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Ney Matogrosso – Homem com H

Musical presta tributo ao cantor ao recriar desde a turbulenta relação com pai ao sucesso da carreira solo após a saída dos Secos & Molhados

Texto por Abonico Smith

Foto: Lina Sumzono/Festival de Curitiba/Divulgação

Já faz meio século que um furacão chamado Ney Souza Pereira tomou conta da música brasileira para nunca mais abandoná-la. Desde a meteórica ascensão dos Secos & Molhados até a afirmação de sua carreira solo, iniciada logo após a turbulenta saída do trio e consolidada com uma série de hits pelos anos seguintes. Hoje prestes a completar 83 anos de idade, Ney Matogrosso continua bastante na ativa, produzindo discos e shows, sendo um ícone de gerações na representativa de questões relacionadas a gênero e sexualidade. Isso sem falar no seu gogó de ouro, capaz de produzir notas agudas que arrepiam; na performance, sempre capaz de enlouquecer multidões até os dias atuais; e na calibrada capacidade de escolher repertórios provocativos e que cutucam lá no fundo o conservadorismo da sociedade brasileira.

Por isso que construir um espetáculo musical sobre o artista ainda vivíssimo e esperneando constituiu-se um grande desafio para a turma que montou e colocou nos palcos Ney Matogrosso – Homem com H. A encenação – apresentada no Festival de Curitiba nas duas primeiras noites de abril – mostrou como é possível ser bem sucedida mesmo com as dificuldades mais do que naturais. Ancorada na personificação plena de Renan Mattos como o protagonista (mesmo com a dificuldade de chegar perto do falsete inigualável), o texto cobre desde a turbulenta relação familiar nos tempos de adolescência em Brasília até o sucesso profissional como cantor solo no Rio de Janeiro, depois da meteórica e badalada passagem pelos Secos & Molhados, trio vocal paulista que subverteu a música popular brasileira e desafiou a censura e os militares dos anos de chumbo no regime ditatorial que tomou conta do Brasil após o golpe de 1964.

O esquema do roteiro é simples. Uma sucessão de pequenos esquetes que cobrem paulatinamente o desenvolvimento do artista Ney. Sempre com muito humor, o que favorece ainda mais a aproximação com o público. O primeiro ato começa nas discussões às turras com o intransigente pai militar e se estende às descobertas da juventude em Brasília: drogas, sexualidade, carreira artística. Ao sair da capital federal como ambiente, Ney se joga na vida cultural Rio de Janeiro até ir a São Paulo e se tornar o vocalista do Secos & Molhados, trio que estava nascendo e já vinha sendo bastante cultuado no underground. O recorte histórico da parte inicial se encerra com a realização do fenômeno de vendas e popularidade, por isso mesmo, uma implosão interna motivada por um “golpe financeiro” aplicado nos incautos Ney e Gerson Conrad pelo membro mais atuante nas composições musicais: o português João Ricardo.

A costura musical, até mesmo por questões lógicas, não segue a mesma ordem cronológica da vida antes da entrada em cena do trio – até porque o artista ainda dava seus primeiros passos rumo à fama. Entretanto, farta-se de uma discografia solo, rica em composições com temáticas que ilustram com perfeição cada período retratado. A mobilidade do cenário, formado por diversos palanques cúbicos (de alturas diferentes) e uma dupla de rampas, colabora para a fluidez do roteiro. A cantora e compositora Luli (autora do hit “O Vira”) e o amigo Vicente Pereira (que nos anos 1980 se destacaria como um dos nomes-chave do teatro besteirol nos palcos cariocas) são as personalidades que aparecem com relativo destaque, inclusive sendo “resgatados” no segundo ato.

Passado o breve intervalo, entretanto, a correria toma conta da narrativa, em virtude do tanto de acontecimentos na careira solo de Ney na segunda metade dos anos 1970 e a primeira da década seguinte. Personagens entra e saem de cena, sem muito aprofundamento. Rita Lee é badalada, mas o nome de Roberto de Carvalho, guitarrista da banda solo do cantor montada logo após o Secos & Molhados, sequer é mencionado (Matogrosso foi o “cupido” do casal!). Rosinha de Valença, quem foi ela, afinal? A celebrada musicista desaparece em questão de segundos logo depois de estar no palco. O pianista Arthur Moreira Lima, lá no final, também resvala na tangente das citações, mesmo sendo a peça-motriz da mais significativa mudança artística de Ney durante os 1980s. Mazzola, o produtor artístico de muitos de seus discos, vai e vem, vai e vem, mas também sequer o seu porquê de estar ali é aprofundado. A seleção musical já passa a incluir canções alheias, não gravadas por Ney, mas com toda a relação com a ocasião enfocado. Por falar nisso, a fase do sucesso nacional estrondoso do RPM (primeiro show brasileiro a usar raio laser, com Matogrosso assinando a direção de iluminação) é solenemente ignorada, o que é uma pena.

