que fez Pantera Negra se destacar dentre os longas da franquia MCU nos cinemas, levando-o até mesmo a concorrer ao Oscar de melhor filme, era o equilíbrio do conjunto. Coogler apostou em uma lenda fascinante, com cenas de ação certeiras e uma crítica ao imperialismo americano. Em sua essência, a produção de 2018 era feliz e bem-sucedida ao construir nas telas uma mitologia convincente, envolvendo cerimônias ritualísticas e fortes representações culturais que fundamentam Wakanda sem dispensar as boas e velhas lutas coreografadas, explosões e perseguições que fazem a festa dos fãs de blockbusters e ainda trazia uma base política sólida ao discutir racismo e colonialismo. Wakanda Para Sempre apresenta todos esses elementos, mas de maneira desorganizada e totalmente over.

A homenagem a Chadwick Boseman tem início nos créditos de abertura, continua na bela sequência inicial que representa a cerimônia fúnebre e se estende por toda a história. Após a morte de T’Challa, a rainha Ramonda (Angela Bassett) faz o possível para proteger sua nação de poderosos líderes estrangeiros que buscam se apossar do vibranium (metal fictício encontrado em abundância em Wakanda, que possui a capacidade de absorver todas as vibrações em sua proximidade, bem como a energia cinética direcionada a ela e faz com que a terra natal do Pantera Negra seja rica e poderosa), ao mesmo tempo em que tem de lidar com o luto pela perda do filho e tentar uma conexão com a filha, Shuri, que parece ter se fechado em um casulo após a morte do irmão.

Nesse ínterim, entidades do governo descobrem que Wakanda não é o único lugar a possuir vibranium, identificando-o também no fundo do oceano por meio de um detector construído especificamente para rastrear o elemento. A matéria é proveniente do reino submarino governado por Namor (Tenoch Huerta), um mutante com poderes extraordinários derivados de sua herança genética incomum, com fisiologia anfíbia, força sobre-humana, supervelocidade e pés alados que garantem a ele a capacidade de voar. Ao tomar conhecimento do detector de vibranium, Namor entra em contato com Wakanda a fim de solicitar apoio para que capturem a cientista responsável pela invenção. Riri Williams (Dominique Thorne) é uma jovem universitária que não faz ideia que é o principal alvo dessa caçada. Em meio a tudo isso, Shuri precisa encontrar seu lugar entre as lideranças de Wakanda, digladiando com o próprio rancor e sentimento de vingança que a consome.

O elenco numeroso e as diversas tramas paralelas centradas em diferentes personagens tornam os já eloquentes 161 minutos de Wakanda Para Sempre insuficientes para trabalhar tanto material. Por isso mesmo, várias discussões interessantes acabam exploradas de maneira superficial, alcançando um nível muito raso de debate. É o caso, por exemplo, da tão alardeada (ao menos nos materiais de divulgação!) liderança feminina, que ganha pouca substância. Outros temas trabalhados com pouca profundidade neste exemplar afrofuturista da Marvel são justamente a questão racial e o imperialismo americano. Há muita coisa acontecendo na tela e, ainda assim, o roteiro peca ao não se aprofundar em nenhuma delas: a tentativa de focar em Shuri, as introduções de Namor e Riri Williams e o plot envolvendo o agente Everett Ross (Martin Freeman). Todas essas tramas socadas em um único longa tornam o enredo desequilibrado.

Entendo que Wakanda Para Sempre ocupa uma posição difícil na franquia dos Vingadores. O longa tinha a ingrata função de “substituir” o herói de forma nobre, sem ferir seu legado. Mas toda essa construção aliada à introdução de duas personagens importantes transforma o longa em um bolo de noiva e é justamente o desenvolvimento de Shuri que acaba ofuscado. É até irônico, pois, mesmo sem querer, a personagem já acenava para essa possibilidade desde o ritual de desafio no primeiro longa. A pedra angular deste longa-metragem deveria ser a preparação do terreno para que, aos poucos, Shuri ganhasse protagonismo.

Há um momento em que a princesa pergunta a Namor o porquê de estar lhe contando tudo isso. E eu não resisti e respondi mentalmente: porque filmes hollywoodianos têm a mania de serem expositivos demais e contar origens por meio de flashbacks manjados. A insistência da indústria em subestimar a inteligência do público se baseia na crença de que o espectador não vai ser capaz de acompanhar uma história na tela se tudo não for devidamente explicado.

