Movies

Conduzindo Madeleine

Passageira idosa e taxista estressado tornam-se cúmplices durante extenso trajeto cheio de lembranças e afetos em Paris

Texto por Abonico Smith

Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Dirigir estressa. Que o diga o taxista Charles. Por precisar ganhar dinheiro para pagar dívidas e levar comida para esposa e filha em casa, guia seu táxi por Paris seis dias por semana e muitas horas a cada dia, sempre com os nervos à flor da pele. Reclama de tudo e de todos, xinga clientes, pedestres, ciclistas e motoristas sem parar. Seu dia a dia não parece ter muitas nuances diferentes da previsibilidade e do constante estado de nervosismo. Até uma chamada incomum para atender uma passageira cair no seu colo.

Madeleine Keller é uma tagarela senhora de 92 anos que solicita um táxi para realizar um trajeto longo e incomum. Ela sai de sua casa com destino a uma casa de repouso para idosos. Com um bom dinheiro em mãos, não se furta em pagar o necessário para Charles. De taxímetro ligado (e autorizado para isso) desde antes de buscá-la, o chofer vai pegá-la do outro lado da cidade. Depois, atendendo a pedidos, aumenta o percurso para que a senhora possa visitar locais do passado, relembrar coisas da família e da vida e ainda esticar o tempo no que for possível, para chegar o mais tarde que der ao seu destino final.

Conduzindo Madeleine (Une Belle Course, França/Bélgica, 2022 – Califórnia Filmes), exibido antes por aqui no Festval Varilux, chega agora ao circuito nacional de cinema mostrando o improvável encontro esses dois personagens. Basicamente a trama vai se desenvolvendo durante o trajeto pelas ruas da capital francesa, com direito a flashbacks elucidativos. Neles, Madeleine (Line Renaud nos dias atuais e Alice Isaaz quando jovem) vai contando a Charles (Dany Boon) muito dos perrengues que vivera quando moça. A morte do pai durante a Segunda Guerra. A primeira paixão. O primeiro beijo. Os bailes da juventude. A gravidez inesperada e a maternidade ainda solteira. O namorado egocêntrico que, sem parar, abusava dela física e psicologicamente. A hora da vingança contra ele. A injusta pena imposta ela pela justiça por isso.

Pouco a pouco, o estressado motorista vai ficando para trás, dando espaço a um curioso e atencioso homem, cada vez mais envolvido com a peculiar experiência de vida da simpática idosa que acabou por se tornar um símbolo da resistência feminina contra os abusos da totalmente dissimulada sociedade daqueles tempos mid-century, regida sempre de acordo pelo impiedoso patriarcado. Carregadas de dramaticidade, as relembranças de Madeleine vão provocando profundas mudanças em Charles, mesmo com o pouco tempo de convivência entre os dois. O filme, então, vai se tornando um tocante road movie pelas charmosas ruas parisienses. A pequena bolada que ele vai ganhar pelo extenso e duradouro percurso com a passageira já passa a não importar tanto. Espectadores assistem a uma rápida conversão do motorista em cúmplice da senhora, que, ao mesmo tempo, passa a retribuir com gratidão a atenção dada por ele. Sobretudo depois de uma cena-chave em que ocorre uma perigosa ultrapassagem de um sinal vermelho. Os dois, uma com o dobro da idade do outro, tornam-se cúmplices a ponto de já não se saber mais quem conduz quem, metaforicamente falando. Contribui para isso a química entre Renaud e Boon, que já trabalharam juntos antes (na comédia romântica A Riviera Não é Aqui, de 2008) Com uma história simples, cativante e afetuosa, Conduzindo Madeleine provoca sério risco de derramar lágrimas em espectadores mais incautos quanto ao envolvimento de emoções. Só que não toca na tangente no melodrama e ainda proporciona alguns momentos de humor. Sem falar nos pontos de reflexão a respeito de mudança dos tempos, necessidades pessoais e também as dificuldades que cada um enfrenta no decorrer de sua vida.

Books, Movies

Veríssimo

Documentário promove um olhar carinhoso sore a vida cotidiana de trinta dias por volta do aniversário de 80 anos do sempre afiado autor gaúcho

Texto por Tais Zago

Foto: Boulevard/Vitrine/Divulgação 

Para quem ainda não o conhece (se isso ainda for possível!), Luís Fernando Veríssimo é um escritor, humorista, cartunista, tradutor, roteirista de televisão, autor de teatro e romancista brasileiro. Já foi publicitário, revisor de jornal e ainda músico, tendo tocado saxofone. Um homem de múltiplos talentos e que explorou todos eles magistralmente.