Cazuza, este sim, recebe mais holofotes. Claro, foi um dos namorados que mais marcou a vida de Ney – e também sua obra. Com caracterização tão duvidosa quanto sua interpretação (que dividiu opiniões entre os jornalistas que cobriam o festival), o vocalista aparece em momentos de grande intimidade com o protagonista e ainda à frente do Barão Vermelho. Outro nome de destaque entre as relações pessoais do cantor também aparece com força: o médico Marco de Maria, o único com quem Matogrosso aceitou dividir o cotidiano em uma mesma casa. Tanto Marco quanto Caju faleceram em decorrência de complicações do vírus HIV. Por isso, a chegada de ambos em cena acaba por deixar um clima bem mais pesado e dramático no musical, que abandona quase que de vez o humor escrachado de antes. A enorme sombra da aids sobre toda a juventude daquela geração foi uma cruz muito pesada de se carregar para quem viveu aquela época (e sobreviveu!). Portanto, não havia mesmo como escapar dela no ato derradeiro mesmo mudando radicalmente a atmosfera de festa.

Foi justamente esta transformação comportamental de uma geração, porém, que sela o fim do musical de uma forma maravilhosa, apesar dos pequenos escorregões no decorrer da encenação de quase quatro dezenas de canções e quase três horas de duração. Os vários Neys que o Ney apresentou entre os anos 1970 e 1980 estão lá, até tudo terminar nele próprio, despido da persona sexualmente fantástica que todo mundo conheceu de início e passou a amar e idolatrar. O Ney Matogrosso incorpora o Ney Souza Pereira também no figurino e na performance de palco, fechando um ciclo de sucesso (e também de insistência, perseverança e também orgulho) para aquele jovem que se lançou no mundo querendo ser ator (e não cantor), sobreviver de sua arte e viver um dia a dia de liberdade plena, sem quaisquer amarras (as sentimentais também!), curtindo e sorvendo cada minuto da vida ao máximo. Homem Com H é um grande tributo a este múltiplo artista de meio século de magnificência e brilho intenso. Tanto que no próximo semestre partirá para uma turnê nacional por grandes arenas e estádios de futebol.

Set List: Primeiro ato – “Sangue Latino”, “Por Debaixo dos Panos”, “Tic Tac do Meu Coração”, “Assim Assado”, “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, “Vira-Lata de Raça”, “Bandido Corazón”, “Divino, Maravilhoso”, “Trepa no Coqueiro”, “Maria/The More I See You”, “Trepa no Coqueiro”,”Nem Vem que Não Tem”, “Balada do Louco”, “O Vira”, “Rosa de Hiroshima”, “Mulher Barriguda”, “Amor”, “Sangue Latino” e “Sei dos Caminhos”. Segundo ato – “América do Sul”, “Com a Boca no Mundo”, “Dancin’ Days”, “Tigresa”, “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”, “Coubanakan”, “Mulheres de Atenas”, “Bandoleiro”, “Ano Meio Desligado”, “Maior Abandonado”, “A Maçã”, “Homem com H”, “Pro Dia Nascer Feliz”, “Poema”, “Blues da Piedade”, “O Tempo Não Pára”, “Mal Necessário”, “O Mundo é um Moinho”, “O Sol Nascerá” e “Homem com H”.

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Nenhum de Nós – ao vivo

Sem um integrante, banda apresenta em Curitiba uma acentuada veia rock’n’roll jamais vista em shows anteriores

Texto por Abonico Smith

Fotos de iaskara

Quando vou escrever o texto de alguma resenha procuro pensar numa ideia referente ao objeto da análise. Pode ser algo sobre o artista, a obra, o público-alvo, mas necessariamente precisa poder me dar algum assunto para discorrer sobre, defender alguma teoria – seja positiva ou negativa – a respeito disso. Quando solicitei o credenciamento para realizar a cobertura da recente passagem do Nenhum de Nós por Curitiba fiquei matutando a respeito do que iria ser a costura do texto.