Se já não bastasse o excesso de tramas que incham o longa, a montagem vacila em diversos momentos, especialmente ao mostrar os desdobramentos de lutas tão definitivas, intercalando ambas e tirando o impacto do desfecho das duas. Como tradição dos filmes do estúdio, este não foge à regra de apresentar embates corporais repletos de cortes secos e abruptos. O design de produção continua primoroso e as cenas pirotécnicas que se desenrolam tanto em terra firme como no mar são empolgantes, embora o longa peque pela falta de contrastes, especialmente nas cenas que se passam no reino de Namor, Talokan. A trilha sonora é composta de vários temas interessantes, mas o conjunto da obra é deveras saturado. Há todo um cuidado em retratar a cultura dos wakandanos, explorando seus costumes e a mitologia dos povos que ocupam aquele território. O mesmo não acontece com os talokans. Mas nem vou reclamar nesse quesito, porque, além da certeza de que Namor regressará, isso só tornaria a produção ainda mais longa e modorrenta. Por falar nisso, a guerra entre as duas nações é maniqueísta e bidimensional, abusando de um artifício muito raso para deflagrar o conflito.

O filme que encerra a fase mais criticada do MCU também é um reflexo da mesma, composta de filmes muito apoteóticos em suas intenções, mas inchados ou apáticos em seus resultados. Wakanda Para Sempre é emocional em diversas passagens, especialmente ao rememorar T’Challa. É conceitual, ao abordar o luto cinematograficamente, mostrando como cada figura do elenco lida com a morte do personagem, do ator e do amigo. Mas não é funcional, não possui um fim, um objetivo. Um demérito irreparável quando nos referimos a obras cinematográficas. Eis um tributo a Chadwick Boseman que não faz a devida justiça a seu homenageado. 

Music

Erasmo Carlos

Oito motivos para que seja celebrada sempre a suprema importância do Tremendão à música popular brasileira

Texto por Abonico Smith

Fotos: Divulgação

Na manha de quarta-feira, 22 de novembro, foi confirmada a notícia do falecimento de um dos maiores artistas da nossa música popular em todos os tempos. E esse termo não se refere apenas aos quase dois metros de altura que lhe renderam o apelido de Gigante Gentil. Erasmo Carlos morreu aos 81 anos, no Rio de Janeiro, deixando um legado de dezenas de discos, centenas de canções que entraram para o inconsciente coletivo de todo o povo brasileiro e a condição de ídolo de um movimento que abalou as estruturas culturais de país em uma época de plena efervescência social sob a sombra da mão pesada da ditadura militar.

O cantor e compositor foi internado no último 17 de outubro com uma síndrome edemigênica. No dia 30 chegaram a circular boatos sobre sua morte, logo desmentidos pela família e por ele próprio em um post na internet. No feriado de Finados (2 de novembro), recebeu alta e voltou para casa. As apresentações que estavam marcadas para o início do mês, nos Estados Unidos, já tinham sido desmarcadas por conta do tratamento de sua saúde. Contudo, Erasmo precisou voltar ao mesmo hospital da Barra da Tijuca um dia antes de se despedir de sua passagem terrena. Segundo o boletim médico divulgado, uma paniculite complicada por sepse de origem cutânea foi o que levou o artista ao falecimento.

Em homenagem ao Tremendão (apelido que ganhara nos anos 1960), o Mondo Bacana elenca oito motivos para se celebrar sempre a suprema importância deste gigante cheio de doçura para a música e a cultura nacional.