Em 2016, ele estava prestes a comemorar seus 80 anos. Foi nessa época que Angelo Defanti o acompanhou por 15 dias antes e 15 dias após seu aniversário, no dia 26 de setembro. Este empenho resultou no filme Veríssimo (Brasil, 2024 – Boulevard/Vitrine), que chega agora aos cinemas do país já como um programa obrigatório para os fãs do autor.

No documentário editado de forma simples e com muitos takes amplos e estáticos, somos conduzidos pela rotina diária do tímido e introvertido escritor em sua casa. Participamos de sua dinâmica doméstica com filhos e netos e a mulher Lúcia, que, ao contrário do autor, faz o contraponto com sua personalidade extrovertida. A narrativa segue a linha de um countdown, marcando os dias até a data das festividades.

O filme começa num ritmo bastante moroso. Até Veríssimo começar a falar diretamente com o documentarista já se passaram mais de 20 dos 87 minutos do tempo total da obra. E talvez esse lento florescer seja o segredo e o atrativo dessa produção. Veríssimo se revela em doses homeopáticas com suas pílulas de sabedoria, o inconfundível senso de humor e as observações certeiras. Uma lucidez invejável da mente, mesmo quando o corpo já dá sinais de cansaço.

Ao ser indagado sobre qual seria a pergunta que nunca lhe foi feita, Veríssimo pondera brevemente e, sem hesitar, responde: “não me ocorre nenhuma”. E eu sou inclinada a acreditar que o introvertido porém afiado observador já refletiu, mesmo, sobre quase todas as perguntas que existem. Quem está familiarizado com o grande escopo de sua obra – que, para citar apenas as mais famosas, vai do detetive trapalhão Ed Mort (1979) e o hilário e ácido humor de O Analista De Bagé (1981) até a popular Comédias Da Vida Privada (1994) – sabe que poucos autores brasileiros foram (ou são) cronistas tão eficientes e atuantes quanto Veríssimo. O incansável artista para o qual a profissão também é sua atividade predileta e que queria (mas ao mesmo tempo também não queria) se aposentar ao chegar ao octogésimo ano de vida.

Foram mais de 100 horas de filmagens feitas pela paciente equipe de Defanti e um trabalho bastante árduo na sala de edição, que tomou vários anos. Como resultado, temos uma obra feita com carinho, mas que nem sempre empolga. Por vezes a qualidade do áudio e algumas cenas externas deixam a desejar. De qualquer forma, é inegável importância desse registro histórico de um dos maiores escritores que o Rio Grande do Sul já pariu por esses prados. 

Luís Fernando, nossa prata da casa, já está hoje com 87 anos e passa um bom tempo em sua casa se recuperando de um AVC. Mesmo assim o escritor não deixa de acompanhar os jogos de futebol do seu time, o Internacional. Junto com a escrita e a esposa Lúcia, essas são suas mais perenes paixões.

Movies

Eu, Capitão

A aventura de dois adolescentes senegaleses que tentam entrar ilegalmente na Europa pela lente de polêmico cineasta italiano

Texto por Abonico Smith

Foto: Pandora/Divulgação

Suavidade é uma palavra praticamente inexistente no léxico cinematográfico de Matteo Garrone. O cineasta italiano, por sinal, é bastante ardiloso ao envolver o espectador com belas imagens, daquelas de encher os olhos e prender de vez a atenção em seu longa-metragem. Entretanto, com requintes de crueldade, dá aquela reviravolta e passa a pincelar a história com tomadas violentas, incômodas, daquelas de fazer quem está vendo na mesma vibe de sofrimento de quem está levando a pior na tela.

Ë assim novamente com sua mais nova obra, Eu, Capitão (Io Capitano, Itália/França/Bélgica, 2023 – Pandora), um dos cinco títulos finalistas para a disputa do Oscar de Filme Internacional neste ano. Chegando nesta semana ao circuito brasileiro, a história gira em torno da tentativa de dois primos adolescentes senegaleses que usam dia após dia surradas camisas e agasalhos de seleções e clubes de futebol europeus. Eles estão em busca de um grande sonho: deixar para trás a vida na pobreza na periferia de Dacar e embarcar em uma viagem rumo ao continente europeu, onde lá pode ser vivida uma vida melhor e mais digna, com mais oportunidades para trabalho, sobretudo no meio da música, a grande paixão do protagonista Seydou (Seydou Sarr, um então desconhecido talento que aponta para um grande futuro tanto na dramaturgia quanto na música). Ele e Moussa (Moustapha Fall) juntam uma boa grana em segredo e partem sem avisar ninguém, nem mesmo as mães. São alertados algumas vezes de quão perigosa é a tentativa de cruzar o Mediterrâneo em condições precárias para emigrar de modo ilegal pelo território italiano. Mas nem dão bola para isso. Fala mais alto o idealismo, a bravura, a esperança, a coragem e aquela impulsividade típica dos jovens somada à certeza de que absolutamente nada vai dar errado.