Acabei me fixando em um ponto curioso. Ainda são várias as bandas que colocaram o rock no mainstream brasileiro a partir dos anos 1980 que permanecem em atividade. Isso que dizer que lá se vão entre três e quatro décadas continuas de shows e lançamentos de discos (no formato do momento do mercado fonográfico que fosse). Só quase todas sofreram com perdas pelo caminho. Mortes, desentendimentos, rompimentos e saídas dos integrantes de suas formações, se não a original, a clássica, aquela que ficou conhecida pelo grande público. Só para citar algumas que permanecem vivas: Blitz, Rádio Táxi, RPM, Barão Vermelho, Titãs, Ultraje a Rigor, Ratos de Porão, Mercenárias, Replicantes, Ira!, Capital Inicial, Biquíni, Inocentes, Plebe Rude, Legião Urbana (ops, essa não pode, judicialmente, nem utilizar o próprio nome durante as turnês!). Se o panorama se estender para os anos 1990, outra década de ouro do gênero no Brasil, temos Raimundos, Nação Zumbi, mundo livre s/a, Planet Hemp, Natiruts, Relespública, Sepultura e por aí vai. Caso você queira estender o panorama aos anos 1970, dá para adicionar dois heróis da resistência bem famosos, que mais recentemente decidiram retomar a trajetória como conjunto: Mutantes e Novos Baianos.

São poucos os exemplos quem sobreviveu ao desmonte mantendo o mesmo time clássico de músicos. Pode-se começar por aquelas exceções graças a curiosidades. O Los Hermanos só volta a se reunir em turnês esporádicas a cada três ou quatro anos. O Skank permaneceu unido até o começo deste ano até, enfim, dar adeus aos palcos. O Pato Fu iniciou como um trio que está lá até hoje na linha de frente, embora outros instrumentistas (teclados, bateria, percussão) tenham ido e vindo na formação. Dá para contar nos dedos de uma mão aqueles que permanecem intocáveis: Jota Quest, Racionais MCs (ainda mais para quem defende a teoria de que o rap é o novo rock), Paralamas do Sucesso (que inclusive montaram um show baseado no trio-que-vira-quarteto, com o tecladista que toca com eles desde sempre) e, o foco deste texto, Nenhum de Nós. Muitos músicos dizem que fazer parte de uma banda é como manter um casamento, quase sempre com mais de duas pessoas envolvidas. Por isso dar continuidade ao relacionamento acaba virando algo difícil quanto com o passar dos anos. Sem falar no sempre eterno Made In Brazil.

O Nenhum de Nós é um caso interessante quanto a isso. Começou em Porto Alegre em 1986 como um trio (Thedy Corrêa, baixo e voz; Carlos Stein, guitarra; Sady Homrich, bateria) e nos anos seguintes gravou os dois primeiros discos, já com três grandes hits  nacional (“Camila, Camila”, “Eu Caminhava” e “O Astronauta de Mármore”). O terceiro, de 1990, indicou um crescimento tanto no direcionamento sonoro (a incorporação de timbres e instrumentos que flertavam com a música tradicional gaúcha) e o acréscimo de Veco Marques para se dividir entre os violões e a segunda guitarra. Em 1996, já no sexto disco, o quarteto virou oficialmente um quinteto, com o músico de apoio João Vicenti (teclados e acordeon) virando membro fixo. Já na primeira década do novo século, Thedy passou a se dedicar mais à função de frontman sem ter de estar sempre tocando algo com as mãos. Por isso, deixou o baixo a cargo de Estevão Camargo, que desde então acompanha o grupo nos concertos sem, contudo, figurar na formação oficial. Portanto, é um trio que virou quarto, transformou-se em quinteto e hoje viaja como sexteto. Mas o mais importante é que quem entrou para o time não saiu mais. Nunca mais. Pelo menos até agora. Ou não?

Madrugada de 17 de setembro deste ano. Perto da uma da manhã, o Nenhum de Nós está sendo aguardado por uma plateia ávida por rock cantado em português. A banda gaúcha era a atração principal da noite no White Hall Jockey Eventos, que lançava a edição deste ano do Prime Rock Festival em Curitiba, evento anual que reúne grandes nomes do segmento durante um dia todo na Pedreira Paulo Leminski – informações sobre atrações, ingressos e tudo mais do próximo dia 9 de dezembro você encontra clicando aqui). Chego quase em cima da hora do início do show e me posiciono bem na cara do palco, mas na lateral direita. Era uma área reservada para ingressos vip. Dali, bem na grade, enxergava com perfeição a frente toda. Mas pouco via a bateria colocada ali ao fundo.