Turma da Tijuca

Erasmo Esteves era filho de mãe solteira, nascido e criado na Tijuca. Foi nesse bairro da zona norte carioca que conheceu e se tornou amigo de outros nomes que viriam ajudar a escrever a história da música popular brasileira na metade final do século 20. Entre eles estavam Tim Maia, Roberto Carlos, Wilson Simonal e Jorge Ben. Apaixonado pelos pioneiros do rock’n’roll, ajudou a formar em 1957, aos 16 anos de idade, os Sputniks, banda de fugaz carreira e que também tinha em sua formação Tim e Roberto. Logo depois, agora sob a batuta do produtor musical Carlos Imperial, integrou o grupo vocal Snakes, que participava dos shows de seus dois amigos ex-Sputniks; chegou a acompanhar Cauby Peixoto (na gravação de “Rock and Roll em Copacabana”, em 1957; e apareceu no número musical de “That’s Rock”, durante o filme Minha Sogra é da Polícia, de 1958). Tim, inclusive, foi quem lhe ensinou os três primeiros acordes de violão. Com Roberto, por sua vez, compartilhava gostos em comum (música, cinema, futebol, biscoitos) e desenvolveu uma sólida amizade que rendeu uma das mais famosas parcerias do showbiz tupiniquim. Foi dele que pegou emprestado o novo sobrenome artístico e se lançou em carreira solo em 1964, com um compacto de grande sucesso chamado “O Terror dos Namorados”. Desta gravação participa o pianista Lafayette, que introduzia ali, em um órgão Hammond, os timbres eletrônicos dos teclados que viriam a marcar logo depois a sonoridade da Jovem Guarda. Foi a porta de entrada para o primeiro álbum da carreira. Lançado em 1965, este disco continha outras faixas que se tornariam ainda muito mais famosas, como “Minha Fama de Mau” e “Festa de Arromba”. Nos dois anos seguintes, mais dois álbuns e hits como o bolero “Gatinha Manhosa” e o rock arrasa-quarteirão “Vem Quente que Estou Fervendo”.

Jovem Guarda

Na esteira da beatlemania, a TV Record criou o programa Jovem Guarda. O motivo foi um desentendimento com as entidades responsáveis pelos campeonatos de futebol em São Paulo, que deixou a emissora sem poder transmitir os jogos das tardes de domingo. Para preencher o buraco na grade de programação, Roberto Carlos foi convocado para apresentar um semanário musical. Os amigos Erasmo e Wanderléa completavam o time que comandava tudo na frente das câmeras. A partir de 22 de agosto de 1965, no palco do teatro da casa, na Rua da Consolação, o trio cantava sucessos e recebia diversos convidados. Tudo transmitido ao vivo para São Paulo. A rápida adesão dos jovens apaixonados pelos Beatles alavancou o número da audiência a mais de 3 milhões de telespectadores, fazendo toda a performance dominical ser gravada para ser exibida em outras capitais (Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre). Por causa da ascensão de Roberto ao posto de rei da juventude nacional, o programa não durou muito mais. Seu principal integrante deixou o elenco em janeiro de 1968 para dar passos ainda maiores na carreira de cantor e engatar carreira no cinema. O Tremendão (Erasmo) e a Ternurinha (Wanderléa) ainda seguiram um pouco mais adiante à frente de tudo, até que a Record cancelou de vez a Jovem Guarda em outubro desse mesmo ano, por causa da queda na audiência. Foram dois os grandes legados dessa iniciativa televisiva: a difusão do rock para o gosto dos jovens em todo o país e a comprovação de que, sim, o gênero poderia também ter suas criações geniais sendo composto e cantado em língua portuguesa. Inclusive o termo adotado para definir a sonoridade da turma da Jovem Guarda foi adaptado para o nosso idioma. A expressão yeah yeah yeah, cantada no refrão de “She Loves You”, virou, então, o nosso iê-iê-iê.