Então Seydou e Moussa partem para uma aventura que, sob a direção de Garrone, torna-se tão bela quanto épica no início. Uma das primeiras dificuldades é a sobrevivência no deserto árido, sob sol escaldante e aquela sensação angustiante de só se ver areia para todos os lados, até a linha do horizonte. Durante o começo da trip, então, vem a Seydou o primeiro sinal e que sempre alguma coisa pode dar muito ruim, quando ele se separa do primo e do grupo com os outros andarilhos para tentar socorrer uma mulher à beira da morte por sede. É justamente aí que Matteo tem a oportunidade de inserir outros elementos típicos de seus longas: a polêmica, o realismo fantástico e a mitologia. Na tela, Seydou passa a puxar pela mão a mulher que voa candidamente, enquanto o espectador se confunde, sem saber o que é realidade e o que é alucinação (de ambos!). Quando mais a situação vai se tornando perigosa para o garoto, mais Garrone vai trabalhando suas características no desenrolar da história.

O que se mostra ser um road movie pintado por tintas da triste realidade de uma questão social que se abate entre os migrantes ilegais que tentam passar da África para a Europa. Quem verdadeiramente se aproveita do sonho ingênuo de quem embarca na tentativa de deixar uma vida para trás e recomeçar outra do zero? O que acontece com quem morre no meio do caminho? E o que é feito com aqueles que conseguem atravessar o Mediterrâneo e chegar ao outro lado? São perguntas que o cineasta vai fazendo brotar na cabeça de quem assiste sem perder a chance de desenvolver uma trama ficcional em torno disso tudo, com muito de sua assinatura pessoal, que vem chamando a atenção do universo da moda e do cinema hollywoodiano nos últimos quinze anos.

Talvez este conjunto de coisas impactantes tenha impulsionado Eu, Capitão para a disputa final com outras grandes produções não faladas na língua inglesa. Muito provavelmente não deveria ganhar, mas ajuda a compor um excelente time de obras de fora do eixo nesta temporada.

Music

Placebo

Oito motivos para não perder o único show que será feito em março no Brasil durante a nova turnê de Brian Molko e Stefan Olsdal

Texto por Abonico Smith

Foto: Divulgação

Demorou quase uma década mas, enfim, terminou o tempo de espera. Faltam poucos dias para o Placebo voltar a pisar e tocar no Brasil. Brian Molko e Stefan Olsdal – acompanhados por quatro músicos como apoio no palco, inclusive pelo baixista e tecladista Bill Lloyd, que acompanha a banda desde a os primeiros anos de carreira, também já tendo feito as vezes de tour manager e empresário – chegam por aqui em um momento muito especial. Afinal, em 2024 comemoram os trinta anos de uma carreira sólida e consistente, repleta de hits e marcada pela conquista de uma legião mundial de fãs bastante fiéis.

A nova passagem por aqui será um único show, marcado para São Paulo. Portanto, há apenas uma oportunidade para não perder o encontro com o grupo que, embora tenha sonoridade mais pesada e nem tão retrô quanto alguns de seus contemporâneos mais famosos, foi revelado no bojo da explosão do britpop nos meados dos anos 1990.

Por isso, o Mondo Bacana dispara aqui oito motivos pelos quais você precisa estar presente no Espaço Unimed na noite de 17 março vindouro (endereço, horários, ingressos e demais informações oficiais sobre o evento você pode ter clicando aqui).