Entraram os músicos. Thedy, Carlos, Veco, Sady, Estevão… Mas cadê João? Me dirigi em direção ao centro e só então caiu a ficha: não havia nada de teclas disposto no palco. Nada da sanfona, nenhum teclado sequer. Atrás dos guitarristas e do vocalista, apenas o kit de Homrich e o pedestal com microfone para o baixista fazer os backings. O que teria acontecido com Vicenti? Espero alguma informação dita entre as músicas a respeito da ausência. Nada. Teria saído do grupo?

Lembro rapidamente que horas antes havia procurado na internet NdN informação mais recente sobre a banda. Algum lançamento, algum anúncio. Afinal, já fazia um tempinho que não sabia nada a respeito de novidades. Para minha surpresa, um comunicado dizia que o site oficial está em fase de reconstrução e em breve estará novamente ativo. Fui às redes sociais do NdN e também nada de novo encontrei por lá. Enquanto isso, as primeiras canções seguiam e Thedy continuava sem se pronunciar a respeito da “nova formação” de quinteto.

Passou mais um filme ligeiro em minha cabeça. O de que jornalistas também passam por perrengues em suas coberturas externas. Muitas vezes o cenário encontrado no local pode não bater com as informações prévias que existem sobre aquela pauta. Me peguei ficando surpreso e ansioso por alguma peça que ainda faltava no quebra-cabeça. Acompanho a trajetória ao vivo do NdN com regularidade desde 1988, quando assisti em um palquinho armado no Parque Barigui ao lançamento do primeiro álbum deles (e na sequência fui entrevistá-los no microônibus estacionado nos bastidores). Na foto utilizada nas peças promocionais da apresentação do White Hall o tecladista estava presente. Cadê João Vicenti e por quê ele não estava lá eram as perguntas que se repetiam em marteladas na mente. Havia ainda espaço para mais outras duas: será que todo o mote previamente pensado para escrever este texto teria simplesmente desabado em questão de segundos e eu teria de me virar para achar um fio condutor ali, meio que do nada, enquanto as músicas eram tocadas?

Um certo nervosismo tomou conta depois de um punhado delas. Fui observando como estavam os arranjos sem piano, teclado e acordeon. Percebi que Thedy empunhou mais vezes o violão, tecendo o fundo das bases harmônicas. Percebi também que o volume das guitarras de Veco e Carlos estavam mais alto do que o de outros shows anteriores em que estive presente. Com mais peso e distorções também. Puxava na cabeça a lembrança das gravações em discos de estúdio. Tinha momentos em que eles (às vezes um, às vezes outro, às vezes os dois juntos) substituíam os riffs tocados nas teclas pretas e brancas ali nas ligas metálicas que formam as seis cordas. Aos poucos ia criando um plano B para poder fazer a resenha enquanto ainda esperava alguma fala sobre a ausência da noite. Criatividade e improviso também são recursos de última hora que podem (e devem) ser utilizados durante o exercício do jornalismo.

set list do Nenhum de Nós em versão quinteto acabava surpreendendo. Nunca havia visto os gaúchos em uma performance tão (com o perdão do trocadilho besta para um artista que já lançou alguns discos acústicos!) elétrica. A veia pop que sempre permeou aquela extensa coleção de hits que o grupo costuma tocar ao vivo nunca havia soado tão rock’n’roll como ali, naquele instante. Várias vezes me peguei olhando o figurino escolhido pelo vocalista para se apresentar na capital paranaense. Uma jaqueta jeans trazia vários signos do rock entre o cult e ounderground. O slogan básico rock’n’roll, uma caveira, uma cruz, um enorme rosto de David Bowie do look raio colorido no rosto enfeitava as nas costas, um X bem grande na lateral frontal (que poderia remeter tanto à negação e à ruptura propostas pelo gênero como também à histórica banda punk X, de Los Angeles). Por baixo da jaqueta, uma camiseta com a estampa onde se lia o nome original do livro Espere a Primavera, Bandini. Publicada em 1938, a primeira obra de John Fante fala sobre o típico sentimento de inadaptação durante a adolescência, o fato de se sentir deslocado em relação à família, escola e sistema vigente. O protagonista Bandini nada mais era do que o alter ego do autor, que depois viria a escrever o clássico Pergunte ao Pó e se tornar um dos nomes mais cultuados da literatura underground norte-americana do século 20. Sei que Thedy é um consumidor voraz de livros e HQs. Estaria ali na camiseta dele um recado discreto sobre a “nova fase” do NdN?