Ator de cinema

Em 1968, a telinha da TV havia ficado de pequena dimensão para o estrelato de Roberto Carlos. Então, para promover seus discos, o cantor estendeu suas atividades à telona do cinema. Ao lado do diretor Roberto Farias, protagonizou um grande filme por temporada, entre 1969 e 1971, todos com sucesso nas bilheterias brasileiras da época. No primeiro (Roberto Carlos em Ritmo de Aventura), cuja história vai na colados dois longas protagonizados pelos Beatles, Roberto é perseguido pelo Rio de Janeiro por bandidos internacionais ao som de canções da trilha sonora gravada especialmente para a produção. José Lewgoy e Reginaldo Faria, irmão do cineasta, compõem os principais nomes do elenco. No segundo (Roberto Carlos e o Diamante Cor-de-Rosa, foto acima), o astro traz os amigos do programa Jovem Guarda para mais um trabalho em conjunto. Por causa da bolada que rendera a empreitada anterior, a trinca aparece em gravações no exterior (Israel, Japão, EUA), também sendo perseguida por bandidos. O mote era a posse de uma antiga estatueta que traria em seu interior um mapa de um suposto tesouro fenício. Claro que havia também um motivo para tudo acabar no Rio de Janeiro. O terceiro, sem Wanderléa, traz Erasmo como o grande parceiro de cena de Roberto. Roberto Carlos a 300 Quilômetros por Hora mostra a dupla como mecânicos improvisando situações para participar de corridas automobilísticas. Este foi o filme mais assistido no Brasil em 1971, levando 2,78 milhões de espectadores às salas de projeção. Reginaldo Faria, agora assinando roteiro e direção, chamou Erasmo para a comédia Os Machões (1972). O cantor era um dos amigos de uma turma. Por sua atuação, foi premiado pela APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) como o melhor ator coadjuvante do ano. Em 1984, voltaria a participar de um filme, interpretando o Cowboy na versão do clássico do teatro infantil O Cavalinho Azul, de Maria Clara Machado. Somente nos últimos anos voltaria a dar vazão ao talento dramatúrgico. Fez o dono da boate decadente que faz a alegria da família da qual é o patriarca em O Paraíso Perdido (2018) e o avô da personagem de Larissa Manoela em Modo Avião (2020, bancado pela Netflix exclusivamente para streaming)

Muito além do rock

Ao trocar a TV pelo cinema, Roberto foi bem além do rock, experimentando um certo gosto pelo soul. Posteriormente, apostou em baladas românticas que, por causa das letras diretas e bastante imagéticas, ligariam o cantor ao rótulo de “música de motel”. Também embarcou por temas bíblicos. Roberto foi o cara que fez sucesso, vendeu muitos discos e se tornou um ídolo maior ainda na representação de nossa música popular. Só que não existiria este Roberto se Erasmo não topasse ser o aventureiro para “experimentar” (e, diga-se passagem, com competência e qualidade) o flerte com tudo isso e mais um pouco. Por conta de sua amizade com Tim Maia e Jorge Ben, Erasmo mergulhou fundo no samba-rock após largar a atividade na Record. Também flertou bastante com as orquestrações, o soul e o jazz nesta época, não se furtando ainda a se reaproximar da bossa nova que chegou a cantar quando cantou em bares e boates cariocas na fase pré-iê-iê-iê. É justamente neste período, já distante da Jovem Guarda um tanto obscuro de seus trabalhos (leia-se a primeira metade dos anos 1970, sobretudo) e sem esboçar chegar perto da popularidade obtida depois pelo amigo, que reside um punhado de grandiosas faixas sempre prontas a ser descobertas por quem quiser ver e ouvir um Erasmo Carlos distante daquele projetado para as massas. Entre os destaques destas gravações estão as faixas “Coqueiro Verde”, “Estou Dez Anos Atrasado”, “Sábado Morto”, “Espuma Congelada” e, claro, “Sentado à Beira do Caminho”. Curiosidade: foi dele a ideia de compor o samba-rock “Meu Nome é Gal”, gravado por Gal Costa em 1969 e assinado em parceria com Roberto.