Dupla dinâmica

Eles se conhecem desde a infância, quando estudavam simultaneamente (mas não interagiam, já que a diferença de idade de ambos é de dois anos) na Escola Internacional de Luxemburgo. O belga Brian Molko (guitarra, violão, teclados e vocais) e o sueco Stefan Olsdal (baixo, guitarra, violão, teclados e backings ao vivo) só passaram a trocar ideias mesmo quando, já bem crescidos e residindo em Londres, encontraram-se em uma estação de metrô. Conversa vai e conversa vem, não se separaram mais. Passaram a compartilhar o gosto em comum pela música, especialmente bandas alternativas norte-americanas como Nirvana, Sonic Youth e Pixies. Fundaram o Placebo em 1994 e já no ano seguinte apresentaram o primeiro single, com a canção “Bruise Pristine”. Ela foi incluída no álbum de estreia, que veio à luz meses depois. “Teenage Angst”, “Come Home”, “36 Degrees” e “Nancy Boy” também ganharam singles e se tornaram outros sucessos iniciais do então trio – revezavam-se nas baquetas o também sueco Robert Schultzberg e o inglês Steve Hewitt, que tornou-se membro fixo de Placebo (1996) até Meds (2006), quando foi “ejetado” por ter a relação com a dupla desgastada em demasia durante as gravações em estúdio.

Desajuste social

Se você não se sente inserido em padrões da sociedade, seja sexual, comportamental ou mesmo referente a questões da saúde mental, as letras escritas por Brian Molko certamente te representam. A cada disco, o vocalista parece ampliar ainda mais o leque de temáticas sobre distúrbios e a incapacidade de sentir uma pessoa “normal” e não sofrer, de alguma maneira, por isso. Talvez seja este, então, o grande segredo de sucesso e longevidade do Placebo. Afinal, a figura sempre andrógina do próprio Molko é a representação visual de seus versos, o que vem facilitando uma identificação muito rápida de novos fãs nestas três décadas de trajetória da banda.

Selected

Boa parte destas letras das canções foi compilada pelo próprio autor delas para o livro Selected, que recentemente teve disponibilizada a sua segunda edição (em capa dura) em comemoração pelos 30 anos de carreira da banda. São 156 páginas que incluem ainda uma foto, prefácio escrito pelo próprio Brian Molko e 18 novas faixas adicionadas à leva original, totalizando 92. Você tinha três opções de modelos para comprar: não  autografado, autografado (à mão) e personalizado para você (sim, com nominho e tudo escrito também à mão por Molko). Entretanto, as duas últimas opções já estão esgotadas. Custa 25 libras e a aquisição é diretamente pelo site oficial do Placebo (clique aqui).

Discos ao vivo

Depois de ficar um bom tempo sem fazer turnês, foi só cair na estrada de volta para trazer uma bela novidade aos fãs. O vinil branco transparente duplo Collapse Into Never: Placebo Live In Europe 2023 é, de fato, o primeiro disco gravado ao vivo por Brian e Stefan, capturando a atmosfera de palco da banda – a única experiência fonográfica anterior foi extraída de um especial Acústico MTV produzido especialmente para a filial europeia da emissora de televisão norte-americana. Traz, de cabo a rabo, a apresentação realizada em um festival espanhol no início do ano passado. Só que este álbum não é a única novidade vinda em dezembro agora. Placebo Live é um box formado por mais outros dois registros ao vivo, além de Collapse Into Never. Editado no formato blu-ray, This Is What You Wanted também veio da atual turnê – desta vez durante a passagem de Molko e Olsdal pela Cidade do México, também ocorrida em 2023. Já o terceiro, o CD Live From The White Room, saiu de faixas do último álbum executadas pela banda no Studio One do complexo de estúdios para audiovisual que fica em Twickenham, subúrbio do sudoeste de Londres (estes vídeos estão sendo utilizados pela banda como clipes oficiais, aliás). Então, quem não se importa com spoilers e gosta de saber com antecedência o que deverá encontrar no momento de assistir ao show aqui no Brasil, então, tem a chance de mergulhar fundo na antecipação e não se deparar com surpresas.

Never Let Me Go

O Placebo é uma banda metódica com relação a discos e turnês. Grava um novo álbum e sempre reserva um bom tempo para viajar divulgando as novidades – e por causa disso boa parte do repertório sempre vem da safra mais recente de canções. Molko e Olsdal não são muito de manter a banda na ativa com concertos sem pensar nos fãs e em dar novidades a eles. Lançado em 2022 e fruto do isolamento social antecedente, Never Let Me Go interrompeu o maior hiato entre uma obra e outra do grupo. Foram nove anos passados desde o título anterior. Reflexos de medos e inseguranças que vieram com a pandemia refletiram numa sonoridade bem mais pesada e pungente do que a apresentada em Loud Like Love (2013). E isso também se reflete na execução ao vivo. Por isso, a presença de oito ou nove faixas novas no set list deve ser celebrada e bem aproveitada. Quatro delas foram lançadas como singles: “Beautiful James”, “Sorrounded By Spies”, “Try Better Next Time” e “Happy Birthday In The Sky”.