Conforme o show se encaminhava para o final sentia o que em inglês se chama de mixed emotions. Gosto demais do terceiro álbum, Extraño, de 1990, no qual o Nenhum de Nós passou a incorporar elementos e influências da música regional do sul do país, criando uma identidade própria que passou a diferenciá-la de outros grupos locais de sua época – inclusive incluí o disco na minha votação feita para o recentemente lançado livro sobre os cem maiores álbuns do rock gaúcho. Com o tempo e a rápida consolidação do então músico de apoio João Vicenti na formação oficial, o NdN foi desenhando uma sólida discografia em conjunto com grande fanbase em todo o país. Saiu de uma grande gravadora, pipocou por vários selos menores e/ou independentes, voltou a uma major, retornou à independência (estacionando em 2009, enfim, no do it yourself do selo ligado à própria produtora de shows que sempre esteve com a banda). Tudo isso sem diminuir o volume de convites, viagens, lançamentos e fãs. Como assim, de uma hora para outra, depois de três décadas, poderia haver uma nova adaptação sonora tão repentina?

Ao mesmo tempo, a garra e o afinco mostrados ali, sem João e com muita segurança, possibilitaram que, sim, poderiam servir como um alívio imediato (com o perdão do trocadilho que faz uso do nome de uma música de outros gaúchos, os Engenheiros do Hawaii!) para um possível imediatamente “novo” NdN. Ao vivo já resolvido. Talvez em estúdio preparando novidades e surpresas para logo.

set list foi chegando ao final com os refrões dos diversos hits cantados a plenos pulmões e algumas covers adicionadas estrategicamente no repertório – afinal o evento era para promover o vindouro festival que celebra o rock nacional. Teve, então, “O Segundo Sol” (de Nando Reis mas muito famosa na voz de Cassia Eller), “Gita”(de Raul Seixas, de quem eles já regravaram “Tente Outra Vez”), “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo” (de Lô Borges e lançado no histórico álbum Clube da Esquina) e “Toda Forma de Amor” (de Lulu Santos). As duas últimas, aliás, os gaúchos regravaram em Outros, disco de intérprete dedicado ao repertório alheio, lançado em 2012). E o encerramento (por que não?) do bis ficou com “O Astronauta de Mármore”, a consagrada versão em português para “Starman”, de David Bowie. Contudo, nenhum palavra proferida a respeito de João Vicenti não estar ali. 

Depois de cerca de uma hora e quinze de apresentação, saí do White Hall ainda encafifado mas com uma ideia simples e básica: mandar uma mensagem para Thedy perguntando o porquê da ausência de João. A resposta chegou no meu whatsapp horas depois, dando, enfim, uma conclusão para o mistério: ele sequer embarcara para Curitiba, pois havia sentido uma indisposição. Menos mal. O Nenhum de Nós não perdera um membro. O desfalque era apenas momentâneo e a sonoridade com a mistura de elementos da música gaúcha não fora descartada. Lado positivo: quem esteve ali na casa pode ver um raro show do NdN em que ele voltava às origens guitarreias pré-Extraño, porém com muito mais peso e barulho. E o fim definitivo dessa incógnita ainda possibilitou uma saída robusta para a tarefa de escrever o texto sobre o concerto: transformá-lo em misto de resenha, relato pessoal da noite e crônica gonzo.

Set list: “Paz e Amor”, “Notícia Boa”, “Eu Caminhava”, “Amanhã ou Depois”, “Eu Não Entendo”, “Das Coisas Que Eu Entendo”, “O Segundo Sol”, “Sobre o Tempo”, “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo”, “Diga a Ela”, “Gita”, “Julho de 93”, “Você Vai Lembrar de Mim”, “Vou Deixar Que Você Se Vá” e “Camila, Camila”. Bis: “Toda Forma de Amor” e “O Astronauta de Mármore”.