Carlos, Erasmo…

Esta fase “marginal” do Tremendão, que durou de 1969 a 1976, rendeu discos  bem interessantes. O melhor deles – considerado pela crítica brasileira o ponto-chave da virada de rumo da carreira – é o de 1971, curiosamente batizado invertendo nome e sobrenome, tal qual uma apresentação pessoal a um desconhecido no exterior. E é assim, deste jeito, que o cantor apresenta sua carta de intenções nas treze faixas de Carlos, Erasmo…. Aqui é a chegada dele à maturidade musical, assumindo a tomada de riscos. Gravadora nova, garantia de liberdade criativa absoluta. Descobrindo uma nova faceta, pós-ídolo da Jovem Guarda, quis experimentar de tudo. Não apenas a combinação entre a variedade de parceiras sexuais com substâncias químicas e etílicas, como também uma farta variedade musical. Toda a diversidade desse disco mostrava tentativas de seguir novos rumos. É bem verdade que o mercado fonográfico brasileiro ainda não estava preparado para uma mistura genial de rock com samba com funk com salsa com folk com gospel e o escambau a quatro. Tudo começa na pilantragem moldando uma canção feita sob encomenda por Caetano (“De Noite na Cama”, que depois ganharia versões na voz do autor e, mais tarde, Marisa Monte) e vai até uma brisada ode caribenha à cannabis (“Maria Joana”). No miolo tem dueto romântico de casal (“Masculino, Feminino”), psicodelismo ( “Agora Ninguém Chora Mais”, “Dois Animais na Selva Suja da Rua”), protesto soft contra a ditadura militar (“É Preciso Dar um jeito, Meu Amigo”), groove dinamitador de pistas de dança ( “Mundo Deserto”), tema para personagem de novela da Globo (“Ciça, Cecília”), lamento apocalíptico (“Sodoma e Gomorra”) e wall of sound de Phil Spector (“26 Anos de Vida Normal”). Nos créditos, participações especialíssimas dos maestros Rogério Duprat, Chiquinho de Moraes e Arthur Verocai; dos produtores Manoel Barenbein e Nelson Motta; de um ainda pós-adolescente herói da guitarra Lanny Gordin; da vocalista Marisa Fossa; e da cozinha endiabrada dos Mutantes (Liminha e Dinho Leme). Entre as compositores, obras da parceria Roberto e Erasmo intercaladas com nomes como Jorge Ben, Caetano Veloso, Taiguara, os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, o letrista Vitor Martins (que logo depois se tornaria famoso com obras ao lado de Ivan Lins) e Fábio (“o amigo paraguaio de Tim Maia”). A repercussão deste álbum foi muito fraca à época. Sinal de que a obra, para lá de subestimada, estava muito à frente de seu tempo. Hoje, Carlos, Erasmo… é um dos grandes clássicos da música popular brasileira dos anos 1970.

Novos hits em série 

Erasmo iniciou os anos 1980 muito longe daquela imagem de Tremendão deixada no imaginário popular durante o auge da Jovem Guarda. Talvez por isso tenha encerrado o ciclo com um álbum (Erasmo Convida…) no qual revia alguns de seus grandes sucessos radiofônicos seus, mas desta vez em duetos e cercado por amigos (Roberto, Wanderléa, Rita Lee, Tim Maia, Jorge Ben, Nara Leão, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Frenéticas, Cor do Som). Depois em 1981, lançou o álbum que iria recolocar a carreira em evidência e popularidade. Mulher trazia uma atmosfera de felicidade familiar, com letras que versavam sobre o relacionamento de um casal ou eram homenagens aos filhos. Sua musa inspiradora, a esposa Narinha, aparecia amamentando o cantor na foto da capa. A imagem, por mais que tenha uma leitura metafórica sobre o renascimento artístico de Erasmo, provocou muita polêmica na época. Deste disco saíram três grandes hits: a balada “Mulher (Sexo Frágil)”e os rocks “Minha Superstar” e “Pega na Mentira”. Este último, inclusive, foi o principal responsável pela renovação de público, virando hit em festas infantis e sendo cantada por muitas crianças nas escolas, ruas, casas e apartamentos. Os versos enfileiravam uma série de pequenas mentiras, inocentes à época, a respeito de celebridades e situações cotidianas envolvendo o social, a economia, o futebol, o meio ambiente e o próprio Erasmo. Ao menos em algumas delas ele previa fake news propagadas na maior cara de pau durante o (des)governo Bolsonaro  (“Acabou-se a inflação”, “Amazônia preza a sua mata”, “Sem censura e guaraná em pó”). O mesmo clima se manteve no álbum seguinte. Amar pra Viver ou Morrer de Amor (1982) rendeu mais três hits (a faixa-título, “Meu Boomerangue Não Quer Mais Voltar” e “Mesmo Que Seja Eu”) e outra polêmica sobre a capa – agora, uma ilustração assinada por Benício, com o artista rasgando o peito nu com as próprias mãos para liberar uma pomba de paz, que chegou a ser plagiada em 2011 pelo rapper alemão Morlockk Dilemma. Já em 1984, Buraco Negro daria renderia mais polêmica e um grande sucesso (“Close”, canção inspirada pela transexual Roberta Close, ícone sexual de um Brasil ultraconservador e vivendo os meses derradeiros da ditadura militar).