Tears For Fears

Pragmatismo também faz parte da personalidade do Placebo. Quem acompanha a banda faz tempo sabe bem que em seus shows sempre aparecem covers bem interessantes – a ponto de dez deles terem sido compilados em um disco de mesmo nome lançado em 2023. A releitura preparada para a atual turnê homenageia outra dupla, o Tears For Fears. Sempre que voltam para o bis, Brian e Stefan entoam um dos hinos do pop britânico dos anos 1980. “Shout” começa com o disparo de uma percussão eletrônica similar à da gravação original de Roland Orzabal e Curt Smith. Em virtude da característica mântrica da canção, que repete várias vezes o curto e poderoso refrão, também faz com que o restante do arranjo também não seja tão diferente assim. A grande novidade fica no timbre peculiar da voz de Molko comandando a letra.

Kate Bush

“Running Up That Hill (A Deal With God)” foi gravada para ser a faixa de abertura do álbum Covers, que pinçava outras releituras extraídas de lados B de singles e DVDs, trilhas sonoras de filmes e alguns-tributos. A faixa, transformada em synthpop intimista, também foi lançada em compacto e também aparece no disco duplo A Place For Us To Dream (2016), com 36 das músicas mais conhecidas e celebradas do repertório do Placebo. Detalhe: tudo isso bem antes da série Stranger Things utilizar a clássica versão original de Kate Bush em sua trilha sonora e fazer a cantora virar febre, capas de revistas e número um das paradas nos EUA pela primeira vez na vida. O que já era cultuado na versão sussurrada por Molko, então, virou uma boa peça para a renovação de público e atrair como fãs uma horda de nerds mais novos espalhada pelos quatro cantos do planeta. Muitos deles que sequer tinham ouvido a banda anteriormente. E, claro, esta cover também está incluída no bis dessa turnê.

Big Special

Não é nada grande, não é nada especial. O antislogan utilizado por esta banda de abertura serve bem para ilustrar o bom humor desta dupla inglesa, escolhida a dedo pelo Placebo para fazer os concertos de abertura das escalas sul-americanas da atual turnê. E as performances são bastante cruas: contam só com o vocalista Joe Hicklin e o baterista Callum Moloney, também responsável pelos backings e pelo disparo das bases pré-gravadas com baixos distorcidos, guitarras e sintetizadores que completam o arranjo das músicas. A sonoridade percorre a crueza a visceralidade do punk com toques de spoken word. PostIndustrial Hometown Blues é o nome do álbum de estreia recém-lançado. No que depender de faixas como “This Here Ain’t Water”, “Shithouse” e “Desperate Breakfast” não tem como não sair impactado pela performance.

Movies

Assassinos da Lua das Flores

Em quase três horas e meia que passam voando, Martin Scorsese conta a história de extermínio de milionária tribo indígena dos EUA

Texto por Abonico Smith

Fotos: Apple TV+/Paramount/Divulgação

Martin Scorsese declarou, não faz muito tempo, sua aversão por filmes como os da Marvel. Disse que aquilo não era cinema, justamente por estarem fincados no pilar da necessidade de CGIs aos borbotões. Contudo, parece que anda querendo competir com os próprios blockbusters de super-heróis. Pelo menos no que se refere ao tempo de exibição de seus últimos longas-metragens. O Irlandês, de 2019, alcançava 3 horas e 29 minutos de duração. Agora, com apenas 180 segundos a menos, ele lança Assassinos da Lua das Flores (Killers Of The Flower Moon, EUA, 2023 – Apple TV+/Paramount). Em comum aos dois, o fato do diretor não se preocupar muito com a extensão da obra. Afinal, foram feitos diretamente para o streaming. Os espectadores estão em casa, no conforto do lar, podem pausar como e quando quiserem, inclusive podendo assisti-los divididos em alguns dias. Continua sendo cinema segundo a sua concepção, mas agora voltado a um novo modo de consumo, sem a necessidade de estar em uma experiência coletiva vivenciada em salas públicas de projeção.