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Cazuza

Um olhar com o distanciamento do tempo sobre o cantor e compositor que morria há trinta anos e deixava marcas profundas na música brasileira

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Texto por Henrique Crespo

Fotos: Reprodução

E completam-se 30 anos sem Cazuza. Foi em 1990, numa manhã de sábado, no dia 7 de julho, que Agenor de Miranda Araújo Neto foi atropelado pelo trem da morte. O trem que cantou com voz falhando, em “Cobaias de Deus”, faixa de Burguesia, o álbum-despedida.  Lucinha Araújo, sua mãe, conta no livro Cazuza – Só as Mães São Felizes(escrito em parceria com a jornalista Regina Echeverria e publicado pela Editora Globo), que, na véspera, o filho a chamou com um fiapo de voz: “Mamãe, estou morrendo…”. Ela reagiu, indignada, dizendo para ele que não devia falar essas coisas. “Porra, mãe, eu tô morrendo é de fome. O que tem para rangar?”, o filho retrucou. Uma cena com a cara dele.

Caso a gente embarque nos exercícios especulativos sobre a possível vida presente de um artista que já morreu, como imaginar Cazuza nos dias de hoje? Difícil cravar o que diria ou como se posicionaria. Afinal, era um cara completamente imprevisível. Mas dá para apostar que aquela figura inquieta não caberia no Brasil atual.

O jovem tipicamente carioca, nascido e criado na zona sul, parte privilegiada da cidade partida, encontrou e se encontrou na música. A essa altura, todo mundo conhece a história que conta que Léo Jaime apresentou o amigo como candidato a vocalista da vaga que antes lhe fora oferecida, no recém-formado Barão Vermelho. Iniciava ali uma trajetória artística curta (de 1981 a 1990), mas impossível de ignorar. Algo como um fenômeno da natureza que passa causando efeito e deixando memória.

Cantor de voz rascante e bluesy, performer de formação teatral – e, no meio disso, o que se impunha, era sua verve letrista. Gravadas com o Barão, na carreira solo e por outros artistas. Deixou pouco mais de uma centena de registros, sem contar os vários poemas que ainda estão no baú e, quem sabe, ainda se transformarão em novas canções. Essas criações, na grande maioria em parceria com outros compositores, estão todas publicadas no livro compilação Preciso Dizer que te Amo (tamém assinado por Lucinha e Regina Echeverria, também editado pela Globo). Uma obra nem tão numerosa e nem tão pouca, porém de tamanho imensurável.

Um jogo divertido ao se embrenhar nela é pescar alguns versos e isolá-los. Funcionam como frases de impacto. É possível imaginá-las em camisetas, em postagens de rede sociais, até em cartazes de manifestações. Alguns deles parecem conter um livro inteiro de significados e reflexões. Tudo sem nunca deixar de soar como algo possivelmente dito numa mesa de bar. “Eu quero a sorte de um amor tranquilo/ Com sabor de fruta mordida/ Nós na batida no embalo da rede/ Matando a sede na saliva” (“Todo Amor que Houver Nessa Vida”, de Cazuza e Frejat); “Mais uma dose?/ É claro que eu estou a fim/ A noite nunca tem fim/ Por quê que a gente é assim?” (“Por que a Gente é Assim?”, de Cazuza, Frejat e Ezequiel Neves); “Nadando contra a corrente/ Só pra exercitar/ Todo o músculo que sente” (“Por Dia Nascer Feliz”, de Cazuza e Frejat); e “Raspas e restos/ Me interessam/ Pequenas poções de ilusão/ Mentiras sinceras me interessam” (“Maior Abandonado”, de Cazuza e Frejat), algumas entre tantas da época do Barão Vermelho, ilustram isso. Também da fase solo dá para pinçar trechos quase que aleatoriamente. “Não escondam suas crianças/ Nem chamem o síndico/ Nem chamem a polícia/ Nem chamem o hospício, não/ Eu não posso causar mal nenhum/ A não ser a mim mesmo” (“Mal Nenhum”, de Cazuza e Lobão); “As possibilidades de felicidade/ São egoístas, meu amor/ Viver a liberdade, amar de verdade/ Só se for a dois” (“Só se For a Dois”, de Cazuza e Rogério Meanda); “Meus heróis morreram de overdose/ Meus inimigos estão no poder/ Ideologia/ Eu quero uma pra viver” (“Ideologia”, de Cazuza e Frejat); “Vamos pedir piedade/ Senhor, piedade!/ Pra essa gente careta e covarde/ Vamos pedir piedade/ Senhor, piedade!/ Lhes dê grandeza e um pouco de coragem” (“Blues da Piedade”, de Cazuza e Frejat); e “Brasil mostra tua cara/ Quero ver quem paga pra agente ficar assim/ Brasil, qual o teu negócio?/ O nome do teu sócio?/ Confia em mim” (“Brasil”, de Cazuza, George Israel e Nilo Romero) são outros. E paramos por aqui porque a lista é grande.