Cultuado no século 21

Depois de emplacar vários hits no começo dos anos 1980, Erasmo se separou de Narinha, foi completamente desrespeitado pela plateia de metaleiros no primeiro Rock in Rio (1985) e passou a amargar um longo período de frustrações fonográficas. Entrou e saiu de diversas gravadoras, sendo sabotado e fazendo discos esparsos de estúdio que não obtiveram muita repercussão artística e de vendas. Só voltou a ser badalado e tratado com todo o respeito e reverência merecidas na primeira década deste século, quando passou a ter controle artístico total gravando e lançando obras inéditas pela gravadora e editora musical Coqueiro Verde, criada e gerida por seu filho Leonardo. O renascimento artístico começou no disco autodeclaratório Rock’n’Roll (2009). De lá para cá vieram obras reverenciadas e premiadas como Sexo (2011), Gigante Gentil (2014), … Amor é Isso (2018), Quem Foi que Disse que Eu Não Faço Samba… (2019) e o recentíssimo O Futuro Pertence à Jovem Guarda (2022). Com mais alguns DVDs gravados ao vivo e concertos que renovaram pela terceira vez o seu público e passaram a se tornar cult entre os (bem) mais novos, Erasmo era o cara que apontava em direção ao futuro sem perder os parâmetros estabelecidos por um passado de glória, sabedoria e experiência. Já há algum tempo se dissociara da parceria com Roberto, que outrora parecia ser algo ad infinitum. Passou a compor com gente como Tim Bernardes, Emicida, Samuel Rosa, Nando Reis, Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Marisa Monte, Marcelo Camelo, Adriana Calcanhotto, Supla, João Suplicy e Teago Oliveira (Maglore).

O Futuro Pertence à Jovem Guarda

Erasmo faleceu dias depois de ter sido anunciado pelo Grammy Latino como o vencedor do melhor álbum de rock na língua portuguesa pelo seu trabalho lançado em fevereiro de 2022. Neste trabalho, ele gravou oito canções que se tornaram clássicas durante o movimento que ajudou a liderar nos anos 1960: “Nasci Para Chorar”, “Ritmo da Chuva”, “Alguém na Multidão”, “O Tijolinho”, “Esqueça”, “A Volta”, “Devolva-me” e “O Bom”. Detalhe: todas elas nunca tinham sido ouvidas em sua voz, mas na de contemporâneos como Leno e Lilian, Vips, Golden Boys, Demétrius, Bobby di Carlo, Eduardo Araújo e, lógico, Roberto Carlos. Sucessos de décadas atrás à parte, o que chama a atenção neste disco, amplamente divulgado em turnê pelo Brasil durante este ano, é o trocadilho sugerido pelo título. Produzido pelo baterista Pupillo (atualmente na banda de Marisa Monte e ex-Nação Zumbi), o conjunto de registros, altamente conceitual, procura trazer timbragens, efeitos, instrumentos e arranjos nada saudosistas, explorando apenas o que há de bom nos dias atuais. Resultado: Erasmo em estado bruto vivendo o hoje e falando diretamente para uma nova geração (a tal jovem guarda de mais de meio século depois da original). Algo similar ao que fizera Johnny Cash em sua série de seis discos chamada American Recordings. Ou seja, um gigante se despedindo da vida em direção ao futuro eterno.

Movies

Crimes Of The Future

Uma sociedade anestesiada buscando emoções e sentimentos por meio da exploração da dor é a nova crítica ácida e mórbida de David Cronenberg

Texto por Taís Zago

Foto: O2 Play/Distribuição

O novo filme de David Cronenberg já chegou colhendo comentários bastante mistos. Adorado por alguns críticos e detestado por boa parte do público. E, confesso, isso se torna para mim um grande atrativo na hora de escolher o que assistir. Quando essa oportunidade surgiu pela plataforma Mubi, e eu abracei a causa.

Preciso salientar que não me considero uma grande fã das distopias com tema biológico de Cronenberg. Quando assisti pela primeira vez eXistenZ (1999), fui tomada por um conjunto de irritação e deboche. Naquele tempo ainda estávamos na época de alugar DVD na locadora e depois nos arrependermos amargamente pelos reais gastos. Uma arte já morta atualmente. Mas eXistenZ não foi meu primeiro contato com a obra de David. Como muitos, eu passei a acompanhar o diretor a partir do filme Crash (1996), que gerou uma grande polêmica na época pelo seu tema – a fetichização de limitações físicas e a erotização de acidentes automobilísticos. E foi também em meados dos anos 1990 quando descobri que Cronenberg era responsável por outros shockers que marcaram a minha experiência precoce no gênero do horror, como Scanner (1981) e Naked Lunch (1991). Uma coisa aqui é certa: Cronenberg não pisa em ovos em torno de temas horripilantes, obscuros ou mórbidos. O festejado diretor se destaca exatamente por romper tabus e limites transpondo (sobrepondo?) gêneros. Sua obra nos causa náusea e ao mesmo tempo instiga a reflexão. E essa também é uma função da arte, provocar repulsa.