Polêmicas conceituais à parte, o fato é que, antes de chegar à sua plataforma de streamingAssassinos da Lua das Flores – tal qual a Netflix já fizera com O Irlandês – desembarca primeiro nos cinemas. Coisas das regras para um filme ganhar indicações ao Oscar do início da próxima temporada. Isso torna um desafio um tanto quanto maior para quem se dispõe a sair de casa para assistir a esta “maratona de uma trama só” em alguma sala nas rua ou nem algum shopping center. Prender a atenção e sentar-se na poltrona por 210 minutos sem sequer ir ao banheiro é uma tarefa árdua. Assim como no filme anterior, o novo título de Scorsese também ganha lançamento prévio por algumas cidades brasileiras. E por ter a assinatura do cineasta – que agora também assina o roteiro, ao lado do também veterano Eric Roth (Forrest GumpO Curioso Caso de Benjamin Button, as mais recentes versões de Nasce Uma Estrela e Duna) – vale a pena a aventura.

A história é adaptada do livro de David Grann no qual ele conta a trágica história dos índios Osage por volta de um século atrás, durante os anos 1920. Por sinal, é a mesma história que deu origem à criação do FBI e a subsequente dinastia de quase meio século com J. Edgar Hoover no comando do principal órgão de investigação e segurança nacional dos Estados Unidos. Talvez por ser um livro tão rico em detalhes e com intrincadas referências, que a opção foi deixar uma trama extensa na tela para que fossem exploradas camadas de narrativas, visuais e interpretações do jeito intenso e fluido com que Scorsese sempre conduziu seus filmes.

A tribo nativa estadunidense fora deslocada de sua terra natal em 1870 e colocada em um canto de Oklahoma com o solo seco e rochoso. Entretanto, algumas décadas depois, descobriu-se um farto subsolo petrolífero por lá, tornando os Osage índios milionários, inclusive podendo se dar ao luxo de – contrariando tudo o que acontecera na corrida de colonização do Velho Oeste – poderem se dar ao luxo de contar com empregados brancos no dia a dia. O nome Flower Moon, inclusive, vinha a região dos prados onde ficavam os Osage, que ao fim de cada inverno, tornavam-se um tapete recheado de belas flores coloridas.

Com a benção da tribo e sendo bastante respeitoso ao livro de Grann (que também recebe crédito como corroteirista), Martin conta a história de como uma série de misteriosos assassinatos se abate sobre os Osage. Homens e mulheres são mortos por tiros, explosões, envenenamento. No meio disso tudo, a líder nativa Mollie (Lily Gladstone, em brilhante atuação que pode até lhe dar alguns prêmios e indicações no começo do próximo ano) segue sua luta particular que mistura orgulho indígena a doenças que abatem a sua mãe e a ela própria.

O vilão fica claro desde o início. Ele é o todo-poderoso fazendeiro da região Bill Hale (Robert de Niro), cheio de amigos influentes na política, na polícia e em todo lugar de poder. Por trás da máscara de caridoso benfeitor da sociedade, ele arquiteta os mais malvados e impiedosos planos de extermínio para ficar, legalmente e por meio de herança familiar, com as terras onde abunda o ouro de cor preta. Para isso, Hale possui vários paus mandados. Seu principal ajudante de ordens é o sobrinho Ernest Buckhart (Leonardo DiCaprio), a quem traz para perto para fisgar o coração (e com isso os bens e as propriedades) de Mollie.

Esta é a primeira vez em que De Niro e DiCaprio trabalham juntos sob a batuta de Scorsese. Os dois atores, frequentemente escalados para o elenco das obras do cineasta, revelam ter boa química. Quando entra em cena Gladstone, tudo fica ainda mais iluminado. O resto do elenco também traz um pouco de seu brilho em pequenas participações. Do último ator oscarizado Brendan Fraser (como o advogado da família “mafiosa”) ao sempre impactante Jesse Plemons (como o policial enviado à região pelo bureau federal de investigações). E quem gosta de música também tem quase rês horas de puro deleite. A trilha sonora assinada pelo recentemente falecido Robbie Robertson (leia aqui mais sobre o histórico músico da não menos histórica banda chamada Band) é espetacular ao pontuar as cenas do faroeste dos anos 1920 com as raízes do blues e do country estadunidense. E aos poucos algumas caras famosas como Jason Isbell, Sturgill Simpson, Pete Yorn e Jack White vão aparecendo na tela em pequenos papeis e pontas.

Aos 80 anos de idade e constantemente demonstrando um pleno fulgor criativo, Martin Scorsese faz deste Assassinos da Lua das Flores mais uma grande obra em sua extensa e cultuada filmografia. E ainda faz o tempo voar na poltrona dos cinemas sem a necessidade de apelar para a abundância de CGIs. Isso não só é amor pelo cinema, como também o saber fazer cinema no mais puro sentido da sétima arte, dominando a tecnologia e não sendo dominado por ela.