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Foi no final de julho de 1985, na porta da gravadora Som Livre, pouco antes do Barão assinar o contrato para o quarto disco, que Cazuza comunicou sua saída. O filho único de João e Lucinha Araújo não parecia mais disposto a dividir atenção com uma banda e caiu fora, justamente quando o quinteto tinha virado um grande sucesso nacional. Maior Abandonado, o terceiro álbum deles, já estava com 100 mil cópias vendidas, quando o vocalista anunciou que estava fora. Mais uma cena com a cara dele.

Começava, então, o que podemos identificar como segunda fase da carreira de Caju (apelido que ganhara dos amigos). No mesmo ano da separação, lançou Exagerado, álbum que registrou três composições que – segundo o livro BRock – O Rock Brasileiro dos Anos 80, de Arthur Dapieve (Editora 34) – seriam gravadas no novo do Barão, caso tivessem seguindo o plano original. São elas “Boa Vida”, “Só as Mães São Felizes” e “Rock da Descerebração”, todas assinadas ao lado de Frejat – parceria esta que, desde o início, rendeu vários hits e clássicos e ainda iria se estender por toda a carreira do Cazuza. O álbum que lançou em 1987, Só se For a Dois, é uma espécie de continuação do primeiro solo. Ou seja, discos que ainda não definem com precisão o lugar do cantor e compositor no cenário da música brasileira. Claro que já deixavam explícito que o cara, mesmo solo – nunca sozinho, pois estabeleceu parcerias criativamente produtivas – estava acima da média. Os dois trabalhos renderam sucessos nacionais, momentos brilhantes e um repertório que ganhou versões e regravações de outros artistas. Por outro lado, ficam no meio do caminho entre deixar ou não o rock’n’roll pra trás.

Com Ideologia, Caju achou seu lugar, ou melhor, criou o seu lugar. O álbum de 1988 fincava a obra de Cazuza no cenário artístico brasileiro. É discoteca básica, é o clássico, o disco que achou o som do artista. Aquele que usa o rock com a conveniência maquiavélica, mas em essência é totalmente desprendido dessa fronteira. Não se faz nele um rock que se mistura à música brasileira, movimento que se anunciava nesse fim dos 80, mas sim uma MPB com linguagem pop que sabe fazer uso estratégico do rock. Sem falar no discurso, que é oportuno e afinado com o tempo. Gerou mais hits e clássicos.

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O disco ao vivo, lançado em 1989, é, provavelmente, a necessidade dele de sublinhar esse lugar. De brinde luxuoso, uma inédita. “O Tempo Não Pára”, canção que dá nome ao álbum e parceria de Cazuza com Arnaldo Brandão, é um torpedo certeiro, que pega a ideia de que a História se repete e manda um recado contundente, com reflexão nada leve sobre a vida. Uma música cheia de versos de forte impacto. O álbum é um registro da turnê do álbum anterior. Tour esta que foi um sucesso, mas rendeu muitas situações de tensão. Caju estava em tratamento, fazia algum tempo que  tinha sido diagnosticado com o HIV. E isso somado ao álcool e drogas, o deixava mais incontrolável ainda, como conta a mãe, no já antes citado livro Só as Mães são Felizes. Lucinha também diz que o filho declarou que, por não acreditar em vida depois da morte, queria viver todo o possível, chegar às últimas consequências. Nesse clima, Cazuza cuspiu – como protesto contextualizado – numa bandeira brasileira que foi jogada no palco. A repercussão na imprensa foi grande e nada boa. O mesmo livro lembra um fato curioso, mas que diz muito sobre o momento: a cuspida de Caju fez com que O Estado de São Paulo proibisse o nome do artista em suas páginas. Impossível não conectar isso com o fato de que neste show (e nesta turnê) Cazuza cantou “Brasil”, o sucesso que traz os seguintes versos: “Grande pátria desimportante/ Em nenhum instante eu vou te trair”.