Em Crimes Of The Future Crimes Of The Future (Canadá/Grécia/Reino Unido, 2022 – O2 Play), o diretor explora um futuro que, apesar de parecer próximo, não é determinado: é quando a ideia de dor praticamente desapareceu nos conceitos humanos. Pessoas andam nas ruas a esmo, com olhares vários, procurando algum tipo de emoção. A droga da vez é a busca pela dor, o que poucos ainda conseguem sentir. A dissecação da alma humana é a dissecação de corpos sob o manto protetivo da arte. Da performance. Como se tudo isso já não nos pintasse uma tela aterrorizante, os seres humanos passaram a desenvolver espontaneamente órgãos com funções não determinadas em seus corpos. Órgãos que crescem como tumores e precisam ser extirpados para não causarem morte ou mutação em seus hospedeiros. E é nesse cenário que Saul Tenser (interpretado por Viggo Mortensen) e sua parceira Caprice (Léa Seydoux) brilham com suas performances artísticas inspiradas em cirurgias e que consistem em Caprice manipulando remotamente incisões e a extrações de órgãos tatuados de dentro do corpo de Saul. Um ato no qual, supostamente, faz-se uma conexão entre dor e prazer e que deixa Saul extasiado. 

Em um tom ainda mais macabro e chocante, Cronenberg já inicia nos oferecendo o assassinato cruel de um menino pela própria mãe, quando esta percebe que o filho, uma vítima das bizarras mutações recorrentes nos humanos, passa a ingerir e digerir plástico. O pai do menino, Lang Dotrice (Scott Speedman), inconformado com o ocorrido e determinado a tornar sua morte um símbolo da resistência dos humanos “já mutados”, oferece o seu pequeno corpo como objeto para uma das performances de Saul e Caprice. Por fim, com a quase impossível função de assumir a posição de comic relief nesse tema tão aterrorizante e denso, temos o curioso escritório chamado National Organ Registry, onde supostamente os novos órgãos identificados são catalogados. É um cantinho empoeirado, sujo e protocolar que lembra o escritório de um detetive fracassado e é comandado por Yevgeny Nourish (Don McKellar) e uma hilária Kristen Stewart no papel de sua assistente Timlin. Esta também é uma fã incondicional do trabalho de Saul e não esconde sua adoração por seu ídolo.

Com todos esses elementos assustadores, alguns pendem a se levantar e sair da sessão no cinema (como fizeram no lançamento do filme, em Cannes) ou parar o streaming nos primeiros 15 minutos. Porém, os que ficam e fazem o esforço de enxergar o que está por baixo da primeira camada de pele dessa obra vão enxergar uma crítica ácida e (por que não?) cirúrgica da humanidade. Cronenberg realiza uma operação de peito aberto em uma sociedade que após lutar para viver anestesiada passa a procurar emoções no que deliberadamente perdeu. A busca aflita por sensações e experiências que tirem as pessoas da letargia em que se encontram seus corpos nessa nova realidade. Uma realidade onde o velho sexo (old sex, como é chamado) já não mais é a forma de prazer suprema. A busca pela dor, a extirpação de órgãos, os cortes e as mutilações são a nova forma de vivenciar algo novo. Temos também uma crítica à arte e à ambição artística em seus sacrifícios, no caso, bem carnais. Até onde podemos ir para receber a atenção e o reconhecimentos dos nossos pares?

Perfeição estética e apuro técnico visual nunca foram os focos de interesse de Cronenberg. Algumas das geringonças biomórficas apresentadas podem nos tirar a atenção e levar ao riso espontâneo – comigo foi a cadeira para “digestão”. Mas relevando isso, Crimes Of The Future é horror com reflexão. Mesmo quando materializada em forma de sangue, órgãos, tripas ou tumores.