O disco seguinte nasceu com o cantor e compositor já bastante debilitado de saúde. Burguesia é um legítimo e comovente registro do momento. Entre vinte canções, apenas quatro delas não traziam a assinatura dele. Foi lançado como álbum duplo. Irregular, com imperfeições, mas muito sincero e com alguns momentos arrepiantes, como a citada “Cobaia de Deus” (de Cazuza e Ângela Ro Rô) e “Quando Eu Estiver Cantando” (de Cazuza e João Rebouças). Um disco de despedida, carregado de honestidade.

Teve ainda Por Aí…, lançado em 1991. Como todo disco póstumo, é retalhado. São sobras de gravações de outros álbuns. A música que dá título ao álbum é uma nova versão da faixa do primeiro lançamento do Barão Vermelho. Aqui tem também o Cazuza em sua onda intérprete, no standard “Summertime” (Heyward e Gershwin), “Camila, Camila” (hit da banda gaúcha Nenhum de Nós) e “Cavalos Calados” (Raul Seixas).  De resto, são mais sete faixas com parceiros diversos. Cá entre nós, é um item só para colecionadores.

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Do que fez com os amigos do Barão Vermelho até as várias outras parcerias com tanta gente diferente, dá para encontrar alguns pontos em comum. Um deles é a capacidade de criar um ambiente, um cenário, cena que está intimamente ligada ao universo que ele circulava, o Rio de Janeiro da virada dos 1970 para os 1980 e por toda essa década. Além disso, nele estava o rock como espírito de época, mas as composições podiam ser vistas, em geral, como dor de cotovelo, samba-canção, música de fossa, o mundo da boemia. Algumas de suas criações poderiam ser ouvidas na voz de uma Maysa, por exemplo, sem causar estranheza. Duvida? Olhe isso: “Amor escravo de nenhuma palavra/ Não era isso que você procurava” (“Baby Suporte”, de Cazuza, Maurício Barros, Pequinho e Ezequiel Neves); “Se todo alguém que ama/ Ama pra ser correspondido/ Se todo alguém que eu amo/ É como amar a lua inacessível” (“Não Amo Ninguém”, de Cazuza, Frejat e Ezequiel) e “O teu amor é uma mentira/ Que a minha vaidade quer/ E o meu, poesia de cego/ Você não pode ver” (“O Nosso Amor a Gente Inventa”, de Cazuza, João Rebouças e Rogério Meanda).

Para o jornalista Zeca Camargo, no início de 1989, assumiu publicamente que estava com AIDS. Notícia que virou capa da Folha de S.Paulo de 13 de fevereiro. A coragem em assumir (lembrem-se era o ano de Mil Novecentos e Oitenta e Nove, ainda meses antes da queda do Muro de Berlim!) e a forma como lidou com as consequências dessa exposição são quase que continuações ou sintomas da própria obra do artista. Ou seja, cenas com a cara dele.

O compositor Cazuza já foi e ainda é muito gravado e regravado. A grande lista de intérpretes de sua obra tem a característica de ser heterogênea. De Ney Matogrosso – o primeiro – passando por Cássia Eller – uma das mais próximas ao espírito da obra – e seguindo por, entre outros, Marina Lima, Gal Costa, Ângela Maria, Simone, Sandra de Sá, Joanna, Supla, Bebel Gilberto e Léo Jaime, a lista revela que suas músicas não se fecham em um pequeno universo.

Caju, que morreu com 32 anos de idade, já foi tema de filme, peça e livro. Cazuza – O Tempo Não Pára, longa-metragem dirigido por Sandra Werneck, foi lançado em 2004. Antes, em 2000, com sucesso de público, sua obra inspirou uma história original que deu origem ao musical Cazas de Cazuza, escrito e dirigido por Rodrigo Pitta, e que há pouco tempo ganhou nova montagem. Cazuza – Pro Dia Nascer Feliz, o Musical”, é um sucesso teatral escrito por Aloisio de Abreu e dirigido por João Fonseca, que estreou em 2013. Lucinha Araújo junto com a jornalista Regina Echeverria publicaram dois livros, os dois citados anteriormente aqui no texto: uma biografia pelo olhar da mãe e uma compilação com todas as letras dele.

Longe de esgotar o assunto, todo esse material gerado pela vida e música dele, ajudam a entendê-lo. Tem ainda uma lacuna aí, porém para o documentário. Quem se habilita?